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Ro Hansa 592 Jardin Europa CEPO14SS-000, Sio Paulo SP Bras Teas (11) 38116777 wamcaitoes34.com.be Copytiht © tora 36 Leda, 2018 On n'y oot er: descriptions ® 2000, 205 by Eons Deon Amiorungio Dev BOS DIRETOS DrELTUAI + FATRBMONIS D0 ATOR, Capa, pow grifco dhoraio cei: Bracher Malis Produ Gren Tenameno das imagens: ma Cratendon nage d 9.9 Pater Moret Sock Photo Revo Alberto Marine 1 Big 2019" Rengre 2020) CIP Res Casloassooa Fea (Sincato Nacional dos Eatores de Lio RJ, Basi ‘tea Cai en aa — Shioream apie NADA SE VE Seis ensaios sobre pintura Cara Giulia Marte Venn sprees por Vaan, Tire (1550. 7 © olhar do caracol Amen, Franco del Coma fe, 470-72, 2 Um otho negro Adora das Mags, Bel (1564. 45 ‘A pelugem de Madalena A mulher na area Dace ver [sta carta, um tanto Tonga, corre o isco de surpreen- Uta, talvee até mesmo irvté-la. Espero que voc® nao se aborrega comigo, mas € preciso que ev Ihe escreva. Como cw disse brevemente, no consigo entender como acontece dle as veres voc® olbar a pintura de modo a nao ver o que ntor e @ quadro Ihe mostram, 'Nés partlhamos da mesma paixdo pela pintura. Como possivel entdo que, na hora de interpretar algumas obras, nbs consigamos ficar tio distances assim um do outro? Nao «estou sugetindo que as obras teriam apenas um sentido € ‘que, portanto, dele seria possivel fazer apenas uma inter pretagdo “correta”. Isso foi Gombrich quem disse, ¢ voce sabe © que eu penso a respeito. Nao, o que me preocupa é mais 0 tipo de filtro (feito de textos, cifagGes referéncias externas) que, em alguns momentos, vocé parece a todo custo querer interpor entre voeé e a obra, uma espécie de protetor solar que a protegeria do brilho da obra e preset- varia os habitos adquiridos nos quais a nossa comunidade académica se baseia e se reconhece. Nao é a primeira vez {que ns nfo temos a mesma opiniio, mas agora eu resolvi the escrever, Nao espero realmente convencé-a, e sim, quem sabe, levé-la a se questionare fazer vacilar 0 que para vocé parecem ser certezas, ¢ que, a meu ver, a cegam. ‘Vou deixar de lado o Peiqué e Cupido, de Zucchi. Co- ‘mo vocé pode imaginar, haveria muito a ser dito partic da Teitura dele que vocé propés no més passado. Talvez fique para uma prdxima ocasifo, Vou comentar apenas a sua fa |a sobre o Marte ¢ Venus surpreendidos por Vuleano, de Tintoretto. Virias vezes voo® acertou em chet e me fer ver © que eu nao tinha visto. Por exemplo, voc’ tem razio a0 dizer que Vuleano, debrugado sobre a cama e 0 corpo nu dle Venus, evoca um sitiro descobrindo uma ninfa, Eu ado. 0 essa ideia do desejo inopinado do marido diante do belo ‘corpo de sua esposa. Mas, como vocé veri, eu tiro disso conelusdes basta quando voe® diz que o erotismo desse corpo, oferecido ge. nerosamente ao olhar, incitaria as mulheces que vissem o ne diferentes das suas. Da mesma forma, ‘quacro a se identificar com a deusa do amor, sua coneluséo ‘comega hem. Mas quando, em seguida, sob o pretexto de ‘que somente Valeano seria digno, enquanto Vénus seria ig. nobil e Marte, ridiculo, voc® estima que essa incitagao & moral, que Tintoretto explora os poderes da imagem e as sedugdes de seu pincel para canalizar o desejo feminino {nto foram essas as suas palavras, mas & quase isso), eu jd no a sigo mais. Voeéafirma, por exemplo, que Venus ten 'a cobrira propria nudez surpreendida, Mas 0 que lhe per. mite dizer que, ao contririo, ela nio a revela para seduzit Vuleano? Por que nao haveria humor nesse quadro? Eu te uho a impressio de que vocé, habitualmente tio sorridente, hndo quis fazer historia da arte com alegria. Como se fosse * profissional nao rr, nem mesmo sortie Iss0 30 io. Contudo, voeé conhece bem o proverbio renas centista serio hudere— *brincat seriamente” —e seu apre- ‘0 pelo riso ¢ pelo paradoxo. Dir-se-ia que, para ser séia vovt deveria se levara sério, set seriosa, e nda seria, come vocés dizem em italiano, mostrar suas credenciais aos guar lies de cemitério, que se protegem na pretensa dignidade da disciplina, e que, em nome de um saber triste, querem Ie creat nen een ‘que a gente nunca ria diante da pintura. Vocé, Giulia, se. ‘eo wea, 35 138 em rosa? Tena dt Alena, Manian Dani ase en Bom, se voce ainda nto jogou fora esta carta, vou re comegar do zero. Fu coneordo, sim, que nesse quadro Tin. foretto tratou de maneira inesperada o tema batido de Mar fe © Venus surpreendidos por Vulcano. Geralmente, Marte « Vinus esto nus, deitados no leito do adultério, presos na rede que Vuleano, alertado por Apolo, fez cai sobre eles. Nao hii nada disso no quadro conservado em Munigue Venus esta nua, & claro, e estirada sobre a cama, Mas ela ‘std ali sozinha. Marte se refugiou debaixo da mesa, de ar maclura e capacete na eabega, enquanto Vuleano, com um joclho sobre a cama, ergue o tecido leve que dissimula 0 sexo de sua esposa. Ao lado, num bergo debaixo da janela, Cupido se entregou ao sono. Nunca tink 2 volta famos a ver esse tema tratado de tal maneira, De acordo com o que vocé diz, ao representé-lo de um modo Ho paradoxal, Tintorerto teria querido, por meio de um contraexemplo, exaltar os mérits da fidelidade conjugal Nio seria a primeira vez que explorariam o adultério de Venus para infundir medo nos recém-casados, eu teconhe ‘co. Para sustentar a sua tes, voe® invoca os numeros0s tex tos publicados em Veneza com a intengio de eondenar 9 adultério€ as imagens erdticas. Eu co atBnito. Nao é por ‘ve esses textos existem, nem mesmo porque teriam sido ppublicados a0 mesmo tempo que o quadto foi pintado, que les conteibuem nece ariamente para explicar esse quadro, Seria simples demais. Podem exist, nam mesmo momento © numa mesma sociedade, pontos de vista ou atitudes con tradit6rios. Voc sabe disso tio bem quanto eu, Para sis- fentar seu ponto de vista, vo? chegou até mesmo a suge- Fir que o quadro poderia fazer alusdo a um episdio da vi «la privada de Tintoretto e se destinar& sua jovem esposa, Ai voce foi decididamente longe demais, Para comecat, nds ignoramos tudo sobre esse suposto episddio e, seo quadro data aproximadamente de 1550 (&o que voc® mesina sue Jo indica esse € 0 ano em que Tintoretto se on yorque ele vai acabar, ox Neo a es anon depot, paseo com se Valet ane tum pret yr al um auoretatodsfarsad, aoa veda epresetante no quaro. Concord? "=" rpm pl sua mero spo oer Ent Maroc Vom serpent ea uma alegoria. Um pouco raso! Nem tud sendo assim, ot Nes aa eae sale patico, nio si Cnc, por exe va ridiculo, meio escon Voce observou bem que Marte esta ze a cabeya, Mas — pressou em ineutir a dimensio moral ness nt Soa yequnclo © que voce diz, a posigéo ridi- «io de vaudeville ccula de Marte rebaixaria o amante para melhor valorizar a dlignidade melancdlica do vetho marido insultado, Mas que dignidade melancéliea? Valcano esta tao ridiculo quanto! Othe! O que exatamente esse marido insultado esté fazen- «do? O que ele busca entre as pernas da esposa? Que pro- vas? Que rastros Marte poderia ter deixado la? Eu no vou insist. O gesto eo olhar dele me fazem antes pensar em luma travessura de Aretino do que em uma exortagie mo- ral. Alids, da maneira como Tintoretto © apresenta para nbs, esse pobre Valeano nao é somente coxo: de tanto ba ter em sua bigorna, ele deve ter ficado surdo como uma porta, A prova: ele nfo escuta nem mesmo o eachorro. E, hho entanto, o edo faz bastante barulhos ele late o maximo que pode para indicar onde esta Marte. Um verdadeiro la diradot: Mas Vulcano nao escuta nada! Adivinha por qué? Nilo € tanto por ser surdo, e sim porque ele esté pensando «em outra coisa. Nesse momento preciso (e Tintoretto fez de tudo para nos mostrar que representava um instante), Vul- «ano esqueceu o que tinha ido buscar Estédisteaido, O que ele v8 ale ntre as pernas de sua esposa, 0 torna cego (e sur dlo} a qualquer outra coisa. Ele $6 v8 isso, s6 pensa nisso, Nilo estou invensando nada, Basea olhar no grande espelho «que esti atras dele para ver 6 que vai acontecer no instante A propésito, algumas palavras a respeito desse espe- tho. Vacé nio assinalou que ele estava colocado de manci- ra bizarra, Fle ndo apenas oculta em paste a janela & nossa frente, como esti muito baixo, pratieamente na altura da ‘cama de Venus e, em todo caso, mais baixo do que o ber- so onde dorme Cupido. Na realidade, se vocé olhar bem, le nao esti preso na parede; deve estat colocado sobre um ‘mével, dissimulado de nossos olhos pela mesa debaixo da qual Marte se escondeu, Mas o que ele faz al? P que ele Pode servis, disposto assim tio baixo? Para refletir os fer hem ponivel Eu no dvi qu eo cae rado em Veneza no século XVI. de una ner tes de Venu? A dispostv fsseencont = sire pn oe dancin anda mae de una ee moraine, Ames ue nose rte verdad mest Jeu ep. Vos de qe pa etd Sea Ne cn seu ex bem cso espana: otamanho dee gue me incomo i grande), mas sobretudo o fato de: nee pos- trea muito grande, idea der mri de elo. Ea achava que © : 3 re opi apot de poser peat a Med ee ada que Eni amber ia mescudo ert. aig ao abordar esse quadro. Fa Cnn Np osnla so aowar se qua, F- Fr oncogene enesnado aie fang destino rand abe a sua superficie 0 aparecer 80 pees i ois, justamente, o que é que ve~ ‘mos no espetho-escudo de Tintoretto? Voce falow apena do rellexo (mal vsivel) de um segundo espetho, situado fo ado da cena: seria o espelho de Ve hus em sua toalete, colocado na era da cama e se refletin do no escudo de Marte. (Be jo comparti lado, diga-se de passagem: o espelho de uma se refltin- «do no escudo do outro e transformando-o em espelho de amor.) Weddigen também fala desse espelho fora de cam po, mas, jd que voce nao disse nada sobre o texto dele, cu deixo de lado a reconstrugio éptica que ele propde ¢ as, conclusdes a que chega. Elas si0 muito distantes das suas, ‘mas pouco importa. Para voce, esse espelho que nés nio vemos, esse espelho escondido, permitiia a Venus ver Val. ‘cano chegar por trés mesmo quando ela estivesse de costas, para a porta — e vocé opés brilhantemente esse espelho, instrumento de ludibrio, 20 outro, colocado contra a pare. dle, espelho revelador de verdade. Temos que admitiz. Mas de que verdade se trata? Vocé e Wedkigen falam largamente sobre o reflexo do espelho de Venus no escudo de Marte. Nao sou eu quem vai reeriminar esse interesse por um detalhe pouco visivel, mas voets nao dizem nada sobre aquilo que se mostra ma” nifestamente nesse mesmo escudo: Valeano de costas, de brugado sobre o corpo de Vénuis. No entanto, repare bem: € um reflexo singular, estranho, anormal. Pois, entre sua agio junto da Venus e seu reflexo no espelho, Vuleano mu dow de posisio, Othe! No primeizo plano, apenas o joetho diteito esta sobre a eamas a perna esquerda est esticada, uum f imagem do des ico rigida (normal, para tum coxo}, e seu pé esquer” dlo repousa sobre o chdo, razoavelmente distante da cama. No espelho, a0 contririo, omo mostrava muito bem 0 de talhe que voce projetou, Valeano parece ter também 0 joe- tho esquerdo (que virou 0 joetho direito no reflexo) apoia do na beira da cama, Eu no acho, mas nem de longe, que iba em, bastante em evidénci, 6 espelho nos mostra oven sone ita quasi age te ya cna ea sequénca€ i deimagina. idea Ihe owe dex jem tanto: se é do escudo-espelho de pase ab? Nem ns 6 Rare ve se rat, func Eanes sesapde gum eplherevelaor de verde, le indica vein tra da cena que ns vemos, a moralidade da fake, Rese mber de que verdade, de que morlade se ‘O que de fato acontece com Valeano? Ele veio para in cerromper ores no prncipado) de Venus e Mart fom ver de escutar 0 cachorro, ele vai buscar entre Porém, seu suposto inforttnio, 1s pernas de sua esposa a prova do seu sup nas, pelo que mostra o espelho, 0 que ele vé ali faz com {que se esquega de todo o resto, Ele € capturado pelo char: ame do sexo de sua esposa e se v8, fi vocé quem disse iss0, excitado como um sitiro deseobrindo uma ninfa. Por sua ver, Weddigen evoca, entre outros, Tarquinio se preparan: do para violar Lucrécia. Aparentemente, a aproximagio é paradoxal —afinal de contas, Vuleano e Venus sio casados, é ela a infiel. Mas, na verdade, isso é muito bem-visto, Pois o furor sexual no qual Vuleano se encontra capturado © bastante explicito no desenho preparatério conservado em Berlim: na auséncia de Marte, de Cupido e do eachor- ro, Venus parece querer fugir, enquanto Vuleano tem todo ‘© aspecto do violador passando a0 ato. No quadto, a con: textualizago dessa pose tipica faz com que ela perca sua violéncia explicit: Vulcano nada mais é (no primeieo plano} do que um velho ainda vigoroso (no espelho). Para mim, ‘esse descompasso (excepcional) entre a cena e seu reflexo é cessencial 3 ideia que Tintoretto fez de seu quadro, aquilo que se chamava sua invenzione: ele condensa 0 né cémico do quadro ea moralidade que se pode extrair da pequena comédia imaginada por Tintoretto a partir de Ovidio. Porque esse quadro € cOmico. Perdoe-me por insists, Giulia, mas € preciso, que a ideia néo Ihe ocorreu — Pouco importa se sou um tanto magante! Escondido debai xoda mesa, Marte € ridiculo como o amante dentro do ar- mario. Vuleano € cémico, se deixando enganar mais uma ve2, cego pela fenda de Venus. Cémico é também o cachor ro latindo com raiva, em vio. Mesmo 0 Cupido dormindo € cimico: esgotado por seus préprios esforgos, ele derroto si mesmo (niio é mais Ona vincit Amor, mas Amorem vincit Amor}.! O vaso de vidro apoiado no patapeito da Amar ence Amor (N. dT} "dbo pe 2 Keplerian et Satin Maer, Berm tales ‘Grin de Maria, saquela que mines conbecea homem Tiga"! Emer a constrgio perpectva podria mut tein desempeniae um papel imi atente: la deamatiza ean ao condurit o ohar na dtego da porta pela qal ; lance dees eum Ctcanoenrou, port nese mest thonineat suoalado pelo dedoindendoe de Mat, apn anata um fomo vselmenteapagado. © de Valeo? Ou Ode Venu Vea, depos de to esiado po un pedpei culpa vai ter que se eomera para eacender Lac 1, 34 (Neda) Finalmente, apenas Vénus nio é muito ebmica. Ela provavelmen io desconfortavel; sul. Mas, uma vez mais, £€0 contrario do que conta Ovidio, ela vai se safar com 0 menor dos esforgos —sendo ao menor dos pregos: quanto usta um programa com Venus? Que presente seu matido. satisfeito vai the dar? Em todo caso, no € dessa vez que Valeano vai flagr-lae fard todos os deusesrirem a sua eus- ‘a, Ocupado que estar, ele ndo vai ver nem escutar Marte sair na ponta dos pés com sua armadura, Ora, se essa fi- bula tem uma moral — licenciosa, sem diivida, e machista — € aqui que ela reside: as mulheres sio todas iguais, ra- rmeiras, sedutoras que enganam a nés, 0s homens, que ex: ploram nossa cegueira, que riem de nds e de nosso desejo, «que nos puxam pela orelha (pelo sexo, na realidade) e nos rebaixam & posigao ora de jovens lacaios obrigados ase es. cconderem debaixo da mesa, ora de comos contentes. Minkas conclusdes so, portanto, radicalmente opos: tas as suas. Vocé certamente ied me dizer que tudo isso é dlivertido, bonito, bem conduzido, mas que nao passa de uuma interpretagao subjetiva, que eu nao tenho texto para instfcar 0 que avento. Erro! Por sua causa, gracas a voce, Para poder Ihe escrever e para que vocé me levasse a sério, eu fui buscar 08 textos. Nao demorei muito para encontri os. O mérito no é meu, foi Beverly Louise Brown quem evovou, acerca desse quadro,} os maltiplos textos hostis a0 ‘casamento publicados naguela 6poca em Veneza, seguindo a tradigdo de Juvenal, Boccaccio ou Erasmo. Ela cita Anton Francesco Doni, Lodovico Doles, mas também as farsas, novelas e outras commedie erudite que nao falam de outra ela se exp. humithagio e ao rd 2 Revely Louse Brown, “Man's hot inion o Tore’ fated fable, em Rodolo Palcchin «Pats Ross (rg cop Trt nel ‘art cntonaridle mores, Pde, I Pais 196 da) 6 Daniel Aras coisa a no ser casais mal resolvid ‘nos ridiculos. O artigo ¢ impecivel e,francament texto que ela sugere me parece mais peri vincente do que as referencias que voc® invocou. Mas, no limite, pouco importa. O que eu acho mais significative & que nao precise’ de textos para ver 0 que se passe no qua- dro, Dsso, os meus alunos poderiam dar testemunho: hi muito tempo eu o comento dessa forma. Talvez esteja af 0 «ssencial daquilo que nos separa, Dirse-ia que voce parte dos textos, que voce precisa de textos para interpretar os {quadros, como se no confiasse nem no seu othar pa ‘nem nos quads para ihe mostrarem, por ‘que 0 pintor quis exprimir. ‘Outra coisa. Voe® quis, de qualquer jeito, encontrar um. tema matrimonial nesse quadro. Por que nio? Pin quadro contra 0 casamento ainda € trata do tema matri- rmoaial. Mas vost espera que um quadro “matrimomTat” cxalte o casamento. Isso nao passa de uma idea prontay onsequéncia nefasta da mania (de origem anglo-saxi, me parece) de ver todos 0s quadros de mulheres nuas como “quadros de casamento”, De inicio, essa hipotese nao era Talsa e trouxe bons resultados. Afnal de conta, na soe dade crstd do Renascimento € o casamento que legitima a sexcalidade. (Margarida de Navarra diz que ele €uma *fa- chada”.) Com a mitologia, & ele que autoriza o espetéculo da nur. (E mais.) Mas nio deveriamos simplificar. Em 150, a mulher naa é banal em pintura, Por isso mesmo € ‘que-a Igreja comeca a se preocupar. E depois, no caso des- se Marte e Venus surpreendidos por Vuleano, 0 que sabe- ros sobre a destinagio do quadro? Vocé mesma disse: ig nora-serudo sobre a sua origem ¢ as condigdes da enco- rmenda. Por razdesestilistcas, hoje ele € datado de aprox smadamente 1550, mas ainda nio se sabe para quem nem a pedido de quem ele foi pintado. Pela pose de Cupido, fa- zendo referéncia a um marmore de Michelangelo de posse dos Gonzaga de Mintua, supde-se as vezes que o quadro se destinava aos Gonzaga, Mas ele no faz parte da col Gonzaga vendida em 1623, portanto a hipétese permanece ‘muito frdgil. Na verdade, nada se sabe sobre o quadro an- tes de 1682, quando foi vendido na Inglaterra. Pior ainda, como ressaita Beverly Louise Brown, ele no deixow ne- ‘num rastro nas obras de artistas contemporaneos. Dito de ‘outra forma, ele sumix de circulagio assim que foi pintado. impressionante, de todo modo, em se tratando de um quadro de um mestre desse porte... Pensemos numa hip6- tese: se ele tivesse sido pintado para uma importante cor tesi de Veneza, a pedido de um de seus amantes — por que ‘go tum jovem Gonzaga? Quando eu lhe propus essa hips tese, voc’ nao «quis levé-la em consideragdo. Por qué? Assim ‘como eu, voce sabe que em Veneza algumas cortesis eram mulheres apreciadas, admiradas, respeitadas — menos pela Tereja, sem diivida, mas certamente por alguns eclesiésticos. Seré que devemos imaginar que elas viviam em quartos de tempregada, em s6rdidas casas de tolerncia? Que nao ha- via nenhum quadro nos cdmodos em que recebiam e, as ‘vezes, promoviam saldes? Eu penso na bela Tallia d°Ara- ‘gona e acho que o Marte e Vénus surpreendidos por Vul- cano de Tintoretto estaria no lugar certo em seu salio, quarto ou vestibulo, que cl teria satisfeito 0 “decoro”, co- mo se dizia, que todo mundo teria percebido, sem hesitar, ‘i se, voce no concorda com essa ida. Eu no tenho ‘nem texto nem documentos de arquivo para provar 0 que vento e, portanto, isso no € historicamente sério, Mas temo que essa seriedade historica se pareca mais e mais ‘com 0 “politicamente correto”, e penso que & necessario ‘combater esse pensamento dominante, pretensamente his: toriador, que gostaria de nos impedir de pensar e nos fazer 20 Dati Ana sereditar que nunea howve pintores “incorretos”, fo prin tipio da iconografia clissica que, caso contrario, se torna rin incompreensivel ¢ perderia suas certezas. Jean Wirth ex heveu cols lindas sobre isso no comego de seu Fagen ‘medieval Nio se se voct chegou até aqui. Espero que sim: eu 96 poderia mandar uma carta como essa para voee. Sei que Vocé adora questionar as ideias feitas — mesmo quando sio ns suas, Voce se lembra da nossa discussio sobre o Quarto ‘los esposos, de Mantegna? Naquela ocasiio nds também mos de acordo, Ese fosse o easamento 0 que 10S Con tanti abbracet vigorost Hospitalet, julho de 2000 “ean Wit, fou mle asin de sic) bar edn Mains Kick, 198%. (dT Frames del Con, Amma, 14707 Ser dei 19713 0 olhar do caracol J estou vendo tudo: de novo vocé vai dizer que eu exa~ ero, que me divrto mas acabo interpretando além da com: tn, Divertinme, nao pego nada mais do que isso; quanto inteepretar além da conta, é vocé quem exagera. E verdade, teu velo muitas coisas nesse caracol; mas, afinal de contas, seo pintor o pintou dessa maneira, € claro que foi para que thos 6 vissemos e nos perguntissemos o que ele esta fazen- Uloall. Vocé acha isso normal? No suntuoso palicio de Ma- ria; no momento (6, qudo sagrado!) da Anunciacdo, wm tenorme earacol avanga, com os olhos bem estenclidos, do {njo em diego & Virgem, e voce nao tem nada a dizer? E fem primeirissimo plano! Por pouco nfo vemos o caminho ‘que a baba traga attés dele! No pal fo de Maria, a Virgem imaculada, esse baboso gera uma Uesordem e, ainda por cima, ele € tudo, menos discreo. Longe de excondé-lo, o pintor 0 colocou sob 0s nostos io tao limpo e tio pu olhos, incontornével. Acabamos nao vendo nada além de: Te, nd pensando em nada além dele, a nio ser isto: 0 que tc faz ali? Endo venha me dizer que é uma fantasia do pin- tor. Sem diivida, € também um capriccio de Francesco de! ‘Coss e talver.fosse preciso um pintor de Ferrara para dar tesa forma paradoxal & afirmagao de sua singularidade. ‘Mas capriceio nao explica tudo, vocé sabe to bem quan- to ou, Se ese caracol fosse apenas uma fantasia do pinton 59 pntor ann Feancsc del Cont (1480-477), da Bol de © responsivel pela encomenda o teria recusado, apagado, coberto. Ora, ele ests ali, e bern ali, Deve haver entao wine boa razao que jusifique a presenga dele num lugac desses, ‘num momento desss. ‘Vocé tem uma solugio. Sempre a mesma: a iconogra- fia. Una ver mais, ela aplaca as suas inquietagdes e respon de todas as suas perguntas. Eu também lio texto do Jour nal of the Warburg and Courtauld Institutes, em que uma ‘specialista erudita oferece o texto e a imagem que “expli- ‘cam” 0 caracol de Cossa. E bem simples, Se aqueles bravos primitives acreditavam que o caracol era ferilizado pelo Oorvalho, ele facilmente se converceria em uma figura da Vir ‘sem, cuja semeadura divina era comparada, entre ouras coisas, a fertilizagdo da terra pela chuva: Rorate coe. “Destlai 6 céus, dessas altura.” A icondgrafa erudica vai ficando tio segura do seu argumento que apresenta a Prova daquilo que aventa: uma imagem, uma péssima gra- ‘Yara que, acima desse texto mariano, traz alguns caraccis regados por grossas gotas celestes, Para voce, © caso estd encecrado, fim de papo: 0 caracol é uma figura da Virgem ‘no momento da Anunciagio — e, de agora em diante, 0 Journal of the Warburg and Courtauld Institutes € a para tia disso, Opa! Adjudicado! Pode embalar, esta vendido! Alnda assim, eu titubeio. Tenho diividas, Se a figura fosse tio boa, tio “natural”, encontratiamos outeas, mais caracéis da Anunciasao, Ora, voeés, 0s icondgeatos, vocés conhecem outros? Em todo caso, que eu saiba, eles so hem raros. Vou thes contar tudo: eu vi outro deles uma tinica vez — e, mesmo assim, no é nem certeza. Numa Ann. jue o inset sugereenre © mundo do quadro 0 note Go ‘seessa permeabilidade pode existir, significa que no mundo de Sto Jerdnimo a presenga dogafanhotoé Wien rence Yel O caracol, a0 contro, ¢incompatel een calicg de Maria, impo como nove com ess lindo sol de comes de primavera. Ainvengio de Cossaé mais paradonal ne surpreendenie—ousemos a palara la €rtclecra ae fea. Ail af que a coisa pega, Voeéndo gota da won, Contudo, éprecisamente disso que se ate O caraol de Cosa, repito, ¢inissocivel da demons tragdo de perspectiva que Ihe serve de fundo. E gracas a es- se fundo, sobre ele e contra ele, gue 0 caracol se revela ex- tetior ao espago do quado, ote a nao ext ma eosien 0 anil Arse ‘nhando? Devo ter me expressaddtimal, pois nio ha neces le de teoria para constatar © que eu quero dizer. Basta da ver o quadto, Eu fui revéto justamente, em Dresden. 5 precauca, pois tive uma dupla surpresa. Para comegar, © quadro € menor do que eu imaginava que fosse. Eu 0 tinha cestudado muito através de reprodugdes, e mesmo que as «limensdes estejam indieadas (137 centimetros de altura por 113 de largura), no nos damos conta. A arquiteruea do palicio de Maria é tio imponente que eu acabei imaginan- «lo que era um formato enorme. Nao é 0 caso. Aliés, segun- dla surpresa, tal como est pintado ali, 6 caracol nao tem nada de enorme: & um belo espécime de caracol, nfo um petit gris, e sim um bom borgonhés, com cerca de vito cen- ‘metros de comprimento.* Vé e veja: quando estamos dian- te do quadro, o caracol tem um aspecto normal. A Virgem & que € pequena —e € aqui onde eu queria chegat. Na rea- lidade, por sua desproporcio, o catacol fustra,localmente, a profundidade ficicia da perspectiva erestaura a presenga material da superficie do painel, do suporte da representa- ‘io. Als, fazendo com um amigo arquiteto a planta baixa cdo paécio da Virgem, nés constatamos que ele era rigoro- samente inconstruivel. E na superficie, superficialmente, «que ele & impressionante. Suas majestosas paredes de pedra iio sio mais grossas que um tabique de madeira, a mesa ‘octagonal sobre a qual repousa o livro de Maria afunda no pilar adjacente a ela, a caixa que serve de base para o leto virginal tem uma profundidade desmedida ete. Em suma, Pr rsa aspersa, assim chamado por sua cor escura € Grav Ocal de Boer we detenide ‘al EMRE lp rp de lho oes oo pte ep a cco bron acs co meh oan) a epee Ht 20 indisereto que se permite fazer aquilo que nenhum es pectador do século XV nunca son tia revla que Francesco del Cossa no procurot constr una profundidade rigorosa. Ele no Piero della Frances a ele basta forjar essa profundidade,atris dos pevsonn, ‘ens. Ele constrdi um lugar cénico para representa (apre- seitar de novo, diferentemente, eansformar em cena) gen. ‘contro de Deus com sua criacua, ee Onde esté a teoria nsso tudo? Calma, vou chegar I Pousado sobre esse espago de representacio e designando. -2 como ta, 0 caracol nos mostra que ndo devemor nos deixar levar pela iusio daquilo que vemos, acreditar nea Eis onde reside o corasio do paradoxo eftwado por Coss & a0 cabo de uma fasanha de perspectiva que o pntor ar ‘uina sub-repticiamenteo prestigio da perspectiva. May vo. <& tem razio em insists no que é preciso ado acredtar © Por que um jogo semelhante? Estamos quase Li Francesco del Cossa no tinhalido Panofsky. Ele no sabia que a perspeciva ia se toma, como a defini retros. Pectivamenteo intelectual alemao, a “forma simbolica de tama visio do mundo que seria racionalizada por Descartes ¢ formalizada por Kant. Fle néo podia sabé-lo. Em contra. Partda, o que ele sabe em 1470 —e essa nuance histrica no deixara de the agradar — é que ela é uma questio de ‘medida, que é um instrument recente que permite cons. true fazer ver, etomando o termo de Piero della Fran. esca, a comensuragdo das coisas. Para Cosse, a perspec. fiva consti a imagem de um mundo mensueavel em si ‘mesmo ¢ em relagio aquele que olha para ele, em fangao de seu ponto de vista, Fesse mondo no init, Somers te Deus €infnito, O mundo de Cossa permanece into, fex shado, & medida do homem. (Em 1435, Alberti nao disse ‘utra coisa quando, logo antes de abrir a famonajancla — «endo dé para o mundo, mas para a composigio medida aria em fazer, a geome a Dani Aran dda obra —, ele evoeon Provigorase sua célebre formula “0 hhomem & a medida de todas as coisas”.) Disso, Francesco del Cossa provavelmente estava a par. (Alberti conhecia bem Ferrara.) Sendo assim, nbs podemos adivinhar a ideia que ele fa via, nesse contexto, da Anunciagao, Pois, nos anos 1430, 0 pregador mais eélebre da época, Bernardino de Siena (que conhecia suficientemente bem Ferrara para ce se recusado a ser bispo da cidade, 0 que foi considerado como wm stl de santidade), expressou minuciosamente cia com a aceitagio de Maria, a Anunciasio é o momento da Encarnagio — isto é entre outros e nas palavras do pre: szador, a vinda do incomensurivel & medida, do infigurivel ‘figura. Olhe o quadto de Cossa, Onde esté Deus Pai? On: deesté a pomba? F preciso procurs-los para encontré-los, Com essas comensuracies, a perspectiva reduziu Deus a uma figura distante no céu, bem acima de Gabriel, Quanto ‘pomba, ela esti bem ali, em pleno voo, nao longe do Ps mas voc? quase ndo a vé. Normal, mais parece um coct de mosca, A perspectiva tomou conta de tudo: como ela po dria dar a ver 0 que constitu o essencial do enconto finalidade e seu fim, o Criador surgindo na eriatsity 0 i visivel na visio? E-0 que o caracol nos pede, serio para ver ‘a0 menos para perceber. ‘Ali, mais uma ver, Cossa nio & 0 tnico a querer fa zer aflorar visualmente na imagem comensurada de um AnunciagZo a presenga invisivel do que escapa a toda me' ida. Fra Angelico, Piero e Filippino Lippi sio alguns dos ‘que nio se satifizeram com o diktar albertiano: “O pintor s6 se esforga por representar aquilo que se vé".Y Como set caracol, Francesco del Cossao faz “a moda de Pereara”, de bap ‘maneira tio precisa quanto sofisticada, Sobe a borda da ‘onstrugdo em perspectiva, sobre o seu umbral, a anom: ddo-caracol Ihe faz um sinal, o convoca para uma conversio do olhar e dé a entender 0 seguinte: nada se vé naquilo que se olha, Ou, melhor, naquilo que voce vé, vocé ndo ve o que voc’ esti olhando, 0 por que vocé esté olhando, espera do que vocé esté olhando: o invisivel surgindo na visi. Uma tleima pergunta: voc® sabia que os gastrépodes enxergam mal? Pior ainda, parece que eles ndo veem nada. Eles se orientam de outro jeito. Apesar dos dois olhos na ponta dos comos bem estendidos, eles no veem pratica- ‘mente nada; no maximo, distinguem a intensidade da luz € funcionam “pelo cheiro", Certamente, Cossa ignarava isso tanto quanto vocé. Mas ele ndo precisou disso para fazer de um caracol a figura de um olhar cego. Nao sei o que vo- é pensa a respeito, mas isso me deixa embasbacado, “ Daniel Arse

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