You are on page 1of 28
Pesquisa de comunicagao: questées epistemoldgicas, tedricas e metodolégicas Maria Immacolata Vassallo de Lopes* Resumo Este texto trata da pesquisa de Comunicacio na América Latina frente a duas entradas - as condigées sociais de sua producio e © processo de sua produgao - e a uma sé safda: a produgio de conheci- mento legitimada por sua relevancia sociale por seu rigor tedrico e metodolégico. Sao assinaladas questées de ordem epistemoldgica, tedrica e metodoldgica e propostos esquematicamente os principais pontos para um modelo de metodologia. Palavras-chave: comunicagao, metodologia, epistemologia. Este texto trata de la investigacién de Comunicacién en Latinoamérica frente a dos entradas - a las condiciones sociales de su produccién asf como al proceso de produccién - y a una sola salida: la produccién de conocimiento legitimada por su relevancia social y por su rigor tedrico y metodoldgico. Se destacan cuestiones de orden epistemolégico, tedrico metodoldgico y se proponen los principales puntos para un modelo de metodologia. Palabras-clave: Comunicacién, metodologia, epistemologia. * Professora da Escola de Comunicagées ¢ Artes da Universidade de Sao Paulo. REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO Abstract This text- deals with Communication research in Latin America from two starting points - social conditions of its production and the process of its production - and only one way out: the pro- duction of knowledge legitimated by its social relevance and by its theoretical and methodological rigour. Epistemological, theoretical and methodological questions are pointed out; as well as some propo- sitions for a model of methodology are presented. Keywords: Communication, methodology, epistemology. ‘So Paulo — Volume XXVII, n® 1, janeiro/junho de 2004 Esclarecimentos sobre o ponto de partida O tema é por demais complexo. Por isso, menos que querer abarcar o tema de forma exaustiva — o que nao comporta a organi- zag4o em artigo — pretendo pontuar as questées indicadas como de ordem epistemoldgica, tedrica e metodolégica tal como as concebo a partir de onde elas se encontram, isto ¢, na prépria pratica da pesquisa que € em esséncia uma pratica metodoldgica. Vejo a metodologia da pesquisa como um processo de tomada de decisées e opgGes que estruturam a investigaggo em nfveis e em fases e que se realizam num espago determinado que € 0 espaco epistémico. Quero dizer que 0 ponto de vista que rege estas considera- ges € metodoldgico stricto sensu, isto é,"interno ao fazer cientifico e onde ele se confunde com a reflexao epistemologia. Dois pontos devem ser de antemao destacados neste enfoque. O primeiro € que a epistemologia serd tratada ao nivel operatério, na tradigao bachelar- diana, isto é, como nivel da prdtica metodolégica entendendo que a reflexao epistemoldgica opera internamente a prdtica da pesquisa. Em outros termos, isto garante que os principios de cientificidade operam internamente & prdtica cientffica, ou seja, a critica epistemoldgica rege 0s critérios de validacdo interna do discurso cientifico. O segundo ponto é que esta perspectiva epistemoldgica nao € suficiente se nao for combinada aos critérios de validagdo externa apoiados na critica feita pela sociologia do conhecimento. Segundo Bourdieu (1975: 99), “é ma sociologia do conhecimento que se encontram os instrumentos para dar forca e forma a critica episte- mol6gica, revelando os supostos inconscientes e as peticdes de princf- pio de uma tradigAo teédrica”. Desta forma, minhas consideragdes nao podem ser entendi- das como um discurso cientificista, genético e abstrato, antes, pelo contrério, entendo a pratica da pesquisa como pratica sobredetermi- nada por condigées sociais de produgo e igualmente como pratica que possui uma autonomia relativa, Esta é dada por uma légica inter- na de desenvolvimento e de autocontrole, o que impede que ela se converta numa mera caixa de ressonancia de normas externas e, por- tanto, em discurso totalmente ideoldgico. Ao final, a pratica da pes- quisa é concebida como um campo de forgas, submetida a determi- 15 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO nados fluxos ¢ exigéncias internas e externas. As condigGes de produgao da pesquisa de Comunicagao Como recurso de critica epistemoldgica da pesquisa de Comunicagao vou retomar algumas concepgées da sociologia da cién- cia. Aqui, a ciéncia é vista como um sistema empirico de atividade social que se define por um certo tipo de discurso decorrente de condig6es concretas de elaboragao, difuso e desenvolvimento. Sao as condigdes de produgdo que definem o horizonte dentro do qual se movem as decisées que permitem falar de uma certa maneira sobre um certo objeto. . Em outro texto (Lopes, 1997), indiquei que essas condigdes de produgdo de uma ciéncia podem ser resumidas em trés grandes contextos. O primeiro é 0 contexto discursivo, no qual podem ser identificados paradigmas, modelos, instrumentos, teméticas que cir- culam em determinado campo cientffico. Trata-se propriamente da historia de um campo cientifico, os percursos pelos quais ele vem se constituindo, firmando suas tradices e tendéncias de investigagdo. O segundo fator é 0 contexto institucional, que envolve os mecanismos que medeiam a relacdo entre as varidveis socioldgicas globais e o dis- curso cientffico, e que se constituem em mecanismos organizativos de distribuicao de recursos e poder dentro de uma comunidade cientifi- ca, Corresponde ao que Bourdieu (1983) chama de campo cientffico. E o terceiro fator que € o contexto social ou histérico-cultural, onde residem as varidveis socioldgicas que incidem sobre a producio cien- tffica, com particular interesse pelos modos de inser¢ao da ciéncia e da comunidade cientifica dentro de um pa{s ou no 4mbito interna- cional. Com estas breves consideragdes feitas pela dtica da sociologia da ciéncia, quero sublinhar que o conhecimento cientffico é sempre o resultado desses muiltiplos fatores, de ordem cientffica, institucional e social, os quais constituem as condigdes concretas de producio de uma ciéncia. Como se tem traduzido no campo da Comunicagio a pre- ocupagio com esses diversos contextos de produgao de seu discurso 16 S80 Paulo— Volume XXVII, n* 1, janeiro/junho de 2004 cientifico? A meu ver, através de um enorme interesse pelo contexto social ou macrossocial da produgao cientifica, um raro interesse pelo contexto institucional e um crescente interesse pelo contexto discur- sivo. Explico rapidamente este meu diagndstico. 1. A globalizacZo, em seus mais variados aspectos, tornou-se 0 tema hegeménico nos atuais estudos ‘e reflexées no campo da Comu- nicagao. Sem deixar de apontar os maleficios simplificadores acar- retados pela reedigo do velho debate frente & cultura de massas, a que Moragas (1997) identifica agora entre “neo-apocalfpticos” e “neo- integrados” frente ao atual modelo de sociedade, eu gostaria de reter os estudos s¢rios que abordam questées cruciais sobre a nova fase de desenvolvimento do capitalismo neoliberal, traduzindo-as para a imperiosa necessidade de compreender a globalizagao em sua densi- dade e ambigiiidades, propondo tematizd-la através de pistas con- ceituais, tais como “cultura-mundo”(Martin-Barbero, 1998), “comu- nicagao-mundo”(Mattelart, 1994), “sociedade da comunicagio (Vattimo,1992), “paradigma da globalizac4o” (anni, 1994). O que estas pistas fazem € acenar para a centralidade da comunicacio para o préprio modo organizativo da sociedade con- temporanea, isto é, em que a comunicagao passa a operar ao nivel das Idgicas internas de funcionamento do sistema social. O que hd de novo’ nisto € que o campo da Comunicagao complexifica-se enorme- mente, tornando explicito o erro epistemolégico de continuar tratan- do a comunicagSo como objeto de estudo numa perspectiva mera- mente instrumental, quer seja através da critica meramente ideolégi ca, quer'seja através da afirmagao funcionalista. Assim, considero que © enorme interesse pelo tema da globalizagao tem gerado aportes ren- ovadores nos estudos de Comunicagio, no sentido de realizar encon- tros disciplinares, propor novas categorias de andlise e de propiciar um trabalho concejtual mais complexo. 2. Ao considerar a reflexdo sobre o contexto institucional da produgao cientffica que se faz no campo da Comunicagio, o cendrio é pobre. Trata-se de constatar, em primeiro Jugar, o reduzido interesse sobre como se institucionalizam os estudos de Comunicagéo em. nossos paises.' Mas, também verificar a auséncia de reflexao sobre mecanis- 7 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO. mos e processos institucionais dentro dos projetos de pesquisa, a comegar pela reflexio sobre a propria escolha de um objeto de estudo que, como bem sabemos, também esté condicionada aos nao pouco visiveis mecanismos de fomento & “pesquisa induzida”. Aqui também se coloca a questio do prestigio de determinados grupos de pesquisa ou do poder de certos circuitos intelectuais principalmente vincula- dos As associacées cientificas, 4 administracio universitdria ou aos ptocessos de selegao e de avaliagio da produgao intelectual. Acredito que estas questdes da institucionalizagio cientifica e académica da pesquisa de Comunicagio deveriam ser objeto mais assfduo de “papers” e de semindrios e tomar como foco central a questao da for- magao do pesquisador de Comunicagao, iniciando com o lugar da pesquisa em nossos cursos de graduagiio até-o equacionamento da pesquisa dentro de politicas de pés-graduaciio (mestrado, doutorado, ¢ as experiéncias brasileiras com o mestrado profissionalizante, mes- trado e doutorado interinstitucional), 3. Por outro lado, o interesse pelo que chamei de contexto discursivo da ciéncia ¢, mais especificamente, de histéria do campo, tem cresci- do e se generalizado por toda a América Latina. Uma das questées centrais tem girado em torno da condigao disciplinar da Comunicagao, que tem sido objeto especial de preocupa¢ao nesta década dos 90.” A histéria do campo da Comunicagao tem sido mar- cada pela diversidade teérica e pela historicidade de seu objeto, as quais sdo marcas distintivas da identidade do campo das Ciéncias Sociais e Humanas, de que ele forma parte. Como tratei em outro lugar (Lopes, 1998), a origem de campos de estudos interdisciplinares como a Comunicagio reside em movimentos de convergéncia e de sobreposigao de contetidos e metodologias que se fazem notar de forma crescente no desenvolvimento histérico recente dessas ciéncias. Os principais desfios epistemoldgicos, tedricos e metodold; parecem advir da confluéncia do paradigma histérico da globalizagao (lanni,. 1994), do paradigma epistemolégico da complexidade (Morin, 1995) e de um novo paradigma institucional (Wallerstein, 1996). O que chamo aqui de “paradigma institucional” é resultado de uma reflexdo multidisciplinar coordenada por este ultimo autor sobre a reestruturaggo das Ciéncias Sociais que conclui serem as delimi- 18 Sao Paulo - Volume XXVII, n® 1, janeiro/junho de 2004 tag6es das disciplinas sociais mais o resultado de movimentos de insti- tucionalizagao dessas ciéncias, do que de imperativos provenientes de seus objetos de estudo, ou seja, de exigéncias de natureza propria~ mente epistemoldgica. O problema é que essa partilha disciplinar levou a um saber especializado em disciplinas institucionalizadas quando hoje, qual- quer andlise requer necessariamente varias disciplinas. Pée-se em duvida se ainda h4 algum critério que possa ser usado para assegurar, com relativa clareza e consisténcia, as fronteiras entre as disciplinais sociais. Ao que Wallerstein (1990:402) responde: “Todos os critérios presumiveis — n{veis de andlise, objetos, métodos, enfoques tedricos — ou nfo sdo mais verdadeiros na pratica, ou, se mantidos, sao obs- téculos a conhecimentos posteriores, antes do que estimulos para a sua criagio”. E claro que, a nao ser por mau entendimento, ‘esta minha posigéo nao deve ser vista como uma defesa ingénua de um ecletismo estéril, muito menos como uma “tendéncia autofagica de eliminagio das fronteiras entre as disciplinas tradicionais, 0 que inibe ou bloqueia a institucionalizagéo dos novos campos do saber, como a Comunicagao” (JBCC, 1999). O processo de producio da pesquisa de Comunicagao Falar de metodologia implica sempre um falar pedagégico, pois se parte, de todo modo, de uma determinada concepgio de pesquisa, ou mais propriamente, de uma determinada teoria da pesquisa que é concretizada na pratica da pesquisa. O efeito desse falar remete invariavelmente a um “como fazer pesquisa’. Assim, quero sublinhar que as: presentes ponderagées derivam de minha pratica com o ensino de metodologia, com a avali- ago institucional de projetos de pesquisa de mestrado ¢ de doutora~ do na ECA-USP*, além, é claro, de minhas préprias experiéncias de investigacio. Isso tem me dado, pelo menos, a possibilidade de basear minha concepgao na critica 4 pratica concreta da pesquisa, basica- mente a brasileira. Desenvolvi, ao longo dessa prdtica, um modelo metodolégi- co para a pesquisa empirica de Comunicag3o e vou usd-lo como re- 19 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO feréncia para as observagées que se seguem sobre a prdtica da pesquisa de Comunicagao. Dois sao os princtpios bdsicos que regem esse modelo: 1) a re- flexio metodolégica.nao se faz de modo abstrato porque o saber de uma disciplina nao é destacdvel de sua implementacdo na investi- gacdo. Portanto, o método nao é suscettvel de ser estudado separada- mente das investigagdes em que € empregado; 2) a reflexio metodolégica nao sé é importante como necessdria para criar uma atitude consciente e critica por parte do investigador quanto as oper- ages que realiza ao longo da investigagao. Deste modo, torna-se pos- sivel internalizar um sistema de habitos intelectuais, que ¢ 0 objetivo essencial da Metodologia. Apéio-me em ensinamentos da lingifistica (Jakobson) para abordar a ciéncia como linguagem e, como tal, constitufda por dois mecanismos bdsicos, de selegéo e de combinacao de signos, aquele operando no eixo vertical, paradigmatico, ou da lingua, ¢ este no eixo horizontal, sintagmético ou da fala. As decisées ¢ opgdes na ciéncia, que sao do eixo do paradigma, sao feitas dentro do conjunto das pos- sibilidades teéricas, metodolégicas e técnicas que constituem o “reser- vat6rio disponfvel” de uma ciéncia num dado momento de seu desen- volvimento num determinado ambiente social. Essas opc6es sao atualizadas através de uma cadeia de movi- mentos de combinac&o, que so do eixo do sintagma e que resultam na prdtica da pesquisa. Assim, 0 campo da pesquisa é, ao mesmo tempo, estrutura enquanto se organiza como discurso cientifico e é processo enquanto se realiza como pratica cientifica, E 0 que se visua- liza no Grafico 1. ‘S80 Paulo — Volume XXVII, n® 1, janeiro/junho de 2004 Grdfico 1 CAMPO DE PESQUISA PARADIGMA A DISCURSO Niveis Fases PRATICA SINTAGMA Desta maneira, a presente concepcdo metodolégica ressalta que a pesquisa nao é redutivel a uma seqiiéncia de operagées, de pro- cedimentos necessdrios e imutdveis, de normas rigidamente co cadas, que converte a metodologia numa tecnologia, num receitudrio de “como fazer” pesquisa, com base numa visio “burocrdtica” de pro- jeto, o qual, fixado no inicio da pesquisa, é convertido numa ver- dadeira camisa-de-forca que transforma o processo de pesquisa num ritual de opera¢ées rotinizadas. Quero ressaltar que um ponto central dessa concepgio de pesquisa é a nocio de modelo que ela acarreta. Seu postulado é a autonomia relativa da metodologia, isto é, um dominio especifico de saber e de fazer e o decorrente trabalho metodoldgico reflexivo e cria- tivo. Mas, por qué construir um modelo metodolégico para a pesquisa de Comunicagao? Como lembra Granger (1960), a tarefa da ciéncia é a construggo de modelos que objetivam a experiéncia, mesmo que sua realizacao seja sempre aproximativa, uma vez que o a REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO trabalho cientifico assenta sobre uma inadequacdo, uma tensio sem- pre presente entre o pensamento formal e a experiéncia humana que pretende conceituar. Talvez seja na presen¢a mesma dessa tensfo entre o discurso cientifico e o real que se assenta o ideal de compreensao da ciéncia. O modelo metodolégico que apresento articula o campo da pesquisa em niveis e fases metodoldgicas, que se interpenetram dialeticamente, do que resulta uma concep¢do simultaneamente topoldgica e cronolégica de pesquisa. A visio é a de um modelo metodolégico que opera em rede. O eixo paradigmatico ou vertical constitufdo por quatro nfveis ou instancias: epistemolédgica, tedrica, metédica e técnica; o eixo sintagmatico ou horizontal ¢ organizado em 4 fases: definigao do objeto, observagio, descricao e interpretagao. Cada fase é atravessada por cada um dos niveis e cada nivel opera em funcgao de cada uma das fases. Além disso, os niveis mantém relagdes entre si e as fases também se remetem mutuamente, em movimentos verticais, de subida e descida (indugao/dedugdo, graus de abstragdo/concregao) e de movimentos horizontais, de vai-e-vem, de progresséo e de volta (construir 0 objeto, observd-lo, analisd-lo, retomando-o de diferentes maneiras). FE o que se representa no Grdfico 2. 2 ‘$40 Paulo - Volume XXVII, n? 1, janeiro/junho de 2004 Grdfico 2 MODELO METODOLOGICO DE PESQUISA PARADIGMA, A Nigel Epistdmolégico jorico NIVEIS DA PESQUISA DISCURSO: Definigio do Obje SINTAGMA FASES DA PESQUISA PRATICA Esse modelo metodoldgico pretende ser critico e operativo ao mesmo tempo. Em ciéncia, todo modelo é uma representagao ou um simulacro construfdo que permite representar um conjunto de fend- menos e que é capaz de servir de objeto de orientagao (Greimas e Courtés, s/d). No nosso caso, é construido conscientemente com fins de descrico, explicacao e de aplicagio concreta. Esta aplicacéo vem sendo testada concretamente hd pelo menos 10 anos em projetos de pesquisa de Comunicag&o em cursos de graduagao, porém, sua aplicago tem se dado fundamentalmente nos de pés-graduagao. Devido ao lugar “estratégico” que venho ocu- pando, tenho tido a possibilidade especial de analisar projetos de pesquisa ¢ acompanhar os usos do modelo nas pesquisas académicas. de Comunicagio. Esse uso tem se dado como modelo de leitura metodoldgica ou de reconstrugao metodoldgica de pesquisas jd realizadas e como 23 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO- modelo de pritica metodoldgica ou de construgéo metodolégica de pesquisas. Como se nota, o modelo incide nao na superficie do dis- curso, mas no nivel de sua estrutura onde se dao as operagdes de cons- truco do discurso cientifico. E a pedra de toque € que esse discurso é feito de opgées e decisdes que implicam a responsabilidade intrans- ferivel do autor pela montagem de uma estratégia metodoldgica de sua pesquisa, 0 que impde que as opgdes sejam tomadas com cons- ciéncia e explicitadas enquanto tal: uma op¢o ‘especffica para uma particular pesquisa em ato. Construir metodologicamente uma pesquisa ¢ operar, praticar os seus niveis e as suas fases. Portanto, no modelo, cada nivel e cada fase se realizam através de operagSes metodolégicas. Eo que se apresenta por exemplo nos Gréficos 3. . Grafico 3 COMPONENTES SINTAGMATICOS DO MODELO METODOLOCICO “Técnicas de Coleta Andlise Desertiva Conclusdes Bibliografia Andlise Ineerpterativa a é é. 2 z Quadro Tedtico de Referéncia Definigéo do Objero | Observagio | Descrigio | Interpretagio Nao cabe aqui fazer uma exposigéo do modelo, jé feita em outro lugar (Lopes, 1990). Antes, gostaria de apresentar algumas quest6es criticas relativas 4 pesquisa de Comunicago reveladas pelo uso desse modelo. Elas est@o equacionadas na Figura 1. 24 ‘S40 Paulo - Volume XXVII, n* 1, janeiro/junho de 2004 Figura 1 PRINCIPAIS OBSTACULOS METODOLOGICOS NAS PESQUISAS DE COMUNICAGAO 1. Auséncia de reflexio epistemolégica - histéria do Campo - campo interdisciplinar: concepgio objeto-rnétodo - reflexividade e critica das operagées de pesquisa 2, Fraqueza teérica - insuficiente dominio de teorias - imprecisdo conceitual - problemética teérica x problema empirico 3. Falta de visio metodolégica integrada - niveis / fases - nivel tedrico x nivel técnico - objeto x observagao x anidlise 4, Deficiente combinagdo métodos / técnicas - exigéncia de estratégia multimetodoldgica 5. Pesquisa desctitiva - levantamento x pesquisa social nes 6. Dicotomia pesquisa quantitativa x pesquisa qualitativa ‘OBJETO MULTIDISCIPLINAR PARA UM PARADIGMA DA COMPLEXIDADE MULTIMETODOLOGICA, Auséncia de reflexao epistemolégica O nivel epistemolégico da pesquisa é 0 espago onde se decide o ajustamento entre 0 sujeito ¢ o objeto de conhecimento. E 25 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO dado pelo exercicio permanente da vigilancia, da critica e da reflex- ividade sobre os todos os atos de pesquisa. A concepgao de episte- mologia aqui adotada é marcadamente bachelardiana (Bachelard, 1949, 1972, 1974). A operacio de ruptura epistemoldgica ¢ de. fundamental importancia, pois marca a consciéncia da distancia entre o objeto real e 0 objeto de ciéncia. Mesmo sem entrar aqui na espinhosa questo da relacao entre a ciéncia e o conhecimento comum e o tratamento dado ao senso comum nas pesquisas empiricas, ou seja, quer se trate apenas de uma ou mais rupturas (Sousa Santos), ou da necessidade de se mergulhar no “saber local” (Geertz, 1997), apesar de toda a polémica epistemolégica, actedito que acima de tudo, é preciso criticar a “ciéncia espontdnea”, parafraseando Bourdieu (1995). A predisposigao de tomar, como dados, objetos pré-construf- dos pela lingua comum é um obstdculo epistemoldgico amplamente notado nas pesquisas de comunicagao. Daf 0 efcito de obviedade que tem diante de muitas pesquisas de Comunicagéo. A reflexao episte- molégica alerta para a ilusdo de transparéncia do real, fixa o plano da ciéncia como plano conceitual (que exige o trabalho dos e com os conceitos) e, principalmente, revela que o objeto nao se deixa apreen- der facilmente, uma vez que é regido por uma complexidade que o torna opaco e exige operag6es intelectuais propriamente tedricas para a sua explicaggo. Outra operagao de cardter epistemoldgico ¢ a construgao do objeto cientifico. O objeto é um sistema de relagées expressamente construido. E construido ao longo de um processo de objetivagao, que se dé através da escolha, recorte e estrururacdo dos fatos até os procedimentos técnicos de coleta dos dados. A objetivacio ¢ 0 con- junto dos métodos e das técnicas que elaboram 0 objeto de conheci- mento ao qual se refere a investigacao. Temos af a base epistemoldgica de elaboragao da problemati- ca da pesquisa. fa problemtica da pesquisa, ou em termos mais pre- cisos, 0 objeto tedrico, que permite submeter a uma interrogago sis- temdtica os aspectos da realidade postos em relagéo por um conjunto de questdes tedricas e praticas, que lhe séo colocadas. As respostas antecipadas a essas quest6es integram a fase de elaboragao das hipste- ses que devem estar presas conceitualmente a problemitica. 6 ‘Sao Paulo~ Volume XXVII, n* 1, janeiro/junho de 2004 Uma vez que os aspectos ou fatos da realidade nao sao dados, estes, quando obtidos através das técnicas de investigagao, j4 implicam em supostos tedricos. A critica epistemoldgica das técnicas deve ser feita jAna prépria elaboragao da problematica da pesquisa, rompendo com a tradicional visao da “neutralidade axiolégica” das técnicas pela con- cep¢ao de técnicas como “teorias em ato”. Como se vé, 0 nivel ou a dimensio epistemoldgica na pesquisa nao é algo abstrato, mas é traduzida concretamente por uma operacao de vigilancia permanente sobre todas as etapas da pesquisa. Nas pesquisas de Comunicagao, a auséncia ou precariedade da reflexdo epistemoldgica pode ser grandemente traduzida por uma falta de visio do campo da Comunicacio como campo de conheci- mento que tem uma histéria, ou seja, de um desconhecimento da histéria do campo. Infelizmente, uma crftica epistemoldgica desse conhecimento é algo raro entre nés. Quase sempre ela nos aparece. em coletaneas, “readers” ou manuais, em que um conjunto de autores (porque os selecionados e nao outros?) séo apresentados através de fragmentos de seus escritos, aos quais seguem-se outros, esperando-se talvez que os nexos entre eles sejam feitos na cabega do leitor que pas- saria entfo a ter uma “visio do campo”. Sabemos que isso nao se dé assim. Nosso campo ja tem histéria suficiente que profbe que ela seja reduzida a uma seqiiéncia linear de teorias do tipo “funcionalismo- marxismo-estruturalismo-informacionismo-pés-modernismo”. A impressfo que fica ¢ a de uma colagem, e o que resulta sio apenas informagies sobre as teorias. Quando digo “histéria do campo” refiro-me & necessidade de abordagem no nivel da construgao do conhecimento, dos conceitos ctiadas. Hé falta de pesquisa sobre as teorias ou tedricos da Comunicagao, ao nivel de sua construgio tedrica e metodold: (toda teoria implica uma metodologia), a fim de nos elucidarmos sobre © que fizemos e 0 que estamos fazendo. Estou me referindo & necessidade da pesquisa meta-tedrica ou especificamente episte- molédgica no campo da Comunicacio. Volto & questéo da construg4o da problemética dentro do Projeto de pesquisa que implica em conhecer o campo teérico da Comunicagio para af colocar a quest4o da adequacio entre o proble- ma com que se inicia a pesquisa e a sua problematica tedrica, entre 0 a REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO. objeto empirico € 0 objeto teérico. Aqui se coloca a indagacao sobre a ja mencionada relevancia social-do objeto de estudo. Quais os pro- blemas que necessitam ser pesquisados, quais as perguntas impor- tantes que devem hoje ser feitas em nossos paises latino-americanos? Aqui entram opgées que, a meu ver, devem set as mais conscientes posstveis, declaradamente assumidas, mas que n4o podem ser respon- didas pela ciéncia, porque sio opgées valorativas, isto é, politicas, dependentes de uma weltanschauung, de uma concepgao de mundo do pesquisador. E aqui, talvez, que terfamos que explicitar até que ponto estéo sendo renovadas as “utopias fundantes” dos estudos de Comunicagao na América Latina, no dizer de Fuentes (1999), de in- telectuais comprometidos com a transformagéo de nosso contexto renovadamente contraditério, ambivalente, desigual, que j4 nos valeu as denominagées como de terceiro mundo, pafses dependentes, per- iféricos, hoje, mercados emergentes, contexto do qual toda investi- gagao deve comegar ¢ com ela manter uma relacio de compreensao e de superagdo. Aqui, cabe a critica ao modo exdgeno de pensar, atrave- ssado por temas e questdes desviantes, por novas “idéias fora do lugar”. Nao se trata de nenhum provincianismo intelectual, pelo con- trario, as razdes da globalizagdo devem incitar-nos ca da vez mais a fazer aquelas perguntas-problema que tém relagdo vital com nossa existéncia social, que séo as que mais rém capacidade de apresentar também relevancia € pertinéncia tedrica, ou seja, de fazer avancar o conhecimento através da pesquisa. Mes Fraqueza tedrica E, em primeiro lugar, no manejo da interdisciplinaridade que a fraqueza tedrica na pesquisa de Comunicaga0 mais se torna evi- dente. Para-que a interdisciplinaridade nao seja apenas uma peti¢ao de princfpios, praticd-la exige 0 dominio de teorias disciplinares diversas integradas a partir de um objeto-problema. Assim, é impor- tante salientar que nao se trata de “dominar tudo”, mas de um “uso util” de teorias e conceitos de diversas procedéncias, um uso que seja sobretudo bem fundamentado e pertinente 4 construgao do objeto 28 ‘Sao Paulo Volume XXVIL, n*1, janeiro/junho de 2004 tedrico. Hoje, os problemas de comunicago surgem como impor- tantes nos mais diferentes dominios — economia, politica, estética, educacio, cultura, etc., em que a pesquisa nao pode ficar confinada a uma tinica dimensao. Além disso, deve-se distinguir entre teorias globais, parciais, disciplinares e teméticas para que elas possam ser tra- balhadas ou usadas em fungao de um problema de estudo. Nao hd como resolver o dominio de teorias a nao ser mergulhar e transitar entre pistas teéricas férteis para fazé-las germinar através de uma contribuicao individual que todo o pesquisador deve trazer ao pro- blema investigado. Mas, a questdo da interdisciplinaridade, hoje, parece remeter fundamentalmente ao pensamento complexo ¢ a um renovado modo de producao de conhecimento. Refiro-me & pesquisa integrada, reali- zada por uma equipe multidisciplinar de investigadores, que possa abarcar o trabalho interdisciplinar em Comunicagao de uma maneira mais satisfatéria do que a pesquisa individual. Colocada a questaéo dessa maneira, hé que se rever inclusive a organizagao institucional da pesquisa nos cursos de pés-graduagao, hoje fragmentada entre depar- tamentos ¢ linhas de pesquisa que nao funcionam. A co-orientagao € a integracao de orientandos em projetos de pesquisa integrados dos pesquisadores-orientadores so experiéncias que prometem alterar 0 insulamento disciplinar ea dificuldade de transito interdisciplinar. Falta. de visio metodolégica integrada A teoria deve ser concebida em fungao da pesquisa que se estd realizando, isto é, na diregdo da experiéncia do real na qual ela se confronta com os fatos que ela prépria suscitou com suas hipsteses. Deste ponto de vista a teoria € sempre uma proposta de explicacio, uma-eterna hipétese, permanentemente testada pela realidade do mundo. Quero entZo marcar o lugar de uma teoria integrada na pesquisa e criticar com isso toda visio dicotémica que dissocia o nivel tedrico da pesquisa, do nivel metddico-técnico, e a etapa da definigao do objeto, da etapa da observago ou do trabalho de campo.‘ Pri- 29 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS OA COMUNICACAO meiro, porque a teoria continua atuando no campo, pois hé sempre uma teoria da observagao, apesar' de nao explicitada,que se expressa através do dominio teérico das técnicas (teoria da amostragem, do questiondrio, da entrevista, da histéria de vida) e do dominio tedrico dos métodos (etnogréfico, sondagem, historiografico, andlise de dis- curso, etc.). Como indica o modelo, a teoria é um dos nfveis da pesquisa e atravessa todas as suas fases. Entretanto, um dos erros metodoldgicos mais graves que se notam nas pesquisas de Comunicaco sfo as sucessivas rupturas entre- as fase do objeto, da observaco e da andlise. Essa ruptura se dé no momento da construgao do objeto (que geralmente toma o capitulo inicial da pesquisa), quando é montado um quadro teérico de refer- éncia (pelo menos através de um grande nuirhero de citagées bibli- ogrdficas), que pouco ou nada remete ac momento da pesquisa de campo (cujas técnicas, sabemos, instrumentalizam os dados ¢ confor- mam-nos), ruptura que costuma permanecer no momento da andlise, quando dificilmente se volta 4 problematica tedrica do primeiro capi- tulo. Esta questo é grave, pois parafraseando Kaplan (1975), 0 prélo- go tedrico serve mais como “titulo honorffico” a fim de assegurar um adequado status “cient{fico” ao que se segue do que propriamente para marcar o nfvel tedrico que seré imprimido ao conjunto da pesquisa. Deficiente combinagaa de métodos e de técnicas an A deficiéncia na combinagao entre métodos e entre técnicas decorre quase sempre de um marco tedrico ambicioso que nfo se rea- liza numa estratégia metodolégica do mesmo porte. Eo que acontece hoje, por exemplo, com as pesquisas tealizadas dentro do marco da perspectiva tedrica das mediagSes. A meu ver, isso acontece menos por se tratar de uma teoria cuja metodologia est4 em construgao, € mais por uma concep¢ao de metodologia arraigada no repetir e no copiar, no comodismo provocado pela visio de metodologia que fornece 0 “como fazer”. Entretanto, toda pesquisa € uma verdadeira “aventura metodoldgica”’, onde hd necessidade de exploracéo, de criatividade e de rigor. Parece-me que o termo estratégia metodoldgi- 30 ‘S80 Paulo ~ Volume XXVII, n? 1, janeira/junho de 2004 ca resume bem esta concepgio de pesquisa. Organizar uma estratégia que seja multimetodoldgica para corresponder A complexidade do objeto da Comunicagao e & sua interdisciplinaridade é deter um dominio de metodologia que remete a distingao que Kaplan (1975) faz entre “metodologia da pesquisa” e “metodologia na pesquisa”, reservando a primeira designacio para o estudo dos métodos ou a teorizagao da pratica da pesquisa e a segun- da para indicar o trabalho de aplicagéo dos métodos, O que o autor quer dizer é que um método para ser aplicado precisa ser estudado, 0 que parece uma obviedade. Uma perspectiva cientffica € sempre uma perspectiva tedrico-metodolégica e uma problematica teérica traz sempre acoplada uma problemdtica metodolégica — que sao as estratégias claboradas ao longo do proces- so de construgao/investigacao de um objeto. Entretanto, nao € 0 que acontece em nossas pesquisas. Reflexes metodoldgicas explicitas s4o raras de serem encontradas. Par ficar num sé exemplo. E dificil encontrar uma digressio explica- tiva sobre o que entende por hipétese antes de simplesmente enuncié- la; e mais, como ela se constréi teoricamente e quando e como se organiza como hipétese de trabalho; como ela forma um sistema (porque dificilmente a hipdtese nao é decupada em varias - centrais ¢ secundarias); se € uma hipétese organizada estatisticamente ou nao; de que maneira ela vai ser verificada, através de quais relacdes (de causalidade multipla, significativa, associativa); se est4 estruturada em varidveis observaveis ou em varidveis dependentes e independentes; e por af afora. “” Poderia deter-me em muitos outros exemplos, mas creio que 0 indicador mais adequado para demonstrar 0 que estou afirmando estd na rara presenga ou mesmo na auséncia de textos de metodologia na bibliografia usada nas pesquisas. A bibliografia de uma pesquisa € © itinerério ou roteiro intelectual percorrido pelo investigador. Ex- Pressa o tipo de preocupagao com que se defrontou ou que o acom- panhou ao longo da pesquisa. Pois bem, analisando as bibliografias percebe-se que a quase totalidade das citagées, ou so tedricas ou sAo tematicas, indo desde autores cldssicos até pesquisas de mestrado ou de doutorado, as quais, muitas vezes, s6 esto em biblioteca, isto é, nunca foram publicadas 31

You might also like