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O costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teoria da magia* Pierre Bourdieu comYvette Dekaut “Se pudermos mostrar que, na magia considerada em sua totalidade, reinam forcas semelbantes aquelas que agem na religido, teremos demonstrado dessa maneira que a magia tem um cardter coletivo idéntico ao da religido, $6 nos restard, entéo, fazer ver como essas forcas coletivas foram produzidas, no obstante 0 isolamento em que, segundo parece, se encontram os magos, seremos levados a conceber a idéia de que esses individuos limitanvse a se apropriar das forgas coletivas.” (Marcel Mauss, Esquisse d'une théorie générale de la magie). +e couturieret sa griffes contribution de tune théori de la ‘magi in Actes de la recherche en sciences sociales, Janeiro de 1975, n. 7, p. 7-36. ‘Draducéio da Profa. Dra. Maria da Graca Jacintho Seton, dovente da Faculdade de Hducacdo ¢ pesquisadora do Nticteo de Apoio aus Estudos de Graduacéio da Universidade ce Sao Paulo, Revisiio de Guilherme foto de Freitas Teéxeina. Fducagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 4 da magia igdo para uma teoria fe: contribui reiro e sua grit O costur © campo da alta costura deve sua estrutura 4 distribui io desigual, entre as diferentes “maisons”, da espécie particular de capital que € 0 fator da concorréncia neste campo ¢, uo mesmo tempo, a condigao da entrada em tal competi¢io As catacteristicas distintivas das diferentes instituicdes de producio e difusio, assim como as estratégias que elas utilizam na luta que as opde dependem da posicio que ocupam nessa estrutura. A “direita” e a “esquerda” E assim que as instituicdes que ocupam posigées polares neste campo, ov seja, de um lado as empresas dominantes em determinado momento - como, atualmente, Dior ou Balmain - e, de outro, as que mais recentemente entraram na concorténcia - tais como, Paco Rabanne ou Ungaro -, se opdem em quase todas as relagdes designadas como pertinentes pela légica especifica do campo'. Por um lado, os muros brancos e 0 tapete cinza, as monogtamas, as vendedoras de “uma certa idade”, das velhas “maisons” de prestigio e de tradigao, situadas nos santuarios da rive droite’, tais como a rue Francois Ie a avenue Montaigne, por outro, o metal branco ¢ ouro, as “formas” e os “volumes” implacayelmente moderos, além dos vendedores audaciosamente santro- pezianos™ das “boutiques” de vanguarda, implantadas na drea “chique” da rive gauche *, ou seja, rue Bonaparte e rue du Cherche-Mid?. Em um pélo, a austeridade no luxo a elegincia sébria, a “grande classe’, que convém ao “capitalista da velha cepa” - como disse Marx - ¢, mais precisamente, as mulheres com idade “canénica” das fragdes mais elevadas ¢ estabelecidas, hi mais tempo, na alla burguesia; no outro, as audacias um tanto agressivas e espalhafatosas de uma arte dita “de pesquisa” que, pel2 lei da concorréncia - isto & a dialética da distinggo -, pode ser levada a proclamar © “édio a perfeicio” © a “necessidade do mau gosto", por um desses exageros “artistas” que convém a tal posiglo. Por ‘Uma oposteda andigga seencontra no campo da tame sitar (NA: sales cabeliriro de grande prstigl, entre Cantare Aleindire, om ue predominaaelegdncir totum estilo tm tanita caster, por iam lade, «por cx, Foan-Louts Davi que pretende oferecer, “sem distingeio dl classes’ seuspenteades ‘adactosos” “Agu, somelbanse do que sepassa em relagtto a tains, Salers or cinemas, ave pace nev sempre enn sentido googrifico ass, Saint-Laurent porst ats ois “rive gauche" en Paris ma, na rue de Tournon (60 air} a segunda, na avenue Vitor Huo (160 barr $ a terceira, na swe da Faubourg Saini-tonose (60 batrro). Ocorre que, em opasicio as “maisons* Inadictonas,estabelectas nos santucirios dave dete. 4 maior parte dos costervivos de vanguard « 4 sotaldade des "estas ou “meelitas” tensa mar: ot *boetiques” na rive gauce, “NR: Refertncis a cidade de Saint-Tropex, 2 buira des Mediterrdre, reputada instdncacte fers “ANR- Rive droite f margensdirwital ena frase sequins, sive gauche f= margens exquertal- do rio Sena. Fducagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 um lado, a preocupacdo em conservar e explorar uma clientela restrita e antiga ; Por outro, a esperangx de converter novos que s6 se conquista pela tradig: clientes, através de uma arte que pretende estar “ao alcance das massas” - isto é, € ninguém poder’ se enganar neste caso, ao alcance das novas fracdes da burguesia ou, 0 que vem a ser quase © mesmo, que pretende ser cultural e economicamente acessivel aos jovens das fragdes antigas. O fato de a ideologia populista de abertura as “massas” se encontrar em um campo, onde o esquecimento das condigdes de acesso aos bens oferecidos é mais dificil que alhures, tende a sugerir que ela deva ser sempre compreendida como uma estratégia nos conflitos internos de um. campo: os ocupantes de uma posigio dominada em um campo especializado podem ter interesse, em certas conjunturas, em utilizar a homologia estrutural entre as oposigées internas de um campo ¢ a ultima oposi¢io entre as classes para apresentar a procura por uma clientela, no sentido econdmico ou politico do termo (aqui, a das parcelas dominadas do subcampo dirigente da classe dominante, nova burguesia e os jovens da antiga burguesia), sob a aparéncia arrogantemente democritica de abertura “as massas . denominagio eufemistica € imprecisa atribuida ds classes dominadas. Entre o pélo dominante e 0 pdlo dominado, entre © luxo austere da ortodoxia € © ascetismo ostensivo da heresia, os diferentes costurciros se distribuem segundo uma ordem que permanece praticamente invariavel, quando ihes aplicamos critérios tao diferentes como antigitidade da “maison” € a importancia de seu faturamento, o preco dos abjetos oferecidos e o ntimero de provas, a intensidade das cores ¢, hoje, © espaco reservade As calgas nas colecdes As posigdes na estrutura da distribuicie do capital especifico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto comerciais. Para alguns, as estratégias de conservacao que visam manter intacto 0 capital acumulado (o *renome da qualidade") contra os efeitos da tcanslagho do campo € cujo sucesso depende, evidentemente, da importincia do capital possuido e também da aptidio de seus detentores, fundadores ¢, sobretudo, herdeiros, em gerir racionalmente a reconversio, sempre arriscada, do ca pital simbélico em capital econdmico. Para outros, as estratégias de subversio, que tendem a desacreditar os detcntores do mais sdlido capital de legitimidade, a remeié-tos ao classic e, em seguida, ao desclassificado, colocando em questi (pelo menos, objetivamente) suas normas estéticas ¢ apropriando-se de sua clientela presente ou, em todo caso, Educacdo em Revista, Belo Horizonte, n? 34, dez/2001. 5... 2... CO costureiro e sua grife: contribuigéo para uma teoria da magia ‘O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 10 futura, por meio de estratégias comerciais, que nao poderiam set utilizadas pelas “maisons” tradicionais, sem compro- meterem sua imagem de prestigio € exclusividade. Entre todos os campos de produgao de bens de luxo, a alta costura € aquele gue deixa transparecer mais claramente um dos principios de divisio da classe dirigente - ow seja, o que estabelece oposigao entre diferentes faixas eirias, indissociavelmente caracterizadas como classes endinheiradas ¢ detentoras de poder -, além de introduzir no campo da moda certas divisées secundérias. Segundo uma série de equivaléncias que se encontram em todos os dominios, jovem se opde a mais idoso, como pobre se opde a rico, mas também como moderno se opée a tradicional ou como “aberto", “antenado” politicamente, se opde a conservador e tradicionalista, ¢, finalmente, no dominio do gosto ¢ da cultura, como “intelectual” se opde a “burgués”, Assim, a semelhanga das grandes “maisons* de costura ou dos saldes de cabeleireiros de grande prestigio, os préprios comerciantes de peles possuem quase sempre uma loja destinada aos jovens que se distingue por praticar pregos mais baixos ou “mais jovens", como se diz, a vezes, nesse meio. A légica do campo deixa claro 0 principio de todas as equivaléncias, ou seja, a identificagao entre idade e dinheiro. De fato, a loja - destinada aos jovens - de uma “maison” situada no pélo dominante apresenta quase todas as caracteristicas das lojas situadas no pélo dominado desse campo; desde os espelhos ¢ araras de aluminio até vendedoras freqdentemente de short, tudo na “maison” de Miss Dior, como nas de Ted Lapidus ou Paco Rabanne, tende a mostrar que se pode ser “tradicional e, aa mesmo tempo, moderna, em suma, burguesa ¢ estar na moda”, como afirma, sem ironia, um panegirista? Segundo esta logica, ume “burgués” pobre, isto 6, um ‘intelectual’, seja qual for sua idade biologica, eqitivale a um jovem “burgués”: alids, eles tém muitas coisas em comum, duddcias na indu- mentaria, hoje, cabelos longos, 5$,Sebroedore] Matignon, Le Goat luxe, ans Pala 1972, O mesmo discurso, produto da mesma post, -@-encontsa em Frangosse Boros (te tournant, Parks, Julliard, 1973, p24) “Existem aqueles que podemies dencrminay, se voos quiser, passaists, conservadoses, que decitram, de uma vex por todas, sie o murda atuat estar completamente luc, que passam pela vida com uma venda nos olkes eceras ‘Quids*nos owas.) Os vars so aquelesquepegaramo trem quando ele partis vive «vida no presente, adotaram as nova ics, gem Clavel Marcuse, se itoressam pelas novas formas de expressdo corporal, wo aos teatras da perferia acompanham a evoluséio das Maisons de la cule, gostam da misica dodecajanica ¢ da escuttura contempordinea, em sunia, esa no mesmo plano dos ovens’ Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 gostos fantasistas, idéias politicas simbolicamente avangadas e, origem de tudo isso na opinido do “burgués”, a falta relativa de dinheiro. Os ‘jovens” assim definidos - isto 6 grosso modo, 0 conjunto dos dominantes dominados -, ndo conseguem negar a hierarquia do dinbeiro e da idade @ nao ser constituindo, de forma _dectséria, outras formas, menos custosas, da vida de Mediante um considerdvel investimento de tempo e de capital cultural, os artistas (e, em menor grau, os intelectuais) podem se @propriar por um bom preco - isto é, antes que tais formas sejam consagradas, portanto, valorizadas do ponto de vista simbélico e, no fim, econémico, por apropriagao ~ de todos os bens da vanguarda, cafés ou resiaurantes “populares”, objetos antigos e, sobretudo, obras de arte, esponidineas (as que encontramos no “mercado das pulgas”) ou produzidas por profissionais, eferecendo assim aos produtores de vanguarda uma fragdo de sua clientela em curto prazo. O estilo de vida “artista” que transfigura a pobreza em diistingdo refinamento encerra a negagao do estilo de vida “burgués”, desvalorizado por sua propria venalidade; e 0 gosto “artista” que transforma em obra de arte tudo 0 tuxo, essa Educagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dezi2001 - - . +--+ - gue loca — nem que se trate, como ocorre nos dias de boje, de simples dejetos ultrapassado, ao démodé, ao velho (que ndo 6 0 antigo), com seus atos de violéncia, 0 gosto “burgués” contra o qual se coloca. Isto significa que, uma vex mats, as faixas etérias constituem, qualquer sistema de class\ficagao, fatores de dispuia simb6lica entre as classes ou, pelo menos, como remete ao passado, ao & semelhanca de vemos aqui, entre as camadas de classe que, de forma bastante desigual, tém interesse no triunfo dos valores freqiientemente associados & juventude e & velbice. No campo da moda, como em todos 08 outros campos, sto os recém-chegados que, a semelhanga do que acorre no boxe com o desafiante, “fazem 0 jogo". Os dominantes agem sem riscos: nao tém necessidade de recorrer a estratégias de blefe ou enaltecimento que sio outras tantas maneiras de confessar sua fraqueza. “No estilo classico - diz um decorador -, é telativamente facil criar o belo, enquanto © estilo de vanguarda € muito mais exigente” (Y. Taleron, Dépéche-Mode, janeiro cle 1973). Essa é urna lei geral das relagdes entre os dominantes ¢ os pretendentes. A nao ser que mude radicalmente 0 terreno - 0 que, por definigio, no ocorre com ele - 0 pretendente empenha-se a parecer O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 1 teoria da magia icdo para uma contribui “O costureiro e sua grife: 12 pretensioso: de fato, tendo que mostrar e demonstrar a legitimidade de suas pretensées, tendo que prestar provas porque niio possu' todas as credenciais exigidas, ‘ele exagera”, como se diz, denunciando-se, perante aqueles que s6 precisam ser 0 que silo para serem como convém, pelo préprio excesso de sua conformidade ou de seus esforcos no sentido da conformidade. Isso pode ser a hipercorrecio da linguagem pequeno- burguesa ou o brilho demasiado acentuado do intelectual da primeira geracZo € a obstinacdo fascinada e, de antemao, vencida com que procura ocupar os terrenus em que nao se sente tio a vontade - tais como, a arte e a literatura -, ou ainda as referéncias pedantes 20s autores candnicos que denunciam o autodidata Cabsoluto ou relative) em sum, us audicias que submetem o novo-rico A acusagiig de man gosto, pretensao, vulgaridade ou, simplesmente, de artivismo ou avidez, erro particularmente imperdodvel em um universo que profess o desprendimento. “Como criador, nunca fui um promotor de roupas ‘césmicas’, nem de vestidos esburacados. (Yves Saint- Laurent, Elle, 6 de setembro de 1971). “BE um absurdo. O short 6 para as quadras de esporte ou para as férias. Nao; em relacdu ao shott, ele ndo entende: é antifeminino. Nao é feito para os jovens; alids, jd tem 20 anos*. Que, em 1972, a gente sirva ‘Riz Amer nas ruas & vulgar. Ou entdo, ele nada conhece a respeito de criacdo, nem de Paris"(Pierre Cardin, Elle, 22 de fevereiro de 1971). |p. 10 e 11 do original francés} ESTILO EB ESTILO DE VIDA A decoragio da moradia dos costureiros de grande prestigio BALMAIN: O GOSTO PELO ANIIGO “Esta bela residéncia é um verdadeiro museu onde, hd trinta nos, 0 costureiro coleciona pegas raras @ objetos preciosos, No pequeno sal20 atapetado com veludo de linho azul, as mesas sao om laca de Kien-Long, incrustadas de madrepérola; por sua vez, as estatuetas chinesas sdo em terra cozida da época Tang.” “O quarto: desenbos de L. Fini, bustos de Henrique IV e de Sully” “As cristaletras do saldo contém uma colegdo de Tanagra “A escadaria; quadros de mestres ‘menores franceses do século XIX.” * Bxemplo tipico da estrateyia do dominante, cujo ‘equlvaiente & possivel encontrar em todos os campos: pegar na palavra dos daminades para opitos a seus Proprios principics ou tontar weneé tos em sen priprio terreno, “ultrapasta-los pola esquersle" ANE Titulo deta filme cet clécada ds 70 sobre tncocbinats oautor fazcalusio d pobreza das que, na fla, seantson. Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 GIVENCHY: O CLASSICO NO MODERNO “No quarto de amigos (que, na realidade, € um pequeno apartamento), 0 costureiro Hubert de Gtuenchy decidiu que tudo fosse branco, do tapete ao teto, das paredes ao baldaquino. Nesse ambiente monacal, alguns méveis modemos de aco e plistico.” “Em frente da cama e entre as estantes de livros, um quadro de Vasarely. Em cima da mesa, uma pega de seda chinesa do século XVIII.” "A cama de dossel esti coberta por uma grossa colcha de lino sedoso, Por cima: tum icone grego, Méveis de Kroll.” CARDIN: 0 MODERNO BARROCO “Seu saldo cria um pouco a sensagdo de uma floresta virgem com seus enormes ficus (Ficus decora) ¢ esse filodendro erubescens. Para o jardim de inverno de seu apartamento, Situado no quat Anatole France, Pierre Cardin escolheu poltronas de plastico branco com almofadas revestidas de (a azul. A estétua 6 de Carpeaux. No chdo, piso de mdrmore cinza escuro.” "Plerre Cardin instatou um verdadeiro pequeno — museu consagrado a caixas: possui mais de Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 duzentas. Iniciada ba vinte anos, sua colegdo se enviqueces em cada ume de suas viagens: caixas para labaco oriundas da Rissia em madeira preta com paisagens na tampa; caixas de prata, etc.” ES: A PREFERENGIA PELO MODERNO E PELO MODERNISMO “As tdbuas do soalbo sdo de sicémoro branco curtido, © conjunio da cozinba dd a impressdo de ter sido modelado em uma pega tinica de cobre, poltronas © sofds estdo revestidas de Id branca tricotada. Do ponto de vista da cor, portanto, unicamente o branco eo tom da madeira natural. O recanto descanso 6, ao mesmo tempo, quarto e banheiro. A cama, toda branca com dots colchdes, esta embutida em um estrado gue dissimula encaixes para os travesseiros. Por tras, 0 grande lavabo duplo, com pias modeladas em massa de porcelana, dé continuidade & banheira.” HECHTER: O DPSLEIXO OBRIGATORIO “O saldo, iluminado por uma grande baia envidracada, esti dividido em vdrios niveis de argamassa, cobertos por tapete O costureiro e sua grife: contribuiggo para uma teoria da magia 13 a a. uma teoria da magi cdo par contribuic O costureiro e sua grife: 14 branco. O primeiro nivel esta situado @ volta da lareira. O segundo, mais elevado 70 cm, serve de sofa: esta coberto por varias peles, entre elas, a de umm urso, @ almofadas. O terceiro nivel contém @ biblioteca, Neste cémodo, ndo existem méveis.” As breves anotacées sobre 4 decoragio dos apartamentos de alguns costureiros de grande prestigio manifestam um verdadeiro sistema de ‘oposigées que, em sua ordem, reproduz o sistema das posicdes ocupadas por eles no campo da alta costura. Os dois extremos - Balmain, 0 sobrevivente; ¢ Hechter, o pretendente - opdem-se praticamente em todos os aspectos. Por um lado, a elegdncia ¢ a opuléncia, o luxo ascético que define a burguesia tradicional: 0 centro e o simbolo deste universo € 0 salio, ao mesmo tempo, lugar de recepgio destinado & conversagao - cujo estilo ¢ tom sao definidos pela propria qualidade da decoragao ¢ dos assentos, austeras poltronas Luis XV - € pecas de exibicio, ou seja, os troféus culturais do proprietirio, méveis € outros objetos antigos, tudo perfeitamente legitimo: desde as estatuetas chinesas da época T'ang até os quadros dos mestres menores franceses do século XIX, Mesmo classicismo, mesmo ascetismo afetado & opulento em sua indumentaria (colete, lenco de enfeite quase invisivel, etc.). Na outra extremidade do espectro, 0 desleixo rebuscado do modelista que posa praticamente deitado no chao e rodeado pela mulher ¢ filhos (¢ nao, sozinho € em pé), com uma desenvoltura afetada — a semelhanga de sua indumentaria de estudante afortunade, gola rolé, colete de tried, etc. Tipo de atelié de artista, aberto para o exterior por uma vasta baia envidragada e sem méveis, ambiente no qual as almofadas e as peles servem de assento, tendo como tinica decoragite as plantas e um quadro da vanguarda anterior, esta decoracio de decorador impée as discussdes metafisico-politicas entre “companheiros” sobre a pintura da vanguarda, 0 cinema ou a poluicdo, fo imperativamente quanto 0 sali azul € ouro de Balmain remetia & discreta conversagao entre pessoas distintas conhecedoras de arte ¢ literatura. A oposigao entre vazio ¢ pleno, passado acumulado e tabula rasa, ostentagio do luxo e exibicio do despojamento, € um dos principios a partir dos quais se engendram inimeras distingdes que estabelecem a separagio entre os estilos os estilos de vida da antiga burguesia ¢ os da nova, assim como ‘os de seus costureiros. Educagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 Seguindo a preferéncia da moda pelo estilo tradicional mais castigo, a decoracao. do apartamento de Givenchy combina sistematicamente o mais classico da vanguarda com os quadros de Vasarély ou os méveis de Knoll, as reinterpretagdes modemas de temas ou motivos clissicos com a cama de dossel em renda de linho branco € as obras antigas, seda chinesa ou fcone grego. Nao obstante as aparéncias, ele opde- se bem menos ao “estilo classico e afetado” de Balmain do que ao moderne barroco de Cardin, cuja ambi¢io artistica se exprime ou se traduz nao s6 em sua preferéncia (compartilhada com Daniel Hechter € com intimeros “artistas liricos" - por exemplo, Aznavour - ¢ artistas de cinema) por este tipo de Acapulco doméstico, 0 “jardim de inverno”, ou pelas colegdes de “caixas”, mas também em sua indumentéria que pretende evocar a sobrecasaca acinturada do artista romintico. Quanto a Courréges, seu apartamento manifesta - inclusive, no seu quarto, seu banheiro ou sua cozinha, espacos igualmente dignos em seu entendimento de serem oferecidos ao olhar do visitante -, sua vontade revolucionaria de fazer tabula rasa (“ele arrasa com tudo”) e, por si, ex ntbilo, repensar tudo: a distribuigéo no espago das fungdes ¢ formas, assim como os materiais, as cores, em fungao dos Gnicos imperativos que sio o conforto e a eficdcia, além de uma “filosofia" sistemitica da existéncia que se exprime também em suas escolhas de costureiro, ‘ou em sua indumentiria - calgas e botas brancas, blusio turquesa, boné com longu viseira vermelho brilhante Dai, vem a oposic¢io que, em todo campo € em todas as dimensies do estilo e do estilo de vida, estabelece uma separagio entre as estratégias estéticas dos dominantes e as dos pretendentes: os dominantes que 36 precisam ser o que sio, sobressaem e distinguem-se pela recusa ostensiva das estratégias vistosas de distingio. E assim que, para os costureiros que ocupam uma posic’o dominante no mundo da moda, basta se deixarem levar pelas estratégias negativas que Ihes so impostas pela concorréncia dos pretendentes para se ajustarem diretamente As demandas da burguesia antiga que, por uma relagio homéloga 3s audicias espalhafatosas da nova burguesia, € reenviada 2 mesma recusa da énfase* Esta oposi¢ao se observa tanto nos objetos produzidos pelos costureiros, quanto nas + Analisaremos mais adiante, aa abordarmos a casa de Courrages, outro exemplo destas harmanias reestabelecidas, imdadas na bomologta entre ocunyo da produgio eo canipo do consumo de bens de tuxa (0 carpe da classe dominate) que constituem realteagies aradigmaticas da relacio ye se estabolece entre.» campo da produ das bons smb Carte, Heratura, flosefa, ec. campo da classe dirigente Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 ees contribuigdo para uma teoria da magia O costureiro e sua grife: 15 contribuig3o para uma teoria da magia O costureiro e sua grife: 16 declaragées de intengio proferidas por eles a respeito de sua producto, Eli se encontra até no estilo do discurso de celebracdo, cuja retérica € tanto mais sobriamente descritiva, quanto mais elevado, do ponto de vista social, é 0 piiblico a quem ele se dirige: os artigos de moda nas revistas mais luxuosas (Vogue, Jardin des Modes), assim como & publicidade das revistas de luxo, limitam- se sempre a demonstrar ou descrever, evocar ou sugerir (por exemplo, a teferéncia A arte permanece sempre alusiva), enquanto as revistas menos cotadas, mais diretamente destinadas A nova burguesia — que, aliés, as produz -, tais como Elle ¢ Marie Claire, dio « conhecer sem subterfigios seu segredo porque a pretensio a distingio sé pode revelar a verdade objetiva tanto da pretensdo, quanto da distingio. Em cada €poea, os costurciros atuam no interior de um universo de imposigdes explicitas (por exemplo, as que se referem as combinagées de cores ou a0 comprimento dos vestidos) ou implicitas Gal como a que, até uma data recente, excluin as calgas das colecdes). © jogo dos recém-chegados consiste, quase sempre, em romper com certas convengées em vigor (por exemplo, introduzindo misturas de cores ou de materiais, até entio, exclufdos), mas dentro dos limites da conveniéncia e sem colocar em questo a regra do jogo eo proprio jogo. Bles estdo comprometidos com a liberdade, a fantasia ¢ a novidade (freqitentemente, identificadas com a juventude), enquanto as instituigdes dominantes tém em comum a recusa dos exageros e a busea da arte na recusa da afetagio ¢ do efeito, isto é, na dupla lntotes, negagio, understatement, “equilibrio" € “refinamento” “_ O que & que impede uma roupa de ser bonita? ~ O negdcio ¢ 0 detalbe vistosa que “come” o modelo e o desequilibra. - Eo detalbe, quando 6 que é perfeito? ~ Quando ndo se dé por ele. - Serd que isso é a negagdo do acessério de chogue? - Certamente, mas esse 6 a definigéo do refinamento” (Entrevista de Marc Boban, Diretor artistico da “maison” Christian Dior). A linguagem de Dior tem a certeza trangiiila da ortodoxia que, em nome da medida ¢ da elegdncia recusa as pretensées intclectuais da afetagao “ Respondo, assim, as mulheres gue compram meus modelos. Elas recusam ter ‘demais’, mas querem parecer ‘mais’ sem 0 demonstrarem C.J. Os modelos que apresentamos Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 sdo foitos para agradar e ndo para impor linbas abstratas ou imaginagdes de Laboratério em nome de um matdito estilo elevada que seria, antes, 0 mais gosto de hoje - O que é que o sr. rejeita na costura de laboratsrio? - Essa palavra me irvita, A Alta Costura, tal como a entendo, nao é 0 produto de um taboratério destinado a algumas cobaias, mas trabathar com material movedigo feito para verdade... e ai viver bem, ou seja, viver melhor. iver em pessoas de - Viver melbor? ~ Sim, sem essa vulgaridade que é 0 gue ba de mais bobo ¢ mais feio - Isso existe? = Por toda parte, exceto quando se Pata do verdadeiro luxo*(Entrevista de Marc Boban) “O que me apaixona 6 vestir as mutheres para embelezd-las. CE, alids, 0 que, de forma bastante explicita, elas me pedem para eu fazer!), O que me obriga, automa- licamente, a rejeitar de propor-lhes qualquer bizarrice que corre o risco de tornar-se um disfarce. Existem audacias, exageros, que podem ser divertidos, alegres, engracados, mas, mesmo assim, gratuitos. Hstou querendo dizer que tudo isso ndo acrescenta nada.(...} Pessoalmente, desconsidero os efeltas de surpresa on de chogue. A elegdncia nda & 0 choque, mas o refinamenio” (Carven, in Claude Cézan, La motle, phénoméne humain, Paris, Privat, 1967, pp. 133-134). Essa linguagem - a da arte que se vespetta e respeita seu piiblico -, estd muito proxima daquela de um marchand de quadros que, no campo das galerias, ocupa uma posigdo bomdloga: por exemplo, A Drouant quando denuncia as “Yalsificagdes” @ outros *métodos imaginados pelos falsos artistas para enganar”, ou seja, “os efeitos de emogdo viva e subita” e, sobretudo, “a excttagdo da curiosidade” que “consiste em provocar a surpresa, de memeira a absorver o espirilo ¢ mascarar a falta da verdadeira arte. Tudo isso é combinado de maneira que se deva adivinbar o sentido como ocorre nas charadas: fica-se intrigado... 6 uma forma de se distrair, parece dificil, até mesmo, genial..."(A. Droudni, Catalogue de la galerie Drouant, 1967, p. 105). A linguagem da exclusividade, autenticidade e refinamento, com seus componentes especificos - sobriedade, elegancia, equilibrio © harmonia -, a vanguarda opée o rigor cu a auddcta, € Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . .. .- . - io para uma teoria da magia O costureiro e sua grif 7 O costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teoria da magia sempre a liberdade, a jovialidade © a fantasia. Ted Lapidus (publicidad) “Quando vejo minbas roupas na rua, set que venct, A Costura & como @ cangdo: 0 éxito é estar sendo cantarolado por todo mundo ¢...). Um costureiro ndo veste clientes, mas subjetividades: as inquictagées, ternuras, ansiedades de ume massa de homens e mulberes. A alta -costura 6 um laboratério, o ‘Le Mans* da indumentaria’: agente faz pesquisas, experiéncias (,..), Trata- se da prova da rua”. Com os estilistas, 0 discurso toma voluntariamente um ar de esquerda: Christiane Bailly: “Ei uma mulher, ndo me interesso por sua idade, mas por seu gras de liberdade’. “Aos 16 anos, ela fazia suas proprias roupas, contra a corremte da alta costura, rebelando-se contra a rigidez, as aplicagdes, 0 “belo promovido” por Dior, contra tudo o que afoga, torna a mulber deselegante e a coloca em uma redoma@’ (Elle, 15 de abril de 1974). E esse campo que tem sua direita e sua esquerda, seus conservadores ¢ seus revoluciondrios, tem também seu centro, seu lugar neutto, representado aqui por Saint Laurent que atrai para si os elogios undnimes por meio de uma arte que une, de acordo com uma habil dosagem, as qualidades polares (classica, sutil, harmoniosa, s6bria, delicada, discreta, equilibrada, bonita, fina, feminina, modema, adaptavel a todos os estilos de raulher}; que recupera as inovacdes espalhafatosas dos outros para transforma las em audicias aceitéveis (“ele langa as calcas em larga escala gue, no sundo, no haviam obtido éxito com Courréges por ser um pouco complicado”); que transforma as revoltas da vanguarda em liberdades legitimas, & maneira de Le Monde que publica Asterix em historias em quadrinhos (E ele o liberty, os kilts, que € uma saia maravilhosa, 0 blazer”); ¢ que nio hesita em declarar: “E pre vir para a rua” Gar Claude Césan, op. cit, 729). podemos deixar a tltima palavra A revista Nouvel Observateur, que conhece o assunto: “O responsavel por ‘abertura a essa esquerda’ é, precisamente, um antigo grande costureiro, ou seja, Yves Saint- Laurent"(Wouvel Observateur, 18 de outubro de 1971), Mas, os pretendentes nio esto sem recursus; podem acumular capital de autoridade especifico a0 levarem a sério 05 valores © as virtudes exaltados pela NR, Alusio ao circultoda prove autontobititica "24h dis Maan” guise realiza nas proximidades dat ciddacle de Le Mans (260 8m a oeste de Paris), Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 representa¢io oficial da atividade legitima e a0 oporem a fé intransigente do convertide ao fervor de instituigio caracteristico dos guardiies da ortodoxia As concessées dos dominantes, que pactiam com o véculo e negociam o capital simbélico que acumularam em ganhos temporais, econdmicos e politicos (condecoragées, academias, etc.), os pretendentes opdem o sacrificio absoluto a arte © as audicias desinteressadas da afetacio, granjeando assim, pouco a pouco, os servigos cle uma parcela do aparelho de celebracio. “C.J Sow catalisador e capto 0 que esta no ambiente. Hd, naturalmente, um toque pessoal naquilo que faco, mas empreendo mudangas freqtien- “temente — alids, isso corresponde & minha vontade: ndo me interessa, simplesmente um como alguns (necessariamente com menos éxito), ‘repetir-me'. Ndo tenbo problemas de marca, ndo procuro promover uma grife e pouco me importa nao ser conhecido pelo grande ptblico (0. Confecciono um grande niimero de modelos para filmes. Vesti Mia Farrow, Girardot, Stéphane Audran (..). Do mesmo modo que eu detestaria vestir uma fulana de tal’, tenho prazer em vestir uma atriz, uma cantora” (Karl Lagerfeld, Dépéche- Mode, julho/agosto de 1972), Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 « « Os recém-chegados reintroduzem, fncessantemente, no campo um ardor e um rigorismo de reformistas. Eles podem mesmo assumir ares de revolucionarios no momento em que suas disposicdes de quase artistas de origem burguesa encontram um reforgo na necessidade de perseguir uma clientela tentada a denunciar 0 contrato tacito de delegagao que confere aos costureitos o monopélio da “criagio" (ela propria usa roupas inspiradas na moda vigente entre 1920 e 1960). E a concorréncia dos pretendentes que, continuamente, impele os dominantes a um respeito relativo pelos valores oficiais do campo, exatamente aqueles em nome dos quais se exerce sua autoridade especifica; € através dela que se exerce o controle do campo sobre ouso de poderes demitirgicos fornecidos por ele. Eas profissdes de virtude As quais os historiégrafos gostam de se referir (*O que fiz de mais dificil na minba vida - dizia Chanel -, foi me recusar a ganhar dinhciro”; “Pierre Balmain € um dos numerosos costureiros que s6 aceitaram. explorar comercialmente sua grife por amor a sua profissio”) representam a Gnica maneira impecdvel de obedecer a necessidade do campo, como é€ testemunhado por esta declaragio em que Courréges inyoca, simultaneamente, 0 imperativos categéricos de amor pela arte € os imperativos hipotéticos da gestio da magia O costureiro e sua grife: contribuicao para uma teor 19 O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 20 econémica racional: 16 me tornei patrao ¢ industrial em funcao do amor que tenho pelo que faco. Minba motivacdo ndo é ganhar dinbeiro, Eu poderia conseguir um enorme faturamento promovendo uma politica de facilidade, mas 1ss0 seria a custa de uma deterioragdo @ curto prazo de minha marca ¢ de uma perda de controie sobre meus produtos” (Dépéche Mode, marco de 1974), Assim, © controle da utilizagio do capital especifico cabe aos préprios mecanismos que asseguram 5 a produgio e reprodugio, além de tenderem a determinar sua distribui io entre os diferentes agentes que esiao em concoréncia para se apropriarem deles Pot um processo anilogo aquele que faz com que, no campo universitirie (ou, a fortior’, cientifica), a concorréncia entre 05 dominantes € os pretendentes pelo monopélio das relagbes autorizadas com © grande ptiblico desemboca em um controle de todas as formas cle barganha da autoridade especifica (vulgarizacio, jornalismo, etc.), a concorréncia pelo monopélio da legitimidade toma a forava de um controle eruzado que, como se vé em relacho a comercidlizacdo da lo “grife®, nada tem a ver com a imposi externa ou interna de uma norma éticas as *virtudes” exaltadas por cada campo - aqui, “amor A profissdo” — ¢ “desprendimento”; ¢ l4, “espirito cientifico” ¢ “objetividade’ ~ so apenas a forr aque toma a submissio A necessidade propria do campo, isto 6, a perseguicio de intetesses que a prépria légica do campo imerdiz de reconhecer, a niio ser sob a forma treeconbecivel de “valores”. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 bidet ep euoay pun vied oedinqujuos :ayuB ens 9 omp1m9s09 © QL6t oget oe Ska (L-U eunaeig) VANLSOD VY Vd OdW¥2 0. SVAN SICNVED S vd SAINV Educagao em Revista, Belo Horizonte, n® 34, dezi2001 - . . - - oe sua grife: contribuigdo para uma teoria da magia A lei fundamental deste campo, principio de sua estrutura © mudanga, 1é- se diretamente no diagrama (Gravura n. 1) em que as “maisons” de costura, - distribuidas (da esquerda para a direita) segundo a data de sua fundagao -, sio representadas por dois circulos concéntricos, proporcionais: um (com trago mais acentuado) relativo ao faturamento alcangado, enquanto 0 outro se refere ao numero de empregados. A importancia do capital especifico, cujo faturamento, que 6 sua forma reconvertida, representa um bom indice, cresce com certa regularidade de acorde com a antigiidade da “maison”; mas somente até certo ponto, marcado aqui por Dior, a partir do qual tende ao declinio, chegando ao desaparecimento puro e simples. Gertas bizarrices aparentes resultam simplesmente do fato de que a fonte utilizada ("17 couturiers : leurs structures économiques”, in Dépeche- Mode, ». 683, marco de 1974) apresenta Tacunas. E assim que Givenchy e Saint- Laurent (a quem se atribui - em pontilhado - um faturamento hipotético) possuem, sem dtivida, somas bem superiores (proporcionalmente, 6 claro) ao ntimero de seus empregados, @ maneira das outras “maisons” situadas em posicées intermedidrias que, como veremos, opéem-se todas sob este punto de vista - com excecdo de Courréges - as “maisons” mais antigas. No que concerne ao faturamento relativamente importante de alguns recém-chegados (Capidus e Scherrer), esforcar-nos-emos por explicar, mais adiante, sua posicto. A antigtiidade nio € o principio exclusivo das hierarquias: cada “geracao” est dominada por um costureiro (Chanel, Dior, Courréges, etc.), aquele mesmo que, como se diz, marcou época io introduzir, na historia relativamente autdnoma da moda, a ruptura iniciadora de um novo estilo. E légico que esses “fundadores" detém um capital de legitimidade especifico - isto é, de distingao pertinente - mais importante que os simples “seguidores" ou que os “criadores" que conseguiram uma “marca ”distintiva sem chegarem a impé-la a seus concorrentes (obrigando-os, pelo menos, como faz 0 costureiro dominante, a posicionar-se em relacio a eles). Este capital, simbolizado Por seu nome( “Jeanne Lanvin, uma nome de prestigio") pode converter-se em capital econdmico sob certas condicées e dentro de certos limites, em particular, temporais - aqueles que definem a duragio do renome, ds “maisons” mais antigas que sobreviveram ndo ocupam posigées correspondentes & sua antignidade, qualquer que seja 0 capital de prestigio que, em determinado momento, tenbam Fducagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 possuiido (como Chanel que ressurgiu em 1954). De fato, em um campo regido pela concorréncia para a obtengito do monopélio da legitimidade especifica, isto & para alcancar o poder exclusivo de constituir ¢ impor simbolos de distingdo legitimos em matéria de vestudrio, a relacdo entre a antigtiidade ¢ 0 capital s6 pode manter-se dentro de certos limites ¢ mediante estratégias que, as leis da babilmente, explorem economia especifica do campo. AS “maisons” gue sobreviveram a morte de seus fundadores sé se perpetuaram com a industriat da “grife” (sob a forma de perfumes, no caso de Patou € Ricci). exploragdo Do mesmo modo, os observadores estdo de acordo para exaltar a “racionatidade” excepcional (pelo menos, para esta “geragdo”) da gestao da empresa Dior: “A ‘maison’ Dior esta admiravelmente bem organizada, o que nem sempre acontece; na alia costura, os individuos sdo muito pessoais, a coisa ficou muito individual. Dior abye em 1947, cia uma maison’ do nada (.,.).A organizagdo da ‘maison’ vai fazer-se perceptivel muito rapidamente. O sr. Boussac é um industrial. Os empregados da ‘maison’ Dior encontram-se em tim contexto social, talvez, um pouco diferente das outras ‘maisons' porque Jacques Rouet, responsdvel pela administracao, tem uma formacdo social mutio desenvolvida, O sr. Dior dedica-se exclusivamente & criagéio e esta livre des encargos materiais, das preocupagées administrativas. Boussac organiza colénias de fértas, no Norte, para os filbos dos funciondrios, Existe um verdadetro contexto social. Ha um restaurante da empresa. Desde o inicio, foi criado 0 comité da empresa® com um espfrito social, chegando @ ser favorecido em relacdo ao sindicato” (Entrevista com uma jornalista de moda, marco de 1974) A luta pelt dominagio neste campo conduz necessariamente os pretendentes a submeter a discussiio os esquemas de produgiv ¢ avaliagio ortodoxos, produzidos ¢ impostos pelas instituigdes dominantes; diferentemente das simples variantes ou variagées produzidas pela utilizagao dos esquemas de invenc’do em vigor e que, scja qual for sua liberdade aparente, sto outras tantas reafirmagoes da autoridade das instituigdes dominantes, as revolugdes especificas tém por efeito desacreditar antigos principios de “IVR Na Franca, Sige compost por npresontanie ects ‘eos funicionose presidido peta diveror da empresa toms atribuigdes consutitvas ow ee controle mo que diz resbelto as questbesprofssionals, conGrmicas esocias. 6f te Petit Larousse ilusné, Paris, 2000. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . - - cee O costureiro e sua grife: contribuicao para uma teoria da magia 23 ja teoria da magi ico para uma contribui O costureiro e sua grife: 24 produgio e avaliagio, fazendo aparecer um estilo - que devia uma parte de sua autoridade © prestigio 4 sua antigtidade (“maison’ de tradigio”, “'maison’ fundada em...", etc.)- como démodé, fora de uso, ultrapassado. Marcar uma época € reenviar todos aqueles que marcaram €poca ao stertus mais ou menos honorifico, mas sempre irreal ¢, como se diz, honoraria, que cada campo, segundo suas Prdprias tradig6es, oferece aos antigos dominantes; € fazer historia inscrevendo na série de rupturas que definem a periodizacdo especifica de um campo uma nova ruptura que remete a histéria a precedente periodizagio e determina a translagio de toda a estrutura; é, por fim, sujeitar-se a ser, mais cedo ou mais tarde, remetido & historia por wma ruptura que obedece aos mesmios principios ¢ as mesmas determinacdes especificas de todas as precedentes. “Fazer moda” nao € somente desclassificar a moda do ano anterior, mas desclassificar os produtos daqueles que faziam moda no ano anterior, portanto, desapossi-los de sua autoridade sobre u moda. As estratégias das recém-chegudos, que sio também os mais jovens, tendem a rejeitar para o passado os mais velhos e estes colaboram com a translacio do campo que desembocara em sua desclassificagiio (ou, aqui, em secu desaparecimento) pelas estratégias que utilizam para assegurar sua posigao dominante que é também a mais prdxima clo declinio, Nao nos seria possivel compreender a estrutura ea dindmica do campo da moda se aceitdssemos a “explicagdo” comum pelo “conflito de geragées”, tautologia destinada a funcionar como virtude dormitiva, que se impie com uma insisiéncta particular em um campo onde a concorréncia adquire, de modo mats visivel do gue em qualquer outra parte (devido & brevidade dos ciclos), a forma de uma querela entre antigos e modernos, entre velhos e jovens. “Por um lado, os tiltimos monstros sagrados, herdeiros dos valores do bom gosto, de um mundo que desapareceu. Para eles, acantonados em seus salées atapetados, trata-se de ume huta intitil contra ume época cujo modo de vida © aspiragées escapam @ sna compreensdo; alguns nem estao conseguindo sobreviver « tal situacdo. Por outro lado, os novos profissionais ourréges, Ungaro, para citar somente os mais audaciosos: os Saint-Laurent, jovens, que reinventaram, cada um & sua maneira, a costura. Entre estes dois extremos distribuem-se os costuretros que, mais ou menos cedo, com muite ou pouca habilidade, acabaram por se adaptar"(Dépéche-Mode, marco de 1974). “Had, pelo menos, cinco que pensam Fducagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 sero primeira (ou odtimo, o que significa 4 mesma coisa) dos grandes costureiros” @lte, 21 de feverciro de 1972). A translagio que afeta todo 0 campo @ a resultante de estratégias antagonistas € nio deve ser descrita ou compreendida como um simples processo mecanico: isto se vé claramente no movimento pelo qual alguns costureiros nao cessam de abandonar “maisons” antigas a fim de fundarem suas pedprias empresas, escapando assim do declinio coletivo por um movimento individual, na contramio do movimento que afeta a empresa e 0 campo em seu conjunto. Como mostra o diagtama (Grayura n. 1D) no qual as flechas Cacompanhadas, quando necessitio, pelo nome da pessoa em questdo) desenham as trajet6rias dos costureiros ou dos “responsaveis pela ctiacio”, 0 itinerdrio mais simples é 0 dos costureiros que deixam a “maison” onde trabalham para fundarem sua propria “maison”: é o caso de Christian Dior e de Pierre Balmain que deixam juntos a “maison” Lelong que fechar suas portas em 1948; de Saint Laurent que sai da “maison” Dior, em 1962; ou de Laroche que abandona Dessés, em 1958, Outros seguem um camin‘io com Vérias etapas, como Cardin que, em 1946, passa de Paquin para Dior, deixande esta “maison” em 1949; ou Givenchy que vai de Lelong Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001. - - para Piguet, (1946), em seguida, para Jacques Fath (1948) e, finalmente, para Schiaparelli (1949) que ele abandona, em 1952, para fundar sua prdpria “maison” As vezes, a dispersiio faz-se em duplas e em dois tempos: Givenchy ¢ Philippe Venet deixam juntos Schiaparelli, em 1952, para fundarem a “maison” Givenchy que Philippe Venet deixa em 1962 para criar sua propria “maison”; da mesma forma, Courréges ¢ Ungaro deixam juntos Balenciaga para fundarem a “maison” Courréges que Ungaro deixa em 1965. No caso de Paco Rabanne, Christiane Bailly ¢ Emmanuelle Khanh, as flechas foram desenhadas em pontilhade: com efcito, nenhum deles participava diretamente da “criagio”. Paco Rabanne era fornecedor de acessérios - ¢ por isso que cle pdde estar Higado simultaneamente 4 muitas “maisons"- enquanto Ch, Bailly € B. Khanh eram manequins. Este mecanismo tende, como se vé, a assegurar a mudanca dentro da continuidade: de fato, tudo se passa como se a posse de um capital que 86 pode ser conquistado na relagio com as “masons” antigas constituisse a propria condicao das rupturas bem-sucedidas. Os recém- chegados sao, na maior purte das vezes, da magia O costureiro e sua grife: contribuigéo para uma teo! 25 O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 26 desertores das “maisons” estalelecidas que devem seu capital inicial de autoridade espceifica 4 sua passagem anterior por uma grande “maison’ (sempre lembrada em suas biografias) Em razéto do seu modo de aquisicdo especifica e de sua propria natureza, esse capital que, em sua esséncia, consiste na familiaridade com certo meio ¢ na qualidade conferida pelo fato de pertencer a ele, ndo pode contrariar a crenga carismdtica da autocriacdo do criador, Assim, a propésito de Lison Bonfils - antiga maneguim de Dior, ex- redatord de moda da revista Elle, lgada, @ Paco entre outros costureiros, Rabanne - pode-se escrever. “Ela tem 0 estilo no sangue® lle, 15 de abril de 1974). Ou, a propdsito de outra estilista, Emmanuelle Kaanh, antiga manequim de Balenciaga, ligada a Courreges que, em 1957, desenhou seu vestido de casamento - ela casou-se com Quasar - quando o costureiro ainda estava na “maison” Balenciaga; a Paco Rabanne, Sornecedor de acessérios para Balenciaga © que criow os acessérios para sua primeira colegdo; a Givenchy e Philippe Venet: “Ela foi manequim na “maison” Balenciaga, mas a alta costura nao a fascinava; preferiu fazer roupas com a ajuda dos empregados e, sem que o tivesse previsto, criou o tailleur do futuro; maledvel, feve, sem tela nem enfeites” lle, 15 de abri de 1974) ‘Tudo parece indicar que este capital inicial sera tanto mais importante, quanto mais elevada for a posigo ocupada pelo recém-chegado em uma “maison” de maior prestigio: assim, Cardin ¢ Saint Laurent, os dois principais concorrentes atuais de Dior, passaram por esta “maison”. Sem diivida, paradoxalmente, o capital de autoridadee de relagées (pelo menos, tanto quanto de competéncia), adquirido a0 Freqiientar as “maisons’ antigas, coloca © costureiro de vanguarda ao abrigo da condenagio radical de que seria passivel por suas auddcias heréticas. Isso & verdadeiro em qualquer campo. Basta lembrar a historia particularmente tipica do memorando de Lord Rayleigh: um artigo sobre certos paradoxes da eletrodinamica que, sem o nome do autor, ele tinha enviado A British Association fot inicialmente rejeitado; em seguida, ag ser conhecide © nome do autor, foi aceito com abundantes desculpas’, Sem diivida, algo de semelhante se pas no campo religioso no qual nio se pode, contudo, invocar os imperatives da acumulagzo: 0 profeta, como assinalou Max Weber, sai ‘io dos frequientemente da corpora sacerdotes, da qual ele faz. parte desde a nascenga ou por formacio. Se a relagio entre o grau de consagragdo e de antigtidade s6 se mantém dentro de limites temporais 7, Rub, The Structure of Scientific Rewolutions, Chica, ‘The University of Chicago Press, 1962, p. 152. Educagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 relativamente reduzidos - ou seja, um espaco de trinta anos necessrio para que as “maisons” mais consagradas cheguem a seu apogeu - 6 porque, sem divida, a moda, A semelhanga da cancio, da fotografia, do romance popular e de todas tes médias’, situa-se no tempo de curta duragio dos bens simbélicos as pereciveis e porque ela s6 pode exercer um efeito de distingio servindo-se, sistematicamente, temporais, portanto, da mudanga, das diferengas A bomologia - que aproxima as priticas ¢ os discursos de agentes que ocupam posigées bomdlogas em campos diferentes - ndo exclui as diferengas associadas & posigéo que os diferentes campos, enguanto tais, ocupam na bierarquia da legilimidade. Basta que um costureira recém-chegado ao cume da bierarquia de seu campo tente transferir seu capital para um campo artistico, como fez Cardin com seu ‘espago”, para que o campo de categoria superior se mobilize para fazer lembrar as hierarquias. Aos ataques dos especialisias das artes legitimas, Cardin 56 tem a opor a reafirmagao de sua autgridade espectfica de costureiro: ‘Melbor do que ninguém, sou de distinguir a feidra da beleza e nado admito que pessoas incultas pretendam fazé-lo. Conbego 0 mundo inteiro Através de minha atividade, tive a oportunidade de ver o que se faria de melhor em todo lugar e fiz por Paris o Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 - + 06s ee ee que ninguém ainda tinha ousado ou conseguido fazer". H 0 critico de arte que cita estas declaracdes contenta-se em vecusar esta transferéncia ilegitima de capital: “Eis uma forma de mostrar auddcia em um dominio em que a humildade deveria sempre prevalecer. Certamente, todos ficam contentes pete fato de que a dangarina do sr. Cardin ser uma prostituta, em vez de um iate privado, mas 0 argumento acaba por se desgastar. Estamos espera de qualidade endo de presungdo” (Patrick d'Elme, “Cardin n'est-il qu'une griffe?”, in La Galerie, outubro de 1971, pp, 66-67), As referéncias as artes nobres ¢ legitimas - pintura, escultura, literatura - que fornecem a maior parte de suas metdforas prestigiosas & descricdo das roupas eum grande mimero de seus temas & evocagdo da vida aristocrdtice que, se presume, & simbolizada por elas, constituem outras tantas bomenagens que a “arte menor" presta as artes ‘matores. Do mesmo modo, a tendéncia dos antiqudrios de grande prestigio para “usurparem” 0 nome da galeria é uma forma de reconbecer a hierarquia que, no comércio dos objetos de arte, se estabelece entre as “antigtidades” - produzidas por astesios @ vendidas por antiquitios - e as obras de arte, “ pertcess" © “insubstiluiveis”, produzidas por artistas ¢ vendlidas em galerias: 0 mesmo se passa manifestado pelos costureiros ao também com o desvelo O costureiro e sua grife; contribuigao para uma teoria da magia © costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teorta da magia 28 afirmarem sua participagdo na arte ou, na falta desta, no mundo artistico (as brochuras de Saint-Laurent limitam-se praticamente a falar de suas criagées para o teatro), cor a assistéacia de todo 0 aparetho de celebragdo (espectatistes em relacdes piiblicas, jornalistas de moda, etc.) “O esplendor da alta costura faz-se sentir de vdrias maneiras... Tome, por exemplo, Sauguel ou Auric que criaram bales, cujos figurinos foram, concebidos por costuretros. Vocé tem um moco muito famoso que faz figurinos para teatro ¢ balés, sobretudo, para o balés de Monte fregientemente, Carto, que 6 André Lavasseur, antigo colaborador de Christian Dior. Yves Saint-Laurent ¢ um excelene desenhista de Jigurinos para teatro, entre outros, para a revista de Zizi jeanmarie no Casino de Paris. E uma dimensdo que vai bastante além de um vestido, enquanto roupa. Coctedu desempenhou também um papel muito importante”. E, na segtiéncia da entrevista, essa jornalista de moda declara: “Eu me lembro quando Dior apresentou sua linba reta, a linba I: fomos procurar figurinos de Clouet em livros de trajes para mostrar este lado reto... "(Entrevista com uma jornalista de moda, marco de 1974). muito A semelhanga do autor de romances policiais a respeito do qual nada nos autoriza a pensar que, um dia, possa ser considerado um “clissico”, © costureiro participa de uma arte que ocup um lugar infetior na hierarquia da legitimidade antistica; ora, em sua pritica, ele no pode deixar de levar em consideragao a imagem, social do futuro de seu produto: “The stories in this book certainly had no thought of being able to please anyone ten years after they were written. The mystery story is a kind of writing that need not dwell in the shadow of the past and owes little if any allegiance to the cult of the classics"’. “Criagto” sazonal de produtos de estagiio, a atividade do costureiro & 9 oposto exato da atividade do escritor ou do artista legitimo na medida em que ele nao poderd esperar ter acesso a uma consagragdo duradoura (ou definitiva) « nao ser que saiba rejeitar 0 luctos ¢ os sucessos imediatos — porém, tempordrios - da moda: a lei da distingie que, neste universo, se afirma abertamente, toma a forma de uma ruptura obrigaléria, efetuada com data fixa, a partir dos cinones do ano anterior® ” R. Chandler, Pocus are a Nuisance, Harmondewor®, Pongiein Books, 1973, “Brivaduction 9 +A maior parte da produgdo de remances e ensaios obodecein ae rime sazonal dat *rentnse' lteriria’ com teas conferéncias de imprensa, seus prémites, ete, ein umeicloguendoé diferente daquele das artigascte macla Conbora asinstinnclas de legitimagi deci diuracae, com as avadlemins, passin prodongarligetramente a exist ee sens roehutos). A peocela da proeurgsele ciclo longoe de cielo curto na predtugcio tual deumautor ‘ou de tim edivor 6, sem dit indicadores de sua posicaa sincrinice e dlacranica na campo da producto treraria ide, um dos metores Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 Os proprios “revoluciondrios" nio podem escapar da lei comum que reenvia a “Gltima moda" ao *démodé" © condena © “criador’ a se “renovar": assim, 0 privilégio dos costureiros de maior prestigio - por exemplo, Chanel ~ consiste em fazer parar, durante um momento, 0 tempo da moda, forma suprema de distingdo. Pelo fato de que © valor material e simbdlico dos bens da LObjeto wWenico Gmével, movel, maquina, eletrodoméstico) valor [> ommo. de'troca 5. fomde use tempa 3. Objetg técnico ou simbdlice fora de uso constituida em. antignidade (ndvel antigo, ele.) 4 valor f\ avd, de troca | ws 1 \ Bienen antigo, solo Fducacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . . « moda € constitufdo essencialmente (se deixarmos de lado as diferencas secundarias entre os costureiros) sobre a distingdo temporal entre a “moda” ¢ 0 “démodé”, tal valor € inexoravelmente destinado 2 declinar com o tempo, sem poder contar com a subida da cotagao que assegura a certos objetos técnicos Sua reconversio post mortem em objelos simbédlicos. 2. Objeto simbélico de ciclo cuno (artigo da inoda, romance de sucesso, ete.) names emoess 4, Objeto sisnlxilico de ciclo longo (obnis legiimas)? die : sanguanda o 2 ee? tempo O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 29 O costureiro ¢ sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 30 Essas curvas absotutamente te6ricas 56 tém a fungao de tornar visiveis diferentes formas paradigmaticas da relago entre 0 valor dos bens simbélicos e sua duracio. Em oposi¢ao aos objetos técnicos - cujo valor, estritamente definido por sua aptidiio em assegurar, pelo menor custo, uma fungio especifica, decresce paralelamente 4 diminuigio de seu rendimento que resulta, seja do desgaste que provém da utilizagio, seja da concorréncia de instrumentos mais econdmicos -, os objetos simbélicos de ciclo curto, entre os quais os artigos da moda representam © puro limite, possuem. um tempo de uso tho arbitrariamente delimitado, quanto sua propria utlizacio: diante de uma parte essencial de sua raridade 2 labilidade que os define propriamente, pois o lugar da ltima diferenca, ou seja, do valor distintivo, situa- se no tempo - estar na moda é estar na tiltima moda -, os produtos da alta costura estiio votados, por definigao, a uma ripida desvalorizagio. E nijo devem prolongar sua carreira além dos limites que Ihes so previamente assinalados por seus préprios “criadores", a nfo ser pela existéncia de uma série de mercados hierarquizades de um ponto de vista temporal (além de econémico social) cettos produtos “desclassificados” para os consumidores que os utilizam pela primeira vez ou da tllima moda - roupa ou romances, pegas de teatro ou penteadlos, esportes ou lugates de Férias ainda podem ser postos a servigo das mesmas fungées de distingSo, isto é, de classificagio, por usudrios menos bem posicionados na estrutura da distribuigio desse bem raro e, assim por diante, indefinidamente, ou seja, até o mais baixo escalao da estrutura social. O bom funcionamento do mercado da moda se baseava em um controle rigoroso da difuséo que visava manter separados, e por algum tempo, os mercados que oferecem produtos destinados as diferentes classes sociais: esta bierarquizagdo temporal dos mercados se mantinha praticamente pelo segredo que envolvia as apresentagdes das colegées ¢, sobretudo, pelo dégradé dos precos correspondente a degradagao no tempo do valor distintivo do produto. E disso que freqiientemente se esquecem os informantes que ligam diretamente @ reestruturagdo do mercado da moda @ transformagao dos circuitos de circulagdo da informagdo (por exemplo, com a difusdo das apresentacées de moda na televisdo): “Na década de 50, as “maisons” de costura tinkam sofas para as bous clientes ¢ revistas de maior vendagem. Comentava-se que alguns proprietdrios de revistas mais populares - do tipo Elle Marie Claire -, compraram Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 vevistas de prestigio para terem direito @ wm lugar nesses sofds. Certamente, isso é um exagero, mus talvez faa algum sentido. Lembre-se que, artes da televisdo, as bancas de jornais esperavam. com impacténcia a publicacdo das revistas, um més depois da apresentacdo das colegées de costura porque se tratava de uma exclusividade mundial: nos jornats cotidianos, ndo era publicado nenbum esbogo de tendéncias, nenbum desenbo; s6 depois de um més & que se tinba o direito de divulgar os novos modelos para que os compradores estrangeiros profissionais, americanos e europeus, tivessem tempo de receber essas novas colegées (...). Em julho de 1962, com Telstar, isso comecou a mudar porgue os costureiros qutseram participar do primeiro show que fot transmitido via sa.élite. Em seguida, eles ja nado puderam volar airds ©..). Hoje, a vendagem de revistas & pouco significativa’(Entrevista com jornalista de moda, julho de 1974). A degrada comercial dos bens da moda (com o 0 no tempo do valor mecanismo das liquidagdes e dos submercados) corresponde & sua difusdo, a sua divulgagio, isto &, 2 deterioragéo de seu poder de distingdo, Os costureiros consideram explicitamente estes efeitos em suas “criagSes"; “(Utilizo) todas as minhas cores habituais, 2 no ser que eu tenha sido negativamente influenciada por aquilo que foi visto demais no ano anterior” (Christiane Bailly). Mas, dado que © valor distintivo de um produto é, por definigio, relacional, isto é, relative a estratura do campo na qual ele se define, © poder de distingg de um bem da moda pode contimuar a ser exercido a servico de um grupo que ocupa determinada posigao na estrutura social - e, a0 mesmo tempo, na estrutura da distribuigho desse bem - mesmo que ele niio seja mais exercide, em virtude precisamente do acesso de um novo grupo a esse bem, pelo grupo que ocupa uma posi¢io imediatamente superior. Os ciclas colocados em evidéncia, de forma cientifica, por Kroeber’ podem ser observados, na histéria da moda, porque © retomo de um tema ou de uma forma 86 € possivel quando a série das reutilizagdes secunddrias do desclassificado para fins de classificagdo - bem descrito, embora mal analisado, através da imagem ingenuamente emanista do trickle down"- chegou a seu "A. Kroehor, “On the principle of order tn ctetlizations as exemplified by changes of fashion’, in Aquerican Aatluopologist, 21, 1919, pp. 235-263, "Gf B Barber eS Lobe! Iyle, “kasbion in women's ebb: and the American social system’, ir Social Fowees, 32, 1952, pp. 124-134; E. Berler, Fashion and the Unconscious, Nous York 1953. Educacéo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . 6. ee es teoria da magia uigdo para uma O costureiro e sua grife: con 31 gia contribuiggo para uma teoria da ma O costureiro e sua grife: 32 termo, isto 6, até a divulgacio completa do que, na origem, era extremamente distintivo, ¢ ”ambém porque o universe das-variagdes - que sao suscetiveis de serem percebidas e aceitas por um grande piiblico e caracterizam as “revolucdes” estilisticas - € muito limitado (mais longo ou mais curto, mais flexivel ou mais estruturado, etc.). Exemplo de tal retorno: hoje, os decoradores renunciam a todas as inovagées que baviam introduzido nas lofas de vanguarda da tive gauche com uma unanimidade semelbante a que tinham manifestade para impé-las, encontrando, assim, em uma dupla meta-volta (a esquerda), a sobriedade discreta das lojas do passado: “Hoje, 0 barulbo foi bantdo dos lugares elegantes: so lembra o shopping-center” G.-C. Turpin, Dépeche-Mode, dezembro- janeiro de 1973). "O pacté, o ferro-velbo acabaram e, boje, preconiza-se 0 uso de cores nitidas e tapetes espessos”CY. Tarelon, Td., ibid.) Estes refornos nada tém em comum com a subida de cotagio que se observa quando objetos técnicos fora de uso, atlas, mesas de café ou telefone de funil, se transformam em bens simbélicos, no fim de um prazo mais ou menos longo, durante o gual sua identidade social permanece, de algum modo, indeterminada: o intervalo de tempo que separa o objeto técnico ou simbélico desusado do objeto antigo, percebido sinceramente como um bonito objeto & intrinsecamente digno de set procurade, €a marca visivel do trabalho coletivo de tansfiguragae que se descreve como “mudanga de gosto”, Quanto mais se avanca no tempo, menor é o risco de que © gosto pelo objeto considerade. apareca como uma preferéncia ingénua, do primeiro grau, desvalorizada pela a qualidade social daqueles que experimentam. Isso quer dizer que os primeiros responsaveis pela rectas- sificagdo dos objetos desclassificadas ~ empreendimento produtivo do ponto de vista econdmico ¢ simbélico, do qual a reabilitagio de géneros populares, vulgares ou vulgarizacdos € um caso particular -, devem deter um capital de autoridade estética de tal forma que sva escolha nao possi parecer, em momento algum, como uma falta de gosto: € 1ogivo que essa transgressio inicial é perpetrada pelos artistas ou intelectuais de vanguarda (os primeizos a exaltar, hoje, 0 kitsch) que encontram na recusa de reconhecer as normas da conveniéncia estética em vigor uma forma cOmoda de lembrar que eles so a fonte de toda a legitimiclade estética Entre as estratégias empregadas para evitar o envolvimento com gostos “comprometedores”, a mais comum consiste em dissipar todo equivoco pela Fducacdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 associa¢ao de ebjetos, cujo status ainda permanece indeterminado ou incerty, a outros que, sem sombra de dtivida, silo incompativeis com uma adesao vulgar a tais objetos: €, por exemplo, em fitosofia, a combinagao de Marx com Heiddeger em determinada época; de Marx com Freud revisto por Lacan, em outra; ¢, em decorag’o, a associagio de um objeto kttsch a uma cOmoda Luis XV ou a uma. pintura de vanguarda, etc. Mas, com excegao das declaragées eruditas ¢ doutamente distanciadoras do cinéfilo ou do especialista do romance policial, a melhor garantia é, evidentemente, uma grande autoridade intelectual ou artistica, O acesso do cinema de horror ou da ficgdo cientifica ¢ de tantos outros objetos simbélicos de simples consumo ao status de objetos de anilise ou a transmutacio de objetos técnicos desusados ou de objetos simbélicos démodés em “antighidades’, objetos antigos que merecem ser conservados ¢ admirados, € uma operagio social extremamente andloga A que os artistas realizaram com o ready made: a continuidade do objeto material mascara que’a subida de cotaclio € um processo social submetido a leis ¢ riscos semelhantes aos da produgao de uma obra de arte. Nos dois casos; a operagtio de alquimia sociai s6 pode ter sucesso Educagao em Revista, Belo Horizonte, n? 34, dez/2001 . . « uma vez que se constitui 0 aparellio de consagracho e de celebragao capaz de produzir e manter 0 produto e a necessidade deste produto. Os “valores duradouros” si os que podem colocar, a seu scrvico, instituigoes capazes de thes assegurar, de forma duradoura, um. mercado - econdmico e/ou simbdlico -, isto €, capazes de produzir a concorréncia ou simbdlica, para a apropriagao materi €, ao mesmo tempo, a faridade da apropriagao com todos os hucros materiais, @ simbdlicos que ela assegura. E significativo que o progressu de uma pritica ou de um bem em directo 2 legitimicade © & constituigio de um aparelho de entesouramento se atraiam ese reforcem mutuamente. A referéncia 20 passado do género e a referéncia aos outros produtores contemporincos sio dois indicios priticos da constituigao de um campo: 4 medida que 0 western entra, na histéria, a histéria do western entra no western de modo que, as vezes, tis situagdes nao passam de jogos letrados de referéneias historicas. E evidente que © sistema escolar desempenha um papel capital neste proceso, seja porque assegura ao mercado das artes canénicas um apoio artificial, produzindo consumidores —_ antecipadamente convertidos, ao mesmo tempo que oferece um mercado 34 competéncia O costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teoria da magi 33 O costureiro e sua grife: contribuicgo para uma teoria da magia 34 cultural nestas matérias, seja porque fornece 4s artes, em vi de canonizagio, 4 assist@ncia benévola Gnas interessada) daqueles que, por excesso ou por falta de capital escolar, se satisfazem com o8 investimentos arriscados (romance poticial, ficcio cientifica, cinema, histéria em. quadrinhos, etc.) . A antinomia da sucesséo Mais importantes, talvez, do que as condigdes impostas aos recém-chegados, sio as dificuldades inerentes a perpetuagio da empresa apés a morte do fundador, dificuldades essas que manifestam a especificidade do campo cia moda. A morte do “ctiador", que ja tem tevado muitas “maisons”, mesmo entre as maiores, a desaparecerem (como Lucien Lelong que fechou suas portas em 1948 ou Jacques Fath em 1954) ou sobreviverem apenas por alguns anos, constitui uma provagao decisiva: diretor de uma empresa de produgio de bens simbélicos, © costureiro fornece a plena cficdcia & alguimia simbélica na medida em que ele préprio garante, @ maneira do artista, todos os aspectos da producao do bem dotado de ut a marca, isto é, a produgio material do objeto e a espécie de promogio ontoldgica que Ihe é prodigulizada pelo ato da “eriagio™. Na maior parte dus vezes, essa provaclo s6 poderi ser superada mediante a partilha, entre virias pessoas, das funcdes indivisas do fundador: por um lado, © presiclente- diretor geral - quase sempre, o herdeiro do nome e/ou da empresa (Madame Yves Lanvin; Raymond Barbas, cunhado de Jean Patou; Robert Ricci, filho de Nina Ricci) ou um simples executive remunerado (Jacques Rouét na “maison” Christian Dior = a quem incumbe a responsabilidade da gestio econdmica; por outro, o “responsavel pela criagho”, titulo que retine em uma magnifica alianga de palavras 0 vocabulario da burocracia racional, isto é, da delegagio, e o do carisma que encontra em si seu proprio fundamento". Este criador substitute, espécie de vigirio do génio, deve - como seu titulo indica -, enfrentar as exigencias antitéticas de uma posigao contraditéria “Os “responsdveis pela criagdo” tém sempre, como mostra o esquema (cf. Gravura n, 1), um itinerdrio complicado Courreges éaguele que exprimee assume, um mavr conti, idea da empresa total: “Uinproabita Caen erkagao, masiambém uma técnica eo tatoragregado.B tum todo. Ora, tra sertotetmente respensiael por un produto, & preciso controlar os énstramentos de Jfabricagéns iornci-me xerente para sur done do mete produto sta extrutura onganizuctonal nada tem em conn (a no ser fto, capital, da dissoctayto dus fangs com a das ‘maisons” mats recentes nas quais 0 fimndador assegura a “crlagte artistien’, dotxando a ws responsdveladminisinativo as questies de usta (# 0c, ‘porevenplo, de Guy Laroche, Saint Larentou Sebern, cua PD.G. (Prosidente-Diretor Geral) & Hubert amano, Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 @ retrégrado (diferentemente dos fundadores de *maison”): assim, Marc Bohan, ortundo da “maison” Piguet, volta a “maisons’ mais antigas, como Molyneux e Patou, antes de entrar na “maison” Dior, em 1958; 0 mesmo acontece com Gérard Pipart, estilista que entra na “maison” Ricci, em 1962, com Michel Goma que ingressa na “maison” Patou, 04 com Jean-Francois Crahay na “maison” Lanvin Estas exigéncias podem se revelar, no limite, insustentiveis, quando o “criador” deve “criar’, isto 6, aftrmar a unicidade insubstituivel de scu estilo €, 40 mesmo tempo, entrar na unicidade nio menos insupstituivel de “criador’, por definigio, insubstituivel, mas que ele tem o encargo de substituir: “HA més meses, Gaston Berthelot, nomeadode um dia para outro responsivel artistico da “maison” Chanel - em janeiro de 1971, depois da morte de Mademoiselle - foi rapidamente demitido. Alguma explicagao oficial? Nenhuma: seu contrato niio foi renovado. Comentario de bastidores: cle nao teria conseguido impor-se. E preciso dizer que a discrigio natural cle Gaston Berthelot (..) foi fortemente encorajada no s6 por sua diretoria - nada de entrevistas, nenhum pronunciamento, nenhum mumor -, mas também pelos comentirios cle sua equipe diante de cada uma de suas proposigbes. Seri que o modelo era conforme, fiel € respeitador? ‘Para isso, nao € necessdrio um modelista; pega-se os velhos éailleurs e recomeca-se..." Mas, diante de uma nova saia ou de um bolso modificado ‘Mademoiselle jamais toleraria isso’... Neste aspecto & que a comparagdo com as estratégias que sdo utilizadas em outros campos para assegnrar a perpetuagae de um poder carismatico pode produztr todos os seus efeitos. A partir de um fundo constituide por homologias, destacam-se as diferengas que conduzem diretamente especificidade de cada campo, ao mesmo tempo que elas permiiem fornecer a plena forga heuristica & invariantes: 0 questéo dos mais significative & que se possa aceitar, agts © principio da substituigdo do “criador” = cotsa impensdvel no campo artistico no qual pretende-se perpetuar a “mensagem”, mas néo substituir aquele que a produziu. Se 0 campo intelectual recusa 0 principio da substituigdo, sem dtivida, porque o reduz ao proprio escrilor, a preocupagdo de perpetuar, - néo propriamente a empreendimento se pequend empresa de produgao artesanal, mas, pelo menos, o capital que ela acabou constituinde e do qual 2 Bentbod, “Mats commen pad-on remplecer Chanel Elle, 23 ee judo de 1973. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 +. ee ee ee ee teoria da magia igdo para uma contribut O costureiro e sua gri O costureiro e sua grife: contribuicio para uma teoria da magia 36 participam os “descendentes legitimos” (familia, colaboradores, discipulos) - inspira todo tipo de estratégias, desde a publicagdo de obras postumas até a criagdo de associagées culturais (Os Amigos de...). O campo cientifico ignora @ antinomia da perpetuagdo do carisma porgue o método - teria sido ele inventado ou aperfeicoado por uma tinica pessoa? - torna-se um instrumento coletivo capaz de funcionar independentemente daquele que o produziu. No caso da alta costura, a questdo se coloca em termos bastante vriginais porque todo 0 aparelbo de produgdo e circulacdo esta orientado especificamente, ndo para a fabricagao de objetos materiais, mas - come mostra perfeitamente a estratégia dos costureiros que vendem suas “criacées” (sob a forma de licenca) sem que eles mesmos produzam objetos -, para a producao do poder quase magico, atribuido a um homem singular, de produzir objetos que sdo raros pelo simples fato de que ele os produz, ou melhor ainda, de conferir a raridade pela simples imposigéo da “grife”, como ato simbélico de marcagéo, a quaisquer objetos, inclusive, no fabricados por ele. A questo - “Como ser4 possivel substituir Chanel?” - devera ser entendida assim: como continuar produzindo Chanel - objeto simbdlico, marcado com o signo da raridade pela assinatura - sem Chanel - individuo biolégico, nico habilitade a assinar Chanel nos produtos Chanel Como confeccionar produtos Chanel que nio sejam cdpias nem falsificagdes, como se diz, na pintura? O problema existe porque pretende-se fazer sem Chanel aquilo que somente Mademoiselle estava autorizada a fazer, isto €, produtos Chanel: nao um simples trabalho de substituto, capaz de reproduzir produtos de acordo com os canones “criados” pelo “criador", mas uma operagho quase magica, manifestada pela assinaturs que, por definigiio, s6 pode ser operada na primeira pessoa. Fazer apelo a outro “criador” para salvar o cupital é de qualquer modo, expor-se a perdé-to: que ele afirme, como se diz, sua “personalidade” ou se submeta, nestes dois casos, 0 que se perde € 0 diteito 2 assinatura “criadora”, © “criador™ substituto 6 podera desempenhar sua fungio de criador de raridade e valor se vier a se conceber coneo criador de raridade ¢ valor, isto €, dotado de valor como pessoa - € nao somente como substitute ou delegado. Mas, ao fazé-lo, ele renuncia ao capital que est associade a uma pessoa, com o estilo proprio de suas “criagdes"(o “estilo esporte”), ¢ a uma personagem com 0 estilo de vida que contribui para produzir ou perpetuar a fé es . . Fducacdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 dor. E essa contradigiio em seu poder cri que faz. surgir Ramon Esparza, sucessor de Gaston Berthelot & sucesso de Chanel, quando ele exige plenos poderes “incluindo o de falar quando tiver vontade”. Falar, isto 6, existir como pessoa e obter os meios para se tomar uma personagem com uma marca, palavras, manias, em suma, tudo 0 que compunha Chanel, o carisma de Chanel, ¢ que nos fora a formular a pergunta; Como sera possivel substituir Chanel? Exatamente o que 6 jornalistas, que haviam contribuido para a produgio da crenca coletiva, descrevem retrospectivamente com um objetivismo redutor: "Privado de sua vedete, 0 cenario perden toda sua magia. No fundo, todo este verniz preto e ouro era um pouco sinistro, @ essas corgas de bronze - dignas do Petit Palais — representavam Jjustamente o notdvel pesar da felicidade de ter cachorros, Mas, Chanel detestava cachorras. Trancamos a porta, lancados na célebre escadaria de espelhos. Era ai, Galeria dos Espelhos ¢ Sala do Trono, que Chanel - multiplicada por cem, sentada em um degrau, com a cabega coberta pelo seu eterno chapéu de palba -, controlava, nos dias de apresentacdo das colegées, as ausénctas @ abstengées. A seus pés, espdlbados pelo tapete bege — jl gasto -, os fidis em uniforme de gala - Edlucagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez2001 . 6... eee tweeds creme e¢ hotdes dourados - aplaudiam com vigor ¢...). Mademoiselle, enclausurada hd vinte anos em um monslogo, do qual explodiam na superficie, em forma de bolbas, vitupérios e formulas mordazes, enquanto desliza sub-repticiamente 0 lento fluxo de lembrangas. Mademoiselle nfo suportava as interrupedes (...). A religido do pequeno tailleur. Com seus ritos; mangas cortadas por trés vezes, tesouras sacrificadoras, _estréias banbadas em ldgrimas. Seus milagres: pela primeira vez, foi possivel usar um terno dex anos seguidos som ter ficado démodé, pois Chanel, que ditava a moda, decidira paray 0 tempo. E um evangelbo: ‘E preciso sempre... Detesto as mulberes que...’. etc". Por fim, basta citar as primeiras patavras que Ramon Ezparza dirigiu aos jornalistas: “Nao, na préxima terca-feira ndo ficarei na escadaria, Altds, n@o quero ver ninguém. A tradi¢do? Fui contratado pela empresa Chanel para fazer funcionar a “maison” e ndo para retomar a representagao de um papel” £ a raridade do produtor (isto é a raridade dat posigio que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto Como explicar, a nilo ser pela Fé na magia "Cl, Bertbed, ancl. O costureiro e sua grife: contribuigéo para uma tearia da magia 37 contribuico para uma teoria da magia O costureiro e sua grife 38 da assinatura, a diferenca ontolégica - comprovada do ponto de vista econdmico ~ entre a réplica assinada pelo proprio mestre (este miltiplo antecipado) e a cépia ou a falsificagio? Ja € conhecido o efeito que uma simples troca de atribuigio pode exercer sobre o valor econdémico ¢ simbélico de um quadro. © mesmo € dizer, de passagem, que o poder de transmutacdo nao pertence somente ao produtor das obras (e que este no o obtém por si mesmo): o campo intelectual ¢ o campo artistico constituem. © espaco de lutas incessantes a propdsito, das obras do presente e do passado que enfrentam, a0 mesmo tempo, o desafio da revirayolta da hierarquia dos produtores corespondentes ¢ a alta das “agdes culturais” daqueles que investiram (no duplo sentido) em suas obras. As estratégias de comercislizagio da “grife” sto a melhor demonstracao do quanto é intitil procurar apenas na raridade dio objeto simbélico, em sua “unicidade", © principio do valor deste objeto que, funcamentalmente, reside na raridade do produtor. E produzindo a raridade do produtor que o campo de produgio simbolico produz a raridade do produto: © poder migico do “criador” € o capital de autoridade associado a uma posi¢io que no poderd agir se nfio for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se nfo for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura. © que faz com que os produtos sejam Dior, nao é 0 individuo biolégico Dior, nem a “maison” Dior, mas o capital da “maison” Dior que age sob as espécies de um individuo singular que s6 pode ser Dior. A imposigdo de valor Deve-se evitar ver nessas andlises uma forma de restaurar, com outras palavras, a {6 no poder carismitico do “criador” este limita-se a mobilizar, em graus ¢ por estratégias diferentes, a energia da transmutagao simbolica (isto €, a autoridade ou a legitimidade especitica) que € imanente & totalidade do campo porque este a produz e a reproduz por meio de sua propria estrutura e de seu proprio funcionamento. Toda teoria econémica da produgio de bens simbdlicos que leva em conta apenas os custos de fabricacao dos objetos considerados em sua materialidade é falsa. O que é valido para uma Eau de Cologne do Monoprixt niio o é em relagio a um perfume de Chanel: mesmo que este seja simplesmente uma Eau de Cologne do Monoprix, 8 qual tenha sido colada a grife *NT: Rede de supermercados de grande apelo popular, reconbectela por praticar precos baxos. Educagdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 de Chanel, Produzir um perfume que traz esta grife € fabricar ou selecionar um produto fabricado, mas é também produzir as condigdes da eficécia da grife que, sem nada modificar & natureza material do produto, transmuta-o em um bem de luxo, transformando ao mesmo tempo seu valor econémico e simbdlico. “Mediante uma taxa de utilizagdo, 0 fabricante faz uso da grife e da publicidade indireta difundida em sorno do nome. Este sistema permite vender um pouco de tudo: sonbos, talvez, ilusdes, além de produtos nos quais a parcela de criagdo & mats ou menos importante. £ evidente que, ao colocar sua grife em meias, o investimento real de Dior é minimo: o que se paga é seu nome. Pelo contrario, em seu setor de peles prét-A-porter, por exemplo, o estidio de criagdo aperfeigoou determinados modelos ¢ proceden & selegdo das peles, Além da grife, estes produtos sdo portadores de um certo estilo e de uma real qualidade técnica. Qual serd 0 investimento criativo no perfume de um costureiro de grande prestigio? Nenbum, sendo, talvex, a forma do vidro e a embalagem. O resto foi feito por especialisias da indtistria Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001... 0... de perfumes”. (Dépéche-Mode, marco de 1974). “Um terno Pierre Cardin, por exemplo, custard 20% a mais, no minimo, do que um terno idéntico fabricado nos mesmos ateliés, com os mesmos tecidos, mas sem a pequena grife que muda tudo” (Entrevista com jornalista de moda, abril de 1974) A operagio de produgio de bens é, neste caso, uma operacio de transubstanciacio simbélica, irredutivel a uma transformagao material. A ideologia carismética da “eriago” € um erro bem fandamentado, como a religiio, segundo Durkheim. © costureiro adota um procedimento semelhante a0 clo pintor que transforma um objeto qualquer em obra de arte pelo fato de mareé-lo com sua assinatura: a diferenga é que ele atua de maneira mais vistosa porque a estrutura especifica da divisao do trabalho Ihe proporciona tal possibilidade; além disso, exprime-se ce maneira mais aberta porque a menor legitimidade de sus “arte” © intimida a responder a questoes tornadas impensdveis pela mais elevada legitimidade da pintura: “Eu nao sou um comerciante - dizia Esterel, Minha fungio é criar e fazer com que se fale sobre minhas criagSes” O costureiro e sua grife: contribuigdo para uma teoria da magia contribuigdo para uma teoria da magia ife: sua gril O costureiroe A relagio entre 0 faturamento eo tamanho das empresas de alta costura (Fone: Depeche Mode) 2000 + ‘auamente-em mies de rancos Entre as estratégias que se oferecem aos costureiros (cf. 0 diagrama que apresenta a relagdo entre o numero de empregados e 0 faturamento), a mais conforme a légica da economia especifica do curto prazo -, a escolhida pela maior parte ampo da moda é - pelo menos, a dos “inovadores” (com excecio de Courréges, deliberadamente orientado para a empresa integrada) que consiste em criar nome- pelas relacdes publicas - © vendé-lo, ‘Na “maison” Féraud, a empresa funciona como um verdadciro estiidio de criagio e um escritério de relagdes ptiblicas” (Dépéche-Mode, margo de 1974). “A grife Cardin é vendida em produtos cada vez mais diversificados j4 que estes tém a ver com a estética industrial” (Dépéche-Mode, marco de 1974). Cardin cria pratos para as fabricas de porcelana de Limoges, desenha o interior de carros para a General Motors, produz discos e financia 0 “Espago Cardin’. A situagdo da empresa de Courréges que, abalada continuamente por problemas financeiros, funciona de algum modo por movimentos bruscos (depois do stibito crescimento de 1965, precedlide de quatro anos dificeis, ela passou por um novo periodo de dificuldades na primavera de 1969, retomando félego em 1970 com o lancamento da linha “Hipérbole” e, em 1971, com a produgao de acessérios), parece confirmar, 4 contrario, que - pelo menos, nas empresas ascendentes -, a estratégia mais adequada A légica Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 especifica do campo consiste em reduzir @ produgdo do seu aspecto simbélico® A estratégia de Cardin, Féraud ou Lapidus que, por meio de licengas cedem a empresas a responsabilidade pela fabricacio e exploracio comercial de suas “criagées”, mediante uma taxa anual de 5% sobre 0 faturamento, nao é assim tio diferente da estratégia do escritor que confia ao editor a responsabilidade pela fabricagao ¢ comercializagio de sua obra, mediante 0 pagamento dos direitos autorais. A andlise real, inscrita na divisio do trabatho que, aqui, estabelece a separacio entre a fabricagdo do bem material e a produgao do bem simbélica + isto 6 da transubstanciagto -, abre o caminho para uma anilise das operacdes constitutivas da alquimia simbélica que a indiferenciacao (caracteristica, salvo exceges, da produglo pictérica) tende a interdizer, favorecendo assim a ilusao carismatica: conceber os produtos, produzir “idéias", “modelos” - operagao nao especifica, constitutiva de todo tubalho humano; fabricar 0 produto; impor uma marca sobre o produto Cgtife” do costureiro, nome do editor ou da editora, assinatura do pintor, do escritor ou do misico, preficio assinado por um nome ilustre, ¢te.) ¢, por isso mesmo, constitaf-lo como raro - digno de ser procurado, consagrado, sagrado, legitimo -, operacio que caracteriza propriamente Educagao em Revista, Belo Horizonte, n? 34, dez/2001 . . . a producao dos bens simbélicos; por fim, divulgar € comercializar 0 produto da forma mais ampla possivel. Se a imposicao da “grife", caso particular da tomada de posse simbdlica pela marcacio (da Bezeichnung, no sentido de Hegel), transforma de maneira quase magica o statis do objeto marcado € porque ela nao passa da manifestagao. sensivel - como a assinatura do pintor — de uma transferéncia de valor simbdlico. A imposigao da “geife” consuma - embora por vias radicalmente opostas -, os fins que persegue a publicidad enquanto esta revela seu segredo, mostra : mas, se tal como ela é, isto é, uma operagio interessada de valorizagio da mercadoria, contradizendo assim nos meios que emprega os fins que persegue, 4 imposicdo arbitraria e interessada de valor realizada pelo costureiro nado pode afirmar-se abertamente sob pena de se destruir; enquanto violéncia simbdlica, ela Na brocbuara mimeograls, isrbuie por sousserizos de relagées pitbicas, 0 priprio Courriyes aparnca us ‘mconventontes de seu sistoma te producdo: 0 carter sazonal da fabricagda fax com quie os aietos Fegrom $201 traballbyy durante em period superion a ume m6 (duas vezes poranoi, o que implica um custo vlevado para aempresa; além disso, como a mecessidade de wn fundo de caixa bastante importante, acupresa deve assegurar um pré-fmanctamento das uses eae, apostate tuo om: sum sizeica produto, o-gste levee. de forma contradtéria, « conter valsauiariamente os ‘pedides para tora contexa de poder satisfixi- ls © costureiro e sua grife: contribuigéo para uma teoria da magia O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 42 no pode consumar-se a nfo ser que se tome irreconhecivel como wil, em nome da fé ou da confianca inspiradas por aquele que a exerce, ou da autoridade especifica que ele detém. Situado em uma posigao intermedidria entre o campo artistico € © campo econdmico, do ponto de vista do rigor da censura imposta A munifestagao dos interesses - e, em especial, dos interesses econdmicos -, 0 campo da moda revela, com uma transparéncia particular, certos mecanismos caracteristicos de uma economia na qual os interesses s6 podem ser satisfeitos se forem dissimulados nas € pelas propria estratégias que visam satisfizé-los: as estratégias econdmicas do campo artistico sto demasiado perfeitas, isto é, por demais perfeitamente simbd proprio efeito de sacralizagao que S, portanto, bem protegiclas pelo produzem para que se possa esperar € aprender ai, direta e completamente, as leis da economia das trocas simbélicas: além disso, essas trocas altamente eufemizadas visam satisfazer interesses tao radicalmente sublimados e tio profundamente irreconheciveis, que a objetivacio esta fadada aparecer como um grosseiro sacrilégio aos ollios daqueles que tiram alguns beneficios simbdlicos do desvelamento parcial - portanto, polémico ou cinico -, das “leis do meio”. Quanto 4s estratégias de yalorizagao. cotadas no campo econémico - mesmo que se trate de técnicas de relacdes publicas, mais dissimuladas que as da publicidade -, elas fornecem mais informagées sobre os interesses © as fungdes das estratégias simbdlicas do que sobre sua légica especifica, Entre a “criagdo” do artista, que desencoraja a anilise € s6 exige a reveréncia, e a fabricacdo publicitéria das “marcas” que se mostra tal como ¢, @ imposigao da “grife” representa um caso exemplar de alguimia social, operacio de transubstanciugao que, sem alterar em nada a natureza psiquica do produto, modific: raclicalmente sua qualidade social Se ba uma situagdo em que sdo fettas coisas com palavras, como na magia - inclusive, melhor que na magia (se & verdade que 0 mayo se limita a vender, através de palavras, a idéia de que faz alguma coisa com palavras) - isso se verifica no universo da moda. A “grife”, simples “palavra colada sobre um produto” Elle, 3 de janeiro de 1972) é sem dtivida, com a assinatura do pintor consagrado, uma das palavras mais poderosas, do ponto de vista econémico e simbélico, entre as que, boje, tém coragao. Mas, do'mesmo modo que o poder da assinatura do pintor ndo se enconira na assinatura, assim também Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 © poder da “grife” ndo esta na “grife”: nem se enconira sequer no conjunto dos discursos que celebram a “criagdo’, 0 “criador” e suas “criagées”, contribuindo de forma tanto mais eficaz para a valorizagdo dos produtos elogiados, quanto maior & a impressiio de que se limtiam @ constatar tal valor quando, afinal, esti empenhados em produzi-to. Descartando, de saida, em nome do direito & autonomizagdo metodolégica, a questao da fungdo do discurso da moda no processo de produgéo dos bens da moda, a “leitura” semioldgica (R. Barthes, Systéme de la mode, Paris, Ed. du Seuil, 1967) esta condenada a oscilar entre 0 formalismo de uma transposigao forgada dos modelos lingitisticos e o intuicionismo de andlises quase fenomenolégicas que se limitam a reproduzir, sob outras formas, as representagées nativas (por exemplo, sobre a ‘lei da moda” e sobre as relacées da moda com o tempo, pp. 270-274). Quando 0 véu dos signos deixa transparecer a evidéncia da agdo dos agentes encarregados da produgdo e circulagdo dos bens da moda, livramo- nos da questdo sobre suas fungées, remetendo-as & economia: “Por que a Moda 6 tao profusa ao abordar o vestudrio? Por que, entre o objeto ¢ seu usudrio, interpde-se tal superabundancia Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 de palavras (sem contar com as imagens), tal rede de sentidos? A razdo é, como todos sabem, de ordem economics” (p. 9); “Por trds dessa Let, existe uma instdncia exterior & Moda: trata-se do fashion-group ¢ suas ‘razées’ econdmicas, mas permanecemos aqui no nivel de uma andlise imanente do sistema” (p. 271, n. 1). As “razGes” da andlise imanente conduzem assim @ liquidar, de saida, a propria questdo da “razdo" especifica do sistema de produgéo dos bens da moda que contém @ verdade do “sistema da moda’, isto é, do discurso da moda: “A origem comercial de nosso imagindrio culetivo (submetido, por toda parte, & moda, bem para além do vestudrio) nao pode, portanto, ser mistério para ninguém * (p. 9). A demtincia prejudicial dos mecanismos, sem charme nem mistério, da produgao e circulagdo dos hens e discursos da moda, permite reenviar sua andilise a ciéncias ancilares, como a economia e a soctologia (Como ndo bd intengao de estabelecer, aqui, uma soctologia da Moda, estas indicagées sao puramente aproximativas: no entanto, no haveria nenhuma dificuldade de método em definir sociologicamente o nivel de cada publicagdo sobre a moda", p. 274). Podemos, enide , dedicar-nos, sem o minimo risco de equivoco, a uma andlise rigorosamente interna que se faz : contribuigéo para uma teoria da magia O costureiro e sua grife 4B ia ma teoria da magi ico para ui ro e sua grife: contribui O costurei ad @ partir de um engracado trocadilbo como uma “economia do sistema da moda”*. E Roland Barthes tem toda raxio ao lembrar que a “metalinguagem" do analista 6, por si sé, passivel de uma andlise e, assim, indefinidamente (em espectal, pp. 292-293): ndo tendo constitufdo seu objeto em sua verdade, isto & em sua fungdo de celebragdo, 0 analista do discurso sobre a moda limita- se @ trazer uma contribuigdo suplementar ao discurso de celebracao da moda que - & semelhanca da critica Kiterdria, da qual ele s6 se distingue pela menor legitimidade de seu objeto -, participa do culto dos bens de luxo e, por isso mesmo, da produgdo de seu valor indissociavelmente econdmico e simbdlico. Uma andilise do tipo austiniano teria, pelo menos, o mérito de subordinar a quesido das propriedades retéricas do discurso & questao de sua eficdcia (of. J. 4, Austin, Quand dire, cest faire, trad. de G. Lane, Paris, Bd. du Seuil, 1970; How to do Things with Words, Oxford, Oxford University Press, 1962). No entanto, a enumeragdo positivista das formas que devem ser respeltadas para que se opere a magia da palavra - 0 agente certo, 0 momento certo, a maneira certa, o lugar certo, etc. ~ dissimula gue 0 principio da eficdcia da operagdo ritual nao deve ser procurado no formalismo magico, isto é, no proprio ritual, mas nas condi¢des sociais que produzem a fé no ritual (de que o formalismo € apenas um aspecto de menor importancia). O irreconhecimento coletive © poder das palavras nao reside nas proprias palavras, mas nas condigdes que dio poder as palavras criando a crenca coletivd, ou seja, o irreconhecimento coletivo do arbitrario da criagao de valor que se consuma através de determinado uso das palavras, A imposicao de valor, simbolizada pela “grife", € um caso particular de todas as operagées de transferéncia de capital simbdlico (prefacios escritos por um autor célebre para o livro de um novato, marca de uma editora de prestigio, etc.) pelas quais um agente ou, mais exatamente, uma instituigdo que age por intermédio de um agente devidamente mandatado, investem de valor um produto. E na propria estrutura do campo - ou, 0 que "Quem fard a semiologiae, sobretudo, a soctotoia das tule estrutaral-marnisas (Pour une ertique de Lconomie politique ce sigan’) freudororarsistas CBecncaie tibiae oat estat fomidovarststas CContribution des tableaux de facaues Monory & Linteligence de [économie pottique tbidinale die capitalism dans son rapport avec ie disposi pictiral, et mversement™) da patarra “economia’? Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 quer dizer o mesmo, nas leis que ofganizam a acumulacgao do capital simbélico ¢ sua circulacio, € nao em tal ou qual instAncia ou em tal agente particular ou, até mesmo, na combinacio: de fatores singulares (agentes, instrumentos, circunstancias) - que residem as condicées de possibilidade da alquimia social ¢ da transubstanciagio que ela realiza. “E somente em Paris que se encontram reunidas todas as condigées para o langamenta de uma nova moda: @ presenca de 800 jornalistas na apresentacdo das colegées, a cata de informagées didrias; as revistas especializadas que, um més depois, publicarao a sintese fotografica; por fim, os compradores profisstonats, cujos dolares, bras ou francos permitiréo que as mulheres concretizem idéias considerada, &s vezes, destemidas ou, pelo contrario, timidas (N. Mont-Servan, ‘La haute couture parisienne, laboraloire international de la mode", in La Documentation frangaise, 12 de julbo de 1967) verdadeiramente 0 que & devido ao “A moda sé se torna jornatismo. Voce pode me dizer como apresentar vestidos se estes nao passarem primeiramente pelo estdgio da imagem?” (Pierre Cardin, in Claude cit., p.125). Cézan, op. “Com a Fducacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . . . apresentagao da colecgao, obtemos 350 paginas nas publicagées de moda. Ha 600 jornatlistas que escrevem sobre a alta costura” (Entrevista do porta-voz da Chambre syndicale de la haute couture) O poder do “criador” nada mais € que a capacidade de mobilizar a energia simbélica produzida pelo conjunto dos agentes comprometidos com 0 funcionamento do campo: jornalistas objetivamente encarregados de valorizar as operagdes de valorizacao dos *criadores” (com todo o aparelho de jomais € revistas que toma possivel sua ago); intermediacios e clientes, antecipadamente, convertidos; por fim, outros “criadores” que, na ¢ pela propria concorréncia, afirmam o valor das implicagdes da concorréncia, Isso corre, igualmente, no caso da pintura, A imposicio arhitraria de valor - que, até uma Gpoca recente, confundia-se com operagio de produgio de um objeto insubstituivel, marca de uma competéncia exclusiva!’ - tende a se tornar visivel, quando no é ostensivamente afirmada # Na moda, varifica-se cura diferenga: o mamente du fabrcazioe o niomento da comercializugao niio sia e ndo derem ser separados pelo intervato de temps bastante considenivel que, para ocultar a relagao entre a produgiio e 0 mercado, coniribut para fornecer a produciio pictirice (pete menos, ma epoca moderne) sua aparéucia de finabidade sem fim on, mais simplesmeente, de desprendimento O costureiro e sua grife: contribuicéo para uma teoria da magia a4 Eb = E 3s & og & 5 g a a 2 & L 5 2 Ee § 8 = Ep g 2 o g 2 2 ° 46 por um ato pictérico, a partir do momento em que uma parcela de pintores se recusa a identificar o papel do artista com 0 de “artifex”, definido fundamentalmente por sua capacidade técnica. Neste caso, segundo parece, quem estabelece o valor da pintura no € (ou nao € somente) o produtor de um objeto inico, mas também o detentor dle um capital de autoridade especifico - portanto, « totalidade do campo com os criticos, diretores de galerias, outros pintores, consagraclos ou fracassados, em suma, todo © aparelho que produz essa forma especifica de capital simbélico, produzindo a crenga (como irreconhecimento coletivo) nos efeitos de uma forma particular de alquimia social. Na producio de bens simbélicos, as instituigdes aparentemente encarregadas de sua circulagio fazem parte integrante do aparelho de produgio que deve produzir, no s6 0 produto, mas também acrenga no valor de seu proprio produto. idéia de estabelecer uma separagho entre a A ninguém ocorreria a produgao de indulgéncias ou exorcismos € 0 aparelho de produgdo da demanda que ela supde. Isto se di em todas as formas de producio de bens simbélicos, como se vé claramente quando, no caso da poesia, por exemplo, este aparelho esté em crise. © trabalho de fubricagio propriamente dito no é nada sem o trabalho coletivo de produgao do valor do produto e do interesse pelo produto, isto 6, sem o conluio objetivo dos interesses que alguns dos agentes, em rao da posig’o que ocupam em um campo orientado para a produgio € circulacao deste produto, possam ter em fazer circular tal produto, celebri-lo e. assim, apropriar-se dele simbolicamente, além de desvalorizar os produtos concorrentes, isto é, celebrados por concorrentes, ¢ assim por diante. Preficios ¢ introdugées, estudos ¢ comentirios, “leituras” e criticas, debates sobre a critica e lutas pela “leitura", todas estas estratégias altamente cufemizadas que visam a imposigio do valor de um produto particular sdéo outras tantas contribuigées para a constituicao do valor genérico de uma classe particular de produtos ov, o que resulta no mesmo, para a produgao de um mercado favorivel a estes produtos 4 atongado prostada as conddipdes diferenctats de sucesso ou fracasso faz esquecer as condiges mats gorais de fiuncionamento do campo no qual se defiiem fracassos 1 sucessos. Esguece-se, por exemple, que o purtor fracassado contribut, unicamente por sua existéncta, isto 6 pela relacao objetiva que 0 une ao pstor consagrade ox ao pintor maldito, para fazer oxtsire sistema das diferengas que cria a nator artistico # serve do fiundamento a fo neste valor ou gute contrib, se quisermos, para constiusir o campode tensGes em que se ‘engendra 0 capttal artistic. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 “His um exemplo, encontrado ao acaso, no qual se vé bein, em razto de natureza do produto e das estratégias - ainda wm pouco grosseiras, embora representem, sem dhivida, um apice das relacées piblicas - a forma especifica da diviséo do trabalbo de celebragdo: “Com prefacio de André Chastel, 0 livro Lintimité du parfum, de Odile Moreno, René Bourdon e Edmond Roudnitske, & tum trabalbo de equipe, cujos primeiros elementos foram colegides para o relatério final do curso universitario de Odile Moreno, René Bourdon exerce importantes fungdes em uma das mats conceituadas perfumarias francesas; Hdmond Roudnit:ka & ‘compositor’ de perfumes” (NM. Mont-Servan, in Le Monde, segdo ede mode, 3 de agosto de 1974). Se acrescentarmos que essa obra - cujo prego de capa varia de 38 francos, em edicdo popular, & 120 francos, em edigdo de luxo -, esté predisposta a desempenbar o papel de “presente de negocios” e gue o artigo que the foi consagrado no cotidiano Le Monde encontra-se ao lado de um anincio de uma “Eau de Guerlain’, apreen- demos a “forma elementar" de um empreendimento necessariamente colettvo de celebragdo: um trabatho “untuersitdrio” para produzir o efeito de neutralizagao académica; tm professor do Collége de France, sumo sucerdote da celebragao do culto da ane legitima, para produzir o efeito de canonizagao académica e neutralizacdo estética; e, ainda, o “compositor” (as aspas estdo no original) de perfumes para a caug de desprendimento somente 0 “criador” pode fornecer é& defesa, um potico vistosa, do PL.G. em favor da “qualidade francesa” e do io artistico que ‘empreendimento de interesse geral” de que é 0 animador, Vé-se, de passagem, que é no aparelho da celebragio que reside o proprio principio da estrutura e, inseparavelmente da fungiio, do discurso de celebracio, do qual 6 discurso sobre x moda, a publicidade ou a critica literaria sdo outros tantos casos. particulares, separados apenas pelo grau de dissimulagao da funcio. Todas essas formas de discurso tém em comum o fato de deserever e, ao mesmo tempo, prescrever, de prescrever sob a aparéncia de descrever, enunciar prescrigdes que tomam a forma da descrigio (“a moda estara - ou esta - na...; obscerva-se a reaparigio de...; a moda de X se afirma") Esses exemplos, extraidos de Roland Barthes, sio bem analisados do modo como € proposto por ele: “Essa sabedoria da moda implica uma confusao audaciosa entre passado e futuro, entre o que foi decidido ¢ 0 que ir ocorrer: registra-se Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dezi2001 - - .- +. ee see O costureiro e sua grife: contribuicao para uma teoria da magia 47 CO costureiro e sua grife: contribuicéo para uma teoria da magia 48 uma moda no preciso momento em que esta € anunciada, no preciso momento em que € preserita”®. Assim, 0 discurso sobre a moda reatiza perfeitamente a forma da enunciacdo performativa, como diz Austin, que designa desse modo a inseparabilidade entre a especificidade estilistica deste discurso ¢ seus efeitos sociais, A alquimia social s6 obtém pleno sucesso porque a verdade do sistema escapa aqueles que participam de scu funcionamento, portanto, da produgao da cnergia social mobilizada pela enunciagio performativa: pelo fato dle ser impossivel que um dos agentes que contribuem para o funcionamento do campo possa aprender este campo enquanto tal e, ao mesmo tempo, apreender o fundamento real dos poderes para cuja produgio fornece sua contribuigio ou sao utilizados por ele, o sistema ¢ os efeitos do sistema nunca se mostram em sua verdade - nem que seja de maneira aparentemente mais cinica - mesmo para aqueles que dele se beneficiam mais diretamente; € 0 sistema como tal que, por estar destinado a uma apreensio parcial, produz 0 irreconhecimento da verdade do sistema e de seus efeitos. assim que a imposicao atbitréria de valor pode tomar - mesmo para aqueles que contribuem mais diretameme para sua realizaclo: costureiros ou jornalistas de moda, artistas € criticos, mistificadores mistificados -, a aparéncia de uma constatagio do valor: o discurso performativo dos jornalistas de moda € a manifestago mais perfeita da logica de um sistema de produgio que, par: produzir o valor de seu produto, deve produzir, entre os proprios produtores, © irreconhecimento dos mecanismos de produgio Depois da Revolugdo Francesa - diz Marx -, 0s aristocratas cujo capital incorporado consistia em uma arte de viver, dai em diante desprovido de mercado, tornaram-se os mestres da danga na Europa. E 0 campo artistico e 0 mercado atual e potencial que ele produx pela imposic&o da crenga em sua propria legitimidade & no valor tiltimo de seu produto, que transforma o artista em detentor legitimo do monopélio das operagées de transubstanciagao. A crise do mercado dos bens simbdlicos toma a forma de uma crise de confianga ou, se quisermos, de erenga: no caso da moda, como no caso da igreja ou da universidade, fala-se em crise quando deixam de funcionar os mecanismos que produziam a crenga reprodutiva do sistema; ou, 0 que vem a ser o mesmo, quando os interesses dos agentes de quem depende o funcionamento do °° R Bartbes.op. cit p. 273. Fducagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 sistema jf nao estio salvaguardados ~ portanto, reproduzidos -, pelo fancionamento do sistema. Uma propriedade bastante generalizada dos campos € que a competiclo pelo desafio especitico dissimule a colus (© objetiva a propésito dos préprios principios do jogo. Assim, como observa Albert Hirschman, a concorréncia entre marcas tende a assegurar uma forma de estabilidade pela mudanga: as vitimas de uma marca (por exemplo, aqueles que compraram “alfinetes” - /emons) passam para o concorrente & procura de produtos inexistentes ov impossiveis e, assim, si0 desviados do protesto contra a empresa responsavel pelo produto e, a fortiort, contra o sistema de produgdo. A concoréncia entre partidos politicos ou sindicatos, falsamente opostos, tende a exercer um efeito andlogo de desvio da energia revolucionaria®, Do mesmo modo, sabe-se que a luta que opde continuamente as parcelas da classe dominante nunca ameaca de verdade tal dominagio. Assim, a luta pelo monopdlio da legitimidade que habita o campo de producio dos bens simbélicos contribui para o fortalecimento da legitimidade em nome da qual ela é conduzida: a ortodoxia necessita da heresia porque essa oposigio implica © reconhecimento do Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . - - interesse do desafio, reconhecimento irreconhecido, isto é, afirmado e, ao mesmo tempo, negado na propria oposigao, que exclui a possibilidade de um verdadeiro agnosticismo. Os derradeiros conflitos sobre a leitura legitima de Racine, Heidegger ou Marx excluem a questio da legitimidade de tais conflitos, a0 mesmo tempo que a questo, verdadeiramente incongruente, das condigdes sociais que devem ser satisfeitas para que eles sejam possiveis. Essas lutas, aparentemente implaciveis, salvaguardam o essencial, nem que seja pela conviccio com que nelas se engajam 0s protagonistas ¢ que € orientada para se impor a comparsas, antecipacamente, conyertidos pelo préprio funcionamento do campo em que estio aplicados, quase sempre, todos os seus interesses: elas excluem este tipo de agnosticismo especifico que é a condigto de uma apreensio objetiva da luta que, por sua vez, € anterior a toda ciéncia objetiva de seu desafio. A heresia garante também a fé: a leitura herctica e a leitura ortodoxa de Racine formam um par e, delimitando de antemio 0 universo das leituras possiveis, excluem, por este efeito de fechamento, a possibilidade da critica sociolégica da critica e da literatura que é 2A. Hirschman Exit Voice and Loyalty, Gambridye, Mass, Hansard University Pros, 1970, pp. 26.28, O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 4g g 2 fe: contribuigéo para uma teoria dam iro e sua gril O costurei a condicao de uma yerdadeira ciéncia da literatura. Tais pares de posigoes epistemoldgicas, antagdnicos ¢ complementares, que correspondem a oposigées sociais entre adversirios clmiplices sao observados em todos os campos; e, em todos os casos, 0 conhecimento daquilo que constitui o fator das Iutas que neles se desenrolam, tem por condigao de possibilidade « critica sociolégica entendida - pela generalizagao. do emprego kantiano da palavra critica -, como a cién das condigies sociais de possibilidade deste jogo particular e, a0 mesmo tempo, a ciéncia dos limites que implica 0 engajamento necessariamente ingénuo neste jogo. A participacio nos interesses que sao constitutivos do pertencimento ao campo (porque este os pressupde ¢ os produz por seu prdprio funcionamento, durante toclo o tempo em. que estiver em condicio de se reproduzir) implica a aceitagio de um conjunto de pressupostos e postuludos aceitos como evidentes que constituem a condigao inconteste das discussdes € o limite insuperivel dos conflitos. E por isso que 0 conflito entre ortodoxia ¢ heterodoxia, que confere a0 campo sua estrutura e sua historia, munca atinge, por definigio, o terreno originétio da dowa, essa crenga primordial, cuja intensidade € proporcional ao interesse depositaco pelos agentes no funcionamento do campo. 0 ciclo da consagragao A especificidade do campo da produgio simbélica resulta da dupla natureza dos bens simbélicos ¢ da propria producio simbélica, que nao se reduz a um ato de fabricagio material, mas comporta necessariamente um conjunto de operagées que tendem a assegurar a promogio ontolégica «=e =a transubstunciacgao do produto das operagdes de fabricacio material. Os antistas - sobretudo, depois de Duchamp - Ado cessaram de afirmar, arbitrariamente, como que para provar os limites, o arbitririo de seu poder magico, capaz de converter um objeto qualquer em obra de arte na auséncia de qualquer transformagao material, capaz mesmo de constituir em obra de arte a recusa da arte, Este aspecto da producio artistica, manifestado publicamente nao 86 por suas transgressdes aparentemente mais tadicais, mas também pelos limites impostos a seus sacrilegos rituais (tal come, sua submissao ao rito da assinatura) escapa tanto 4 ideologia carismatis ~que considera 0 “criador” como principio tiltimo de sua “criagio” -, quanto & andlise ingenuamente redutora de um materialismo parcial que relacionaria diretamente o valor da obra de arte ao trabalho do responsavel pela fabricagao material, esquecendo-se de levar em Educacdo em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 consideragao 0 trahalho da consagracio. Segue-se que, 4 semelhanga da atividade de producao, o aparetho de produgio nao deve ser reduzido ao aspecto que & diretamente responsavel pela fabricagao do objeto material. Assim, por exemplo, nada seria mais ingénuo que reduzir o tempo de trabalho dos produtores ao tempo que dedicam expressamente & producao dos objetos. A parcela relativa a0 trabalho da consagragio nfo cessou de crescer medida que o campo artistico ganhava autonomia e se constituia a imagem social do artista: a vida do artista, a orelha cortada de Van Gogh eo suicidio de Modigliani fazem parte da obra destes pintores, do mesmo modo que suas telas que Ihes ficam devendo uma parcela de seu valor, Ninguém teria a idéia de reduzir a produ¢do do profeta as sentencas ¢ paribolas que professou, deixando de lado as adversidades que superou e€ os milagres que realizou, E, sob pena de se autocondenarem, os pintores de vanguarda devem saber que sao obrigados a agir, continuamente, como seus proprios empresitios, freqtientando os criticos, os diretores de galetias e, sobretudo, os organizadores das grandes exposicdes internacionais, vendendo todo o tempo seu discurso e seu comportamento de artista, tanto a seus congorrentes, quanto aos negociantes € potenciais compradores. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 Contudo, de maneira geral, os circuitos de produgio e circulagao material sao inseparavelmente ciclos da consagragiio que, além disso, produzem legitimidade, isto €, ao mesmo tempo objetos sagrados € consumidores convertidos, dispostos a abordé-los como tais © pagar 0 preco, material ou simbdlico, necessario para deles se apropriarem*. Verdadeira exploracdo dos limites do possivel, as pesquisas pictéricas de vanguarda permitem aprender o duplo sistema de imposigSes intransponiveis resultantes da dlualidade da obra de arte - objeto fisico € #10 furncionamento do coméreio de objetos de arte ne -steulo XY, tal como é descrte por . Vrlerem sintarsige notiel (he commerce des objets dar et les marcbands merciers", int Annales, 1, 1958, pp. 10-29) abediece a uma Sogica bom pareckdd. Essex comerciantes agen coma verdadeiros fazedores de gosto: pela forma como ‘escotbone stias impontacées, pelas *reinterprotacies” a que sito submetidos os abjetos impartades, plas ortentagées que fornecem aos artesétos, prelas ccombinactes que oporain entre diferentes oficies e. sobrenudo, pelo trahatbo de imposigdo de valor que realizam junto d sua clientela - alias, ovtras tarts fungaes que cabem também ao costuretro - cles adninistram, do alguma forma, 0 trabalbo de mransmutacdo material e, sobretudo, simbética, dos objets. “Sabendlo farejar ou provocar as tendéncias do momento, romaramese incitadores, empreencedores, renovando o tnteresse, acelorando mesmo a cvolugtio dos estitos, sequrando habitmente a clientela em stras mos, Alin de sagazes comerctantes, essa crtacores, ‘bois saber, por lisonjeiras ransformagties, aumentar ovaior dos objetes que importans ecompram: acabant Por teaxsformé-dos em objetos de arte que comboscim erfeltamente coneo espirito de seu tempo, Sua ‘arte Ho perswastea junto a sua cllontela qucento pode ser sei lento de vondledores. Aqui asta a originnalidace le sea trabalho, suc verdadeira obra" (p17). © costureiro € sua grife: contribuigao para uma teoria da magia gia teoria da ma; o para uma contribuigé O costureiro e sua grife 52 objeto sagrado -, investido de valor simbélico e econdmico, A rapicda decadéncia de todas as tendéncias de pesquisa de vanguarda que tendiam a ameugar a integridade fisica da obra de arte - tais como, a body art, a exposicio de objetos fridveis ou pereciveis e todas as formas de “agao” que sé podem ser fixadas, de maneira duradoura, sob a forma de fotos - ao mesmo tempo que os limites dentro dos quais se mantém as audicias destruidoras ou criticas (as obras mais contestadoras da pintura sio assinadas com os nomes de pintores, expostas em galerias de pintura, elogiadas pelas revistas de arte, etc.; todos os pintores possuem um inventario de suas obras, etc.) mostram que a obra de arte, sob pena de negar-se como tal ou, 0 que resulta no mesmo, deixar de ser vendivel, deve ser duradoura, transportavel, suscetivel de ser exposta (de preferéncia, em um domicitio privado) inventariada (o que nao quer dizer necessariamente Gnica, mas consagrada pelo reconhecimento do campo - em oposigao as falsificagbes) ¢, por fim, ateibuida a um artista particular, isto é, assinada. Dito de outra forma, ela deve possuir todas as propriedades que, de uma forma duradoura, a tornam disponivel para a circulagio inseparavelmente fisica, econémica ¢ simbélica na qual se produz ¢ se reproduz seu valor sagrado e, portanto, seu valor econdmico. Mas isso quer dizer, por ricochete, que ela adquite seu valor de sua relagio com o aparelho encarregado de assegurar a circulagio produtora de legitimidade, Os ciclos da consagracao, lugares de uma circulag3o circular de moeda falsa, nos quais se engendra a mais-valia simbélica, apresentam propriedades invariantes: eles obedecem sempre & lei fundamental que estabelece que o irreconhecimento do arbitrario da imposigao de valor -portanto, o reconhecimento da legitimidade - é tanto. mais completo, quanto mais longo for 0 ciclo da consagragdo ¢ quanto mais importante, por consequéncia, a enesgia social (suscetivel de ser medida por tempo de trabalho ou por dinheiro} consumida na circulagio. O ciclo, reduzido ao extremo, da autocelebracio (cujo paradigma é a sagracao de Napoledo em seu gesto de autocoroamento) produz um rendimento da consagragio muito fraco para um dispéndio de energia social igualmente fraco (e um pequeno desperdicio de informagao). A legitimidade 86 pode ser operada por procuragio ¢, dessa maneira, nunca se to mal servido quanto por si proprio: 0 primeiro interessado, como se diz, € certamente o menos indicado para fazer irreconhecer 0 interesse que ele préprio Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 tem: por sua celebracio (dai, vimos, os limites da eficacia da publicidade). Nos campos em que a censura do interesse material ou simbélico é muito forte, como © campo intelectual, todo tipo de estratégias pode ser colucado em pritica para escapar As sangées que atingem a autocelebragao: desde a troca direta de elogios (citagées, relatérios, etc.) - cujo rendimento simbélico € tanto maior, quanto menos aparente é a relacio entre 08 parceiros ¢ quanto mais longo for o intervalo que separa a prestagio e a contra-prestacio simbélicas - até a celebragiio de um alter-ego ja célebre, auto-clogio através de um terceiro sé acessivel a autores consagrados o bastante para serem considerados dignos de consagrar, servindo-se da identificagao com 0 autor famoso que faz parte da definicdo do discurso da celebragao. Constituir um capital simbélico de legitimidade suscetivel de ser, por sua vez, transferido para objetos ou pessoas € estar em condigées de (pela posicao) nao sé fazer funcionar, em seu proveito, os ciclos da consagtagao cada vez mais Jongos, portanto, cada vez mais independentes das relagdes diretas de interesse compartilhado, mas também apropriar-se assim de uma parcela cada vez maior do produto do trabalho da consagragao que se consuma em determinado campo. AS paginas consagradas aos diferentes costureiros nas publicagdes semanais e nas revistas especializadas, ou as obras, artigos, citagdes e referencias consagradas aos diferentes autores de um mesmo campo, nio sto somente um indice de sua posicao na distribuigio do capital especifico, mas —_representam concretamente a parcela do lucro simbélico (e, correlativamente, material) que eles estio em condigées de obter da produgio do campo em seu conjunto. A enorme mais-valia proporcionada pela operagio de marcagio nada tem de magico ¢ n&o constitui uma excecao 4 lei da conservagao do capital Distingdo e pretensdo: a moda e o modo A alta costura fornece a classe dominante as marcas simbélicas da “classe” que siio, como se diz, de rigor em todas as ceriménias exclusivas do culto gue a cl: mesma, através da celebragio de sua se burguesa se presta a si propria distingio, Por isso, cla é parte integrante do aparelho encarregado da organizagio desse culto e da producto dos instrumentos necessaries & sua celebragao. Os produtores de emblemas da “classe”, parasitas dominados dos dominantes que, 2 semethanga dos sacerdotes, participam apenas por Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, de/2001 . 5... 0 . O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia 53 teoria da magia do para uma contribuiga O costureiro e sua grfe: procuragio da exploraglo dos dominados, fornecem &s parcelas dominantes os atvilbutos da legitimidade em troca de uma parcela da renda proporcionada 8 sua docilidade®, © que se descreve como uma crise da alta costura nao , talvez, sendo um indicio, entre outros, de uma reestruturacio deste aparelho ligada @ aparicao de novos signos de distingao (tais como, esportes de fuxo, viagens longas, casas de campo, etc.) € a um 2ggiornamento do cerimonial tradicional da distingao burguesa que, sem dtivida, corresponde a.um reforco da intolerincia em relagio as exibigdes tradicionais das marcas estatutarias de distancia social. ‘Tendo aprendido a sacrificar as afirmagoes simbélicas da hierarquia 4 realidade do poder, a nova burguesia espera que o aparelho de produgo de emblemas da classe Ihe forneca produtos mais sébrios, menos jngenuamente ostensivos, menos insolentemente luxuosos, em suma, mais tigorosamente eufemizados, do que os produtos oferecidos pelos costureiros. Fla nio esta longe de compreender que, sob @ aparéncia de revoltados que os excluiam das grandes ceriménias burguesas, os artistas fornecem melhores investimentos — € chiro, econdmicos - mas também simbélicos. Se a ‘revolugio” nascida da combinagao dle uma inovagao nas técnicas de fabricacto e comercializagio - 0 prét- a-porter - com uma ruptura estilistica introduzida por Courréges ¢ difundida, em primeiro lugar, na Inglaterra pelos estilistas, pdde alcancar © sucesso testemunhado pelo consideravel volume (relativamente as mais antigas) de “maisons” fundadas recentemente, tais como Courréges, Lapidus e, sobretudo, Scherrer, € porque ela aparece, no campo relativamente auténomo da moda, como a retradugio das transformagoes do estilo de vida burgués que sio correspondentes 2 Stransformagio do modo de upropria dos lucros do capital (ingenuamente descrita, por um informante, como uma “democratizacgdo das fortunas”). Os iniciadores da nova estratégia indissociavelmente, estética e comercial - realmente conseguiram, através cle uma representagio intuitiva da nova arte de 21 O mundo da moda eo mundo da pintura estio ligados de diversas maneiras: em prinietro lugar, no nivel da proditsao, porque mutes pitoret trabalbam como ‘antistas grdficas, dlagramadores dus jornats de mada, fotdarafos, etc., formando uma espécie de fecundo ambiente artistica, pouco aprectadto por ambes os niversos de que participam,: em sexivida, peto campo da comercializacde, porgue uma comsiterdue parcela des compradores de pintura de vanguarda (ox pre varguarda) érecrutada ontreas profissces de moda quie assoctam certa protensdo antsticaa uum certo bem-ostar FEducacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007 viver burguesa (“A mulher Courréges, alca, jovem, bronzcada, cabelo curto, decidida, sortidente, alegre”, “mulher apaixonada pelo conforto e pela liberdade"), cativar as mulheres da nova burguesia que exige apenas o reconhecimento da legitimidade do novo estilo - e do novo estilo de vida; alias, todo o esforco dos costureiros de vanguarda, estilistas e modelistas, com a cumplicidade das revistas femininas e das publicacGes semanais destinadas a executives dinimicos, orienta-se no sentido de impor tal estilo. A reestruturacdo do campo da moda limita- se a ser o equivalente - e 0 efeito - da reestruturagao do campo do poder (como campo das relagdes objetivas entre as parcelas da classe dominante) que léva um certo nimero de observadores a descortinar, como sinais de declinio da classe dirigente, aquilo que nao passa de uma reorganizagio da divisio do trabatho de dominagio, acompanhada por uma diversificagio das categorias que tém acesso, segundo novas modalidades, aos lucros e€ prestigio da existéncia burguesa”. Se as estratégias a que os costureiros se opdem, em fungio de sua posicio na estrutura do campo relativamente auténemo da moda, reencontram aqui Foucagao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001 . » . . . . « expectativas que elas nao procuraram explicitamente preencher, é porque se baseiam na relagtio de homologia entre a oposicio - ao mesmo tempo, sinerdnica € diacrOaica - que se estabelece no campo da alta cultura entre os dominantes, isto é, também os mais antigos, ¢ os dominados, ou seja, os recém-chegados, assim como a oposi¢io que se estabelece no seio do subcampo das parcelas dominantes da classe dominante entre a antiga ¢ a nova burguesia, Tais encontros necessirios sio promovidos, incessantemente, nos mais diferentes dominios, a partir de homologias objetivas entre campos relativamente auténomos. As estratégias que opdem os agentes au as instituigdes que ocupam posigdes polares nos campos assim estruturados (campo teligioso, campo universitirio ou campo artistico) € que, produzidas a partic de posigdes estruturalmente homdlogas apresentam homologias evidentes, encontram-se obje amente harmo- nizadas, pelo fato desta mesma homologia, com as estratégias produzidas pelos ocupantes de posicées homdlogas na estrutura do campo do 2p P. Bourdieu, £. Bolianski eM. de Saint-Martin, “Les stratéyies de reconversion”, i Information sur ley sciences sociales, 12(5), 1974, pp. GI-113. O costureiro e sua grife: contribuigao para uma teoria da magia contribuicgdo para uma teoria da magia ‘oe sua grife: 56 poder ¢ na estrutura das relagdes de classe™. assim que as estratégias que a logica auténoma do campo impée, em determinado momento, aos costureiros de vanguarda - pressionados a lutar, de alguma forma, em duas frentes: contra os costureiros “canénicos" para afirmarem sua autoridade de “criadores"; e contra os cstilistas, sustentadas por uma grande parte da imprensa feminina, para defénderem sua clientela - podem encontrar uma demanda que nao os determinou diretamente. Bis um belo exemplo de colusdo objetiva (ou, se preferirmos, de divistio espontdnea do trabalho) resultante da propria légica da competi¢ao, Nao ba dtivida de que os costureiros de vanguarda defendem os interesses da alta costura em seu conjunto, entrando tao Longe quanto possivel no terreno dos estilistas e, ao mesmo tempo, salvaguardando a autoridade do “criador" ¢ 0 poder da “grife”. Tendo assumido o custo das “pesquisas” estéticas (mesmo correndo o risco de serem acusados de mau gosto) e das inovagées comerciais que, freqtien- lemente, acabam por se generalizar, eles combatem os estilistas em seu proprio terreno (provocando esctindalo entre os “antegristas"); ora, em um pertodo de redefinigdo da demanda, esta estratégia pode ser a tinica manetra de assegurar @ sobrevivéncia da profissdo. Segue-se que a fronteira nao é facil de sor delimitada (0 que é normal pois, como 0 caso dequalquer campo, ela constiteet o fator de uma lata que concerne a propria definicao do campo e ao controle do direito de entrada) entre a nata da categoria dos estilistas que a nova “Chambre syndicate du prét-a- porter, des couturiers et des eréateurs de mode” teve que se resignar a aceitar (tais como, Emmanuelle Khanh, Jacqueline Jacobson, Karl Lagerfeld, Kenzo, Sonia Rykiel) ¢ 0 escalao inferior da categoria dos costureiros (por exemplo, Cacharel on Hechter) Vé-se, de passagem, 0 quanto é ingénua a andlise que relaciona diretamente os produtos de um campo relativamente aut6nomo a demanda social que seria objetivamente satisfeita por eles: assim, por exemplo, a demanda de legitimacio da classe dominante so pode ser realmente satisfeita porque os * De fatto, as coisas sao muito mais complexas e, imposstbltitados de lembrar, em todo 0 momento do disci, todo 0 discurso necessario ao igor do discurso, 86 podemos remeter as analises,por exemplo, do campo niversitdrio, nas quaus podem ser vistos perfettamuense os efeitos cruzadles - 6, as vores, contraditarias - produzidos pelo encatsamento de campastewnts das faculdades, campo da faculdade, campo da disciplina (por exemplo, uum agente singeiar pode oesspar sea (posigdo daminadaent um subcampadominante de tun campo dominado, Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2007

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