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by Heloisa Buarque de Hollanda undo o Acordo Ortogrfico da Lingua Portuguesa de wr no Brasil em 2009. Para Maria, Pé e duas Julias, ‘pela parceria e pelo afeto Para Cata, Manu eduas Cicas, no momento certo FEMINISMO NEGRO DE ONDE VIEMOS: APROXIMACGES DE UMA MEMORIA See POR CIDINHA DA SILVA No inicio do outono de 2017, li uma postagem numa rede social nna qual uma jornalista negra na casa dos quarenta anos abracava ante negra de uns 75 anos e a reverenciava como um icone do feminismo negro. R havia me equivocado, jé o texto para ver se nao jue, em vinte anos de convivéncia com a ava feminista negra: ismo negro é mui nas de menos de trinta anos. [...] Conversé gunteis "Vocé ja se chamou feminista negra?”, porque pre se disse feminista Nilza deu esta historia: P ; io, eu sempr fui feminista, Nao tinha feminismo negro, tinha feminismo q era onde eu me encaixava”, E eu diz de mulheres negras, nunca me vi eneaixada nem no [Uurema Werneck, eofundadora da oN@ Grol tual diretora-executiva da Anistia Inter Conelui o 6b poraneo em voga para definir uma mil rentemente nao participou de foruns feministas n 1990 organizados por mulheres negras, dec tante do feminismo negro. A jornalista se confundiu, descon- siderando contextos histéricos e aplicando conceitos atuai atuacao politica pregressa de algumas mulheres negras, prin- {A jomnalista utilizou um conceito contem- ante politica que apa- anos 1980 ndo-se mili cipalmente daquelas consideradas icones. Escolhi iniciar o texto com esse pequeno relato porque ilustra ‘uma confustio bastante presente nestes tempos marcados pelo mo politico organizado e mobilizado via redes sociais. ‘Alguns pontos me parecem centrais para entender o lugar das novas geragdes ¢ seus suportes dle comunicagao. O primeiro se refere ao reconhecimento hist6rico de lugares do fazer politico das mulheres negras organizadas anteriormente ao territério da politica na web, pois existe uma percepeao equivocada de que a roda foi inventada agora. As agbes e construgses politicas solidas ¢ transformadoras vem sendo realizadas hé décadas, por meio de debates, ages formadoras, intervengdes nas areas de educagéo, ide, cu idades, gestao piblica, direito, controle I de politicas publicas, imprensa negra, além de ages afir- rativas e vivencia de manifestagdes culturais que mantém acesa a chama das culturas negras ¢ as dinamizam. © segundo ponto ¢ compreender através de estudo, pes ae didlogo com as mais velhas que muito pouco se invent, ura, rel ‘ura repositério disponivel a toda a humanidade, capaz nar esforcos fisicos e mentais desnecessarios, além de jalizar voos mais seguros. Por isso, preciso comecar lo dela: Lélia Gonzalez, a que moldou o barro. walez é a precursora, no Brasil, de todas asm minaedo da opressao softida e das desigualdades ¢ 253 decorrentes e de promocao da nossa autonomia. Jé no final dos anos 1970, Lélia, articulando questdes ligadas a opresstio de xgénero, raca e classe, alertava sobre a interseccionalidade (sem usar expressio) das violéncias sofridas por nés. Fazia isso enquanto Patricia Hill Collins escrevia as reflexdes que viriam a substantivar o trabalho de ativistas e pesquisadoras negras no Brasil ena América Latina. O fato de a produgao teérica de do advento da internet, que fac cursos feministas e das feministas em si, fez com que seu pen- samento nao tivesse todo o aleance que merecia. Dessa forma, boa parte das jovens feministas negras credita & Kimberlé Crenshaw o conceito de feminismo interseccional (2000-1). Contudo, Lélia Gonzalez jé articulava a ideia vinte anos antes ¢ inspirava Sueli Carneiro, criadora da organizacao negra mais importante dos anos 1990 ¢ 2000, Geledés: Instituto da Mulher Negra. Apesar de nao ter cunhado a expressao feminismo inter- seccional, a génese do conceito jé estava na obra de Léliae em sua intervengao politica. Falava-se, naquele momento, em espe- icidades das mulheres negras, opressao tripla (raga, género, se), depois em opressio miiltipla ou multifacetada. O movimento negro se rearticulou em paralelo a redemocri tizacdo do Brasil, na década de 1980. Digo “em paralelo” porque a luta negra ndo era vista como estruturante na reorgan politica do pais. Hoje, pouco mudou, continuamos & de temas centrais do interesse piblico. © Movim Unificado (mNu), organizagio mais importante de mulheres negras que tensionam as questdes de ge Pensando no caso brasileiro, os embates viv res negras ¢ m 254 tas nas décadas de 1970 € 1980 do uma boa mostra do quanto as expectativas por emaneipacdo econdmica e sexual foram ividas de maneiras diferentes. Em 1988, Luiza Bairros, A época jeres do MNU da Bahia, em sua integrante do Grupo de Mul feminismo. fala no 1 Seminario Nacional xes tedricas e perspectivas", em Salvador, questionava a rela~ fo paternalista ¢ hierarquica estabelecida entre mulheres brancas ¢ negras, ¢ o problema da infantilizagao destas dt mas decorrente disso. A crenca traduzida em tendéncia de as rancas se comportarem como aquelas que poderiam condu: air pol eres negras foi posta em xeque e mal- -entendida em diversas oportunidades. E acredito que isso tenha a ver com a forma como a agenda estabelecida pelo feminismo norte-americano e curopeu dos anos 1960 foi icamente as n incorporado na América Latina e no Caribe. [ina Flva Magalies Pito, professora na Un] Ampliavam-se também os coletivos de mulheres negras nas cidades € estados, estabelecidos pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (cNDM), mais especificamente pelo Programa, Mulher Negra, ctiado por Sueli Carneiro, na época uma das diri- gentes do conselho. Os coletivos de mulheres negras eram orga- nizagées apartidarias que tinham como objetivo reunir mulheres negras oriundas de diferentes agremiagdes para diseutir suas especificidades na sociedade brasileira e organizar politieamente importante destacar que esse tipo de onganizacdo auténoma, tanto dentro como fora das orge nizagdes mistas, enfrentou forte resistencia dos homens negi que utilizavam o discurso débil e exclusivista de que a negras estavam dividindo o movimento. Nos Encontros Nacionais de Mulheres Negras tento .¢a0 Nacional de Mulheres Negras, sempre mai res negra mulhere ama Organi or distensdes regionais e disputas internas. M foram lideres em varias conferéncias internacionais que tratavam, dos direitos das mulheres, momento em que era possivel espelhar ‘0s debates internos ¢ estabelecer aliangas no plano internacional. A construgdo de uma organizacao nacional de mulheres negras $6 se consolidou em 2000, durante o processo preparat6rio da 111 Confe réncia Mundial Contra o Racismo, que ocorreria no ano seguinte em Durban, na Africa do Sul, quando foi criada a Articulacéo de Organizagdes de Mulheres Negras Brasileiras (aMNB). Lembro-me quando cheguei a Sao Paulo, em 1988, aos deze- fe anos, para participar de uma das sessdes do ‘Tribunal Win- nie Mandela e fui acolhida amorosamente pelas mulheres do Geledés. Algumas coisas me impressionaram nesse primeiro contato: a eloquéncia e a elegncia discursiva de Sueli Carneiro e sua generosidade. Ao mesmo tempo, fiquei chocada com sua braveza e com os discursos das outras mulheres, que arrancavam palmas frenéticas da plateia. A aglomeracao de tantas mulheres negras no mesmo espaco, cheias de poder e certezas, também me impactava. Das conversas que escutei depois do tribunal, guardei trés pontos: existia uma estratégia do Geledés de ocupar espacos institucionais, possiveis formuladores de politicas publi cas para mulheres negras; 0 culto aos orixas era forea motriz, para muitas daquelas mulheres; e, por fim, a percepeao de que havia uma distineao entre o movimento de mulheres negras e o movi- mento feminista, do qual algumas mulheres negras faziam parte. Nao se falava em feminismo negro, ou pelo menos eu no ouvi. Parecia haver um entendimento de que a expresso “movimento de mulheres negras” poderia abarcar mais mulheres de origem popular e camponesa, trabalhadoras domésticas e outras catego rias profissionais de remuneracdo mais baixa, nas quais as mulheres negras abundavam. Haviaaa distinc2o geral entre movimento de mulheres negras ¢ movimento feminista. A expressti cara e tom mais europeizados 256 Feminista de Garanhuns, em 1987, parece ter havido uma insur- rei¢do das mulheres negras contra o feminismo branco, que no conseguia ouvi-las com a atenedo necessaria — e muito menos 10 para desconstruir privilégios de raga e classe. Posso dizer que existe uma narrativa de critica de feminis- tas negras em relacao as feministas brancas pela auséneia da autocritica em relagdo ao racismo. © final dos anos 1980 ¢ 0 infcio dos anos 1990 foram marcados por uma perspectiva mili- tante e tedrica de enegrecimento ¢ pluralizacao do feminismo. Na époea do Nzinga, uma outra organizacao muito forte foi ti se femninista, mas participava das ati- vidades dos grupos feministas, dos encontros feministas — quase todas as organizacdes de mulheres negras participa- ‘vam de encontros feministas —, sem falar que eram feministas, © Centro de Mulheres de Favelas e Periferia (cemurr) [1 que nunca se ‘eve um encontro latino-americano de feministas em Ber- tioga e nese encontro o cEMuFP organizou um énibus que levava mulheres negras para participar. Deu uma grande ica, um grande atrito. O encontro parou em torno da presenca delas, num debate se elas entrariam ou se elas nao trariam no encontro. [..] Terminaram nao sendo rejeita- s, mas nao foi simples. [...] Isso pra dizer que sempre ouve organizagdes aqui no Rio de Janeiro de mulheres , tirando Lélia, tirando poucas, poucas muito impor tas. Sempre ntes, € as outras nunca se disseram fe1 n em movimento de mulheres negras e sempre a m o movimento feminista foi mais de eonflito do que jcimento. [Juroma werneck) 's nasceu em 1988 ¢ inspirou o surgimento de nomas de mulheres negras pi 257 Criola e Blogueiras Negras. Sobre a organizacao, é importante ressaltar alguns aspectos inovadores: 4. A responsabilidade da instituiedo na consubstanciaeao da questao racial no campo dos direitos humanos, ou seja, a nocao de que é um direito viver sem racismo; 2. A criagao de um programa de comunicacao por antever o papel da area comunicacional na disputa de narrati- vas sociopolitico-culturais que nos tomaria nas décadas seguin- tes; 3. 0 trabalho com as juventudes negras na area de cultura por meio do antoldgico Projeto Rappers, uma i contribuiu muito para a deseriminalizacdo e orga movimento hip-hop em $40 Paulo; 4. A publicacio da revista Pode Cré! (1992-4), um projeto impresso esteticamente bem eui- dado e com contetido inovador, produzido pelos rappers do projeto. O veiculo positivava e difundia a ideia de uma juven- tude negra detentora de voz.ativa. Em 1996, a revista Raga Brasil chamou a atengio do pais, mas podemos dizer que a Pode Cré! ua precursora e néo devia nada em termos estéticos; 5. A criagao e efetivacao dos primeiros programas de agao afirma- tiva no Brasil, em parceria com empresas, com vis ver 0 acesso, a permanéncia e o sucesso de jovens negros em boas universidades, antecipando 0 debate sobre as acdes afir~ mativas para negros como estratégia de combate as desigualda: des raciais, que s6 tomaria folego em fins de 2001 ¢ inicio de 2002 pelas portarias do governo Femando Henrique e pela ado- do de cotas para negros em universidades. F, finalmente, a criagao ¢ a manuten¢ado diria do Portal Gele- dés, um dos mais importantes e acessados do pats eo mais eon- sultado para medir a pulsagdo das questdes raciais. Em 1992, durante o Primeiro Encontro de Mulheres Negras da Amé tina e do Caribe, na Repitblica Dominicana, instituiu-se 0 cana e Caribenha. Em 2014, a presidenta Dilma sancionou essa mesma data como Dia Nacional de Tereza de Benguela da Mulher Negra e, desde entao, cresceu no Brasil o numero de eventos politicos e culturais que objetivam discutir pautas das mulheres negras, ao mesmo tempo que também fazem circular sua produgao intelectual e artistica. Dessa forma, firma-se o més de julho como més das mulheres negras brasileiras, Em 1995, ocorreu a Marcha Zumbi dos Palmares contra 0 Racismo, pela Cidadania e pela Vida, que reuniu milhares de pe soas em Brasilia em atengao ao tricentendrio de morte de Zismbi dos Palmares. As mulheres negras e suas organizagdes participa- ram decisivamente da organizacao e da execugdo da marcha. Nesse mesmo ano, foi publicado na revista Estudos Feministas da URRY 0 dossié “Mulheres negras brasileiras: De Bertioga a Bei- jing", organizado por Matilde Ribeiro, futura ministra da Seppi no primeiro governo Lula. Em 1997, aconteceu em Sao Luis, Maranhao, a Jornada Lélia Gonzalez, promovida pela Fundagao Cultural Palmares, que reuniu expoentes negras de todo o pais e trouxe ao Brasil pela primeira vez a lendéria Angela Davis. Em 2000, foi publicado O livro da satide das mulheres negras: Nossos ‘passos vem de longe, organizado por Jurema Werneck, Maisa Men- dona e Evelyn C. White, obra-marco daquele period. Nas décadas de 1980 e 1990, as reflexdes de Sueli Carneiro foram materializadas em textos que se transformaram em farol para a luta das mulheres negras brasileiras. Isso acontece até hoje, s6 que agora ela é acompanhada por diversas vozes, mui- tas inspiradas na propria Sueli: Da primeira vez que eu ouvi o nome da Sueli Carneiro foi por ‘uma amiga do Rio, que éa Silvana Bahia, também uma mul negra ativista, Eu conheci, quando estava estudando, pesqui- sando sobre mulheres negras, ai depois fui conhecera Beatriz, Nascimento, Depois, uma amiga minha que ¢ mais ligada lesbofeminismo, me mostrou umas coisas da Audre Lord {que eu gosto muito, inclusive, Enfim, eu fui adquii referencias, que nem sao das fem istas mais conhecidas, mas acho que a gente também acaba percebendo que nds, nos nos- 80s territ6rios, nas nossas construgdes, também fomos eriando um conceito sobre 0 que é 0 nosso feminismo. [Wenyter Nascimento} Nas décadas de 2000 ¢ 2010, houve a consolidacao do femi- nismo negro com a formagao da Articulacdo de Organizagdes de Mulheres Negras Brasileiras, que a meu ver demarca o amadu Tecimento das organizacdes de mulheres negras. Esse parece ter sido o momento em que se fez uma opeao explicita pelo femi- nismo negro. Outro fator importante somou-se a esse: a entrada significativa de mulheres negras politicamente posi nos programas de pés-graduacdo das universidades bras € como docentes, Penso que nesse processo ganhou forga a ideia de feminismo negro, a necessidade de assumir esse nome e tam- bém de produzir uma teoria feminista negra no Brasil. 0 Ultimo ponto refere-se 4 Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo ¢ a Violéncia'e pelo Bem Viver, momento impar na historia de atuagao politica das mulheres negras organizadas, protagonizado por nordestinas que lideraram 0 Processo, criaram, fizeram valer o projeto e mobilizaram 0 Bra- inteiro. B, vejam, estévamos jé em 2015, nado se tratava de uma marcha de autoproclamadas feministas negras, eram mulheres negras em marcha. Se, na segunda década do século xxi, verificamos o cresci- ‘mento da atuagao de jovens feministas negras na web e mulhe- Tes negras competentes ocupando espacos significativos na televisdo, nos telejornais e nos portais de noticias, é porque foram beneficiadas pela luta das mulheres negras organizadas dos anos 1980 até os dias de hoje. 260 QUEM SOMOS: MULHERES NEGRAS NO PLURAL, 4 Nossa EXIsTENctA é PEDAGOGICA POR STEPHANIE RIBETRO Recentemente, dei uma palestra sobre a mulher negra na socie- dade brasileira. Em meio a dados e vivencias pessoais, tracei um panorama evidenciando como género, raga e, na maioria das vezes, classe funcionam para subalternizar, invisibilizar e marginalizar as narrativas de mulheres negras. Estamos falando de uma sociedade na qual o ideal de ser humano ¢ 0 homem branco, e 0 ideal de mulher ¢ a mulher branca. J4 0 ideal de negro, até mesmo dentro do préprio movimento negro, ¢ 0 homem negro. F nessa sociedade que eu existo, mulher negra, Tegando no meu corpo raga e género: me fazendo nao ape- mulher, mas negra; e ndo apenas negra, mas mulher. 56 partir de uma andlise que integra esses dois fatores é p tender o aumento de néimeros como os de assassinatos de nulheres negras (54,2%) no decorrer da iltima década, enquanto ndice entre as mulheres brancas diminutu (9,8%). ses dados narram 0 nosso cotidiano, as nossas lembran- de que mbém negras. Ndo se trata aqui de uma concorrénci ais, mas do entendimento de que ra Jas mulheres, a possibilidade de estar as veres, se esquecem de que esses niimeros si 9 menos darem espaco 264

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