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‘Transmissao da Psicandlise diretor: Mareo Antonio Coutinho Jorge Jean Laplanche FREUD E A SEXUALIDADE O desvio biologizante Tradugao: Lucy MAGALHAES | Jorge Zahar Editor | Rio de Janeiro ‘Titulo original: Le fourvoiement biologisant dela sesuaité chez Freud ‘Tradugto autorizada da primeira edigio francesa, publieada em 1993 por Synthélabo, de Le Plesis-Robinson, ranga, na colesfo Les Empécheurs de Penser en Rond Copyright © 1993, Les Empécheurs de Penser en Rond Copyright © 1997 da edigdo para © Brasil: Jorge Zahar Editor Lida. rua México 31 sobreloia 0031-144 Rio de Janeiro. RJ tel: (O21) 240-0226 / fax: (O21) 262-5123 Todos os direitos reservados. A reprodusdo no-autoizada desta publicaglo, no todo cou em parte, constitu violagso de copyright (Let 5.988) CIP-Brasil, Catalogago-na-fomte Singieato Nacional dos Editores de Livros, Rb. TLaplanehe, Jean L317 "Freud © a sexualidade: 0 desvio biologizante /- Jean Laplanche: radugio, Lucy Magalies: visio ‘enice, Marco Antonio Coutinho Jorge. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Bd, 1997. Tradugio de: Le fourvoiement biologisant de la sexualité chez Freud ISBN 85-7110-409-3 1. Freud. Sigmund, 1856-1939. 2. Sexo (Psicolo- ia). 1. Thu, pp 150.1952 97.0795 DU 159,964.24 Sumario Preficio, 7 O “cripto-Freud”, 9 Pulsdo e instinto, 13 0 s6-depois do apoio, 27 Apoio e sexualidade infantil, 33 Auitoconservacio e sexualidade, 41 Apoio e narcisismo I, 52 Apoio ¢ narcisismo II, 65 Trés planos: Apego e autoconservagio, sexualidade, sexualidade narcisica, 79 Notas, 97 Prefacio Em 1970, Vida e morte na psicandlise desenvolvia a nogio de que a sexualidade se apoiava sobre as fungdes de autoconserva- do. J4 presente nessa época, a sedudo assumiria, na seqiéncia do meu pensamento, uma posigo cada vez mais central. Depois dos Novos fundamentos para a psicandlise (1987), tive que percorrer, com Freud, aqyilo que eu chamo de seu “desvio biologizante”. A partir do abandono, por Freud, da teoria da seduzao, 0 retorno a uma concep¢ao puramente endégena da sexualidade || era inevitavel; o instinto enraizado na filogénese, embora des-!! cartado inicialmente, ndo deixaria de obsedar 0 pensamento freudiano. at Considero trés momentos nesse desvio: a 1°) A teoria do apoio, que prope a idéia de uma emergéncia dew? da sexualidade a partir da autoconservac4o. Muito pouco ex- plicitada por Freud, essa teoria s6 pode sustentar-se, em nossa opinidio, em uma interpretagao puramente endégena. Suas con- ,%0'0 tradigdes internas, longamente analisadas neste texto, se abrem para o que Ihe falta: a clivagem de um plano propriamente. sexual no biol6gico infantil s6 pode conceber-se a partir da acdo do outro. 2°) Com a “Introdugao do narcisismo” (1915), abria-se a possibilidade de um remanejamento profundo, gracas nitida distingo de trés niveis: autoconservador, sexual-erotico, se- xual-narcfsico. A aco do outro adulto como ponto de partida da escolha do objeto sexual era até mesmo vislumbrada. Naeci Card <2 ey 5 Froude a sesualidade 3) Mas, rapidamente, anunciou-se a iiltima teoria das pulsGes, que aglutina essas distingdes indispensdveis. Sob a égide de Eros unificador, era afinal uma volta ao instinto, sob um disfarce itico, que se propunha. A “ pulsdo de morte” surgiu certamente 2 para manter esse conflito, mas era um conceito compésito, no qual Freud ¢ seus sucessores se recusavam a detectar a volta da sexualidade “demonfaca”. Uma vez bem compreendida a sua fungio histérica de uma compensagio no scio do desvio inicial, convinha ao pensamento psicanalitico livrar-se dela. Denunciar um desvio biologizante de Freud no é, de modo algum, denunciar a biologia no ser humano. E, pelo contrario, 5 O “cripto-Freud” (0 testituir-the um lugar positivo, e ndo mais mitolégico; 6 favo- Quero marcar este curso com o seguinte titulo: “Desvios do freu- "ys tecer pesquisas exatas sobre o modo pelo qual as fantasias dismo” , ou “Desvios do pensamento freudiano”. O que enten- We sexuais vém habitar, desviar ¢ retomar “ pela base” um funcio- do com isso & que nao sio apenas os freudianos que eu questio- no, mas 0 proprio Freud: desvios de Freud e na seqiiéncia de Freud Dois grupos muito heterogéneos, mas homogéneos nessa circunstincia, me chamaram de revisionista, Essa palavra, com Curso ministrado no quadro do Dea de Psicandlise seu velho cheiro de stalinismo, me faz. sorrir. Nao citarei as (Universidades de Paris vit, Paris x, Paris xii) pessoas. Nao assumo esse estigma, pois o que tento fazer diferente da revisiio. Faz-se a revisio de um livro, de um texto; nfo se trata de revisar Freud, Disseram que eu punha em perigo 0 equiltbrio do pensamento freudiano, 0 que logo questiona esse tipo de equilibrio; equi- Iibrio de um pensamento em geral, mas especialmente desse 90" pensamento, Seria ele um edificio, um belo edificio, do qual |" nfio se pode suprimir nenhuma ala, nenhuma parte? Deve-se i 4 * aceité-lo em bloco — para no ser herege — assim como se aceitou durante séculos o pensamento aristotélico, e como se faz, em certos meios, com os textos sagrados? E preciso ser talmu- dista? O pensamento freudiano é um belo edificio? Deve-se aceiti-lo em bloco on fazer escolhas? Evidentemente, nem um nem outro. Digo que é preciso conhecé-lo no seu conjunto, mas também € preciso ser capaz, justamente por conhecer esse conjunto, de detectar 0s falsos equilibrios, os equilibrios instaveis, as reto- madas, e tentar introduzir o estilete ou a faca nas falhas. 10 Freud ea seswalidade proprio Freud acusa os seus desviantes, Jung ou Adler — que so os seus dois grandes deménios, na verdade pouco dignos dessa honra ou dessa indignidade — de enfatizar este ‘ou aquele aspecto do seu pensamento, de modo unilateral. Em suma, € certo que escolher um lado de Freud em detrimento de outro, sem levar em conta 0 que ambos significam em um conjunto, € uma visio absolutamente insuficiente. © que significa pois “Interpretar Freud com Freud”, pata , fetomar o titulo de um dos meus artigos?! Certamente, nao é | (vtei prckifazer uma hermenéutica de Freud, isto é, transpor Freud para um outro sistema, que se consideraria melhor do que 0 seu. ‘Uma tentativa que foi a de Jung e de muitos outros; talvez mesmo, de certo modo, a de Lacan: isso seria esquecer a desconfianga de Freud em relago ao sistema, ou seja, qualquer sistema. Interpretar Freud com Freud também nao significa fazer uma psicandlise de Freud, no sentindo em que alguns se arriscam a isso com mais ou menos felicidade:? uma psicandlise de Freud nao parece conduzir para onde ew quero. Penso que existe um certo nivel de interpretagao que permite seguir a pista de alguma coisa em Freud que eu chamo, ha muito tempo, de exigéncia. A exigéncia é algo que é ditado pelo objeto: nem pelo homem Freud nem tampouco pela légica. De certo modo, como para 0 método psicanalitico, € 0 objeto “inconsciente” que orienta a prdpria evolugdo do pensamento. Interpretar Freud com Freud, no nivel da exigéncia, é decompor, adaptar mutatis mutandis as préprias regras da dissolugao de Freud, para ver eventualmente as coisas se recomporem de outra forma sob os nossos olhos, precisamente a partir da exigéncia do objeto. E desvelar, como em uma psicanilise, movimentos subterrineos que comandam os remanejamentos abertos; € detectar, em certos momentos, uma espécie de “crip- to-Freud”, encoberto pelo Frend oficial. Mencionei mais de uma vez como Freud, ao escrever a sua propria histéria, tratava de embaralhar ou de embelezar os seus tragos.> O que quer dizer “voltar as fontes”? Um “cripto-Freud” nfo € certamente um “proto-Freud” . Nao se trata, como se procurou 0 “ripto-Frend” 14 tum primeiro Marx ou um primeiro Hegel, de chegar até um primeiro Freud, que seria mais verdadeiro do que o segundo. Se talvez € verdade que esse primeiro Freud estd mais perto, em certos momentos, da “exigéncia”, por que o segundo niio se encontraria com ela em outros momentos? Nao é pois uma volta as fontes temporais. Hélderlin disse que é indo para a foz que o rio se aproxima da fonte; pensamento dialético, marcado por sua familiaridade com Hegel. Pois bem, é mais ou menos disso que se trata; no se trata de exumar as “fontes”, um “primeiro” ilusério, mas de reencontrar 0 que constitui a fonte e que € incessantemente encoberto, como uma fonte se perde bruscamen- te em meandros, ou em infiltragdes, para ressurgir mais lenge, depois de um trajeto subterrfineo, E disso que se trata: a fonte da inspiragao nao € sendo 0 objeto da busca. Introduzi a idéia de desvio, que supde que a procura daquele que se desvia & guiada por uma finalidade insistente. Aquele que quer atingir o cume do Everest e que se desvia, chegando repentinamente a um abismo, est evidentemente guiado pelo Everest, levado por essa idéia que ele tem do cume. Isso supde pois a exigéncia de chegar a algum lugar. Supde, muito con- cretamente, bifurcacées, possibilidades de escolha, em certos momentos um caminho terminando em impasse, que se apre- senta e que € percorrido. E, naturalmente, nfio basta fazer pensamento voltar atras, como se volta a encruzilhada para tomar a diego correta, 0 caminho principal. Pois quando se trata de um pensador como Freud, o impasse nunca é puro impasse, pois o pesquisador continua a ser guiado pelo seu objeto maior; isto é, para retomar a imagem do alpinista, a partir do local em que ele chega a um abismo intransponivel, vai encontrar outros caminhos, sem voltar necessariamente a0 ponto de bifurcagiio, sempre imantado pela exigéncia do cume. Além do mais, nio se trata de sugerir que nfo ha novidade no pensamento freudiano. Ha descobertas novas, na medida da progresséio da experiéncia e do método, e isso vem complicar ‘as coisas. A partir do momento em que um pensamento, con- tinuando a ser dirigido pela exigéncia do seu objeto-fonte, se empenha todavia em algo que se assemetha a um desvio maior 12 Freud ea sexualidade (talvez um desvio inicial — embora eu tenha as minhas reservas quanto a idéia de um “inicial” no tempo), essas retomadas, destinadas a integrar fatos novos, reencontrando ao mesmo tempo a diregao do cume, tomam muitas vezes a forma de hipéteses ad hoc, isto 6, inventadas para as necessidades do momento, para tentar fazer com que os fatos concordem com uma teoria que, forgosamente, no se inclina diante deles.* Certamente, demonstear um desvio € evidenciar © cro, 0 caminho errado, mas também é tentar mostrar as causas do desvio, e & af que as coisas se complicam. Nenhum desvio 6 inocente, nenhum é desprovido de causa; mas como orientar-se, quando 6, mais uma vez e de novo, o objeto que é a causa maior do desvio: no sé da exigéncia verdadeira, mas dos desvios e impasses no caminho do verdadeiro? Hé uma coincidéncia do inconsciente ¢ da sexualidade na prépria obra de Freud, que se modela sobre coincidéncia do inconsciente e da sexualidade no proprio ser humano. E algo que tentei expressar em uma f6rmula, parodiando a lei de Haeckel, ‘*a ontogénese reproduz a filogénese”, dizendo que a “teoreticogénese”, isto €, a propria evolugio da teoria com suas metamorfoses, tem tendéncia a reproduzir a ontogénese, isto €, o destino da sexualidade e do inconsciente no ser humano. Acesse percurso da obra freudiana, ¢ para complicar as coisas, sou forgado a acrescentar o meu prOprio percurso, que descrevo como uma espiral, indicando assim que volto sempre aos mes-- >) ‘mos pontos, mas segundo uma curva que tenta progredir tanto quanto possivel, sto é, ue tenta subir até a fonte do freudismo, destacando-me ao mesmo tempo das minhas formulagdes mais ——) antigas (penso principalmente em Vida e morte na psicandlise).— Poderfamos também imaginar que essas espirais, como as es- pirais genéticas, se enrolam umas nas outras, mas no entrarei em tais especulagdes. (Seguia-se, nesse curso de 1991-92, um desenvolvimento sobre o desvio ptolomaico do freudismo, que foi retomado no artigo “A revolugao copernicana inacabada”, como introdugao ao volume de mesmo titulo.)* 7 19 de novembro de 1991 Pulsdo e instinto ‘Aquilo que propus chamar de desvio (hé varios, maiores ou menores, articulados entre si) € originério do recuo, quase obri- galério, € que nao deve ser reprovado a Freud, diante das conseqiiéncias da prioridade do outro, na constituigao... de qué? do sujeito? do individuo? da pessoa? — por que nao, mas cada sum desses termos est muito marcado filosoficamente. Digamos: do ser humano sexual. Cada um dos desvios maiores pode ser definido com nitidez, por aquilo que decorre dele, por sua descendéncia pés-freudiana: primeiro desvio, que tentarei nomear mais precisamente, fe que tem a ver com um biologismo da sexualidade, encontra a sua descendéncia direta em Melanie Klein ¢ seus discipalos. © segundo desvio — de que j4 falei em parte, com a “revolugdo copernicana” — é a reconstrugo autocentrista ou ipsocentrista do ser humano, que invadiu toda uma psicologia mais ou menos baseada na psicandlise. Enfim, 6 terceiro desvio consiste em/situar 0 estrutural no coragao do inconsciente, descendéncia que s€ Teconecerd. no estruturalismo de Lacan. HA outros desvios mais ou menos subordinados aos prece- dentes, a filogénese, a nogao de isso primordial, mas toda es: divisio é bastante artificial, € antes uma maneira de expor as ‘Meu tema presente € pois que nao se pode chamar 0 biolo- gismo da pulsao sexual um desvio para o lado da biologia. Mas 6 uma formula perigosa e que deve ser precisada, pois nio se w M4 Freud ¢ a sexualidade trata de demunciar a biologia em nome da psicologia, ou mesmo do psfquico. Essa seria uma opedo temfvel, a alma contra o corpo ou a psicologia contra a biologia, 0 que nao é, absolu- tamente, a minha intengao. Seria uma opgao bastante arriscada, no momento em que uma ofensiva renovada, vinda das chamadas nenrociéncias ou da neurobiologia, toma como um.dos seus alvos majores, ainda e sempre, a psicandlise. A psicandlise, incessantemente intimada a explicar-se diante das ncurocién- cias: no posso entrar nesse debate de muitos aspectos; ja entrei nele algumas vezes e ainda voltarei a ele,' mas nfo aqui. Por que essa explicacao diante das neurociéncias deveria fazer-se especialmente com o interlocutor psicanalista, e no com qual- quer outra ciéncia humana, a estética, a historia, a I6gica, a politica etc.? De qualquer forma, meu propésito atual sé se inscreve muito indiretamente nesse debate com as neurociéncias, mesmo que este convide a prudéncia quanto aos termos a utilizar, “Biologismo da pulsdo sexual”. O que quer dizer isso? Que a sexualidade esté enxertada no biolégico, que a toda excitacio sexual corresponde um aspecto somitico ao mesmo tempo que fantasfstico? Nesse caso, evidentemente, nao haveria nenhum biologismo a denunciar. A sexualidade, mesmo sob as formas gue ela toma no ser humano, s6 pode situar-se no corpo. A teoria da seduedo, tal como se anunciava com Freud, certamente tornava o caminho dificil. Como conceber esse trago da per- versio do outro no corpo da crianga? Nao haveria o perigo de partir para um idealismo? A resposta fica por elaborar, na medida em que retomamos a teoria da sedugdo generalizada. Penso sobretudo nas pesquisas recentes de Jacques André sobre a génese da sexualidade feminina, pesquisas que ndo estabele- cem de modo algum o impasse sobre a sexualidade vaginal a partir da conjungao de uma sensibilidade ¢ de uma excitacdo que foi chamada “cloacal”, e por outro lado, fantasias adultas referentes & penetragio. De qualquer forma, devemos declarar firmemente: a sedugo nfo é uma teoria da encarnagdo do espirito no corpo. Por um lado, lié um organismo que € mon- tagem. biol6gica, mas também sentido (0 pequeno organismo Pulsdo e instito 18 infantil, voltado inicialmente para uma finalidade mais ou menos obscura de autoconservagao); por outro lado, do lado do adulto, © que se implanta sio mensagens antes de tudo sométicas, insepardveis dos significantes gestuais, mimicos ou sonoros, que as transportam. O problema ndo é pois arelaco alma-corpo, mas a articulayo de um funcionamento sexual e um funcionamento autoconser- vador, um € outro indissoluvelmente psiquico ¢ somético. O velho problema da alma e do corpo — j4 expressei essa idéia — est, de certa forma, ndo resolvido (quem desejaria resol- vé-lo?), mas deslocado, no freudismo, para uma nova linha: precisamente a linha de articulagao constituida pelo apoio ou pela sedugdo. Linha que nao é a do advir do psiquico no vital, mas a do advir do sexual biopsfquico no pequeno ser humano também biopsiquico. Falar de desvio a respeito da teoria da sexualidade obriga a precisar em que sentido essa teoria da sexualidade corria 0 risco de se perder. Cito aqui a carta do equinécio,? indicando dois caminhos que, uma vez. abandonada a hipétese da sedugio, se encontram reabertos, segundo Freud, © segundo nés, abertos ules para a errancia: “Parece novamente digno de discussio 0 fato j, yedup? de que sejam somente experiéncias vividas posteriormente que“ / déem a partida para fantasias que remontam a infancia, e com 9) isso 0 fator de uma disposicio hereditéria retoma um poder ~"" , que eu decidira recusar.” v Essas duas vias nas quais se pode doravante caminhar © | fouls perder-se, so, por um lado a retroagto, a fantasia retroativa, | \ por outro lado a hereditariedade. a in A primeira, a retroagao, isto 6, a sexualidade considerada] 5." como uma simples imaginagao do adulto retroprojetada sobre | a a infancia, Freud nunca a percorreré a fundo: sua afirmaydo da sexualidade infantil permanecerd inabalével. Em contrapartida, a via da hereditariedade ou da pré-forma- gio, que definirei mais precisamente, ficard sempre presente, lateralmente, sobretudo no que conceme as origens da sexua- lidade humana. Antes de chegar aos Trés ensaios sobre a teoria sexual, mencionarei que, em uma carta de 14 de novembro de 16 Freud ea sesualidade 1897, logo muito pouco tempo depois da carta do equinécio, Freud ja esboca uma transmissio hereditéria da sucessio dos estédios da sexualidade infantil (principalmente — e af esté sempre 0 paradigma freudiano — a passagem do anal para 0 genital), rrisco de desvio a partir do abandono da teoria da sedugdo se chama instinto. As duas etapas desse risco, podemos situé-las facilmente com as duas teorias das pulsdes: a primeira se estende apartirdos Trés ensaios sobre a teoria sexual até Pulsdes e destinos de pulsdes, logo de 1905 a 1915; a segunda etapa se inicia com a descoberta do narcisismo ¢ termina com a teoria do “grande” dualismo pulsional, pulsdes de vida — pulsdes de morte.? Voltemos a primeira etapa, que se estende entre 1905 e 1915, € concentremo-nos na nogao de instinto e no fato de que Freud logo decide falar de Trieb, enquanto o termo Instinkt também existe em alemao. Com Trieb, a énfase recai sobre o impulso quase cego, demonfaco, procurando mais a satisfago do que um fim preestabelecido. No conjunto da lingua alema, encon- tram-se esses pares de palavras, uma de origem latina, Instinkt vem de instinguere e outra, Trieb, de origem germénica; ambas tém pois, segundo a etimologia, sentidos muito pr6ximos, re- metendo & idéia de “incitar”, de “impulsionar”; mas nesses casos, cabe ao uso da lingua, € principalmente ao uso do autor, estabelecer ou ndo entre essas palavras uma diferenciacao.* No que se refere a Freud, duas interpretagdes devem ser afastadas. A de Lacan, que no seu radicalismo pré-pulsional que nio poderfamos reprovar-Ihe, mas também na sua ignorancia do conjunto do corpo freudiano, afirma simplesmente que Freud nunca fala de instinto.> Ora, o que € realmente interessante (& que ndo contradiz de modo algum o pensamento de Lacan), 6 ver, a0 contrério, como os dois termos, instinto .e pulsio, coexistem em Freud. Por outro lado, ha uma afirmagao muito mais grave do que a de Lacan (que afinal é simplemente um erro de informagio) —e A qual subjaz uma interpretago a0 mesmo tempo banali- zante ¢,biologizante: pretende-se que, quando Freud: fala de Trieb em alemio, ele quer dizer a mesma coisa que aquilo que Pulsdo e instino 7 se quer dizer em francés com a palavra instinct, e logo que a intervengao da palavra “pulsdo” & uma espécie de complicacio totalmente intitil, uma espécie de germanizagao do francés. Ora, a distingdo é efetivamente muito positiva e significativa em Freud, na medida em que Freud comecou muito cedo a falar de Trieb — primeiro muito raramente e depois, a partir dos Trés ensaios, de modo habitual — para designar o objeto espectfico da sua reflexio, isto é, antes de mda a sexnalidade, ‘mas também na medida em que continua a falar de Instinkt, a usar o adjetivo instinktuell (instintual ou instintivo) em um sentido muito diferente. Na linguagem usual, assim como nos inimeros textos em que esse termo ocorre naturalmente a Freud, “instintivamente” remete a uma reagZo quase automética, uma montagem que vem espontaneamente responder a uma situs¢o dada, na qual a palavra “pulsionalmente” seria completamente inadequada. “Instintivamente, respondi que...”, “por instinto, Lucky Luke sacou o revélver”; quem nao compreende a cife- renga com: “movido por uma pulsdo mortifera, 0 tresloucado brandia um revélver”? Cito, entre as dezenas de ocorréncias, a ligdo xxv das Conferéncias introdutorias sobre “A angistia”, na qual uma das idéias maiores € que a crianga, em situagdes, de perigo, ndo manifesta nenhuma angtistia ou medo “instin- tual”: “Em todas as situagSes que posteriormente podem tornar-se condigdes de fobias, nas alturas, em passagens estreitas sobre a Agua, em viagem de trem, de barco, a crianga nfo mostra nenhuma angiistia... Seria muito desejével que ela tivesse re- cebido como heranga mais instintos protetores da vida... f totalmente obra da educacao, se finalmente a angdstia surge nela, pois no se pode deixar que ela prépria tenha a experigncia do perigo, a experiéncia instrutiva.”® Esse texto € interessante pelo uso do termo Instinkt, que é definido como reagao finalizada e pré-formada, dada como “heranga”; também é interessante pela afirmago da auséncia quase total, no humano, dos instintos,” que Ihe permitem escapar automaticamente do perigo. Quanto & questo da angiistia, esta vai ressurgir com Inibigdo, sintoma e angdstia, quando ser& 18 Freud e @ sexualidade rediscutida a sua finalidade eventual, com, novamente, a utili- zagao da palavra Instinkr em certas circunstancias bem marcadas com palavras bem especificas para discutir uma eventual instintualidade da angtstia — Zweckméissigkeit (apropriagio para um fim; finalizagao), zweckméissig (finalizado), unzweck- méssig (nao-finalizado) — sendo esta a questdo: a angistia seria finalizada, logo de inicio, para permitir que o perigo fosse evitado, ou seria ela entio nm pnro transbordamento, nao- finalizado? Fecho esse paréntese importante sobre 0 uso constante, iso- lado conceitualmente, bem marcado, do termo Instinkt por Freud, em textos em que seria imposstvel compreender alguma coisa se o substitufssemos pelo seu suposto sin6nimo, Trieb, Devemos agora arriscar uma definig&o desse instinto. E um esquema de comportamento que se caracteriza por trés pontos Primeiramente, a sua finalidade vital, biolégica, a sua Zweck- massigkeit, por exemplo, evitar 0 perigo. Existem comporta- ‘mentos experimentalmente verificados: 0 filhote de péssaro que habita nos buracos das falésias se afasta instintualmente do abismo, Essa finalidade pode ser ainda, por exemplo, a procura . de um certo habitat, ou a de um certo local de fecundacao ou de nidificagao (as grandes migragdes sazonais...) Segundo, cardter: a invariéncia, em um mesmo individuo e ‘nos individuos da mesma espécie, de um certo esquema rela- tivamente fixado (ainda que os etologistas tenham mostrado que esses esquemas instintuais sao suscetiveis de certas varia- es). Enfim, a idéia de um cardter (digamos simplemente) inato — nao adquirido pelo individuo — isso sem nenhum preambulo sobre a idéia que se pode ter do modo de aquisi¢ao na espé- cie; sobre 0 qual os debates estdo longe de se encerrarem, como sabemos. De qualquer forma, quer se seja neodarwiniano ou outra coisa, o modo de aquisicao é uma hipétese ainda submetida a discussio e verificagio, enquanto o carter hereditario ¢ nfio individualmente adquirido € de constatagao mais fécil Esses trés elementos (que podem ser encontrados nos prin- cipais textos freudianos que tratam do instinto), adaptagio, Pulsdo e instino 19 ‘esquema fixo e hereditariedade, concordam perfeitamente com aS descricées modernas, mesmo se nestas se mencionam nu- merosos matizes, excegdes e desvios . Cito, por exemplo, um pequeno livro de Viaud sobre Os instintos,® que expée notada- mente o estado dos trabalhos dos etologistas e comeca, sem hesitar, sem propor verdadeiramente nenhuma questo (porque afinal talvez néo haja questio a propor), por uma grande classificagao, ela propria tinalizada: instintos ligados A conser- vagio do individuo, instintos ligados & conservagio da espécie ¢ instintos ligados & conservaciio do grupo social. Um quadro que se encontra em Freud, de certa maneira, ainda que se deva discuti-lo ¢ questiond-lo: a autoconservagdo (e logo a conser- vagdo do individuo), a sexualidade (cujo problema maior é que ndo se trata da conservacao da espécie), ¢ enfim a manutengio do grupo social, com a discussio, em Psicologia das massas ¢ andlise do eu, da existéncia ou nao de uma pulsio gregiria, de um Herdentrieb. Se acabo de situar o termo instinto, é também para apresen- {é-lo como aquilo que pode ser uma espécie de tentagao, ou de limite, de desvio ou de extravio. Um desvio instintual da teoria da sexualidade sempre € possfvel. Seria pois mais exato falar de uma instintualizago do sexual do que de uma biologizagio do sexual. Pode-se dizer que Freud esti constantemente contra essa possibilidade; para ele, a volta do instinto para a sexuali- dade s6 se faz por caminhos desviantes, mesmo no pior mo- mento. Esse “pior momento”, 0 das supostas pulsées de vida ¢ pulses de morte, seré abordado no fim do meu percurso. Mas, para dar desde agora uma espécie de prefiguracao deste, a titulo de epigrafe, menciono aqui uma reflexdo sobre a utilizagdo feita por Freud do famoso “mito de Arist6fanes”, tal como foi narrado no Banguete de Platao. Cito o proprio Freud, retradu- zindo a sua traducdo alema do grego antigo. “De fato, no tempo de outrora, nossa natureza no era em nada idéntica ao que ela & agora, mas diferente. Inicialmente, a humanidade compreendia trés sexos e no dois, macko e fmea, como agora. Nao; existia além disso um terceiro, que aaaieae 2 Freud ea semalidade reunia os dois, o andrégino. Nesses seres humanos, tudo era duplo; tinham pois quatro mios e quatro pés, dois rostos, partes pudendas duplas etc. Zeus decidiu-se entio a dividir cada um desses seres humanos em dois, como se cortam as frutas para fazer conserva. Sendo o corpo cortado em dois, a saudade (Sehnsucht) levava as duas metades a se reunirem. Abragando-se estreitamente, elas se enlagavam uma a outra, na paixdo de serem apenas um.”? Esse mito é extremamente claro, na sua vontade de explicar © desejo sexual: este provém de umalunidade original perdid: que deve ser reconstitufda, encontrando-se, como se diz com muita propriedade, a sua “metade” (homem + homem ou mulher + mulher, no amor homossexual; homem + mulher na heteros- sexualidade). Ora, esse mito aparece na obra de Freud em duas ocorréncias, com duas avaliagdes diametralmente opostas. Eis primeiramente o inicio dos Tras ensaios sobre a teoria sexual (1905):"° “A opinidio popular faz representagdes inteiramente categ6- ricas sobre a natureza e as propriedades dessa pulsao sexual. Esta estaria ausente na infancia, se instalaria na época da puberdade, em ligagio com o proceso de maturagdo e se manifestaria nos fendmenos de atracao irresistivel exercidos por um sexo sobre o outro, e sua finalidade seria a unido sexual, ‘ou pelo menos priticas que estariam no caminho que leva a esta. Entretanto, temos todas as razdes de ver nessas afirmages uma imagem muito infiel da realidade (...]. A melhor ilustragio da teoria popular da pulso sexual é a fabula postica da separagdo do ser humano em duas metades — homem e mulher — que aspiravam a unir-se de novo no amor.” ‘Aqui, 0 mito de Arist6fanes é usado para apoiar a opinitio popular, que afirma que a séxualidade é predeterminada, que cada um encontra a sua “metade”, segundo uma harmonia original que deve ser restabelecida. Ora, logo de safda, Freud, por assim dizer, se declara (“temos todas as razes de ver nessas afirmagdes uma imagem muito infiel da realidade”), todos os Trés ensaios sobre a teoria sexual tentario demolit Pulsdo.einstino 21 essa concepedo dita popular, adaptadora e harmoniosa da se- xualidade. Ora, a 14 anos de distancia, em “Além do principio de prazer” (1919), depois de desenvolver longamente a sua teoria das pulsdes de vida e das pulses de morte, Freud propde 0 seguinte raciocinio: toda pulsio é habitada pela “ obrigagao de repetig&o”, e tende a restabelecer um estado anterior; no que se refere & pulsdo de morte, sabemos qual é esse estado anterior: trata-se da volta 4 matéria inanimada, pondo fim a0 desequilfbrio energético criado pelo aparecimento da vida. Mas o que ocorre com a pulsio de vida? “Assim, se néio quisermos renunciar & hipétese das pulsdes de morte, devemos associar-Ihes, logo imediatamente, pulsdes de vida. Mas devemos admitir que trabalhamos com uma equaco com duas incégnitas. Aliés, a ciéncia nos diz tfo pouco sobre © aparecimento da sexualidade que podemos comparar esse problema com uma noite escura, na qual nem mesmo o raio de Tuz de uma hipétese penetra. Em uma 4rea completamente diferente, talvez encontremos essa hipétese, mas ela é de um género to fantastico — certamente mais préximo do mito do que da explicagao cientifica — que no ousaria expd-la aqui, se ela ndo satisfizesse precisamente a propria condicao que procuramos satisfazer: ela afirma que uma pulsdo provém da necessidade de restabelecer um estado anterior. Trata-se, evi- dentemente, da teoria que Plato, no Banguete, desenvolve através de Arist6fanes.’ Essas so pois as duas ocorréncias maiores em que Freud inyoca 0 mito de Aristéfanes; em 1905, para estigmatizé-lo como sendo ligado a uma opinido que ele quer destruir, a idéia de uma sexualidade pré-formada; em 1919, ao contrério, é para encontrar justamente a origem do Eros ou das pulsdes de vida — voltarei a esses termos — em uma unidade originéria que se pode qualificar de narcisica. Estamos pois, de modo exemplar, diante do problema de “interpretar Freud com Freud”. Podemos dizer: Freud esti em contradigio consigo mesmo. Isso ndo nos leva a grande coisa, senao a dizer que ele nao sabe muito bem 0 que diz, ou que naan we 122 Freud e a sexualidade ahi ele esqueceu o que disse nos Trés ensaios (o que alids é possivel). Outro ponto de vista: ele mudou de opiniao sobre a sexualidade. Mas seria realmente uma virada de 180 graus! Depois de dizer | Que a sexualidade nao era pré-formada, ele volta, em “Além | do principio de prazer”, 2 idéia de que mdo isso j4 estava | previamente dado e que apenas se procura regressar a0 que jd estava ali desde 0 inicio." Segundo essa interpretacao ainda (bem superficial, Freud mudou totalmente a sua concepeao da sexualidade e todo o seu trabalho, que era dissociar a pulsao do instinto, cai por terra. De certo modo, essa interpretagdo é a opiniao comum, mesmo que se tente fazer uma espécie de sintese bastarda entre as duas. Mas qual serd aquele, entre os freudianos, que ndo se escandalizaré se Ihe fizerem esta pergunta elementar: “O Eros nao é a sexualidade?”. Evidentemente, 0 oi Eros € uma parte da sexualidade. Mas se Freud se pée a afirmar a 7 ro 7 esse Eros narcisico que tende a restabelecer uma unidade, é preciso que a sexualidade erética — que, ela prépria, visava gp Mualquer coisa exceto a unidade, e ndo estava ligada por nenhum plano preestabelecido — ou estivesse completamente suprimida, jd que Freud renegou completamente tudo o que dissera sobre Licifer amor, a libido devastadora, ou entdo... que estivesse em outro lugar, talvez sob uma méscara deformada, a ser decifrada, Quando se 1@ um texto tio violento quanto os Trés ensaios sobre a teoria sexual, 0 futuro desvio instintual é muito dificil de prever. O excelente preficio de Michel Gribinski a edigao Gallimard (que se refere também a Vida e morte na psicandlise) marca bem o caréter polémico ¢ forte desse livro. Mesmo que, como ele também lembra, muitas coisas que se encontram nessa obra jé fossem “velhas” (como se diz) — e nao se deixou de dizer que Freud apenas reuniu elementos que estavam esparsos por toda a parte — essa reunidio nfo deixa de ser explosiva. A partir da introdugao, j& citada a propésito de Arist6fanes, comega um desenvolvimento em trés capitulos, cuja seqiiéncia poderia ser considerada como uma odisséia do instinto: o instinto perdido, no primeiro capitulo sobre as aberragGes sexuais, depois no segundo sobre a sexualidade infantil, e enfim, no éltimo Pulséo e instino 23 ‘capitulo, o instinto reencontrado, ou talvez, com a palavra que propus, o instinto mimetizado, pois o que se reencontra, afinal, nao € exatamente instinto, é algo que, tanto quanto possivel no’ ¢*™ ser humano, reconstr6i um comportamento que pode asseme-| Ihar-se ao instinto, sem o ser. Quanto a esse primeiro capitulo sobre “as aberragdes se- xuais”, insistiu-se no fato de que se tratava de uma compilayao; © que o proprio Freud confirma desde o inicio: “Os dados contidos no primeiro ensaio so tirados das publicagdes bem conhecidas de Krafft-Ebing, Moll, Moebius, Havelock Ellis...”"? Nao ha pois nenhuma vontade de originalidade quanto ao contetido dessas aberragSes sexuais, mas uma acumulagao de argumentos quanto aos desvios em relaco ao objetivo (isto 6, © processo que obtém o prazer), em relacio ao objeto, e enfim também em relagio fonte, isto é, pelo uso sexual de zonas corporais que nao so as zonas necessérias ao coito. Todos esses desvios destroem no adulto a idéia de uma pré-formazio, de uma finalidade, pois o tinico objetivo atribufvel a todos esses atos ditos sexuais (e com razao) nao pode ser um fim biolégico, s6 pode ser pura e simplesmente o prazer. O segundo capitulo, sobre a sexualidade infantil, afirma por sua vez a mesma coisa a respeito da atividade na crianga, isto 6, aexisténcia de uma sexualidade na crianga, ¢ por outro lado, que se trata de uma sexualidade basicamente perversa, talvez ainda mais perversa — ou pelo menos, menos regulada, menos unificada — do que no adulto: 0 que Freud chama uma “per- versidade polimorfa”. Também aqui, € initil dizer que tudo isso j era conhecido h4 muito tempo, mas isso nao significa que era admitido, assim como a obra de Freud ¢ a dos psica- nalistas provavelmente nao revolucionaram o pensamento “ po- pular” sobre esse ponto, A sexnalidade infantil tem uma de ‘suas provas maiores no préprio fato de que é condenada, recalcada, constantemente negada, pelo adulto. Esse & um fato que se observa habitualmente, mesmo em 1992, apesar de tudo ‘© que aconteceu em matéria de liberaco sexual.'* Se h4 uma sexualidade que continua a ser condenada, apesar do pretenso liberalismo moderno, é realmente a sexualidade infantil. Ou sey stolendo eabe 2A Freud e a sewalidade entio, quando admitida — pelo menos teoricamente — & notavel que ela se encontre mais ou menos sitnada no capftulo da genitalidade, isto é, de uma ativagio precoce dos drgios genitais. E sempre se alega, como prova dessa espontaneidade, a existncia de eregdes no menino, por exemplo, como se isso fosse 0 essencial do que Freud descreve. Ora, o que Freud chama de sexualidade infantil € apenas muito acessoriamente uma atividade genital; se ela & dita “polimorfa", € nao sé quanto ao tipo de atividade, mas também quanto &s zonas que se encontram excitadas na crianga, e que Freud pensa serem muiltiplas, e podem ser até 0 conjunto do corpo. Quanto ao terceiro capitulo, intitulado “As reconfiguragées da puberdade”, pode-se dizer que € uma volta ao instinto, ou a alguma coisa semelhante: uma volta, por um lado, & genita- lidade, e por’ outro a um objeto sexual, “a pessoa do sexo oposto”, como diz.a cangZo, logo uma volta aparente aos trilhos do instinto. Ainda que Freud diga pouca coisa sobre a sua finalidade “biolégica” suposta, isto 6, de um reencontro da | perceber, lendo-a sem precaugées, a impressio de subversio dessa obra, seu cardter profundamente “perverso”, enfatizando principalmente a aus@ncia de normas na sexualidade 5, humana. Por qué? Esse livro foi muitas Vezes reformulado por it Freud. Data de 1905, mas Freud fez acréscimos considerdveis gem 1910, 1915, 1920 & 1924. Ora, esses acréscimos vdo todos i, hnamesma diregdo, que é justamente diminuir o aspecto aberrante a ait faa sexualidade. Ha 30 ou 40 anos, as edicdes nem mesmo ‘wmencionavam a existéncia desses acréscimos sucessivos, de modo que os melhores autores pensavam como se, por exemplo, Freud afirmasse desde 1905 a existéncia do estédio anal ou do narcisismo (mesmo a edi¢fo alema das Gesammelte Werke da sem comentarios 0 texto de 1924); agora temos edicdes mais criticas que indicam os acréscimos por pequenas notas. Mas, apesar disso, terfamos talvez interesse em poder ler seguida- mente os Trés ensaios de 1905, para perceber verdadeiramente © impacto dessa obra, e também o percurso freudiano posterior; enquanto Freud, em uma espécie de sincretismo, na realidade Pulsdo e instinto 25 modifica profundamente o seu pensamento ao reescrevé-la. Se léssemos esse texto tal como ele existia na origem, omitindo todos os trechos posteriores, perceberfamos o fato de que existe um hiato consideravel, um gap, entre a segunda e a terceira partes, entre a sexualidade infantil polimorfa e as reformulacdes da puberdade... enquanto a edigdo definitiva, se introduz. todas as invengdes sucessivas de Freud, as intercala sem colocé-las em perspectiva. A edigoes introduzem, notadamente no segundo capitulo, 0 que se chamam as “organizagdes sexuais”, ou os “estddios sexuais infantis”, que estdo totalmente ausentes da edigdo de 1905. A idéia de uma sexualidade infantil j4 “orga“ nizada” s6 veio posteriormente, e depois de artigos sucessivos de Freud, correspondendo a investigagdes clinicas. Séo intro- duzidas sucessivamente a organizagao anal, que é a primeira grande organizagao ndo-genital detectada por Freud, a organi- zacao oral, que nunca é verdadeiramente objeto de uma desco- berta & parte, mas que se integra no circuito depois da organi- zagio anal, e enfim, ponto maior, 0 que Freud chama de organizagao genital infantil, com a oposicAo félico-castrado.* ‘Apenas por essa interpolagdo das organizagdes sexuais in- fantis, vemos que primeiramente é introduzida, somente por esse termo “organizacio” , a idéia de uma espécie de finalizagio; e, mais ainda, quando a série se torna completa, que tentacdo de ver nessa seqiiéncia de estédios hierarquizados em uma ordem temporal — oral, anal, genital — alguma coisa que se assemetha a uma evolugo ao mesmo tempo pré-formada e integradora! E exatamente © que vai ocorrer com um dos discipulos maiores de Freud, Karl Abraham, que levaré a0 maximo 0 que se chamou de “estagismo”. A partir do momento em que essa prdpria seqtiéncia se apresenta como ordenada, progredindo para uma etapa final dita de objetalidade e de genitalidade; a partir do momento em que essa seqiiéncia ontogenética supostamente reproduz uma sucesso filogenética — entio o que eu chamava de instinto perdido do primeiro capitulo estard apenas aparentemente per- dido. A. sexualidade infantil esta envolta em brumas, mas na realidade a estrada a leva infalivelmente para a sexualidade 26 Freud e a sesualidade adulta, esta de acordo com a “opiniao popular” . Esse finalismo, todas as tentativas de psicologia genética de inspiragao psica- nalitica o praticam, e notadamente Abraham é o seu pai. ‘Uma indicagao essencial: essa finalizagao domina, na mesma medida em que a teoria do desenvolvimento sexual se da para 0 todo do desenvolvimento humano; é na medida em que reina na teoria um pansexualismo que vai reinar, por isso mesmo, a necessidade de descrever uma génese do acesso ao objeto (simultaneamente perceptivo ¢ sexual), Mas, por outro lado, € por uma volta completamente legitima, esse pansexualismo que quer ser tudo, que quer ignorar ¢ desprezar todo desenvolvi- mento autoconservador, se dilui em uma teoria da pura e simples relagdo. Terminarei com esta afirmacio: a especificidade do sexual s6 se afirma quando é reafirmada, de certa maneira, pelo ‘menos potencialmente, a existéncia de um dominio do nio-se- xual. E desse dualismo, do autoconservador ¢ do sexual, que partirei na préxima vez. 14 de janeiro de 1992 O sé-depois do apoio Falarei pois do apoio, do desvio que essa noco pode favorecer, e da sua indispensdvel corregao. Situo um certo miimero de textos cujos detalhes nao discutirei: os Trés ensaios sobre a teoria sexual, na edigio de 1905, completados (¢ de certo modo renegados), jé. em 1905, por um artigo mais curto, intitulado “Meus pontos de vista sobre 0 papel da sexualidade na etiologia das neuroses”.’ Segunda etapa, 0 aparecimento das pulsdes de autoconservagao nos anos 1910-12, com © dualismo formulado como tal: pulsdes de autoconservacao (Selbsterhaltungstriebe) e pulses sexuais (Se- xualtriebe). Sobre esse ponto, existem alguns textos, entre os quais Um distirbio psicogénico da visdo e, a0 mesmo tempo ‘uma formulaco do apoio que retornaré nas edig6es posteriores dos Trés ensaios. Terceira parte, muito importante, a discusso sobre 0 onanismo. Ela compreende, por um lado, dois textos bastante curtos de Freud, publicados em Résultats, idées, pro~ blames 1, a introdugio e a conclusio sobre a discussio do onanismo, e por outro lado, oito sessdes da Sociedade Psica- nalitica de Viena, cada uma delas introduzida por uma exposi¢ao de um dos seus membros, estendendo-se do dia 22 de novembro de 1911 ao dia 24 de abril de 1912; e mais a sesso de conclusio por Freud. Essas discussbes se encontram nas Minutas da Sociedade de Viena. Aconselho expressamente que sejam lidas em alemao, pois a tradugdo francesa é um desastre. Em quarto lugar, em 1914, “Para introduzir o narcisismo”;e enfim, em 1915, *Pulsdes ¢ destinos de pulsdes” n 28 Freud ea sesualidade O gue é pois o apoio? Foi assim que Pontalis ¢ eu traduzimos a palavra Anlehnung, hé muito tempo, por sugestéo de uma tradutora atualmente esquecida, mas que encontrara essa pala- vra, que permitiu tirar a nogao do esquecimento; alids, mais do que um esquecimento, pois trata-se, por assim dizer, de um esquecimento “origindrio”, j4 que essa nogo munca fora “mos- trada”, nem mesmo por Freud,? © Anlehnung 6 pois uma tentativa para caunciar uma certa articulagdo fundamental entre dois tipos de funcionamento & dois modos de satisfagio. Entre um funcionamento sexual — que justamente na crianga néo € uma funedo sexual, mas an- tecipa a funco biolégica da sexualidade — e, por outro lado, um funcionamento autoconservador, este muito mais funcional, embora seja parcialmente deficiente no pequeno ser humano. Para a definigio bésica do apoio, tomo a liberdade de remeter aos diferentes artigos do Vocabuldrio da psicandlise, que ver: dadeiramente considera todos os aspectos da questiio. Lembrarei apenas uma citagdo particularmente explicita de Freud:’ “As pulses sexuais encontram seus primeiros objetos apoiados em valores reconhecidos pelas pulsdes do eu, assim como as pri- meiras satisfagdes sexuais so experimentadas apoiadas nas fungdes corporais necessérias & conservago da vida.” Pode- riamos sublinhar dois termos nesse texto: o de “valor”, que serdi encontrado em outros pensadores, nos etologistas, e depois em Lagache, que insistiu muito na idéia de que o objeto de autoconservagio € detectado no ambiente, como um “valor alimento”, ¢ por outro lado, a nogio de fungao corporal, lar- gamente concorrente com ade “pulsio”, e talvez mais adequada do que esta, quando se trata da autoconservacao. O apoio é um “conceito freudiano” ? Discutimos esse ponto com Frangois Robert, que dividiu comigo a responsabilidade pela terminologia na tradugdo das Obras completas de Freud. implica que se distinga, no pensamento freudiano, dife- rentes niveis de tematizagdo: conceitos, quase-conceitos, para- conceitos etc. Digamos que temos aqui um conceito que nunca & tematizado como tal por um autor: Freud nunca escreveu e 0 sé-depois do apoio 29 munca teria pensado em escrever um artigo sobre o apoio. E por outro lado, € um conceito que durante muito tempo no teve “entrada” especifica nos Indices, mesmo nas edicdes alemas, e que foi essencialmente detectado pelos tradutores, alertados pela recorréncia de um mesmo termo e de uma mesma idéia. Foi isso que chamei, com Antoine Berman, “a prova do estrangeiro”: quando um pensamento passa pela prova da ira- ducdo, revelam-se constantes gravitagdes, que ndo so explicitas para o autor nem para o leitor de Iingua alema. Em mais de ‘um ponto, o termo de Anlehnung é semelhante ao de Nachtrig- lichkeit, que também tem esse estatuto de “‘conceito implicito”, ou de “paraconceito”. A Nachtrdiglichkeit, 0 s6-depois, foi essencialmente evidenciado por Lacan; o outro, a Anlehnung, por Laplanche e Pontalis.* Esses conceitos tém uma situaco estranha: oferecem possi- bilidades de grande riqueza aos desenvolvimentos pés-freudia- nos, mas essa riqueza Ihes 6 em grande parte atribuida por nés, justamente porque 0 autor nio os desenvolveu e porque eles ‘conserva um estatuto pivé, porém mal definido, nao dogma- tizado, um estatuto central mas implicito. B pois uma riqueza que nés, p6s-freudianos, somos levados a Ihes conferir. Hi dois anos, dei um curso sobre “o s6-depois no s6-depois”, e do mesmo modo o que desenvolvo aqui é um “s6-depois do apoio”. Além disso, esses dois conceitos t¢m em comum uma evolucao curiosa: no momento em que estdo a ponto de tematizar-se, quando Freud toma conscincia da sua utilizago combinada desses dois termos, € nesse mesmo momento que eles correm © risco de se empobrecerem. Tematizam-se no momento em que esto em declinio. B 0 caso da Nachtréiglichkeit. O adjetivo nachtrdglich aparece em Freud durante todo o perfodo de grande inovagdo na correspondéncia com Fliess, sobre a teoria da sedugo, e depois vem o termo de Nachtréglichkeit, que sela a transformagio do adjetivo em substantivo, e logo em conceito, Ora, essa dignidade conceitual aparece precisamente’ algumas semanas depois que Freud abandona a teoria da sedugdo, e com ela a riqueza potencial do conceito, pois doravante ele vai lhe 30 Froude a sexuatidade dar um sentido mecanicista, no invertendo em nada a flecha do tempo. O s6-depois, nessa carta, ndo passa de uma bomba de efeito retardado depositada no sujeito ¢ que, depois de certo tempo, explode, Nao hé mais assim a sugestao de uma retroagio possivel, ou de um movimento antero-posterior, que faz a tiqueza do conceito: € no préprio momento em que a Nacktréig- lichkeit perde 0 seu fundamento na sedugio que subitamente 0 terme é substantivado.* Com 0 Anlehnung, & mais ou menos a mesma coisa. O que ccorre em 1905? Hé uma nebulosa sobre a questiio das origens da sexualidade. A idéia de “pulso de autoconservagaio" nao esta presente em lugar algum; a autoconservagdo € posta ge- ralmente sob a rubrica da fungo ou da necessidade, nao sob ada pulsio. A relagdo entre a pulsio sexual e a autoconservacdo deve ser procurada, também ela, ¢ isso no texto de 1905, através de palavras diferentes, notadamente a palavra Vergesellschaft- ung, uma “associagao” . Encontra-se a palavra Anlehnung ape- nas uma vez na nossa primeira ediglo dos Trés ensaios, a respeito do apoio da sexualidade anal sobre a fungao de excre- gio. Um dos aspectos da minha tese é que é no momento em que © apoio vai comegar a tematizar-se nos anos 1910-12, que ele vai correr o risco de desviar-se: no momento em que a auto- conservagio for afirmada como uma pulsdo paralela a sexua- lidade, composta dos mesmos elementos que ela. ‘A autoconservagio seré calcada na sexualidade, e inversa- mente isso vai recair sobre a pulséo sexual, abrir para uma instintualizagio pelo menos virtual da pulsdo sexual. Definin- do-se a fungio no registro da pulsio, corre-se inversamente 0 risco de fazer coincidir a pulsio com a fungiio, no sentido de tum funcionalismo da sexualidade. Dat a posicdo paradoxal daquele que, como eu, interpreta um conceito latente como esse; esse intérprete tematiza 0 que Freud ndo tematizou, mostra como esse tema pode ser fecundo € pode propor uma saida, um salvamento para uma questéo importante na obra; mas deve mostrar também como esse 0 sé-depois do apoio 31. proprio salvamento pode ser arrastado para aquilo que eu chamo de desvio, e reiterar 0 desvio. Esse desvio do apoio ¢ no apoio € 0 que quero desenvolver aqui, mas que j4 estava marcado como conclusdo do meu desenvolvimento das Problemdricas 111, sobre a sublimacio:” 86 a teoria da sedugdo traz a verdade do apoio. Somos pois forgados a lembrar as quatro dimensdes ou aspectos da pulséo segundo Freud, em sua aparente simplici- dade, e ao mesmo tempo em sua imensa ambigilidade, que vai descobrir-se pouco a pouco. Sao elas: a fonte (Quelle), 0 alvo Giel), 0 objeto (Objekt) e a forga (Drang). Remeto aqui aos artigos do Vocabuldrio da psicandlise, e também a Vida e morte na psicandlise® ¢ a Problemdticas 111.” O exame atento dessas quatro nogdes, em suas contradigies intenas, j4 que se trata da sexualidade humana, leva a uma mesma conclusio, que também se tira das observagées reunidas nos Trés ensaios. No Trieb sexual, tudo € variével. O objeto & contingente, é suscetivel de todas as substituigdes; segundo Freud, sempre se pode substituir um objeto por outro. O alvo & suscetivel de troca, de modificagio, de inibigdo. As fontes, enfim, esto conectadas umas &s outras, suscetiveis de “ vicariar-se”. Nessa concepcao, objeto, fonte e alvo na pulsdo sexual sto finalmente evanescentes. Ea imagem que me ocorre é a da faca de Jeanrot’ ou ainda a do barco de Teseu, como narra Plutarco. Na época em que esse autor escrevia as Vidas de homens ilustres, ainda se exibia, em Atenas, a nave de Teseu, com a qual este fora, havia séculos, vencer o Minotauro em Creta. Esse verdadeiro ‘monumento hist6rico era, evidentemente, de madeira, de modo que de vez em quando uma pega apodrecia; trocava-se a pega, € assim sucessivamente, de modo que no fim todas as pegas tinham sido substituidas; foi assim que, diz Plutarco, o barco de Teseu se tornon para os fildsofos um grande exemplo. Se * Personagem de ficgio que possufa uma faca cujos cabo e Himina e:am virias vezes substitufdos, mas que continuava sempre a mesma, (NT) 32 Freud ea sexualidade tudo foi mudado, perguntavam eles, seré que isso ainda é “o barco de Teseu”? A pulsdo é uma espécie de barco de Teseu. O que resta da pulséo? Nada, exceto afinal a forga, essa Drang que pela seméntica € exatamente sindnimo de Trieb. Penso que é o que Lacan quis sublinhar, ao sugerir 0 termo “deriva”. Nenhum tradutor, mesmo lacaniano, de Freud, se arriscaré a retraduzir: “Derivas ¢ destinos de derivas”. Mas nesse jogo de palavras lacaniano, que passa pelo inglés drive, afrancesado em dérive, ha a idéia de que a pulsdo é uma deriva, isto 6, que o Trieb no indica nenhum caminho. O Trieb, de origem endégena, nao indica nada, sendo que é preciso, por todos os meios, livrar-se dela. $6 resta a forca, que é cega. 21 de janeiro de 1992 Apoio e sexualidade infantil Fonte - alvo - forga- objeto. Uma vez lembradas essas quatro nogées, que nao so tao simples, mas que servem de referéncias aproximativas para Freud e para nés, abordo o problema que nos, interessa: 0 apoio. O apoio responde a um problema de origem, explicitamente situado de modo temporal. Nao hé razdo para renegar as questdes de tempo e de cronologia em nome de uma intemporalidade, qualquer que ela seja. Trata-se de explicar 0 aparecimento da sexualidade no seu inicio, logo da sexualidade infantil. Daf uma questo prévia: por que explicé-la, se cla nfo existe? debate ainda no terminou, e as maneiras de negar a sexua~ lidade infantil so miltiplas. Ela pode ser negada totalmente, explicitamente, ou ento ser considerada como algo aberrante, patolégico, fundado apenas na observagio de alguns casos excepcionais. Ela pode ser negada, em um segundo nfvel, como sendo de natureza biolégica e de origem endégena, 0 que nao implica negar a sua existéncia. Enfim, ela pode ser negada de um modo mais sutil porém perigoso, no préprio seio do movi- mento psicanalitico, sendo dessexualizada, sendo mergulhada em outra coisa, na qual ela perde a sua especificidade de sexual. As tentativas foram miltiplas e persistem ainda em nossos dias. ‘© que Freud chamou de opinides de Jung (¢ a sua aproximagao temporéria com as opinides de Jung) foi justamente isto: fazer da “libido” ou do Eros tudo, é, finalmente, fazer nada. Liqui da-se 0 verdadeiro problema: definir ¢ localizar essa sexzali dade. Mas outras tentativas, mais modernas, so atualmente 3 34 Freud ea semalidade dominantes, como toda a tendéncia que busca diluir a sexuali- dade naquilo que se chama relagao de objeto, o préprio termo “sexual” passando completamente para segundo plano, exceto para designar unicamente 0 genital, o que precisamente Freud nfo queria De fato, trata-se, com a sexualidade infantil, de algo muito particular, que € o que se chama a sexualidade ampliada, am- pliada até 0 pré-genital — digamos antes até 0 extragenital, para ndo prejulgar uma seqiiéncia cronolégica entre o pré-genital € 0 que Viria depois — uma sexualidade ampliada, cuja enu- meragio é conhecida A saciedade: oral, anal, uretral etc. Mas tudo, finalmente, pode ser ocasido de sexual no funcionamento do ser humano. Essa sexualidade infantil apresenta um duplo problema, de prova e de definigao. Mas — e é aqui que deve intervir um pouco de dialética — esse problema s6 é duplo aparentemente, pois a prova da sexualidade, de sua generalizagio, faz com que a propria esséncia — e, logo, a definig&o — derive da existéncia daquilo que é provado. Em outros termos, no hé: 1) defino isto como sexual e 2) mostro que isto existe realmente. Mas: mostro que existe alguma coisa ¢ com isso produzo uma idéia diferente, que nfio deixa de ter ligacdo com a primeira, com a idéia comum, mas que é derivada desta. “Derivagao das entidades psicanaliticas” & um artigo escrito em 1971," no qual tento mostrar, a respeito de muitos conceitos psicanalfticos, que a sua definigao, a sua génese, arrebata a existéncia destes consigo. Para voltar a coisas muito mais simples, toda derivaso segue os caminhos universalmente desde sempre reconhecidos, classificados desde 0 século XVI, ‘0s caminhos da associagio de idéias, e, acrescentarei, do en- cadeamento das coisas ou das entidades. Essas leis sempre serio trés: semelhanga, contigilidade e oposicao. Tanto nos Trés ensaios sobre a teoria sexual quanto no capitulo Xx das Conferéncias introdutérias a psicandlise, vemos funcionarem essas trés modalidades de prova e ao mesmo tempo de derivagao da sexualidade, Apoio ¢ sexualidade infantil §— 35 Semethanga. Freud a faz. funcionar no nivel do orgasmo: hé fendmenos, em niveis que mio so o nfvel genital, em que reconhego algo que se parece com o desenrolar orgastico no adulto, Outra semelhanga — mais conclusiva em minha opiniao — € entre muitas atividades infantis geradoras de prazer e atividades que, nos pervertidos, todos concordam em chamar de sexuais. Contiguidade ou continuidade. Esse argumento € principal- mente apresentado a respeito dos prazeres preliminares, acom- panhando ou precedendo o ato genital propriamente dite no adulto, e atingindo muitas outras zonas e muitos outros 2ro- cessos além do proceso genital. Os prazeres ditos preliminares (Vorlust) estZo a0 mesmo tempo em contigitidade com o ato genital que eles preparam, e em semelhanga com a sexualidade infantil. E a partir desse jogo combinado de semelhanga e de conti- gitidade — que eu chamo de metabolismo ou simbolizagio — que se produz uma derivagdo (uma deriva — Lacan), tanto no nivel da existéncia quanto no nivel da prova. Seria muito dificil dizer se é uma prova extrinseca ou se essa prova nfo cria a propria coisa. Enfim, ha a abordagem por oposigdo, que nao é exatamente a abordagem pelo contrério, mas que é uma prova absolutamente importante e especificamente psicanalitica. Essa prova aparece logo no inicio do capitulo u dos Trés ensaios, no pardgrafo que se intitula “Negligéncia do infantil”. E a prova pelo fato de que os “‘cientistas” negligenciam sistematicamente falar de sexualidade infantil, & uma prova pelo recalque. Efetivamente, 0s cientistas so aqui apenas os representantes dos adultos em geral, que recalcaram a sua prépria sexualidade infantil, e que a condenam quando a percebem do exterior. Esses fendmenos nao seriam reprovados com o mesmo furor que condena a perversdo sexual adulta, se nao fossem objeto de uma conde- nagao interna antes da condenagio externa. ‘Vernos que essas provas acarretam uma nova definic&o que, ela propria — acrescento isso pessoalmente — acarreta a ne cessidade de um novo fundamento. 36 Freud ea sexualidade Essa definigdo da sexualidade infantil por Freud merece ser reproduzida na integra, em uma tradugio exata, Primeiramente, ela “aparece apoiada sobre uma das fungdes corporais importantes para a vida"; em segundo lugar, “ela ainda no conhece objeto sexual, ela é auto-erdtica” ; em terceiro lugar, “seu alvo sexual esté sob o dominio de uma zona erégena”.? Tudo esté ai, exceto a “forea”: alvo, objeto e fonte (a zona erégena). Mas vamos sublinhar a posigio predominante dada aqui a0 apoio: este s6 é introduzido posteriormente, em 1915, mas & situado no inicio da definigdo, como uma espécie de verdade — vislumbrada, pode-se dizer — da sexualidade in- fantil. Assim como a sedugio é a verdade do apoio — como no cesso de afirmar— o apoio aparece como a verdade a posteriori dos enunciados sobre 0 auto-erotismo e sobre as Zonas erégenas. © primeiro elémento, 0 apoio, € dinamico, define gerando, enquanto os enunciados dois e trés apresentam problemas de esséncia, em que a discussio se arrisca a afundar; por um lado, 0 problema do bioldgico, com 0 alvo sob a dominagio de uma zona somitica (6 0 terceiro elemento da definigio), e por outro lado, com o auto-erotismo, 0 problema do objeto ou da sua auséncia, que abre toda a questio do objeto fantasistico, Direi algumas palavras sobre essas duas questdes, para tentar esclarecer 0 que esta em jogo. Evidentemente, elas serio reto- madas e ampliadas com a discussdo do apoio. Primeiro, a questo do biolégico, apresentada na terceira frase: “seu alvo sexual esté sob 0 dominio de uma zona er6- gena”; uma frase que tem dois corolérios, muito ligados entre si: porum lado, a primazia da “fonte” , por outro, uma discussio sobre 0 “prazer de érgéo”. ‘A partir do momento em que se diz que o alvo — isto é a ago consumada — esta sob a dependéncia (unter der Herr- schaft) da fonte, ¢ que a fonte € definida como zona erégena, isso acarreta logo de saida uma grande pobreza do alvo: pois essa pobre zona erdgena, sejam os labios, 0 anus uo pénis, no tem outro alvo seni a detumescéncia ou alguma coisa do Apoio e sexualidade infant. 37 género. Por outro lado, isso acarreta a tentagdo, e as tentativas renovadas, de biologizar, por sua vez, a fonte, isto é, relacionar eventualmente essa predileco por esta ou aquela zona (por que esta ou aquela zona é escolhida como zona erégena) com um processo também fisiolégico, da ordem, por exemplo, de uma tepartigao dos horménios sexuais. E ainda seria necessario provar essa reparticao prioritéria de certos horménios — no 86 no nivel dos Srgaios genitais — mas também no nivel das diferentes zonas_erdgenas, por exemplo. E aqui que os argumentos contempordneos propostos pelos defensores de uma sexualidade infantil biolégica esto em perfeita contradigao: baseando a nocdo de sexualidade infantil sobre certos fatos — como as eregdes do lactente masculino — simplesmente poem de lado 0 que esté em questdo com Freud: uma sexualidade infantil ampliada, prioritariamente ex- tragenital. E, por outro lado, deixam em suspenso a questo da sexualidade da menina — ¢ a isso o proprio Freud era muito atento — em proveito apenas da excitagdo genital do menino. Por oittro lado, essa idéia de uma dependéncia estreita do alvo em relaco a uma zona somética s6 é verdadeiramente vélida para algumas pulsdes parciais, algumas mucosas parti- culares, que sempre servem de referéncia, mas para tal cutro prazer erético, por exemplo, para o que Freud chama de pulsio de olhar (Schautrieb), € evidente que a idéia de uma detumes- céncia ou de uma tumescéncia do olho esta totalmente fora do nosso alcance. Nao & provavelmente uma detumescéncia do olho, sendo de modo muito metaférico, que um voyeur procura. ‘Vemos que logo se esgota essa idéia de uma espécie de secrecao da sexualidade por uma fonte somética, ou zona erégena? ‘Chegamos agora ao outro problema, 0 auto-erotismo, definido como auséncia de objeto: “A sexualidade infantil ainda nfo conhece objeto sexual, € auto-erstica.” O problema maior se enuncia: seria sem objeto real, mas com um objeto fantasistico, ou absolutamente sem objeto? Deve-se reconhecer que quando dizemos (Pontalis e eu no Vocabuldrio da psicandlise, artigo sobre 0 auto-erotismo, ou no que eu proprio escrevi sobre 0 apoio) que o auto-erotismo esté ligado a uma fantasia, trata-se Freud ¢ a sexualidade daquilo que queriamos que Freud tivesse dito, mas que n&o estd nele. Para Freud, auto-erotismo quer dizer “absolutamente sem objeto”, seja ele exterior ao corpo préprio ou fantasiado: sem objeto exterior, mesmo que fosse um objeto “exterior” na fantasia, Entretanto, hé uma evoluco em Freud, que esté ligada ao modo pelo qual ele recua cada vez mais a sexualidade para a mais tenra idade. Essa retrogradagao da sexualidade acompanha ‘uma retrogradaglo da época em que se situa a fantasia, Em 1905, os Trés ensaios opdem de modo bastante nitido toda uma infancia que é sem objeto, logo “auto-erética” , e uma puberdade que € a descoberta do objeto. E no artigo (também de 1905) “Meus pontos de vista sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses” , que completa, acentuando-os, certos tragos bio- logizantes dos Trés ensaios, as fantasias so principalmente produzidas na puberdade e reprojetadas retroativamente.* Depois vém todas as discussGes da Sociedade de Viena sobre © onanismo, que tocam forgosamente na redefinigéo do auto- erotismo, e que sfio relatadas pelos “Protokolle” ou “Minutes” Houve em 1910 uma primeira discussdo sobre o onanismo, em que 0 debate foi tio contradit6rio que foi paralisado depois de duas ou trés sessGes. A discussio foi retomada em 1911, passo 2 passo, durante oito sessGes, mais ou menos a cada quinze dias.’ A questio do devaneio ou. da fantasia estava constantemente presente. Cito algumas intervengdes sobre problema do auto-erotismo: Intervengao de Federn (p.20): “A questiio 6: estaria uma fantasia sexual [sexual € sublinhado, pois Federn deve ter enfatizado a palavra] conectada com todo onanismo (ob mit jeder Onanie eine sexuelle Phantasie verkniipft sei)?” Boa pergunta, a qual Stekel responde de modo preciso, na sesso seguinte (p.33). “Stekel designa como onanismo todo ato sexual que é feito sem a participagao de uma outra pessoa © diz. que desejaria qualificd-lo de auto-erético, haja ou nfio fantasia, sem prejuizo das fantasias.” De qualquer forma, fan- tasia ou ndo, a partir do momento em que no hi pessoa real exterior, trata-se de auto-erotismo. Apoio e sexualidade infantil — 39 ‘Isso foi vivamente contestado por Freud anteriormente (p.22): “Como regra geral, apenas designamos como auto-erotismo os dois primeiros anos da vida. O onanismo da época posterior, com fantasias sobre outras pessoas, nfo é mais puramente auto-erstico.” Logo, desde que haja objeto exterior, mesmo na fantasia, no hé mais verdadeiramente auto-erotismo. Em outros textos, Freud precisa: devemos distinguir nitida- mente tr€s periodos maiores da atividade onanista: até 2 anos, de 3 a5 anos, ¢ depois a puberdade. Em 1905, s6 havia fantasia na puberdade. Aqui, Freud dé um passo atras e admite a presenca de fantasias no perfodo de 3 a 5 anos. Mas mantém que 0 verdadeiro perfodo auto-erético é 0 primeiro, quando nao ha fantasia. Continuo a minha “montagem” com outra intervengao, de Rosenstein (p.21), que “observa que a questéo das fantasias est em correlagdo (cusammenhingt) com a questao do auto- erotismo; se as fantasias se referem a uma segunda pessoa, a masturbacdo ndo € mais puramente auto-erdtica”. Rosenstein corrobora assim exatamente o ponto de vista de Freud: a partir do momento em que uma fantasia engloba outra pessoa, ¢ ‘mesmo que o ato seja feito sozinho, deve-se falar de onanismo, e nio de auto-erotismo. E continua: “Na sua concepgiic das fantasias inconscientes, Federn (este dissera: talvez haja fanta- sias inconscientes de 0 a 2 anos) toma o inconsciente nio s6 no sentido do recalcado, mas no sentido da parte inata da psique.” ‘Assim, abre-se a porta para a presenga de fantasias de 0 a 2 anos, mas fantasias que nfo s4o 0 reflexo de relagdes exteriores no interior do sujeito, mas seriam de origem interna — pensa-se imediatamente no isso hereditério ndo-recalcado e naquilo em que isto ia transformar-se, em Freud, posteriormente. Feder abre a porta, por assim dizer, por onde penetrardo os kleinianos: fantasias que nfo tém origem exterior, mas esto presentes desde 0 inicio. ‘Vamos reler o artigo de Susan Isaacs em Desenvolvimentos da psicandlise, “Natureza e fungao da fantasia [phantasme]" © Bum clissico. Ao contrério de Freud em 1901-15, Susan Isaacs 40 Freud ea sexualidade situa a fantasia logo na origem, como fantasia inconsciente. Trata-se de fantasias inconscientes de origem endogena. Foi dito varias © varias vezes, mas isto € uma verdade entre os Kleinianos: toda a vida fantasistica da crianga esta presente desde 0 infcio no interior, mesmo que ela possa encontrar pretexto no exterior. E para compreender essa visio kleiniana da vida fantasfstica, € preciso conceber 0 processo pulsional ‘como um processo de duas faces: um aspecto puramente fisio- Iégico ¢ um aspecto psiquico inconsciente, frente-verso. Isso acompanha toda uma linha do freudismo que situao inconsciente antes do consciente, dando prioridade a uma espécie de incons- ciente atavico, presente desde a origem. No fim de nosso percurso, terei ocasifo de voltar a essa questo do Kleinismo, como ponto extremo desse desvio end6. geno que é 0 meu tema atual. 28 de janeiro de 1992 Autoconservacao e sexualidade O apoio. Apresentei diferentes figuragdes dessa nogo em Pro- bleméticas iu e 1v.' A imagem mais simples € a de um diedro, isto é, a intersego de dois planos, o da autoconservacio ¢ o da sexualidade; 0 apoio se produz na linha de intersegao. Outro modelo, mais dinamico, so duas flechas, figurando as duas mogGes pulsionais. 8 Cito primeiramente, sem comenté-lo pois j4 0 fiz varias vezes, 0 trecho capital dos Trés ensaios.” “B claro’ que o ato da crianga que suga é determinado pela procura de um prazer j4 vivido e doravante rememorado. No a f hegao I indeepre de od Et 42 Freud ea sesualidade caso mais simples, ela encontra satisfagao na sucgfo ritmica de um local da pele ou das mucosas. Também é facil adivinhar ‘em que ocasio a crianga teve as primeiras experiéncias desse Prazer, que ela deseja doravante renovar. A primeira e mais vital atividade da crianga, a sucgio do seio materno (ou de seus substitutos) jé a familiarizou com esse prazer. Dirfamos que os labios da crianga fizeram o papel de uma zona erdgena, € 0 estimulo realizado pelo afluxy do leite quente foi cereunente ‘a causa da sensacao de prazer. No inicio, a satisfagao da zona cerégena estava sem diivida associada a satisfagao da necessidade alimentar. A atividade sexual se apdia primeiramente sobre uma das fungdes que servem & conservacao da vida, s6 libe- rando-se dela mais tarde.” Quando vemos um bebé saciado deixar o seio € cair para tras adormecido, com um sorriso de satisfacdo nas faces rosadas, nfio podemos deixar de dizer que essa imagem & 0 protétipo da expresso da satisfagio sexual na existéncia posterior. Depois, a necessidade de repetigiio da satisfacdo sexual se separa da necessidade de nutrico, separagao que € inevitavel no momento em que os dentes aparecem, € quando 0 alimento nao & mais exatamente sugado, mas masti- gado.” Entdo, como compreender 0 apoio? Diz. 0 provérbio que “s6 se empresta aos ricos”. Mas também se pode dizer que 0 apoio de Freud, que nem sempre é tio explicito quanto se desejaria, foi enriquecido; e, por momentos, fica-se tentado a retomar 0 que se emprestou a Freud. Para simplificar, direi que hé tes terpretagdes possiveis dessa articulagéo entre a autoconser- vagao ¢ a sexualidade, 1) Uma interpretacao pobre, paralelista; 2) uma interpretagio rica, no sentido de uma emergéncia: mas essa interpretagio contraditéria, de modo que a sua dialética se abre para 3) uma interpretacdo invertida do apoio. A interpretagao pobre do apoio resulta de uma leitura de Freud ao pé da letra. Hé poucos textos freudianos sobre o apoio: © que citamos, os acréscimos dos Trés ensaios € um tinico trecho em “Pulsdes ¢ destinos de pulsdes”. Quanto ao texto sobre “O narcisismo” , ao qual voltarei, considera o apoio como Auroconservagdo e sexualidade 43 admitido, mas ndo o descreve. Essa interpretagdo pobre supde uma espécie de paralelismo genético entre os dois tipos de pulsdes, cujo cardter duvidoso indiquei precisamente acima, mesmo a titulo de uma analogia descritiva, pois no € certo que o mesmo termo de pulsdo seja adequado para designar a0 mesmo tempo a autoconservagio e a sexualidade. Nesse modelo, haveria poucas intervengdes de um dos processos no outro, salvo no que se refere a0 desencadeamento, logo no nivel da “fonte””. A fungao de antoconservagao, a alimentagao no caso, € a ocasido* de uma estimulagao da zona er6gena, no caso os labios. Essa estimulagao sera depois repetida de maneira 2 dégena. Haveria, pois, uma espécie de defasagem da fonte entre a fonte da autoconservacdo (da qual é dificil dizer que se trata dos Iébios: pode-se dizer que os labios so a fonte da fome?), entre 0 proceso somético na origem da fome e uma fonte sexual designada por Freud como sendo a mucosa dos labios. Quanto ao alvo, 0 que nos é dito? Nada de concreto, nem de muito especifico. O alvo da autoconservacao é a ingestio, no caso alimentar, e a excregio no caso das zonas excretérias. (Ora, esse alvo nao pode se encontrar na atividade auto-erética: “A fonte da pulso sexual um processo excitante em am 6rgio € 0 alvo imediato da pulsdo consiste em suprimir essa estimulagao do érgio.”* E a idéia do “prazer de 6rgio”: ha juma tensio nos labios, que se trata de relaxar; a mucosa € excitada e quer algo entre ou saia ela seré excitada da mesma forma, de modo qué no hé nenhuma relagdo de derivagéo direta entre a aco consumatéria (0 alvo) alimentar e a acdo consumatéria (0 alvo) sexual. Ao invés do meu primeiro esquema, terfamos antes: AC 44 Freunde a serualidade Quanto ao objeto, as coisas so contradit6rias. Evidentemen- te, admite-se que a autoconservagao pode mostrar a sua direcdo (6 paralelismo do esquema) A procura do objeto sexual, mas para Freud, 0 proprio da sexualidade, o tempo que chamei “auto” em Vida e morte, isto é, 0 auto-erotismo, nfo comport fantasia, de modo que nao poderia haver relagio de simbolizagio entre um objeto e 0 outro; ele tem um simples objeto de substituigdo, tomado no corpo préptio. O polegar da “sugacdo” substitui o alimento, mas de modo puramente mecanico, endo significante. Esse paralelismo é prejudicial para todos os lados. Prejudica a concep¢io da autoconservagio € os seus mecanismos com- plexos. De fato, Freud nao se interessa absolutamente pela necessidade alimentar que ndo tem a sua origem nem nos labios nem mesmo no estmago, mas em toda uma série de regulagdes homeostiticas muito complicadas. Do mesmo modo, a fonte da expulsdo, da defecacdo, no esté evidentemente no anus como tal, mas em mecanismos talvez. um pouco mais simples do que para a alimentacdo, bem descritos na fisiologia do peristaltismo intestinal, Mas esse paralelismo empobrece ao mesmo tempo a sexua- lidade, dando-the um modelo excessivamente cmodo, a suga- gio, de maneira que, se a sexualidade fosse o prazer de 6rgio, bastaria (lango esse desafio) dosar diferencialmente 0 horménio sexual nesta ou naquela zona dita erégena e nesta ou naquela outra parte do corpo. Isso néo quer dizer que nao ha zonas do corpo mais sensiveis que outras, mas convém ampliar essa virtualidade para todo o revestimento cutdneo, até mesmo para mecanismos enraizados no corpo, porém mais complexos, como a visio e a atividade muscular — de que fala Freud, a respeito das fontes indiretas da sexualidade.* Esse paralelismo, como o artigo “Pulsées ¢ destinos de pulses” em geral, apresenta pois uma espécie de visio média, que ndo explica bem nem a autoconservagio nem a sexualidade, nem a relagio entre elas. Auoconservacdo e serualidade a8 Uma segunda interpretagdo & a que salva 0 apoio, vendo nele uma espécie de emergéncia. Sua visualizagao € 0 nosso esquema com a flecha da autoconservagao, e essa segunda flecha que se separa progressivamente depois de ter caminhado em paralelo. A explicagio se encontra no Vocabuldrio da psicandlise, que descobriu 0 apoio, e em Vida ¢ morte na psi- candlise. Nesse esquema, néio hé apenas apoio, mas simultaneamente tomada de distancia e empréstimo. Em outras palavras, cada uma das puls6es nao funciona por sua propria conta. Deserito esquematicamente, 0 apoio comporta dois tempos: um funcio- namento conjunto, e depois um momento de tomada de distincia ou de recuo. E 0 que Freud diz explicitamente em outros trechos: a sexualidade encontrava inicialmente a sua satisfagiio 20 mesmo tempo que a alimentagio, ¢ depois separou-se desta para tor- nar-se auto-ertica. O auto-erotismo seria pois recuo, tempo de um devir e ndo tempo origindrio. Insisti mais de uma vez no rebaixamento que logo ocorreria em Freud, quando ele fez do auto-erotismo 0 tempo primeiro do ser vivo humano, e no mais um tempo secundétio. Conjungao e depois emergéncia que é uma defasagem, uma espécie de metabolizagao ou de simbolizagdo, segundo os ca- minhos de toda associagdo, que repito serem inevitdveis no pensamento, ¢ também no ser vivo; os caminhos da contigiidade e da semelhanca. Nessa interpretagio favoravel ¢ salvadora do apoio, o objeto da autoconservagao € 0 leite, enquanto 0 seio € o objeto sexual. Ora, o leite, o alimento, € completamente esquecido, tanto pelos ) Kleinianos quanto por todos os que se esquecem de clivar, de} ~ desdobrar, a oralidade. Se apresentarmos a idéia de que, logo de saida para o ser humano, trata-se de incorporar o “seio”, bom ou mau, muito bem: jé se disse tudo, ou antes, nada foi dito. Retomei a expresso — que é de Lacan — de objeto meto- nimico, que € bem adequada aqui. O objeto, o seio, se encontra em contigtiidade, notadamente numa relacdo de continente-con- tetido, logo em uma relagdo metonfmica, com o leite. Relagio 84 46 Freud ea sexualidade metonfmica, mas talvez, também metaférica, e depois retomada nesse complexo das metéforas e das metonimias que chamamos simbolismo; mas a primeira linha de derivagao é metonimica. Além disso, ao mesmo tempo que ha clivagem entre leite seio, hi nese esquema destacamento e recuo; nesse movimento da flecha que se curva sobre si mesma, o que é introjetado na fantasia, 0 que é “alucinado” (entre aspas — todos conhecem as reservas fundamentais que eu fago & nogio de alucinagdo primitiva) é 0 seio. Daf o absurdo, na “experigncia de satisfa- gio", de falar de uma[satisfagao alucinatbria da necessidade-) Na famosa parabola das origens, Freud se encontra diante do dilema: ou dar-se imediatamente 0 sexual, e nesse caso ele nio deduz nada (seria a posico Kleiniana), ou entdo no dar-se 0 sexual, @ nesse caso ele nunca o deduziré.? 0 alvo, nessa visio emergencial, toma consisténcia. Néo é mais a simples descarga local do prazer de 6rgio, é uma metaforizago e um fantasiar do alvo alimentar. Se 0 alvo alimentar a ingestdo do alimento, o alvo sexual se torna a incorporagiio que é um derivado do precedente, desta vez se gundo a linha da similitude, ou da metéfora. Ocorre 0 mesmo com o alvo da analidade, sendo a expulsdo anal a metaforizagao da excregio dos excrementos. Enfim, o que é a fonte, nessa concepgio que tenta salvar 0 apoio, dando-the um conteiido? Nao & mais apenas a “fonte” da necessidade alimentar que provoca ocasionalmente o des- pertar da “fonte sexual”. E a fungao alimentar — ou excretoria — no seu conjunto, ao mesmo tempo fonte, alvo e objeto, 0 conjunto da “atividade que serve para a conservagio da vida", que serve de fonte, abalando ima zona mais ou menos predes- tinada a tomnar-se sexual. Tentar salvar Freud, como faz este comentario (“salvar os fendmenos”, diziam os astrOnomos, o que tem um duplo sig- nificado: explicar, do melhor modo, os fendmenos, ou entio salvar as aparéncias, fornecendo todo tipo de escapat6rias, das quais 0s epiciclos sf um dos modelos), salvar Freud é tentar tird-1o do desvio maior nessa concepgio do apoio, de uma sexualidade prioritariamente end6gena, encontrando o seu ponto Auoconservagio e sexualidade $7 de partida no ego.’ No esquema acima, as flechas partem da esquerda, do ego, qualquer que seja 0 modo com que este seja concebido — digamos um organismo — e, por uma espécie de passe de mégica, trata-se de tirar — ou como se diz mais elegantemente — de fazer “emergir” o sexual da antoconser- ago, mesmo que seja para perceber que ele foi posto ali logo de sada. Felizmente, nessa interpretagio pela emergéncia, sao as pré prias grandes coordenadas (objeto, fonte e alvo) que so aba- ladas, postas em movimento. No esquema do paralelismo, eu podia designar cada uma delas por uma letra, como pontos ce referéncia. Aqui, no se trata simplesmente de dizer que nio so as mesmas, ou que uma sai da outra; fiz como se uma saisse da outra, falando de objeto metonfmico, de alvo meta- f6rico; mas 0 que tento mostrar agora € que ndo é apenas 0 conteiido da fonte, do alvo e do objeto que deriva a partir do seu correspondente na autoconservaco, mas que sio as préprias nogdes de fonte, objeto e alvo que esto abaladas, ndo s6 caca uma por sua prdpria conta, mas na sua articulagdo com as outras. E que, a cada tempo, em cada um desses fatores, somos forgados a fazer intervir o devaneio. Mas, cuidado! O devaneio, ou a fantasia, no é simplesmente a imaginagdo do real, no & simplesmente 0 aspecto psiquico do fendmeno somético. 4 fantasia traz algo diferente de uma simples derivagao natural Da ingesto & incorporacio, logo do autoconservador ao sexual, hd algo que é mais do que, que é diferente de uma psiquizagdo ou até de uma simbolizagio. ‘Vamos retomar mais uma vez essa série, certamente um pouco cansativa, mas para sacudi-la, A fonte. A fonte & designada as vezes por uma fungio autoconservadora precisa, mas isso em casos bem delimitados, que sempre so um tanto féceis demais, ¢ afinal pouco nume- 100s: 0s labios, o Anus, os Srgaos genitais externos, os orificios urindrios, logo as mucosas — que certamente nfo devem ser negligenciados. As mncosas em questo so, por natureza, lugares de passagem, friccionados mecanicamente por aquilo 48 Freud ea serualidade que passa, excitados pelo simples contato do Ifquido ou da matéria que os atravessa. Mas so também Ingares de troca com o exterior, e principalmente de troca no sentido autocon- servador, isto é, trocas do organismo. Sio também lugares de cuidados: jé no animal, os lugares de passagem e de troca, que sio 0s orificios do corpo, também so o lugar principal dos cuidados de limpeza. Enfim, em nossa opinido, so lugares de polarizagao de algo externo, que ven enxertar-se, através desses cuidados, no funcionamento endégeno. ‘Mas eis que a idéia de uma fonte sexual localmente ligada a uma fungao de autoconservagao oscila ainda mais quando deixamos as famosas mucosas (isto é, as fontes em que a descrigdo do apoio & mais simples, mais candnica). Como mostrar, quando se fala de todo revestimento cutfneo como erdgeno, qual € a fonte autoconservadora? Ocorre 0 mesmo quando Freud afirma que todo funcionamento organico pode ocasionar a excitagao sexual. Freud até generaliza as coisas, desde os Trés ensaios até supor que “... nada mais ou menos significativo sobrevém no organismo que nfo tenha a fornecer 0 seu componente & exci- tacdo da pulsdo sexual”.’ © que ele comenta no Problema econdmico do masoquismo da seguinte maneira: “ Segundo isso, até a excitagao de dor ou de desprazer deveria necessariamente ter essa consegiiéncia. Essa coexcitagao libidinal quando da tensdo de dor ou de desprazer seria um mecanismo infantil fisiol6gico que, mais tarde, se esgota.”'” ‘Sem nos dedicarmos, com Freud, ao problema do masoquis- mo," podemos constatar a ampliagao introduzida pelo termo de “coexcitago” . Nao se trata mais, como no apoio em sentido estrito, de um funcionamento em paralelo, sempre vindo do ego: um abalo do organismo, vindo de outro lugar @ nao do funcionamento autoconservador, pode fazer surgir a excitagao sexual. Vemos que generalizagio da “fonte” se desenha. A fonte se torna abalo exégeno, implantagdo de um corpo estranho, A questo da origem tende repentinamente a se inverter nessa generalizagdo, se nao ha endégeno, finalmente, que ndo com- porte um exégeno implantado. A fonte ndo € mais um lugar Autoconservacdo e sealidade 49 do corpo de onde jorrariam, em vizinhanga, dois processos, dos quais'um seria autoconservador e 0 outro sexual. A propria ox palavra “fonte” nao é mais valida, se for entendida como aquilo (#' do qual escoa naturalmente alguma coisa: a sexualidade no corte da fonte, como a Agua. 0 alvo. & preciso mostrar como também ele se dialetiza. Pois, mesmo no eterno modelo alimentar, a passagem do au- toconservador para 0 scxual nfo se fox por uma simples motd fora: a passagem da ingestdo para a incorporagao & bem mais do que uma simples analogia. “Incorporar”, principalmente, no € apenas introduzir na psique, é metabolizar, destrair, refabricar em si, todas as coisas que estio fora da experiércia imediata do ato alimentar. Mais ainda, pois a fantasia do alvo oral vai muito além. A famosa trfade oral que Bertram Lewin) tenta defini: comer-ser comido-dormir, comporta bem mais do que um simples deslocamento da ingestéo; ela implica princi- palmente a situacdo passiva de ser comido, uma situagio que talvez, no nivel da fantasia, seja original. O alvo sexual nunca € 0 simples correlativo de uma atividade fisiol6gica. aps Reli um niimero muito antigo da Nouvelle Revue de Psycha- nalyse dedicada ao “canibalismo” — tanto no sentido etnol gico do termo quanto no sentido em que a psicandlise, por assim dizer, 0 colonizou. Nesse niimero, 0 tinico artigo pro- priamente psicanalitico é 0 de Green, que se intitula “Caniba- lismo: realidade ou fantasia agida”.'? Com a finalidade de propor uma génese da fantasia, Green descreve uma espécie de modelo da experiéncia de satisfago, resultando, aparente- mente, em desdobré-la: “Poder-se-ia distinguir aqui a atividade fantasistica sobrevindo durante a satisfagao de uma pulsio e a atividade que se produz na auséncia desta e por causa da auséncia desta.” Lembro que havia dois tempos, na descrigfo freudiana. Mas © primeiro tempo (na presenca do objeto), era autoconservador, e sem fantasia. O segundo tempo (na auséncia) era sexual ¢ fantasistico. Mesmo com o inconveniente de termos de perguntar como & que 0 sexual “baixa sobre” o autoconservador.”? 50 Freud @ sexualidade Prossigo a citago de Green: “Ao primeiro tipo [isto é, na presenga da satisfag4o] corresponderia a fantasia como equiva- lente psiquico do funcionamento pulsional (esse sentido € 0 que foi adotado pelos kleinianos a partir do trabalho de S. Isaacs) [Mas esse tempo & sexual? Pode haver uma fantasia ndo-sexual?]; ao segundo tipo corresponderia a fantasia pro- priamente dita [fantasia ‘propriamente dita’; 0 outro ndo 0 seria?) coma substitute da satisfagio pulsional ausente. Nesse sentido, no presente caso, poder-se-ia dizer que é a fantasia de incorporagao canibalesca que é incorporada no lugar do seio.”"* © que significa esta tiltima frase? De onde poderia vir essa fantasia de incorporagao, que deve ser... incorporada? O tinico sentido que se pode atribuir ao que Green propde € que é a fantasia de incorporagio canibalesga parental jue é incorporada. Infelizmente, Green ndo vai até fazer sua a teoria da seduco: ele quer salvar ao mesmo tempo S. Isaacs, com a sua concepedo endégena, e algo completamente diferente, que, com a auséncia da satisfagdo, deveria abrir para a presenca da mensagem parental. Quanto A expresso segundo a qual a fantasia de incorporagio vem “no lugar do seio”, observo que ela pode ser entendida em dois sentidos: “em substituicdo ao seio”, e também “no local do seio” . A fantasia canibalesca é implantada no corpo, no local em que o seio esté plantado Em uma concepeao visando salvar 0 apoio, vemos como oscilam a fonte, 0 alvo e também a relacdo fonte-alvo, pois 0 alvo, que era supostamente secretado pela fonte (é a propria imagem da “fonte”, que nem é verdadeira na autoconservagio), © alvo enquanto ligado & fantasia, toma subitamente a posigaio de fonte. E 0 “objeto” também. Tratarei das contradig6es do objeto na préxima sesso. Hoje, para terminar, cito simplesmente este trecho, tirado também das Minutas da Sociedade Psicanalttica de Viena. Trata-se do “protocolo” 159, sessiio de 24 de janeiro de 1912, dedicada a quarta discussao sobre 0 onanismo. “Como o onanismo infantil é um fendmeno to difundido e como é to dificil lembrar, deve haver um equivalente na vida psiquica. Encontra-se esse equivalente, de fato, na fantasia que Auoconservagdo e sexualidade $1 se acha na maioria dessas pacientes eram provavelmente pa- cientes das quais se tratava na expo isto €, que elas tinham sido seduzidas por seus pais na infancia, Esse era o remanejamento posterior que foi destinado a encobrit a lembranca da atividade sexual infantil, a desculpé-la ou a embelezé-la, O niicleo de verdade que essa fantasia [de sedugio pelo pai] contém reside no fato de que 0 pai despertou efeti- ‘vamente, com as suas caricias inofensivas (harmlosen Zartlich- Keiten), a sexualidade da menina, logo na primeira infancia. (O mesmo vale para 0 menino com a mae.) [Sabemos que nessa época, em 1912, Freud nao dava nenhuma prioridade a relagao mie-crianga, pois estabelecia ainda uma simetria perfeita: pai/fi- Iha, mae/filho, o que desaparecetia depois.] So os mesmos pais carinhosos que tentam mais tarde desabituar a crianga da masturbagdo, da qual se tomaram a causa inocente (die wi- schuldige Ursache). Assim, 0s motivos se unem da mareira mais feliz, para formar essa fantasia que freqiientemente domina a vida inteira da mulher, fantasia de seducdo, cujos trés ele- mentos so: uma parte de verdade, uma parte de satisfagao amorosa € uma parte de vinganga.”'* Esse trecho é dos mais divertidos, pois inverte completamente a teoria anterior a 1897. Aqui, 0 pai é inocente, enquanto a menina é sexual. Os termos também so 0 inverso dos de Ferenczi: nao € a crianga que fala a linguagem da “ternura” 6 0 adulto. Freud se esquece de fazer a pergunta central dos Trés ensaios: se 0 pai € to inofensivo ¢ inocente, por que ele pune a masturbagio? Por que puniria 0 que provocou, se nao 0 condenasse interiormente? Talvez ele seja inocente conscien- temente, é claro, mas inconscientemente ele recalca prir:eiro em si o que depois vai reprimir no exterior: a sexualidade. ‘Vejam como um trecho como esse, em 1912, em pleno meio do desvio, continua a fazer justica a este grio de verdade que 6 a sedugio; mas é preciso que, nessa seduedo, o sedutor seja inocentado. 4 de fevereiro de 1992 { | PY oO

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