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O conceito de cultura Capitulo 4 ib 1 catalogrifica claborada por Solange Ap. Ferreira, CRB 9/1141. Kiiser, Lothar Diferentes culturais: uma introdugo a etnologia / Lothar Kiser ~ - Londrina ; Descoberta, 2004. 312p. ISBN - 85-8714390-5 1 Antropologia cristé 2. Antropologia 3, Missdes 4. Etnologia cultural 1. Titulo CDD 233 301 266 306.08 ©1997 ‘Titulo original: Fremde Kulturen: Eine Einfithrung in die Ehnolegie edigio publicada pela Verlag der Evang.-Luth. Mission, Erlangen Verlag der Liebenzeller Mission, Lahr 14 Edigdo - Dezembrol2004 Co-edigao: Missizo do Cristianismo Decidido Coordenacio editorial: Manfred Weide Coordenacdo de produgio: Eduardo Pellisier Capa: Eduardo Pellisier Diagramacao: Descoberta Designer Tradusio: George Albert Fuchs Revistio: Lieshech Ziegler Fotolitos: Exodo Fotalitos Impressio: Gnifica Besdnia Tados os direitos em lingua portuguesa rervades por Descoberta Editora Ltda Rua Pequim, 148 Londrina/PR 86050-310 ‘Tel/Fax: (43) 3337 0077 Enderego eletrdnico: editora@descoberta.com:br Pagina na internet: ww.descoberta.com.br Edicora filiada & Associagito Brasileiva de Editores Cristios Este capitulo explica quais os significados da palavra cultura, em quais sentidos cla é empregada pela etnologia (e ciéncias correlatas), que efeitos a cultura produz no comportamento humano e quais as conseqiiéncias resultantes disso para aqueles que entram em contato com pessoas de culturas desconhecidas. E quase impossivel definir a expresséo emnolégica de cultura de maneira inteligfvel em poucas palavras. Por isso encontramos muitas tentativas de definigio. Uma crianga solucionou este problema dificil da seguinte maneira: de alguma forma ela reparou que as palavras cultura e natureza (N.'T.: em alemio aparece a rima Kudéur e Natur) formam um par de contradigées. Esta idéia jd havia surgido e sido discutida por Herddoto ¢ Posidénio, como lemos no capitulo anterior. E como criangas posstiem uma necessidade premente de plasticidade, ela empregou um exemplo, O mato, assim. o argumento dela, éa natureza como ela cresce livremente. Por outro lado, a cultura seria aquilo queo homem insere. Isto ¢, caminhos e bancos. A explicacao sem duvida é aplicavel. O termo cultura relaciona agriculuura e plancacZo, pois usamosesta palavra quando nos referimosa canteiros de hortaligas ou reflorestamentos de pinheiros. Uma conceituagio mental semelhante acontece quando bidlogos criam culturas de bactérias em substraros alimentares, em incubacoras. Mas esse significado nfo € 0 essencial. Se abrimos um jornal, encontramos na pégina intitulada “Cultura relardrios referentes a concertos, apresentag6es teatrais, hordrios de abertura de museus ¢ muitas outras coisas. Nesse contexto reconhecemos que também ligamos coisas intelectuais com cultura, muitas vezes até mesmo em primeiro lugar, pois quando meditamos sobre cultura, canteiros de verduras e criagées de bactérias nos vem em mente apenas secundariamente. Unindo cultura e intelecto, chegamos ao significado usual e comum da palavra cultura. Quando falamos de culturas diferentes, este conceito raramente pode serusado, pois abrange pouguissimo daquilo que etndlogos (¢ outros cientistas culturais) entendem por cultura. O termo usual e comum é um conceito de cultura restrito, pouco apropriado para descrever sociedades desconhecidas. E muito rudimentar como ferramenta para conhecer o fenémeno cultural, intitil como um martelo usado para consertar 0 mecanismo de um reldgio. Na verdade, culturas realmente podem ser comparadas a mecanismos complicados de telégios, com pecas mintisculas que se encaixam de formas multiplas: cada uma funciona como uma engrenagem de preciséo técnica. vibojouya D opsnpospur pu) - svanyny soquasoficyT | 4aS2> 12Y4]O7 Lothar Kaser & | — Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnologia Na verdade, a questo da definigao de cultura ¢ tao dificil de formular que nem mesmo especialistas conseguem fazé-lo sem rodeios. Isso fica evidente quando se considera que até 1950 havia um toral de 164 definigdes referentes ao termo “cultura” formuladas ¢ publicadas (Kroeber/ Kluckhohn 1952). A compreensio do termo cultura vai tornar-se mais ficil quando se observa algumas das manciras pelas quais ela se manifesta na vida pratica do nosso dia-a-dia ocidental. Nesse sentido, quero contar um fato que aconteceu comigo: CULTURA E CONDUTA Numa viagem a Sufca, quando eu era estudante, por acaso encontrei a sinagoga de Genebra durante um passeio. Nunca havia visto uma, ¢, como a porta estava aberta, entrei. Havia tirado o meu boné, em respeito ao recinto sagrado. Mal havia dado alguns passos para dentro quando uma figura barbuda com chapéu de aba larga chegou perto de mim vociferando em alta voz. Deviaser o sacristéo. Como ele falava répido e ainda por cima francés, entendi apenas o essencial, Ele gritava algo sobre falta de respeito e exigiu brascamente que cu colocasse rapidamente o meu boné ou entao abandonasse asinagoga imediatamente. Fiquel tao assustado que fiz ambas as coisas. Desteacontecimento inesquecivel podemos ceduizir alguns aspectos basicos sobre o que é cultura, como ela age e o que ela produz naqueles que conhecem ¢ possuem determinada cultura. O caso do boné mostra especialmente que cultura tem a ver com a maneira como as pessoas se comportam sob determinadas circunstancias. Se uma pessoa fazalgo, ela sempre age de maneira caracterfstica, segundo a cultura que determina seus atos. Para entender a relagao entre cultura ¢ comportamento humano, deve ficar claro inicialmente que o comportamento de pessoas sempre tem. algurma origem, um propésito, que 3s vezes, pelo menos num caso como este, pode ser explicado. Caso o sacristao irado tivesse me perguntado porque euestava entrando sem cobrira cabega, eu poderia ter dito, naturalmente, que, como homem “decente”, sentia respeito diante de um recinto sagrado, e por isso descobriaa cabeca. Associar minha intengio de expressar respeito com o comportamento especifico de tirar o boné pareceu-me, naquela situagao, tao natural que nem cogitei que pudessem surgir dtividas sobre a propriedade ou nfo dessa associagao. Portanto, pratiquei aquilo que devia ser feito, por me parecer ldgico e por isso imperioso, Mas 0 que o sacristao havia feito? Ele também havia associado a intengao de expressar respeito com um comportamento especifico. Mas esta se distinguia do meu comportamento em um ponto essencial: ele havia colocado o seu chapéu! E 0 que ele teria dito, seeu tivesse perguntado pelo seu motivo? Com certeza a resposta dele tetia sido que uma pessoa “decente” coloca o chapéu em respeito ao recinto sagrado. Parece curioso que duas pessoas possam ter a mesma inten¢o, mas manifestam isso por meio de um comportamento diferente. No caso do boné, esse princfpio parece exagerado. Os dois chegam a expressar a sua inten¢ao mediante comportamentos nao sé diferentes, mas completamente contrérios. Podemos deduzit que no existe qualquer conexéo natural entre uma pretenso e um comportamento, pela qual possamos revelar nossa intengdo aos outros sem margem para mal-entendidos. Na maioria dos casos temos a disposicao (pelo menos teoricamente) varias possibilidades, Ha pessoas que, em respeito a um recinto sagrado, tiram os seus sapatos. A ligacao entre inteng4o e comportamento é, na realidade, tao pouco obrigatéria, que daria para expressar respeito também revirando os olhos ou colocandoa perna direica em cima do joelho esquerdo. Ai esté uma razao importante para o grande ntimero ¢ as muitas diferencas entre as culturas que conhecemos. Cada cultura escolhe uma entre varias possibilidades de expressar um propésito, elevando-a, porassim dizer, & categoria de norma. Assim é possivel explicar que na cultura européia ocidental o respeito ¢ manifestado descobrindo a cabega, enquanto que na cultura istaelita 0 respeito aparece ao cobrir a cabega. Nao sabemos explicar, exceto em alguns casos raros, por que em. determinada cultura uma certa pretensdo uniu-se a um determinado comportamento. Além disso, caso fica mais complicado neste caso particular pelo fato de que apenas homens, com aajuda de bonés e chapéus, podem expressar esse respeito tanto em uma cultura quanto em outa. Para as mulheres, as regras so outras. A resposta & busca pelo motivo que levou um determinado comportamento a se transformar, a certa altura, em norma é mais facil de encontrar na ergologia (doutrina das formas e da aplicacao de produtos técnicos) ¢ na tecnologia (doutrina dos processos para fabricago de ferramentas e aparelhos) — (cf. cap.7). Em ambos os casos, trata-se de coisas materiais ¢ palpdveis, e do manuseio delas. Geralmente as ferramentas sao Go claramente determinadas pela finalidade a que se destinam, que néo-é Possivel haver divergéncias a respeito da sua forma e aplicagao. Aqui a norma € determinada pelo ambiente no qual uma etnia vive. Mas também na ((] - SPANyp Soquasofyy ———_———| asey seyjo7 uu Due pouje » ovinpox) nibo; Lothar Kaser Diferentes Culturas - Uma introdugéo a elnologia ergologia ¢ na tecnologia existem zonas ambiguas, que permitem normatizacoes divergentes, para as quais ndo encontramos justificativas racionais satisfatdrias. Do ponto de vista técnico, existe uma série de maneiras de fazer fogo. Podemos, p.ex., montara pilha de achas de lenha em camadas ou em forma de cone, colocando os pedacos obliquamente de modo que as pontas se toquem. Em alguns casos isso depende, mas nao exclusivamente, do combustfvel encontrado, De alguma forma e em alguma época cada cultura fixou-se em uma entre intimeras formas de acender 0 fogo, sem poder explicar a escolha de forma razoavel. Uma das fung6es mais importantes exercidas pelas culturas € 0 fato de elas determinarem 0 modo de agir dos scus membros por meio de associag&es normativas entre intengdes e comportamentos, de maneira bem semelhante & gramdtica de uma lingua, que derermina o texto que deve ser empregado para comunicar algo a outras pessoas. Isso significa que, como europeu, vou seguir a regra européia para expresso de respcito, tirando o boné, da mesma forma como observo as regras gramaticais em minha expresso verbal ou escrita, colocando sujeito, predicado e complemento objetivo na seqiiéncia correta. A cultura de um agrupamento humano é, portant, essencialmente nada mais do quea gramitica que os seus membros usam como regra em seu comportamento. E, assim como na gramdtica de uma lingua temos que considerar todas as regras vigentes a fim de falar “corretamente”, assim na cultura precisamos considerar a totalidade das regras a serem observadas para um comportamento “correto”. A titulo de comparagao, vamos analisar rapidamente um segundo exemplo de como a combinacao de objetivos e comportamentos pode ser externada de formas variadas em circunstancias diferentes. Pessoas alegres querem expressar a sua alegria. Isso acontece quando elas falam com outros a esse respeito, tornando a alegria visfvel nas feigdes do rosto e nos gestos. As vezes a alegria também se manifesta audivelmente, como p.ex. quando os torcedores comemoram um gol no futebol. Um agricultor do sul da Icélia eventualmente mostra a sua alegria cantando em vozalta ¢ retumbante duranteo seu trabalho. Em algurmas sociedades as pessoas comecam a dancar quando estao alegres, uma atitude difundida especialmente na Africa, Podemos ver que h4 uma série de possibilidades para expressar alegria, das quais apenas algumas poucas (ou em determinados casos apenas uma tinica) sao caracterfsticas em certa regio ou sociedade. Na respectiva cultura, apenas estas valem como atitude “normal” para alguém que quer mostrar a sua alegria. Ao analisar tal comportamento descobrimos que este esté baseado sobre uma série de regras que o direcionam (como se fossem o conjunto de dados num programa de computador). Tais regras naturalmente valem apenas onde a maioria das pessoas se orienta por elas, i.¢., no contexto da cultura na qual valem essas normas de comportamento. Egses axiomas existem também para.as situagdes nas quais as pessoas querem expressar, nfo somente um sentimento como respeito ou alegria, mas desejos ¢, o que € muito importante, necessidades. Durante uma boa parte de nossa vida estamos ocupados em satisfazer nossas necessidades. Entre as necessidades primdrias esté a alimentagao (comida e bebida), E, como as pessoas no mundo inteiro seguem ardorosamente o impulso de gatantir a propria vida, elas desenvolvem atividades trabalhosas. Essas regras atuam em todas as dreas de vida em uma comunidade humana, quer se trate de garantir a sobrevivéncia, quer de divertimento ou religiao. Elas dirigem © comportamento dos seus membros caso a caso, como a gramatica de sua lingua dirige a seqiiéncia de sons ¢ palavras. A totalidade das regras observadas pelas pessoas em questo na organizacdo da sua vida gera essa atitude caracteristica que se representa ao observador como cultura deles de forma abrangente. De maneira mais geral, essa situagdo foi definida da seguine forma pelo etndlogo Wolfgang Rudolph, numa colaboragao digna de ser lida (1971:54-55): “Culeura é a totalidade dos fendmenos de formacao da existéncia humana (que podem ser diretos ou indiretos, conscientes ou inconscientes) relacionados com e aceitos pela sociedade”. Esta ¢ a definigao da antropologia cultural que se ocupa com a cultura universal (apenas teoricamente existente) da humanidade. J4 a definigao da etnologia que, 20 contrério da antropologia cultural, se ocupa diretamente das culturas realmente existentes na humanidade, é do teor seguinte segundo Rudolph: “Cultura é a totalidade dos fenbmenos de formagia da existencia humana relacionados com e aceitos pela saciedade, que é caracteristica de uma determinada unidade éinica’. CULTURA COMO ESTRATEGIA Estas definigdes para o termo da cultura ainda sio complicadas demais para quem trabalha na pritica com culturas desconhecidas. Memorizé-las, s6 com alguma dificuldade. Mas existe uma definigao ainda mais simples que descreve cultura como a totalidade das regras empregadas Por uma sociedade para formacio de sua existéncia. E posstvel deduzir essa definicdo de uma situagao bem simples que pode acontecer diariamente. wiBoouya D opinposjus Duy) - svinyn.y Sopuasaficy S| JASPy JEY}OT 39 Lothar Kaser fia Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnolog 40 Um cruzamento de ruas, sem sinalizagio. Vale, portanto, a preferéncia de quem vem pela dircita. Trés motoristas chegam ao mesmo tempo no cruzamento. Todos os teés pretendem seguir na mesma diregao a partir desse ponto. Com isso eles precisam solucionar 0 problema, que representa um elemento importante de sua existéncia e da organizacio dessa cexisténcia. Na realizacao de seu intento eles devem manifestar determinado comportamento. Para tanto cxistem diversas possibilidades. Por exemplo, os urés podem dar partida ao mesmo tempo. Essa solugao nio serve, pois com certeza criaré outro problema, de elevadas despesas, sem falar na policia. Por isso, parece ser mais sensato se os trés partirem um aps 0 outro. Uma possibilidade seria que aquele com o carro maior salsse em primeiro lugar, € 0 motorista com 0 carro menor, por Ultimo. Outra possibilidade seria escolher de acordo com o prestigio da marca do carro: primeiro a Ferrari, depois o Mercedes e por fim o Vollswagen. (Contaram-me que na Africa teria preferéncia o vefculo com a maior poténcia de motor—o maior ntimero de cavalos). Daria ainda para imaginar que os trés motoristas combinassem entre si quem seria 0 primeiro, o segundo ¢ 0 tiltimo a passar pelo cruzamento. Em todo 0 caso, a situacao deve ser regulamentada de uma forma que nao deixe dtividas. Como existem cruzamentos desse tipo aproximadamente a cada cem metros, ¢ qualquer motorista com certeza enfrentard esse problema existencial depois de poucos minutos ao volante, a regulamentagao para esse caso jd foi feita com antecedéncia. Seria muito demorado combinar uma soluco a cada novo caso. E como os nossos trés motoristas precisam ter essa regulamentagao sempre & mao, eles foram obrigados a decoré-la. Como todos sabem quais regras devem ser aplicadas nos cruzamentos, 0 problema é solucionado no menor tempo posstvel, de uma maneira que ss, sem necessidade de qualquer combinagio. “Todos os trés sabem que o motorista que se encontrar & direita, ou que néo vai alterar a direcdo, deve continuar a stra viagem em primeiro lugar, ¢ assim por diante. Com essa norma de transito, todos os trés dispéem cle uma estratégia eficiente para dominar situacées de transito que aparecem inesperadamente c das quais participam varias pessoas. (Caso existisse apenas uma pessoa no mundo, esta poderia fazer 0 que bem entendesse em todos os cruzamentos, e mesmo em todasas outras situagoes. Nao haveria a necessidade de obedecer nenhuma regra!) satisfaz todos os trés motorist Outras situagées carecem de estratégias bem diferentes para solucionar a problematica. Se eu quiser telefonar para alguém, conseguirei falar com a pessoa apenas se souber como funciona um orelhao e como posso encontré-lo. Além disso, preciso saber quais fichas sto necessdrias eonde deyem ser inseridas. Devo ter na minha meméria a seqiiéncia numérica do celefone do meu amigo ou saber onde posso encontré-la. E assim por diante. Mesmo atividades destinadas ao descanso e ao divertimento pressupdem o conhecimento de estratégias, sem as quais elas nao podem ser executadas. Quem pretende divertir-se tocando gaita de fole ou cantando em um coro s6 poderd fazer isso quando souber ler as notas musicais, conhecer as espécies de compasso, entender os movimentos dos bracos do regente € muitas outras coisas mais. A extensao do conjunto de regras necessdrio apenas para esses poucos afazeres, e que deve ser dominado pelo interessado, ¢ impressionante. Também quando se executa miisica conjuntamente podemos afirmar que se trata de uma estratégia para asolugio de um problema existencial, pois o homem necessita de tempo livre e deve aproveita-lo ¢ preenché-lo, se quiser manter 0 scu equil{brio mental. Junrando todas as estratégias utilizadas por uma comunidade humana, temos diante de nds a descrigao da sua cultura. Com isso chegamos auma definicao mais simples daquilo que as culturas representam: culturas sao estratégias para formacio da existéncia humana. E como a existéncia nuitas vezes precisa ser exeautada na realidade cultural sob condigdes diffceis, valea frase: CULTURAS SAO ESTRATHGIAS PARA A SOBREVIVENCIA. Também os animais tém estracégias paraa sobrevivéncia. Mas nesses casos clas séo bem menos complexas do que no ser humano. Provavelmente no hd estruturas mentais elaboradas sobre as quais se baseiam, ou entio elas sio bem menos elaboradas. Elas funcionam quando um estfmulo, como gatilho, dé inicio a uma reacao cujo desenrolar nao ¢, ou bem limitadamente, influenciado conscientemente pelo referido animal. Sao fixadas no instinto, cujo funcionamento nio precisa ser ensinado ou aprendido. Animais sobrevivem mediante seus instintos através de um rigido esquema de estimulo-reagio, que praticamente nfo permite desvios. Como o ser humano nao possui, ou apenas vagamente, uma orientago de agao ¢ reago comparvel 4 dos animais, ele necessita de uma cultura para sobreviver, em qualquer forma que seja ¢ que deve ser aprendida. Sem isso sua existéncia estaria ameacada. mbojouo o opinposu pup) - soanyn> sopuasalicy 6 | 4asey 1eYyj}07 Lothar Kaser s vb ia Diferentes Culturas - Uma introdugiio a etnolog) (CULTURA COMO CONDICAO PREVIA PARA A SOBREVIVENCIA A forma destacada com que comunidades humanas dependem da sua cultura pode ser demonstrada por meio de uma experiéncia feira em computador, Algum tempo atrds, etndlogos americanos desenvolveram um programa de computador a fim de obter resposta para duas perguntas. A primeira buscava informagées sobre o que aconteceria sea cultura fosse de alguma forma tirada do ser humano, mas deixando uma lembranga a respeito da mesma, O resultado mostrou que os atingidos imediatamente poriam maos& obra para reconstruir as suas culturas, com tal empenho que depois de poucas gerages jé teriam alcancado novamente o estado original. Asegunda pergunta deveria esclarecer 0 que poderia acontecer caso a humanidade fosse privada nfo apenas de suas culturas, mas também da lembranga delas. A resposta foi que a maioria dos atingidos morreria em pouco tempo, pois sem a lembranga de estratégias importantes para 0 desenvolvimento ¢ a sobrevivéncia cles estariam entregues ao ambiente, acontecesse o que acontecesse, Nem mesmo naszonas temperadas do globo rerrestre € poss{vel viver quando no se conhece o cultivo de cereais. E na atual concentragao populacional na Europa central, uma epidemia de gripe teria efeitos desastrosos se ndo se conhecessem os medicamentos necessarios. Naturalmente essas projegdes em computador esto sujeitasa muitas variéveis imponderdveis, nao permitindo pronunciamentos completamente seguros. Mas elas, ainda assim, indicam como as culturas sfo importantes paraas sociedades que as empregam em sua existéncia, deixando transparecer como culturas podem transformar-se em becos sem saida, até mesmo armadilhas mortais, caso apenas um tinico de seus elementos seja alterado ou removido: por exemplo, a Europa ocidental atual poderia alimentar apenas uma parcela bem pequena de sua populagao, caso de repente nao houvesse mais petrdleo dispontvel, ¢ carestias ¢ fome seriam apenas algumas das conseqiiéncias numerosas que se seguiriam, CULTURA E ETICA A fim de diferenciar-se do instinto, a cultura possui orientagoes estratégicas flexiveis que permitem uma enorme variagSo de alterag6es, adaptagées, opiniGes ¢ interveng6es por meio de decisdes arbitrérias. Com isso, acultura como estratégia paraa formagao da vida também possui uma dimensio ética. Nenhuma influéncia, boa ou md, ¢ exercida nos instintos animais. Aqui, a diferenga entre o comportamento humano e animal mostra- se no chimpanzé que aprende a atravessar uma rua pela faixa de pedestres quando o sinaleiro muda de vermelho para verde. Mas se ele mudasse para vermelho enquanto ele ainda estivesse no meio da rua, ele imediatamente ficaria parado, A decisio de atravessar a rua até o fim, independente do sinal vermelho, depende de conhecimentos e decisdes que um chimpanzé com sua orientacao a estimulos ¢ reagGes ndo é capaz de executar. Para o ser humana (normal) essa decisao é natural e evidente. Como tudo aquilo que o ser humano utiliza para sua sobrevivéncia deve ser considerado parte da sua cultura, fazem parte da nossa cultura ocidental nao apenas os coros, os museus municipais, etc., mas também coisas comuns, como fésforos, férmulas matemdticas como (a+b)?=a+2ub+b”, imagens as provas medievais da existéncia de Deus, ¢ até mesmo banalidades como guerras de travesseiros ou aindaa maneira correta de limpar o nariz para passar por pessoa decente. Neste tiltimo caso, os curopeus usam um lengo. Assim, pelo menos, diza norma. Habitantes das ilhas tropicais ficam enojados quando percebem que europeus amarrotam 9 lengo apés 0 uso € 0 colocam no bolso de sua calga. Eles, pelo contrdrio, tapam uma das narinas com o polegare assopram oar fortemente pela narina que ficou aberta, Um procedimento que, por sua vez, éaltamente deselegante entre os europeus. (Na escola chamaévamos isto de “saudagao de cocheiro”.) CULTURA COMO SISTEMA DE VALORES Nesses exemplos € possivel constatar que as culturas tem, como contetido, estratégias para a avaliagdo de coisas, atividades, qualidades e modos de comportamento. Para nés o furto de alimentos € considerado bem menos grave do que amorte de uma pessoa causada por negligéncia. Em culturas ondea taxa de natalidade é muito alta, mas os mantimentos sAo raros ou diffceis de conseguir, poderd eventualmente valer o contrério, podendo até constar em lei. Tais diferencas em sistemas de avaliagao sao fontes de conflito especialmente desagraciveis na colaboragdo entre parceiros pertencentes a culturas diferentes. Essas diferengas sao geradoras de conflitos pelo fato de que estas valoragdes nao podem ser fiundamentadas racionalmente. Existem sociedades onde & vergonhoso pata mulheres ficarem andando numa bicicleta. Ninguém é capaz de explicar, de maneira convincente, qual &a causa, Isso simplesmente é assim. Quem ainda assim vibojougo D ovSnposqus Dui() - svanyny soquasofic] | 4+OSEY JEYJOT Lothar Kaser g | Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnologia quisesse vender bicicletas para senhoras iria 4 faléncia, mesmo se as mulheres ficassem convencidas de que assim elas poderiam levar a sua produgio agricola ao mercado de forma mais facil do que em cima da sua cabega. Nas igrejas também poderd ocorrer 0 conflito motivado por diferencas nos sistemas de avaliagéo, quando parceiros nao conseguem concordar no que deveria ser classificado como pecado eo que nao, de uma forma teologicamente correta, Para os cristos provenientes do animismo, 0 adultétio poderd ser eventualmente um pecado bem menor do que 0 sacrificio aos espiritos dos antepassados, aos quais era costume dirigir-se em caso de apertos. Provavelmente os cristdos do cfrculo europeu-ocidental consideram esse problema de maneira invertida. Isso leva a conflitos nos grémios eclesidsticos ¢ organizagbes comunitarias que se ocupam de casos dessa natureza. Entram ainda no termo cultura, também nesse sentide amplo, as aberragées mais desumanas das quais as pessoas so capazes, nao obstante o faco que nesse caso nem seria possfvel falar em cultura, mas somente na perda ou falta total da mesma, Também as aberragées ¢ crueldades humanas mostram formas e instituig6es t{picas de cultura. Um exemplo famigerado é 0 campo de concentrag4o do nacional-socialismo, com seus uniformes, distintivos de categorias, formulas de saudacao, sua teoria triste e louca de racismo e sua gest4o de economia. Ainda cabem ao termo cultura, no sentido de estratégia para a sobrevivéncia, violagées evidentes da lei eda ordem, como desfalque e assalto a banco. Um caixa cormupto providenciard minuciosamente para que valores por ele subtrafdos aparegam como despesas regulares, E um assaltante de banco entrar4 no estabelecimento que ele pretende assaltar inicialmente como um cliente normal. E, por motivos evidentes, ele nao estacionard seu vefculo de fuga em um local proibido, mas obedecerd 8 regra em vigor a fim de cometer seu crime com pleno éxito. Levando a idéia ao extremo, isso significa que infiagoes contra determinadas regras culturais somente poderao ser efetivadas com bom resultado mediantea observacdo bem rigorosa de outras regras culturais. Esse entendimento amplo de cultura, que também engloba os desvios, sempre entra em jogo quando pessoas comegam a agir por meio de sua mente ¢ sua obra. E como compreende tanta coisa, uma definicio do termo cultura precisa manter-se to generalizada como exposto acima. Assim, essa forma extremamente ampla da compreensao de cultura distingue-se bastante da definigéo habitual do termo, que fica restrito a fenémenos culturais como literatura, musica ¢ arte. (CULTURA COMO ESTRUTURA DE CONCEITO A definigao mais ampla agora entende cultura nao apenas como a totalidade de coisas e maneiras de comportamento a serem observadas, tpicas de determinado grupo, mas como algo essencialmente mental ou abstrato, escondido nas cabecas das pessoas que vivem na cultura em questao, e que utilizam as regras da mesma, a saber, as estratégias para dar forma a sua existéncia. Isso significa que cultura, quer dizer o sistema de regras ou estratégias, é algo além dos afazeres em si. O fazer é uma conseqiiéncia da estratégia, mas apenas a atividade pode ser observada diretamente. Assim, aquilo que ¢ visfvel e perceptivel numa cultura forma, no mdximo, uma camada superior, a ponta do iceberg, por assim dizer. Manifestagées vistveis, audiveis e palpaveis em culturas acessfveis 4 observagao dos pesquisadores apresentam-se dessa maneira como algo secundério, procedente dos bens mentaise fundamentais de uma cultura, portanto algo baseado em estruturas mentais invisiveis, que emergiu das mesmas ¢ foi gerado pelas mesmas. Isto vale tanto para um machado de pedra como para o ritual de uma cerim6nia de iniciago. Mesmo tendo aparéncias bem diferentes, cles surgiram da base de determinadas regras, estruturas mentais, estratégias. Em sua forma perceptfvel, nada mais sio do que aparéncias culturais secundarias, cujas causas verdadeiras nao sio acessiveis & observacao direta, mas ficam ocultas nas cabegas das pessoas. Isso fica, raras vezes, evidente aos turistas em contato com culturas desconhecidas. A maioria se interessa pelo (pouco) que é vistvel, e este permanece em grande parte incompreensivel a eles, por nZo saberem que isso representa apenas fragmentos da superficie da referida cultura. Naturalmente aquilo que pode ser observado deve valer como parte da respectiva cultura, jd que foi produzido por ela. As regras que dirigem o comportamento do ser humano fazem isso de maneira que a tal superficie observavel permita reconhecer os tragos daquela cultura, As regras segundo as quais surgem pinturas chinesas, caracteres gréficos ardbicos ou uma fogueira caseira na Africa determinam essas coisas de tal maneira que podemos identificé-las sem qualquer diivida como sendo de origem chinesa, drabe ou africana. E as regras segundo as quais cagadores € coletores constroem as suas armas de caca, produzem, de acordo com a respectiva necessidade e cultura, uma zarabatana ou um bumerangue. (Nesta passagem queremos tepetir oaviso de que essas regras dirigem 0 comportamento humano da mesma viBojouja vopinpowquy pup) - soanyn soquauafiy | 4ASE{ 14}07] Lothar Kaser Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnologia aS a maneira como agem as regras da gramatica quando alguém fala : as regras da gramatica chinesa geram seqiiéncias sonoras chinesas e assim por diante.) Ointercimbio estreito entre culcura como estratégia ¢ seus produtos écomplementada e complicada por mais outra dimensao, que precisa ser conhecida para que se possa entender pessoas de culcuras desconhecidas. Essa dimensio ¢ a sistemdtica pela qual os conceitos sto coordenados uns com os outros, ou melhor, como produtos de culturas em seu posicionamento conceitual (cf. cap. 12), seja como comportamento ou como manifestaco material. Para entender 0 que isso quer dizer, deve ficar claro o que significa a palavra “nogio” ou “conceito”. Em termos praticos, a melhor formulacao seria dizer que nogio ¢ uma coisa, uma propriedade, um comportamento ou um processo na forma imagindria ou suposta. Essa definic&o nao observa a nocao como aquela coisa, propriedade, comportamento ou processo em si mesmo, mas como a parcela cultural inerente, escondida na cabeca das pessoas. Por isso, nogGes devem ser igualmente entendidas como clementos de estratégia para formacio da vida. A multiformidade das culturas realmente existentes baseia-se essencialmente nas possibilidades aparentemente incontaveis pelas quais os elementos da realidade podem ser combinados mentalmente. Um exemplo deve ajudar a esclarecer isso. Quando se pergunta a uma crianga alem o que é uma casa, ela provavelmente vai desenhar uma que se parece com aquela em que esté residindo, com um telhado de duas aguas. Pedindo que ela desenhe outros tipos de “casa”, talvez ela desenhe um prédio com telhado plano, ou talvezainda uma concha de caracol. Disso dé para coneluir que nessa crianca o conceito especifico da concha de caracol faz parte do conceito geral de casa. E dessa coeréncia que falo quando menciono o posicionamento conceitual. A classificago de conchas de caracol sob 0 conceito de casa deixa reconhecer que a respectiva pessoa consegue pensar de maneira coerente e combinadora, Mas, nem por isso, essa classificagio é obrigatéria ou é a unica possibilidade de classificagao. Pode-se encontrar inesperadamente muitas classificag6es conceituais em outra cultura. Caso perguntarmos a um habitante de ilha tropical o que é uma casa, provavelmente ele mostrard primeiro a construgao de madeira, cipd trangado e folhas de palmeira na qual mora. Ela ¢ muito diferente de uma casa na Europa. Mas as diferengas nao sio muitas profundas. Se perguntarmos a respeito de outras coisas que ele entende como casas, ele poderia mostrar-nos eventualmente 0 seu chapéu ou boné. Aqui, repentinamente, as diferengas j4 s4o considerdveis, Conceitualmente, sua cultura inclui na nogao de “casa” nao sé moradias, mas também coberturas de cabega, até guarda-chuvas ou folhas enormes de taro usadas para abrigar- se da chuva. Mas nunca conchas de caracol. Isso nao € curioso nem ildgico, mas pode ser justificado e compreendido. Esse posicionamento conceitual representa apenas € tio somente outra possibilidade de combinagio ou associagao, resultante das propriedades e caracterfsticas dos objetos, pois eles dispdem de mais de uma propriedade, e, com isso, de mais de uma possibilidade de relacionar-se conceitualmente ¢ associar-se com outras. O que precisamos reconhecer aqui é 0 fato de que, para duas pessoas que fazem parte de culturas diferentes, um objeto como o chapéu, apesar desua aparéncia exterior rigorosamente igual, é associado a situagGes € coisas completamente diferentes. Considerando agora que em cada cultura existem milhares de conceitos, que todos podergo ser combinados varias vezes ¢ de varias formas, dd para ter uma idéia de tudo o que nés precisamos aprender antes de poder afirmar que conhecemos uma cultura ou até quea dominamos. O acesso aos conceitos de entendimento que formam a base de uma cultura estd ligado a diversas dificuldades. Em geral, eles no estao ancorados no consciente das pessoas. Geralmente s4o aplicados inconscientemente. Isso é necessério para que as nossas atividades no fiquem demasiadamente travadas pelo fato de querermos aplicar conscientemente as séries de regras. Por exemplo: a aplicagdo consciente das regras gramaticais tiraria coda a fluéncia da nossa fala. Mas como 0 que importa aqui nao é baseado no consciente, mas no subconsciente esemiconsciente, quase sempre ¢ dificil (e em muitos casos impossfvel) reconhecer os elementos da cultura otvos condicionados por ela, sem falar na incapacidade de informara respeito. Cultura é uma espécie de fendmeno de pano de fundo, algo natural e dbvio, que nem parece cultural ao membro da referida sociedade. Se, porventura, perguntarmos aos habitantes do sul da Alemanha o que é entendido como culturaem suacidade, possivelmente eles citariam o coro masculino, 0 dube foldérico ou o museu histérico local, caso houvesse algum. Outras coisas talveznem fossem lembradas. Perguntar seos instrumentos de trabalho, os métodos de cultivo, os ditados populares deles e as conversas sobre a meteorologia tém algo a vercom cultura provavelmente esbarraria na incompreensfo, ‘Caso as mesmas pessoas se encontrassem com desconhecidos de outra cultura, entio essas coisas da vida didria de repente nao seriam mais fendmenos de pano de fundo, mas singularidades invulgares, das quais se tomam conscientes Por serem diferentes das rotinas do mundo em que vivem. Jus DUEL) - SDNY) soposofi(yT | 4asPy JEYIOT ovin youre B vibo, Lothar Kaser ia Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnolog’ Numa situagao dessas nds procuramos entender o fator incomum. Pessoas de culturas desconhecidas parecem esquisitas, sem ldgica, engragadas eaté repugnantes. E turistas ingénuos usam essas palavras para descrever 0 desconhecido nos relatos de suas viagens a terras distantes. Quem trabalha em um mundo desconhecido, como agente de desenvolvimento, médico, professor ou obreiro da igreja, tentard entender 0 incomum, comegando a fazer perguntas. A partir desse momento os outros passam a considerd-lo esquisico, sem Idgica, engragado ou repugnante. No minimo’ ficam admirados porque a pessoa inquire a respeito de coisas tao naturais para eles, coisas que qualquer crianga conhece. Na minha experiéncia, para alguém que atua como professor numa cultura desconhecida, o conhecimento a respeito dessas coeréncias faz parte dos conhecimentos elementares irrenunciaveis. E como 4 maioria dos agentes de desenvolvimento e obreiros de igreja no além-mar compete 0 papel de professor (muitas vezes informal) e instrutor, eles precisam ocupar- se desse assuinto jé durante 0 seu preparo, familiarizando-se com ele. Mas quando (¢ se) isso acontece, é feito apenas de forma superficial. Essa insuficiéncia manifesta-se de maneira especialmente grave na aplicagao ¢, mais ainda, no preparo da matériaa ser lecionada, quando nfo se leva em consideragao que o posicionamento conceitual dos objetos de ensino se apresenta aos estudantes nativos de forma totalmente divergente do que a nds, estrangeiros. Ou, o que é ainda pior, que o desconhecimento dessas conex6es entre as estrucuras de compreensao dos estranggiros leva falsa suposicao de que seriam automaticamente iguais as dos homens da cultura desconhecida. Essa ingenuidade é encontrada com maior freqiiéncia do que seacredica Médicos que trabalham no Terceiro Mundo raramente dispoem de conhecimentos aproveitdveis a respeito do que seus pacientes entendem por medicina, como estes vem seu corpo ¢sua alma ou sua imagem humana, Isso levaaintimeros desentendimentos, como ainda vamos ver (cf. cap. 15). E, finalmente, os tradutores da Btblia no poderao fugir da obrigacao de familiarizar-se profundamente com 0 ambiente conccitual em seu campo de trabalho, se quiserem elaborar um texto compreensivel. O que poderd ocorrer, caso 0 tradutor nao dispuser de um posicionamento conceitual diferente é mostrado na seguinte “tradugao” do salmo 23 numa Ifngua tribal do sudeste asidtico. (A re-traducao permite, assim espero, que 0 leitor de agora perceba 0 que € como um nativo “entende” quando esse texto élido.) “0 Grande Cacique ¢ 0 meu criador de gado. / Eu nfo tenho necessidade de bens. / Ele me leva a uma clareira cheia de capim / eme leva até o rio. / Ele faz com que a minha alma sempre fique comigo. / Se tenho que passar por uma depressZo escura do terreno / nao tenho medo, pois tu estas comigo. / Usas um pau ¢ uma clava / para tornar tudo agradavel para mim. / Edificas um lugar para comer, de tébuas, na minha frente. / Os meus inimigos esti vendo isso. / Derramas éleo na minha cabega. / O meu caneco esté quase transbordando. / Bondade ¢ miseric6rdia andarao / em fila indiana atrés de mim, / vou viver para sempre / na residéncia do Cacique Grande.” CULTURA E COMPETENCIA Como cada cultura utiliza, na realidade, apenas parte das combinagdes conceituais, Iégica c tecnicamente possiveis, cada uma forma uma estratégia inconfundtvel, independente, cerrada em si, para a formacio existencial. Esta funciona apenas naquela regido geogréfica na qual ela se desenvolveu para utilizacéo e dominio do ambiente, e ela apenas funcionara na cooperacao entre varias pessoas quando elas também a aceitam como racional ea usam para modelara sua existéncia. Nesse caso, os conhecimentos eas capacidades que uma cultura coloca & disposigao de seus seguidores faz com que eles possam comunicat-se a respeito de suas necessidadles e intengdes sem maiores dificuldades, ficando aptos a realizd-las resolutamente. Os acontecimentos didrios nos cruzamentos comprovam isso. Isso significa que aquele que sabe empregar umacultura para estabelecer asua vida pode trabalhar de maneira efetiva ¢ eoonémica. Por tr’s desse fato esconde-se uma verdade ou caracteristica das culturas que leva.a conseqiiéncias de longo alcance. Também essa pode ser deduzida do nosso exemplo do cruzamento de ruas. Como cada um dos trés motoristas conhece as regras de transito, ele pode prever como os demais yao comportar-se. (Naturalmente esse prognéstico nao pode ser feito com certeza absoluta. Se isso fosse possivel, no haveria acidentes de transito.) Da mesma forma pode-se prever aproximadamente o comportamento de pessoas, uma vez que a cultura que elas empregam para estabelecer a sua existéncia for conhecida. Se na Alemanha alguém é convidado para uma festa de aniversétio num domingo a tarde, poderd afirmar com grande seguranga que nao haverd cerveja ali, mas café, e que 0 café no serd servido em um copo com canudinho, mas em xicaras, apesar de as outras formas de servir serem tecnicamente possiveis, viBopouqo v ovdnpouqus vu) - svanyn>) sopuasoficy T 4BSE> 1YIOT Lothar Kaser Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnologia wa So sem maiores dificuldades. Além disso, os convidados sabem que nao haverd lombinho de porco assado com maionese de batata para comer, mas bolo. assim por diante. Aqui, a intimidade com a cultura nos proporciona os conhecimentos com auxilio dos quais podemos saber, com antecedéncia, o que deve acontecer na festa e o que os anfitriGes vao fazer. Além do mais, estes também sabem, grosso modo, como nés, os convidados, agiremos. Eles podem, por exemplo, ter certeza dé que nao vamos levar de presente um saco de baraeas, mas um buqué de flores. (H4 culturas nas quais 0 presente esperado é um saco de batatas, co buqué de flores seria uma ofensa.) A possibilidade de prever o comportamento de outros em virtude do conhecimento de uma cultura tem enorme importancia, por diversos motivos. Quem aceita um convite pode assim organizar-se com antecedéncia para o evento. Dessa maneira, anfitrides e convidados tém a possibilidade de sintonizar as suas atitudes, ¢ assim 0 acontecimento pode ocorrer sem maiores contratempos, atrasos ou outras perturbagées, Mas existe outra coisa ainda mais importante: A possibilidade de preyer 0 comportamento das pessoas com ajuda do conhecimento de sua cultura proporciona a todos os envolvidos um sentimento de seguranga, muitas vezes até de soberania no relacionamento com os outros. Isso torna- se realmente consciente quando precisamos agir sem saber exatamente quais regras devem orientar a nossa conduta, e como o outro lado vai reagir. Um convite para visitar a tenda do xeque Emir pode tirar nosso sono. Como devemos sentar-nos? Devemos tirar os sapatos? E as meias também? Como se toma o ché? Pode ou deve ser sorvido ruidosamente? Como fazer para nao repetira xicara de cha sem parecer deselegante? A inseguranga que se apodera de nds quando desconhecemos estratégias culturais que deverfamos conhecer atinge em primeiro lugar aquele que vive e trabalha menos tempo no ambito de uma cultura desconhecida. Nada, nada pessoas ¢ exatamente como esperamos. Isso mesmo, do comportamento talvez possa ser suiportado por algumas semanas. Depois comegamos a ranger os dentes € ficamos com a sensagao que a nossa paciéncia esté cada vez mais préxima do fim. Ficamosagressivas, eisso tem conseqiiéncias. As pessoas podem no entender o nosso comportamento ¢ sentem-se ofendidas. Ruim é quando a paciéncia se esgota. E quando falta apenas um pequeno passo para o choque cultural. Ele pode ser explicado como um estado no qual se comega a odiar, odiar mesmo, tudo, absolutamente tudo, na cultura desconhecida, e entio vamos nos afastando dela, isolando-nos dela, ficando, desse mado, impossibilitados de executar a misao uma vez assumida. A inseguranga de um iniciante raras vezes assumira tais dimensdes numa cultura desconhecida. A maioria percorre algo que poderfamos chamar de estresse cultural. Mas também este precisa ser desarmado quando se pretende trabalhiar de maneira efetiva e econdmica, A via nica e mais curta para isso é tentativa enérgica de tornar-se {ntimo, no menor tempo € no maior grau possivel, das regras utilizadas para a formago de existéncia pelas pessoas com as quais devemos trabalhar. Isso significa especialmente que devemos aprender a lingua com a qual elas se comunicam, (E claro que eu sei que isso é bem mais facil de dizer do que de fazer. Em regiGes onde sao faladas varias linguas nao hd como evitar uma restrigao a lingua de maior circulagao,) Apesar disso vale: quanto mais rapidamente aprendemos a cultura ealingua da regifo em que estamos, tanto mais fincaremos rafres emocionais nela ¢ afastaremos o estresse. (Nao se pode ocultar o lado inverso dessa exigéncia: é possivel enraizar-se tao profundamente numa cultura desconhecida que serd muito dificil ausentar-se dela quando for necessdrio voltar definitivamente ao cfrculo cultural de origem.) CULTURA E ENTENDIMENTO ENTRE OS POVOS De tudo isso tantbém podemos concluir que pessoas percebem o seu contato com culturas diferentes primeiramente como uma separa¢ao, que traz como conseqiiéncia a falta de entendimento e desconfianga. Essa ¢ a causa da inimizade contra estrangeiros que parece aumentar ainda mais & medida que as culturas desconhecidas se aproximam. Na minha opiniao, a funcao separadora dominante exercida por culturas diferentes é de tanta importéncia que nao consigo vislumbrar um futuro glorioso para a tao evocada sociedade multi-cultural. Ela nZio vai funcionar, pois exige dos participantes um volume de tolerincia impossivel de ser gerado a longo prazo, chegando a impor as sociedades atingidas um preco que ultrapassaria em muito as suas possibilidades, p.ex. pela necessidade excessiva de sistemas ¢ materiais escolares e administragées culturais préprias, para mencionar apenas uma tinica drea atingida. A fungio separadora que aparece quando pessoas de culturas diferentes estabelecem contato representa um primeiro empecilho também. para o agente de desenvolvimento ¢ 0 colaborador eclesidstico. Enquanto ele se movimenta na 4rea européia, ou no circulo cultural de origem que for, praticamente nao ha possibilidaces de ganhar experiéncias nesse campo. Elesentird a sua prépria cultura como um elemento que 0 atrapalha muito mBojouyo v opsnpodguy vu - spanyny SopuovoficT + 4aSEy JlY}O7 Lothar Kaser Diferentes Culturas - Uma introdugéo a etnologia tarde, isto ¢, quando for confrontado com a sua futura e segunda cultura. Ele sé conseguird superar esse impedimento se estiver disposto a arranjar-se com as novas estratégias de vida que encontrar, aprendendo a fazer uso das imesmas. O tempo até conseguir um resultado satisfatério varia muito, de acordo com aaptidao e disposigao de cada pessoa. Isso, no entanto, sempre serd um feito considerdvel.

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