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POS-MODERNISMO E VOLTA DO SUBLIME NA POESIA BRASILEIRA Italo Moriconi® iciais Os anos 80/90: marcagée: Olhar para a cena poética contempordinea com intengdes de historiador significa propor-se a identiticar ncla sinais de dife- renga em relagto a cena imediatamente anterior. O intervalo entre cenas velha e nova, marca da periodizacio, tanto pode ser postu- ado de maneira arbitriria, apoiando-se na mera cronologia como ponto de partida para a reflexio, quanto pode indicar jé uma den- sidade, j4 um panorama nitidamente reconhecivel enquanto outro. * Halo Moriconi 6 escrito’ e prolessor de Literatura Brasliika © Comparada na LUERJ. Autor de Quase serio (poasia, 1996) ¢ Ana Crista Cesar—o sangue ‘de uma poeta lensaio biagréfico, 1926). Na pés-graduapéo da UERJ, orienta pasquisas scbre pés-medemnismo na poesia braslelia e sobre as relagnes fenire corpo e histria na literature contemporanea. No terreno mais restrito da crdnica do contemporaneo, onde pre tendo situar as linhas que se seguem, cabe constatar que-o esforco dle inteligibilidade nao pode contar com os beneficias da distin- cit irdnica ou cicntifica, O critico cronista est excessivamente comprometido por lagos de conhecimento pessoal, por maior afi- nidade de valores com uns que com outros, por comunidades parciais de interesses dentro dos sistemas ¢ circuitos de produgio. e circulagao de literatura ~ sistemas de textos e assinaturas, mer- cados de linguagens ¢ imagens, Sistemas esses que, no caso do Brasil, se complicam pela dialética centrojperiteria, 0 cixo Rio- 'S.Paullo versus os demais estadlos. Por tudo isso, dentro ou tora da academia, 0 critico cronista pouco apetite demonstra hoje pelo panorama exaustivo. O que se pode esperar e exigir dele € que seu recorte de preferéneias contribua para uma melhor perspectivacio do panorama por parte do leitor Mas independente dos a prioris do olhar de quem desere- ve, existem eletivamente contextos de mais alta ¢ contextos de mais baixa detinicao. Se a cena poética brasileira dos anos 90 desdobra tragos detinidos a partir de um comeco localiziivel mo infcio da década anterior, quem tenla esbogar com mais elareza 0 pettl literdtio de ambas ainda se depara com dificuldades, embo- 1a nos titimos dois ou tés anos se possa verificar uma tendéncia romogencizagao dos projetos individuais, pela feliz (ou inteliz) ‘conjugacao entre poetas e poder jornalistico. Isso porém'nao anu- la 0 fato de que os quase vinte anos entre 1980 ¢ 97 continuam carecendo de conceituacdes. Em contraste, a marca dos anos 70 viora desde 0 inicio revestida pelo impacto da presenga de uma xcracio (a marginal) que escrevia ¢ agia (¢ sua escrita se queria registro de acho existencial) ostensivamente diferente de seus anlecessores imediatos dos anos 60, tivessem eles sido os iardistas do concretismo ou os neomodernistas do cengajamento. A partir da Antologia 26 Poetas Hoje em cima da loitura avida de um sem-mimero de livrinhos semi-artesanais, os criticos e 0s proprios poetas dos anos 70 comegaram a discutir sobre si proprios ao mesmo tempo que langavam nas Tuas € nos corteios sua produgdo de maa em mao, cenétio p6s-modernista na poesia brasileira recebe sua primeira definigao da geracdo marginal ¢ indica em nossa cultura intelectual a presenea difusa do espirito de Maio de 1968 e dos movimentos contestatorios norte-americanos, combinando hedonisino ¢ contracultura, Embalados pelo rock alicnigenic pelos ritmos e letras da MPB de Caetano Veloso, Chico Buarquc ¢ sti= tos outzos, os poctas literarios ¢ 0s er gidos nos anos 70, tanto no Rio de Janeiro quanto alhures, situaram-se de maneira sempre ambigua frente a dois cinones rivais: o panteio mocer- nista ¢ 0 paradigma cabralino-concretista, Oscilando entre a pedagogia j4 oficializada do primeira e 0 impeto sentenciasamente reformista do segundo, descreveram uma trajet6ria que levou da contracultura a reacao cultural. Reagio esta vivida em alguns ca- Sos como superacao autocritica do pensamento ideol6gico, através di adesio aos valores liberais do pluralismo © da negociagio, no lugar das priticas dogmiticas ¢ exeludentes; em outros casos, colocada como pura ¢ simples restauragao de valores tidos coma universais, no interesse de discursos por vezes francamente neoconservadores. © comegar diferente dos anos 80 deu-se de infcio mais na esfera das condicdes de producio € circulacao do poema do que o de novas escritas, de noves universos ou estraté- uagem, De mancira andloga ao ocotride nos demais ‘campos da arte, tanto no plano nacional quanto internacional, os 80 foram assinalados pela normalizacdo pés-vanguardista los circuitos. Entenda-se pela expressio o desprestigio das ideologi- as e priiticas de tipo transgressivo, em favor de uma nova crescente preocupacio com a cariter funcional ¢ pedagégica (numa palavra: pragmitico) das manifestagbes artisticas, O mer- cado. a universidade, os museus absorveram o experimentalismo como peca do sistema ¢ capitulo esclarecido das natrativas sobre cultura. Na poesia, episédio emblemdtico foi o langamento da Colecio Cantadas Literirias, pela Editora Brasiliense, logo nos primeiros anos da década (81, $2). Através desta Colegio, alguns dos principais poctas dentre os inémeros que tinham langado li- vrinhos semi-artesanais no circuito altemativo dos anos 70 foram alcados ao status de autores publicados por grande editora do cixo Rio-S.Paulo, com diteito a boa distribuigio nas livrarias de todo © pais e garantia de formagao de fic] piiblico leitor. Lembremos (os nomes: Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, Francisco Alvim, Chacal. Circulando agora no mercado cultural estruturado, © li- vro de pocsia queria deixar de ser mero sismégrafo das inquictagdes de uma geragio condenaca & cterna adolescéncia. E no contraste com esta geracio que 0 novo dos anos 80/90 pode ser melhor discernido. Abramos portant um paréntese pa A geracao 70 Dos quatro poetas citados, Ana Cristina era a mais experi: mental em matéria de linguagem, mas no sentido da écriture francesa, estabelecendo-se portanto em descontinuidade com os paramettos construtivistas da vanguarda concreta. Ji o padrio de linguagem seguido sempre por Leminski e Chacal, e quase sem- pre por Alvim, refletia a hegemonia do poema curto nos anos 70. Modelos formais privilegiados na época foram 0 haikai, abrasileirado por Leminski e outros, ¢ o epigrama critico-jocoso. inspirado na “poesia pau-brasil” de Oswald de Andrade. Se em Alvim encontramos 0 esforgo severo de uma ironia eética, em Chacal ¢ Leminski a poesia se queria rapide facil como letra de cancao, era poesia na velocidade da midia, Em contraste, a de Ana Cristina vinha saturada de alusoes literdrias. A escrita af se dava como grifico c testemunho de incessante atividade de leitu- "1, configurando uma estética do pastiche, no sentido de Fredric Jameson. Um corpo a corpo com os cinones literarios, indiciando conflito permanente entre o desejo e a impossibilidade de educa- io sentimental ¢ de Bildung intelectual. Mesmo na poesia culta de Ana Cristina, a Cultura foi tratada como uma espécie deAncien Régime da palavra Nos textos dela, de Francisco Alvim e de varios outros po- tas que lungaram trabalhos: representativos do que acabou sendo genericamente denominado poesia marginal (como Cacaso, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Leila Micolis, Sebastiio Nunes, entre outros), vemos constantes referéncias criticas a situ- acio politica do Brasil na época (regime militar), muitas vezes a partir da vontade de desconstruir os mitos e estilemas nacionalis- tas da esquerda tradicional brasileira. Os anos 70 foram marcados, pela superurbanizacao do pais ¢ crescente internacionalizacio homogenizadora da cultura cotidiana no Brasil. Os poetas margi- nais, assim como antes deles os artistas e miisicos tropicalistas da segunda metade dos anos 60, pretenderam falar criticamente da situacio brasileira, mas incorporando como um dado de positividade a nova realidade sociol6gica. 14 trabalharam dentro € junto com o imaginatio pop massificado, em contraste com as, linguagens culturais tipo partido frente ampla que projetavam imagens semitolcl6ricas ou populistas da entidade povo, Alids, relagio entre poesia e imagindrio pop (ou midi‘tico) & capitulo de politica cultural nao populista que produz um elo entre marginélia, tropicilia ¢ concretismo. Do ponto de vista estético, © mais importante a ressaltar em prol da claboragéo conceitual ¢ a indissolubilidade entre a nogio de poesia marginal ¢ um conceito de pratica textual como escrita da e de circunstincia. A circunstancia historic. ‘ou pessoal, é tema ¢ modelo formal para o poema. No regime da rarefacao, instaurado pela hegemonia do poem curto, 0 Verso de circunstancia se projeta como anotagio cologuial ¢ casual do ins tunte vivido, simulacro do motor do acaso na banalidade das horas. E total a descrenga em relagao a grandes projetos, comecando pelos literdrios. Estamos longe das glori6sas ambigdes que tinham motivado os mestres modernistas de 22 ¢ 30, tao dedicados & cons- trugao de uma Cultura Brasileira. Longe também do entusiasmo pela modernidlade que animara a vanguarda coneretista nos anos, 50. O apego ao corpo & a tinica coisa que sobra no contexto de cticismo ~ e até de cinismo — generalizado entre os poetas © inielectuais mais tipicos dos anos 70. apego ao corpo recoloca no cendrio » valor da poesia como enccnagio da subjetividade. Tal valor fora banido pela ge- ragio de criticos universitarios que nos anos 60 endossara tanto a ideologia antilirica de Joao Cabral quanto 0 conceito de poesia antioxpressivista, peremptoriamente anti-hedonista, formulado pelo neotuturismo dos coneretos. © paradigma’ cabralino- concretista construido 4 partir desses critérios conjugava 2 mallarmaica desaparicao elocut6ria do eu a imposigao de uma estética de rigor, contraposta & elogiiéncia modemnista, Apesar da volta do ou e da tentativa de linguagem coloquial, que buscava reaproximar a poesia da lingua brasileira falada nas ruas ¢ ouvida nas radios, alguns dos melhores textos produzidos por autores vinculados a constelagio marginal ainda se mantiveram nos mar- cos da estética do rigor. O subjctivismo dos poetas brasileiros p6s-68 nao pode ser rcificado como um bloco homogéneo ou ingénuo. Pois na civil zagio hedonista, é da ferida narcfsica que a poesia fala, Em boa parte dos melhores casos (como Ana Cristina, Chico Alvim, ¢ ainda outros como Ronaldo Brito, Sebastiio Uchoa Leite, Ar- mando Freitas Filho) ha na verdade distanciamento em relacio & posigdo de um sujeito plenificado e presente a si. A questi do lo sujeito € colocada para ser desestabilizada, desconstruica (Ana, Chico, Armando) ou negada ¢ satirizada (Ronaldo, Sebastiso). Uma releitura dos versos de Leminski me surpreendeu pela fragi lidade existencial que expressam, entrando em choque com o que purecera & primeira vista expressio de imensa vaidade solar. No caso de Ana Cristina, assim como em Silviano Santiago, a subje- tividade € lacanianamente estilhagada c radicalmente historicizada mediante jogos intertextuais. 14 em poctas como Geraldo Carnei- foe 3S vezes em Waly Salomao, a estética do pastiche contribu para a indecisio entre fortalecer ¢ desestabilizar a posigio do su- vito. Com excegiio de Ana Cristina, pelas razdes expostas aci- ma, e de Leila Micolis, que pratica uma linguagem masculinizada de deboche bordelesco na tradigao do satirista colonial Gregério de Matos, boa parte das poetas mulheres surgidas no pds-68 & responsivel pela onda de subjetivismo identitario, atirmativo e autocelebrat6rio na poesia brasileira recente. A voz avassaladora da malher indica, como € Sbvio, a presenca de uma nova Subjeti- vvidade social, ¢ se traduz de mancira mais imediata na expresso erética. A poeta mulher celebra scu proprio corpo como signo de diferenca na arena piiblica. O caso mais forte agui 6 0 de Adélia Prado, mas no capitulo especifico do erotismo femninino nomes como 0s de Olga Savary ¢ Hilda Hilst no podem ser esquecidos. Est em pauta a emergéncia no discurso de uma sexualidade de orificios, liquidos, receptividades, contrastando com a sexualida- de félica. Inaugura-se assim toda uma nova familia dentro da poesia brasileira. Se uma questio poética forte ¢, ainda e sempre, questio da subjetivacdo, entio a poesia contemporanea nio pode escapar do conflito de género, Nessa linha, ou linhagem, nos anos 80/90 novas poetas diversificarao a presenca do olhar feminino, olhar agora mais obliquo, auto-irénico, multifacetado, Destaco aqui os nomes das cariocas Claudia Roquette-Pinto, Lu Menezes, Vivien Kogut ¢ Clara Gées, Mas ha muitas outras e uma pesquisa vale a pena. Na perspectiva dos 70, cm conformidade com os princfpi 0s (ou antiprinefpios) popularizados pela contracultura soixante-huitarde, erotismo € afirmagao individual constituem reagoes antitéticas ao que € definido (© rechagado) como universalismo impessoal e totalitério dos centramentos na lingua- gem € no social. © hedonismo pode portanto desembocar numa politica do corpo ¢ fornece o solo que explica a presenca de uma endéncia dionisiaca na poesia brasileira contemporanea, A essa tendéncia vinculam-se também as timidas tentativas de lirismo homoerdtico masculino, cujo maior inspirador é o poeta paulista Roberto Piva, Para fazer o contraponto com a poesia atual, desta- cando algum nome dos anos 90 para juntarmos ao de Piva, ercio que nio hi ninguém melhor que Valdo Motta, 0 sodomita mistico do Espirito Santo, que teve langada pela Unicamp em 1996 a co- letinea intitulada Bundo e Outros Poemas. Uma versio light dessa tendéncia é a que se apresenta na lirica literaria de Antonio Cicero, em que o dionisismo vem filtrado por certa reserva conferida pelo olhar filosGfico, trangiiilamente cético, algo nostélgico. De novo os 80: poesia, midia Enquanto atitude, a volta dos poetas de 80 a luta pelo lugar ao sol das grandes editoras, em lugar da busca de circuitos alter nativos € Semi-artesanais, correspondeu, nas artes plisticas, & revalorizacao do espaco canGnico do muscu (em contraste com a “arte nas ruas”)¢ a retomada da tradigao pictorica, primeiro como objeto de parédia e pastiche através do exereicio mesmo da pin- tura ¢ depois como objeto privilegiado de anélise pelas recentes teorizacdes sobre cultura visual. Pode-se ainda estabelecer um paralelo entre o novo animo institucional dos poetas ¢ 0 interesse {que os prosadores seus contemporaneos manifestaram pela for- ma romance, em detrimento do conto, grande vedete nos anos 70. Com a normalizagao pés-vanguardista, alguns protagonistas da cena marginal (como Bernardo Vilhena, Ronaldo Santos, Geral- do Carneiro, entre outros) emigraram para a indistria do ‘entretenimento, canalizando suas energias criativas para letras de rock ligeiro, humor televisivo ¢ também, como € notadamente 0 caso de Carneiro, trabalhos mais densos de teledramaturgia Noutra faixa geracional, o rock pesado afirmou-se como veiculo privilegiado de expresso poética de uma nova juventude qu no vivera 68 mas ainda cultivava seus mitos. Presencas como as, de Amaldo Antunes ¢ os Titas, numa linha punk-minimalista, de Cazuza, misturando blues ¢ ritmos brasileiros, ¢ de Renato Russo ea Legido Urbana, numa esfera grunge-suburbana, fomeceram 0 ‘mesmo tipo de pao essencial prodigamente distribuiclo vinte anos antes por Caetano e Chico. 7 Porém, nio sio poucas as diferencas entre 0 contexto em que a MPB de Caetano ¢ Chico apareceu ¢ a situagdo em que despontou 0 rock-Brasil de Antunes, Cazuuza ¢ Russo. Se a poesia literaria prépria dos anos 70 aliou-se aos ritmes e ambigdes da MPB, assim como a propria rapidez da linguagem publicitéria, nos anos 80 a normalizacao pos-vanguardista dos circuitos veio associada a diferenciacdo e afirmacao dos mercadas especiticos. (© megadlesenvolvimento da indistria cultural no Brasil desmen- {iu as previsdes apocalipticas (Iembrando aqui a antigo termo de Umberto Eco) de que a cultura letrada-literaria seria absorvida aniquilada pelo império dos meios de comunicacio de massa. Tal megadesenvolvimento incluiu, nos iltimos 15 anos ou pouco mais, 4a ampliagao € a diversificaca0 do proprio mercado editorial, que passou, alids, ao longo do perfodo de lenta recemocratizacio (1979/1985), por um surto de abertura e sofisticagao cosmopoli- fas. A propria estrutura do mercado cultural evcluiu portanto no sentido de acentuar a distincia entre mercado literario © mercado da cultura pop. Nesse proceso, ambos se fortalecem em seus res- pectivos segmentos, contribuinda em igualdade de condigées para 40 dos valores intelectuais, sem qualquer possibilidade ‘onia de um sobre 0 outro enquanto instrumento pedags- hegemonia, mas pode haver muita traca e cooperacao, © até mesmo fusdo, como ocorre com as personilidades poéticas dos jé mencionados Arnaldo Antunes, Antonio Cicero ¢ também de Chacal, em quem poesia ¢ performance se dio sempre unidas. Porém, a verdade ¢ que a massificacio, profissionalizacao c especializacao do trabalho da diversio tendem a deslocar o per- {il dos poetas da midi, que deixam de scr tecrutados entre talentos le elite, dotados de formagao univers mais € mais 4 cultura cotidiana das massas urbanas de trabalha- ores médios, mantendo-se distantes de projetos pedagégicos e iddeol6gicos sistematicos. A MPB explodira nos anos 60 compro- metida com o debate intelectual, atravessada por palémicas relacionadas a diferentes projetos de evolugio ca cultura nacio~ nal, Tal ndo ocorre com 0 rock-Brasil. Os novos poetas da midia berram desenraizamento © desapego em relagio a quaisquer va~ lores, embora esteja crescendo o nGmero de grupos de reggae € ‘rap que expressam a voz de protesto das populagoes das periteri- as urbanas. Ja 0 poeta literdrio dos anas 80/90 respira, como todos, o ar que emana das letras dos roqueiros, mas ele sabe que sua relacio com a linguagem © com a comunicacdo é de outra atureza. Seu destino € o livro ¢ sua arte é a da Ieitura, silenciosa ou oral, Assim, o trago mais caracteristico da mais recente gera cio de poetas brasileiros tem sido a recuperagio do valor propriamente literario da literatura, A poesia literdria nio se sub- mete ao imagindtio pop, embora dialogue o tempo todo com ele. Deslocamentos em curso F possivel registrar na cena atual a cxaustao do regime de rarefagio que a geracio marginal herdou do coneretismo. Her- dou, mas, como vimos, ao mesmo tempo destocou, reintroduzindo ‘a subjetividade e recuperand a logica oralizante do verso colo- ial, A rarefagio surgira no coneretismo sob 2 forma da redugio do discurso postico &s estruturas minimas da linguagem. Um tminimalismo da palavra apenas parcialmente paratatico, pois na verdade © poema concreto € algo estruturado, é forma total, & gestalt, Tal minimalismo foi associado & supervalorizagao da for ma do silogismo tipica du construcio da metafora na fase mais canénica da obra de Joao Cabral (aquela que vai de O engenheiro 2A educacdo pela pedra). Formou-se assim 0 par conceitual- Valorativo que constituiu a espinha dorsal da poética do rigor construtivo. Ao longo dos anos 80/90, a partir da sugestao margi- nal, assistimos ao progressiva ¢ triunfal retorno da revalorizagio da poesia como discurso ¢ como trabalho do e no verso. Ou soja, a poesia como trabalho de co.ocagio do discurso nas formas clis- sicas ou modernas do verso. Ocorre também a recuperacio de elementos mais narratives, abrindo-se caminho para 0 exercicio de uma linguagem efetivamente paratatica, mais desestruturada, baseada em justaposigdes e essociagdes livres. Mas © que preva: lece hoje € 0 cuidado com versos e estrofes. 14 cansago com 0 verso livre. Em boa clave de ambigtiidade p6s-modera, © aconteci- mento do retorno a uma inclinagio mais literéria e discursiva poesia brasileira tem um sentido simultaneamente “progressista” ¢ “retrégrado”, mas nos dois casos, como se veri, representa -vit6ria da cultura iluminista sobre a contracultura, Por outro lado, a revalorizagio de um espaco mais discursivo confere novo inte- resse a estéticas da elogiéncia. O emergente mercado «la poesia 19 20 falada é um bom sintoma disso. Numa cultura em que a fala pé blica se dissemina, se redistribui e se democratiza, a dimensio relGrica dos discursos em geral e a relacio da poesia com a reté- rica (tanto a cidadi quanto a popular-cotidiana) adquire pertinéncia, Dizer 0 poema, O poema como modo de dizer. O sentido possivelmente “progeessista” desses deslocamen tos esti na diregio favordvel ao espitito critica e esclarecido. E que a revalarizacio do verso e do poema como pega discursivas poe em campo uma demanda por Ieitores ¢ eseritores de maior flego. O elogio contracultural da ignorineia ¢ ligeireza pop per- de terreno. E visivel o despertar de um novo interesse pela releitur: das vastas obras deixadas pelos grandes poctas modemnistas bra sileiros, tarofa mal executada tanto pelas vanguardas quanto pela maioria dos marginais. Parece que no Brasil 0 questionamento dos cinones literarios nao diminui a vontade de simultaneamente ‘los e doti-los de maior pregniinein pedagégica. Em con nicia com isso, ¢ também bastante sensivel hoje 0 estimulo busca de ampliacdo de repertirio postico através da leitura e tr ducio de um maior nimero de poetas estrangeiros, mais diffceis, mais canénicos. S6 nos anos 80 que a educacio poética da jo vem intelectual brasileiro libertou-se do paideuma concretista, 40 qual estivera presa desde 1960, ano da publicagao da traduezo, dos Cantos de Pound, Mas ao coneretismo devemos 0 espago que © cosmopolitismo literario ocupa hoje em nossa cultura intelec- tual, Pode-se porém intexpretat como retrocesso a despolitizagao em curso das questies da linguagem, da estética, da subjetivida- le, do corpo. A medida que nada mais hé de revoluciondrio a tratar nesses campos, 0 debate pottico se vé tomado por visées desvertebradas ¢ as vezes confusas, onde todas as conciliagées, silo possiveis e onde a demanda por qualidade coloca-se freqiientemente no nivel do virtuosismo versejador ou do bom gosto decoroso, E claro que valorizar a pericia técnica até que tem seu lado bom, como corretivo a indigencia lingtifstica e esté- tica que caracterizou o regime da rarefacao. Mas para quem como cuse formou na cultura iconoclistica ¢ antiburguesa dos anos 60 20, ¢3 1eza toda essa vontade de ressacralizar a nogio mesma de pocsia, depois de ela ter sido primeiro dessublimada pelo modernismo original, em seguida submetida i blitzkrieg da norte do verso decretada nos anos 50 pelo conerctismo, c final- ‘mente substituida pelo conceito (explicito ou implicito) de prati cca textual, que a geracio 70 aprendeu nos bancos universitiios A tendéncia ressublimacio dé A fase atual do pés-moder- nismo um tom neoconservador, desdobramento previsivel do processo de renormalizacia dos valores ¢ cizcuitos literdrios. Ve- Ihas manias da poesia brasileira operam seus retornos cfclicos © fazem enorme sucesso. Desde a geraciio de 45 0 amor pelo soneto ro seduzia tanto os poetas brasileiros. Duas dentre as mais aplat- didas revelagdes potticas dos diltimos vinte anos, Adélia Prado © Manoel de Barros, reatualizaram a vertente de um regionalismo pitoresco ¢ meio sentimental sempre presente na literatura brasi- leira c que, agora fica claro, a severidade de um Joao Cabral no foi capaz de extirpar. No caso de Adélia, fendmeno dos anos 70, 0 apelo regionalista juntava-se o inovador impacto da expresso feminina. Quanto a Manoel de Barros, embora por idade ¢ anti- guidade de publicagdes nao seja contempordneo da geragao atual de poctas, foi por cla descoberto e lido, tornando-se um cultuado poct’s poct. Tal culto 6 compreensivel porque a poesia de Barros opera uma sintese original entre o refetido sentimentalismo regionalista (através de uma linguagem saborosamente neol6gica na linha de Guimaraes Rosa) ¢ uma auto-reflexividade metapoética desprovida do rigor intelectualista cabralino, Em éltima instén~ cia, a poesia de Manoel de Barros professa uma espécie de intuicionismo romintico. Duas vozes methor da novissima poesia brasileira esté na busca de sinteses pessoais. Sinteses nao sectérias dos dados estéticos colo- cados no cendtio ao longo dos dltimos trinta anos. O pluralismo de vozes ¢ tendéncias incentiva o ecletismo como solugao indivi- dual. Uma das vozes mais celebradas pela critica tem sido a de Carlito Azevedo, cuja poesia da um novo alento & estética do ri- gor, sem cleixar de incorporar elementos tirados de outros modelos posticos, inclusive estrangeiros (basicamente franceses). Na poe- sin de Carlito, sutis elaboragbes conceituais estéo a servico da ciao de habeis ilusionismos visuais. O coloquial € no mais das vezes abandonado em favor de uma estilizacao que langa mao de inesperado vocabulétio decadentista, decantado de todo © qual- quer excesso. Em As banhistas hé certo espelhamento da voz 21 postica num esteticismo fit de siecle. O esteticismo é transfor- macio em cosa mentale, aptesentando-se como forga contraposta ‘a0s valores hedonistas, Pois ha freqiientemente na poesia de Carlito um movimento de ascese, de abstragio do corpo e da realidade para afirmaco da mente criadora de imagens. Ao mesmo tempo a linguagem do poeta manifesta profunda delicia tanto na decom- posigio analitica da imagem, quanto na urdidura mesma do poema, Assim, o hedonismo do corpo como que se transfigura em hedonismo estetizado, sublimado, € 0 narcisismo € projetado so- bre a mirfade dos abjetos. No que diz respeito A dinimica da subjetivaedo, a poes de Carlito oscila entre uma pressio predominante de fidelidade ao preceito da desaparicio elocutéria do eu ¢ timidas perturba- {ges nese esquema, das quais a meu ver as mais interessantes, Sao aquelas, encontraveis em Soh a noite fisica, em que 0 eu apa- rece por interposta mascara, na tradicao do Pound de Personae. A precedéncia da desapari¢io do eu, em clave muito mais ncopamasiana que neo-simbolista, explica por que na poesia de Carlito 0 hedonismo ¢ 0 narci so n0 mais das vezes encontrados no sistema de objetos. Mas no livro Sob a noite fisica, Carlito explora novas diregdes estéticas, ali- mentadas sobretudo por uma releitura da informagao surrealista ddas mais inteligentes e fecundas que conheco, uma apropriagao bastante original no contexto brasileiro. Esperemos que a viagem dda persona surrealista de Carlito pelo corpo da mulher, pelo amor louco, ainda produza novos irutos poéticos. Em terreno esteticamente antipoda ao de Carlito, destace- seo trabalho de Alexei Bueno. Aqui a ascese ¢ literal, explicita, programatica, Alexei assume para si a tarefa de Fazer 0 processo, da contracultura, atacando a banalidade de uma eivilizagao presa 0s prazeres e vicissitudes do corpo € defendendo sua troca pelo ponto de vista da cultura ¢ do espirito. A forea da poesia de Alexei vein mais de sua intrinseca qualidade estética do que daquilo que tom a dizer, embora tanto num campo quanto no outro trabalhe fundamentalmente com 0 anacrdnico, colocando-se militantemente contréria 1 modemidade. Se na poesia de Carlito Azevedo v anactOnico vem assoeiado a estelivisino rigoroso € de bom-gosto, ou, no caso de Sob a noite fisica, 3 introducao de uma charada lingiistica, na poética de Alexei vem idamente combinado a uma enxurrada de clichés e a0 pastiche de poetas de gosto duvidoso (como Augusto dos Anjos). Em Alexei, 0 sublime € tema mas a linguagem poética mantém-se dessublimada, ao passo que a poesia de Carlito figura ‘a sublimagao, Retiro-me aqui, no caso de Alexei, principalmente 420 livroA via estreita, publicada em 1995, No caso de Carlito, 0 Ieitor poder verificar em varios poemas a operaco sublimadora, abstratizante, tanto em As banhistas quanto em Sob a noite fisica Desse dltimo, sugiro a Ieitura do importante “Ao rés-do-chao”. Importante porque poema de folego, exemplo de poema contem- porinco estabelecendo a demanda por um Icitor mais treinado, mais educado. Com Animo naif de adolescente devorador de enciclopédi- as, Alexei Bueno satura sua poesia de referencias clissicas & catdlicas, buscando legitimar um surpreendente e pretensioso “nds” universal por quem o poeta pretende falar, exortando a hu- manidade a denegar o mundano (ele nao faz. por menos). Mas a0 invectivar contra a civilizagao hedonista, 0 poeta produz algumas metaforas e passagens fortes que encenam de maneira eficaz os dramas éticos de nosso tempo, Alexei sabe infundir pathos a seus, versos, Em A Via Estreita, mostra-se decidido a praticar uma po- 6tica da clogiiéncia, buscando reaclimatar na poesia brasileira 0 verso longo, as cadéncias ¢ o estilo compositivo da grande poesia portuguesa de Fernando Pessoa ¢ Cesirio Verde, tentando por af quem sabe uma religagio com o género de discurso salmédico que numa ponta pode dar no hedonista Whitman ¢ noutra dé na linhagem de poetas brasileiros cristios dos anos 30/40. E dbvio {que o petigo das poéticas da elogiiéncia é cair em grandilogiéneia sila. Seja como for, o programa estético aqui se coloca a ser- ‘ico de um projeto ideoldgico abrangente de reacio cultural, no sentido de reacao crudita, no mesmo passo que ofensiva catdlica tentando recuperar espaco moral e imaginario. Trata-se de um caso de total averséo da poesia literaria pela poesia e pela cultura da midia. O cultivo do espirito é proposto como antidoto ao cotidia- no das massas, dado como perverso e desprezivel. Minimanifesto para terminar No momento atual, talvez o que esteja faltando na poesia brasileira seja 0 uso de uma linguagem mais solta, a busca de maior dramaticidade na linguagem, a volta a0 coloquial e ao ver~ so livre como estratégias dessublimadoras ¢ de reimersdo da poesia 24 na oxperiéneia, na vida e — por que nfo? — no espaco piiblico, onde as falas que contam se cruzam. Quem sabe uma volta culturalizada aos principios mais bisicos da revolugio contracultural. Nesse sentido, 0 foco no surrealismo apontado por Carlito nao parece mau caminho, embora nao possa ser generali- zado, dado 0 cardter misdgino e homofébico do surrealismo candnico. Ttata-se porém de dar forga 4 pura c simples vontade de trocar suspitos poéticos, saudades, éguas de cheiro, pela con- vulsao da beleza, pela beleza convulsionada, convulsiva, A busca da beleza, a busca da beleza, nossa corruptora, Notas ‘Texto apresentado no Seminério Poesia Hoje, realizado na Univesidade Federal Fluminense nos dias 8 o 9 do outubro de 1997. Sobre poesia marginal, ver: Santiago, 1978; Holanda, 1960; Pereira, 1981; Sisssekind, 1985; Dantas, Simon, 1985; Dantas, 1986. Sobre poesia brasileira nos anos 80: 0 n. 5 da Revista do Brasil (io de Vaneiro, 1986), dedicado a literatura da década; alguns dos ensalos de Santiago, 1989; a seco “Alguma poesia’ e outros ensaios reuni dos por Silssekind, 1993; 0 onsalo de Nunes, 1991; o numero especi al da Revista Travessia, sobre poesia brasileira contompordnea, 1992; ver também Lima, 1996. * Olivio mais representative desse paracigma e Lire e antilra, Lima, 1995, * Nao 6 preciso lombrar que 0 hedonisme dionisiaco logo teve que ten‘rentar seu moral inimigo, a epidemia da Aids. O impacto da crise Folletiu-se na presenga cada vez maior do tema da morte na poesia recente (e também na prose, diga-se de passagem). Ver, por exem= lo, A sagrapao dos ossos, de Ivan Junqueira (1994), Cheiro forte, de Silviano Santiago (1995) e os dois primeiros livros de Alexei Bueno, A cohama inextinguivel (1992) e Lucernério (1993). Uma boa caracter'= za¢o do que estou chamando de tendéncia dionisiaca na cultura intelectual brasileira est no ensaio de Silviano ‘Peder o alegria’, in cluido em Nas maihas da letra (1989) * O primeiro Vinicius de Morais © mais as obras dos poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes sao as principals referencias aqui Referén liograficas DANTAS, Vinicius. A nova poes Revista Novos Estudos CEBRAP, 1986. brasileira e a poesia. io Paulo, n. 16, dez. , SIMON, Jumna Maria. Poesia ruim, socieda- de pior. Revista Novos Estudos CEBRAP, Sio Paulo, n. 12, jun. 1985. HOLANDA, Helofsa Buarque de. Impressdes de viagem. Sio Paulo : Brasiliense, 1980. LIMA, Luiz Costa, Abstragio e visualidade. Revista AFWFA, Rio de Janeiro, n. 2, 1996. Lira e antilira. 2. ed, Rio de Janeiro : Topbooks, 1995, NUNES, Benedito. A recente poesia brasileira, Revista No- vos Estudos CEBRAP, Sio Paulo, n. 31, out. 1991 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato da época : po- esia marginal nos anus 70. 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