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o 2018 by Heloisa Buarque de Holanda lizada sequndo o Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa de e entrou em vigor no Brasil em 2009. Piola: Campania direitos desta edigao reservados & DITORA SCHWARCZ S.A. Rua Bandeira Paulista, 702, ¢-32 mpanhiadasletras.com.br ‘wwublogdacompanhia.com.br jcompanhiadastetras \jcompanhiadasletras Para Maria, Pé e duas Julias, pela parceria e pelo afeto Para Cata, Manu eduas Cicas, no momento certo referéncias, que nem so das feministas mais conhecidas, mas acho que a gente também acaba percebendo que nds, nos nos- 0s territérios, nas nossas construgdes, também fomos eriando ‘um coneeito sobre o que é 0 nosso feminismo. [venyar Nascimento} Nas décadas de 2000 € 2010, houve a consolidacao do femi- nismo negro com a formagao da Articulacao de Organizagoes de Mulheres Negras Brasileiras, que a meu ver demarea o amadu- recimento das organizacbes de mulheres negras. Esse parece ter sido 0 momento em que se fez uma op¢ao explicita pelo femi- nismo negro, Outro fator importante somou-se a esse: a entrada significativa de mulheres negras politicamente posicionadas nos programas de pés-graduacao das universidades brasileiras. e como docentes. Penso que nesse processo ganhou forga a ideia de feminismo negro, a necessidade de assumir esse nome e tam- ém de produzir uma teoria feminista negra no Brasil. © titimo ponto refere-se A Marcha das Mulheres Negras Contra 0 Racismo e a Violéncia e pelo Bem Viver, momento impar na historia de atuacdo politica das mulheres negras organizadas, protagonizado por nordestinas que lideraram 0 proceso, criaram, fizeram valer o projeto e mobilizaram 0 Bra- sil inteiro. B, vejam, estavamos jé em 2015, nao se tratava de uma marcha de autoproclamadas feministas negras, eram mulheres negras em marcha. Se, na segunda década do século xx1, verificamos o cresci- ‘mento da atuagao de jovens feministas negras na web e mulhe- res negras competentes ocupando espacos significativos na televisao, nos telejornais ¢ nos portais de noticias, é porque foram beneficiadas pela luta das mutheres negras organizadas dos anos 1980 até os dias de hoje. 260 (QUEM SOMOS: MULHERES NEGRAS NO PLURAL, NOSSA EXISTENCIA £ PEDAGOGICA —See POR STEPHANIE RIBEIRO Recentemente, dei uma palestra sobre a mulher negra na socie- dade brasileira. Em meio a dados e vivencias pessoais, tracei um panorama evidenciando como género, raca e, na maioria das vezes, classe funcionam para subalternizar, invisibilizar e marginalizar as narrativas de mulheres negras. Estamos falando de uma sociedade na qual o ideal de ser humano é 0 homem branco, ¢ o ideal de muther é a mulher branca. Ja o ideal de negro, até mesmo dentro do prdprio movimento negro, € 0 homem negro. f nessa sociedade que eu existo, mulher negra, carregando no meu corpo raca e género: me fazendo nao ape- nas mulher, mas negra; e ndo apenas negra, mas mulher. $6 a partir de uma andlise que integra esses dois fatores ¢ possivel entender 0 aumento de ntimeros como os de assassinatos de mulheres negras (54,2%) no decorrer da tiltima déeada, enquanto © indice entre as mulheres brancas diminuiu (9,8%). Esses dados narram 0 nosso cotidiano, as nossas lembran- ‘cas, as nossas historias de familia e a nossa luta enquanto femi. jstas negras. Nao se trata aqui de uma concorréneia de quem, morte mais, mas do entendimento de que raca define, também no caso das mulheres, a possibilidade de estar ou nao viva, Mui- as vezes, se esquecem de que esses niimeros so pessoas ¢ os 1m sem ao menos darem espaco para que os negros falem 261 sobre si. Ainda assim, alguns dizem ser censurados quando ‘amos nosso lugar de fala. Veja bem, censura é a nossa lizago, enquanto a narrativa tinica que nos faz objeto de estudo permanece. Portanto, temos a prerrogativa de que cada sujeito parte de um lugar de fala diferente, uma demarca- ‘80 politica da identificacao de cada um, Assim, buscamos esta- belecer que nenhuma narrativa é universal. Depois da palestra em que apresentei esses ¢ outros pontos, uma mulher branca chegou até mim e disse que nao entendia a dificuldade de mulheres negras e brancas dialogarem no movimento feminista atual. Ora, desde 2012, quando eu tinha dezoito anos ~ e sem nocao dos perigos que representava tra- tar do feminismo negro numa sociedade que nao superou seu 6dio racial e de género —, venho escutando com frequéncia variagdes dessa fala: “Calma, nao seja agressiva. Estamos jun- tas nessa. Somos irmais, cadé a sororidade?”. Sempre preferi, ao responder a essa pergunta, sublinhar que nao criamos uma nova sociedade com discursos conforti- veis para aqueles que se beneficiam dos privi estruturais, Sendo assim, eu ndo sou agressiva, mas meu discurso tem que ser enfattico. Se nao fosse, eu estaria rifando a vida de inumeras mulheres negras que ainda nem sequer podem falar ou serem ouvidas num pafs que se diz democritico racialmente enquanto ceifa vidas negras todos os dias. Apenas depois de dizer isso «que posso partir para um dilogo, pois dialogar pressupée que ambas as partes entendam a situacdo. E o meu lugar é este: de quem, por ser negra, nao concilia, mas rompe. Portanto, meu discurso é 0 do incémodo e muitas vezes oda raiva. Se as pessoas sentiram isso até aqui, significa que estou no ‘camino certo. Afinal, nenhum incomodo ¢ tao grande quanto 0 das violéncias perpetuadas por séculos contra corpos negros e femininos. Por isso, afirmo que a irmandade morana escutaena autocritica, ¢ nao na tentativa de apaziguar para nao criar ruptu- 262 ras. Nos, mulheres negras, estamos lutando, mas nao pela conci- liagdo em um contexto em que assistimos a cada 23 minutos um jovem negro ser morto no Brasil por ser negro. Nés, mulheres negras, estamos aqui para destruire reconstruir um novo modelo de sociedade, de relagdes ¢ de narrativas. Isso nao é se opor a0, feminismo de mutheres braneas, tido muitas vezes como 0 modelo universal, mas somar e, paralelamente, dar luz a relatos que ndo s2o contemplados por esse discurso. Em outras palavras: As formulagdes de muitas mulheres negras estabeleceram diferentes perspectivas de feminismo negro, ganharam forea ita € ressondncia entre nés em eseala transnacional e exp! ram pontos, didlogos e contraposigoes sistemsticas ao fe niismo hegem@nico. Mais uma vez, 6 preciso ressaltar que essas formulacdes foram elaboradas para fazer frente aos prejuizos a vida das comunidades negras, e nao como uma ‘mera disputa com o feminismo brane. {na Flavia Magales Pinto) Narrativas miiltiplas foram constantemente si longo da historia do feminismo ao se impor uma tinica forma de pensar género e até mesmo raga. Por isso, 2 nossa narrativa nasce desse recorte politico no qual nao somos todas i pois esse debate privilegia a mulher branca como tnica sujeita realmente contemplada em diversas frentes, discussdes e debates. Precisamos enfatizar que nao existe uma MULHER, existem MULHERES. Portanto, nao existe FEMINISMO, existem FEMINISMOS. Caso isso nao fique explicito, nés, negras, ¢ todas as outras mulheres socialmente mareadas por opressoes (indi- genas, asidticas, deficientes, trans) seremos engolidas e colo- cadas como coadjuvantes em uma luta que sempre pretendeu, pelo menos em seus discursos, emancipar todas as mulheres. Nossa existéncia feminista negra se faz pedagdgica dentro do 263 proprio movimento feminista ao abarcar um proceso de reedu- cacao sobre os diferentes lugares e perspectivas femininas numa mesma sociedade. No que tange as mulheres negras, pautar essa pluralidade é ;portante para nao ignorar que muitas de nés ainda nao se istas, muitas vezes por conta da inea- pacidade do discurso feminista branco em dialogar da ponte para e4, Isso acontece quando se recusam a admitir que nao sto universais. Vale ressaltar, porém, que muitas das que no se intitulam feministas negras so grandes exemplos para feministas negras como eu. No Bras tem mulheres negras que se identificam como feministas periféricas, feministas negras interseceionai feministas negras radicais, feministas negras trans, mulheristas, feministas ete. £ importante nao colocar todas no mesmo bolo € também nao negar 4s mulheres negras 0 direito de autonomeacao. Eu me identifico como feminista negra interseccional. Acrescento 0 interseccional como forma politica de dizer que meu diseurso e meu ativismo tém a interseccionalidade como ponto de partida. Dito isso, por mais que visdes preestabelecidas apostem que todos nés, negros, somos uma coisa s6, nao existe UMA MULHER NEGRA. Existem milhares, como mostrou a Marcha das Mulhe- res Negras de 2015, quando varias de nds, de diferentes idades, tonalidades e origens, marchamos juntas. Apresentamos os posicionamentos de todas, unidas contra o retrocesso daquele momento ¢ em prol das nossas demandas, que precisam ser rea- firmadas até mesmo em governos progressistas. ‘Acho que o grande legado da Marcha das Mulheres Negras fot criar um espago horizontal e abrigar muitas mulheres de dife- rentes coletivos, lugares e petspectivas. [..J Durante a constru- ‘¢40 da marcha, a gente dizia: “A marcha nao €a marcha em si, nao é chegar a Brasilia, é 0 caminho". Porque, no processo da 264 Marcha das Mulheres Negras, muitas meninas que nao tinham_ contato ainda com as questdes raciais ou estavam se formando conseguiram, através dos eventos promovidos pela marcha nos ‘mais diferentes estados, entrar em contato com a luta negraea luta da mulher negra. [..] Acho que tanto 0 movimento negro como 0 movimento de mulheres passaram a ganhar mais forea quando as mulheres negras resolveram incidir em bloco em todas as outras manifestagdes. [uullana Goncalves, jornaista] Por mais que se diga que mulheres nao tém poder, nossa forea foi mostrada quando 50 mil mulheres negras marcharam juntas ‘em meio ao caos politico que se estabelecia. O poder racista tam- bém marcou a histéria do feminismo, visto como uma Tuta ape- nas de mulheres brancas, numa clara manifestagao do privilégio racial do qual elas se beneficiam. Portanto, algumas mulheres tem o poder de apagar da hist mportancia de mulheres negras para a luta feminista, de silenciar as narrativas nao bran- ‘cas, O filme As sufragistas, de 2015, é um belo exemplo da aplica- ao desse poder na atualidade, Muitos dirao que nao existiram yraneas na luta pelo suftdgio, apagando a participagtio de mulheres asiaticas e negras, que ja naquela época eram tripla- (e oprimidas por questdes de raca, classe e género ¢ estive- n muitas vezes na linha de frente dessa luta, Foram, inclu imas do racismo das prOprias “companheitas” brancas. no impediu que nomes como Ida B. Wells, Anna Julia Goo- ¢ Harriet Tubman surgissem. Esta tiltima nao apenas lutou iberdade mais de setecentos escravos. Sua luta e impor- ia se assemelham & historia de Sojourner Truth, também \ericana abolicionista e ativista dos direitos das mulhe- 265 Tes, responsavel por um discurso lendario sobre o lugar que as mulheres negras ocupam numa sociedade na qual género ¢ raga sao marcadores cruciais: Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda ‘para subir em carruagens, e devem ser earregadas para atraves- sar alas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam, Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre pocas de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E no sou uma mulher? Olhem para mim! Othem para ‘meus bragos! Eu areie plantei, ejunteia colheita nos celeiros,e homem algum poderia estar minha frente. E nao sou uma ‘mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qual- quer homem — desde que eu tivesse oportunidade para isso —e suportar o agoite também! F nao sou uma mulher? Eu pari trezefilhos ¢ vi a maiotia deles ser vendida para a escravidio, e ‘quando eu clamei com a minha dor de mae, ninguém a nao ser Jesus me ouviu! E nao sou uma mulher? {Sojourner Truth} Endo sou uma mulher?” A frase ainda ecoa na minha e em tantas outras realidades negras. Mulheres brancas se destaca- ram na luta pelos direitos das mulheres sem, em sua maioria, considerar que no somos todas iguais, que 0 conceito univer- sal de mulher baseado na mulher branea nao apenas nao nos representa como nos oprime. Onde nés estamos na historia da luta pelos direitos das mulheres? Como mostra Luana Hansen, talvez a hist6rica fala de Sojourner seja mais atual do que devia: ‘Muitas vezes as pessoas nao percebem que falta uma mulher negra em mesas que falam sobre mulheres. Colocam uma ‘mulher azul, uma mulher amarela e esquecem das mulheres negras. Assim como se esquecem de contar historias de mulhe- 266 res negras.[.] &por isso que as mulheres negras esto brigando por um feminismo negro, © que, por um lado, eu eoncordo, Enquanto as mulheres queimavam sutia para ir trabalhar, n6s, mulheres negras, sempre estivemos trabalhancio; a gente nunca brigou para ir trabalhar,a gente brigou para ser respeitada. {tana Hansen, rapper] Nos dias de hoje, nés, feministas negras, estamos questio- nando narrativas impostas com a quebra coletiva do nosso silencio, para que um dia talvez,possamos dizer que somos ape- nas feministas, ndo feministas negras. Isso vem nos dando espacos até entao inéditos. Nao é somente na midia alternativa que se fala de feminismo negro, ele esta presente também na midia hegeménica, Por enquanto, nossas falas geram impacto, mas ainda so poucos que de fato se mobilizam ao nosso lado para construir uma sociedade igualitaria. essa forma, ainda se faz necessério ter a palavra “negra” depois de “feminista”. Essa palavra marca e reflete como somos fruto da hist6ria do Brasil, na qual a mulher negra escravizada era vista como mao de obra explorada nas lavouras ou nos espacos domésticos. A grande diferenca entre a mulher negra eo homem. negro escravizados estava na maneira como sua sexualidade e direitos reprodutivos eram vistos. Se o senhor via na negra escra~ vizada a possibilidade de exacerbar seus desejos sexuais e violen- tos através de estupros, a senhora via esses corpos como passiveis de maus+tratos quando notava o interesse de seu marido ou de seus filhos. Jé nas senzalas das grandes fazendas, as eseravizadas tinham seu corpo e sua sexualidade cedidos para os proprios homens eseravos, numa proporeao média de uma para quatro. essa forma, como é possivel ser uma mulher negra ¢ nao lutar pelos seus direitos? E preciso entender que ser uma muther negra lutando contra o racismo ¢ o machismo nao é uma escolha, dada a forma como essa 267 hist6ria ainda marca nossos corpos ¢ nossas realidades. O anseio por liberdade floresce numa sociedade que mantém nés, negras, num lugar de subalternidade e exploracdo. Continuamos como babés, empregadas domésticas, destinadas a Area de servico, em {quartinhos escuros e mal ventilados. Seguimos presas a esse lugar social ainda marcado pelos quase trezentos anos de escravidao. ‘Todo 0 imaginario que retira a subjetividade dos nossos cor- pos permanece presente em pleno século x1. Depois da aboli- ‘¢40 da eseravidao, a mao de obra negra continuou abundante & sem qualificagao que possibilitasse mobilidade social, e no entanto o lugar da exploragao foi mantido. Dados do Férum Nacional de Preveneio e Erradicacao do Trabalho Infantil (eNpeTr) evidenciam essa realidade ao apontar que 67% dos empregados domésticos menores de idade no Brasil sdo negros, sendo 93,7% meninas. Na minha familia, por exemplo, todas as negras serviram a alguma familia, limpando suas privadas € varrendo seu chao, Nossa heranga familiar nao ¢ ouro, ¢ luta —emuitas vezes calos — que passa de uma mao para a outra. Eu quebrei o ciclo a0 me formar na universidade, mas, quando sse é negro, nada garante que a prdxima geracito dé essa continui- dade. Estamos tentando romper um modelo tinico de existéncia, lutando contra uma narrativa que nos trouxe até aqui, sem a escolha de ndo lutar. Jenyffer Nascimento mostra como a nossa formacao enquanto feministas negras surge de uma necessidade de sobrevivéncia, que jé apresenta intimeros desafios dado o nosso histérico familiar de resistencia: Quando eu vou elaborar meu feminismo e pensar qual foi o ‘momento em que me percebi feminista, vejo que jéera femi- nista hd muito tempo, s6 no sabia que o que eu sentia tinha esse nome. [.-] Fiquei relembrando um pouco a historia da minha av6, que foi uma mulher que se separou do primeiro marido por conta de questdes de violéncia e, mais tarde, 268 ‘quando ela se envolveu com outro rapaz, quase foi assassi- nada pelo meu avd. [venyer Nascimento, onc Bloco do Beco, coletivo Fala Guerreira e ‘coletivo Periferia Segue Sangrando) Em 2014, Cliudia da Silva Ferreira foi baleada c arrastada por mais de trezentos metros pela Policia Militar numa operaco no Morro da Gongonha, no Rio de Janeiro. Conhecida como Cacau, era mae de oito filhos, sendo quatro deles sobrinhos adotados. :ra auxiliar de limpeza e nao tinha nenhuma passagem pela polfeia, Morreu a caminho de comprar comida para os filhos. Quem chora por Claudia? Quem serd a proxima Claudia? Bssas so as perguntas que nds, negras, fazemos diariamente quando o Estado, que deveria nos proteger, institucionaliza a nossa morte e faz dela um projeto de limpeza social e étnica. 6 o que chamamos de genocidio da populacdo negra. Quando nao morremos por tiros, tiram a nossa alma. A escri- tora Neusa Santos Souza, autora de Tornar-se negro, um dos livros mais importantes sobre a questio racial brasileira, se suicidou. Neusa era psicanalista lacaniana, negra, baiana e ascendeu social- mente ao estudar medicina e psicandlise. Estas sao suas palavras: ‘Aboligao da eseravatura quer dizer aqui fim da humilhagao, do desrespeito, da injustiga. Aboligao da eseravatura quer dizer libertagdio. Mas sera que acabamos mesmo com a injustica, com a humilhagao e com o desrespeito com que © conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Serd que acabamos com a falta de amor-proprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Ser. que {j4 nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadaios de segunda categoria? Sera que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser?? Nossos filhos, irmdios e pais esto sendo assassinados. Nao podemos deixar que a nossa luta no considere essa realidade. Uma mulher branca e feminista consegue se distanciar de homem branco com muito mais facilidade do que nés, negras, conseguimos de um homem negro em nossa pauta politica. A conseiéneia de género passa a ser também racial, e vice-versa: E af, enquanto voce nao para pra pensar, por exemplo, nesta questo “genocidio da populagao negra x aborto”, voeé nao consegue parar de tera bandeira do aborto como uma coisa superimportante, mais importante do que a sobrevivéncia, sabe? Eu fico um pouco receosa de falar e nao ser compreen- ida, de as pessoas acharem, por exemplo, que eu estou. falando contra o aborto. Nao estou falando contra 0 aborto, 6 dizendo que, pra mim, eu posso falar como mae também, eu ainda estou na luta para que as minhas filhas ¢ 05 meus parentes possam sobreviver. [aria Nila, a Dinhe, uma das precursoras do movimento de literatura ‘marginal em Sio Paulo] ‘A ampliagao do acesso a universidade através de cotas, to pleiteadas pelos movimentos negros, mudou sem diwvida o lugar de algumas mulheres negras. Nomes como Lélia Gonzalez, Virginia Bieudo, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jurema ‘Werneck e Djamila Ribeiro se destacam na luta como académi- cas, professoras, intelectuais e escritoras negras: Elas so 0 ponto de partida para iniimeras negras mais jovens, que as veem como suas referencias académicas: bell hooks é uma das intelectuais que leio e que até hoje me alimenta porque também fala desse lugar do femii academia, da construgdo de um campo de estudo, de uma discussio do feminismo na universidade norte-americana, 270 Outras referéncias sto Sueli Carneiro e Beatriz Nascimento, que so as autoras que mais me influenciaram para pensar as priticas de militaneia ou de produgao de discuss6es sobre experi@neias académicas das mulheres negras. [Gabriela Gaia] Quando me formei na universidade, 0 eapelo, aquele cha- péu de formandos, nao encaixava nos meus eabelos crespos. Senti como se fosse uma lembranga de que aquele nao era um lugar para pessoas como eu. As cotas me colocaram na univer- sidade, mas a universidade nao formulou politieas de perma- néncia que garantissem que pessoas como eu se sentissem parte e dignas nesse espaco. Entender esses detalhes da viven- cia universitéria ¢ de extrema relevancia para pontuar que uma mulher negra com diploma necessariamente passou por uma série de violéncias subjetivas. Uma mulher negra no ensino superior é excegao & regra, mas € fruto da luta de todas aquelas citadas até aqui — e também daquelas que por deseuido ou desconhecimento nao o foram. No entanto, diante de todos esses avancos, ainda impera o silenciamento da nossa eapaci- dade enquanto intelectuais e geradoras de opiniao. Ea distin- ao entre um “lugar” preestabelecido socialmente para ser ocu- pado pelas negras, da marginalizacdo e de um comportamento visto como hostil, ¢ um “nao lugar”, da intelectualidade e do pensamento critico. ‘A mulher negra no Brasil ainda é vista segundo um modelo nascido do colonialismo e da escraviddo. Ou é uma Tia Nasti- cia, personagem de Sitio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, boa para o trabalho servil, silencioso e constante; ou é uma Rita Baiana, personagem de 0 cortigo, de Aluisio Azevedo, a mulher sensualizada e selvagem, parte do imagindrio sexual de homens violentos. Qual personagem da literatura clissica brasileira traz uma mulher negra inteligente e virtuosa? Se niio entramos no mérito de debater o que ainda faz a mulher negra ocupar os piores empregos, receber os piores salé- ios e ser submetida as piores condigoes de satide no Bras podemos marginalizar um suposto comportamento: mulher negra, que é apenas uma resposta A negligéncia do Estado e da sociedade. Somos apenas mulheres negras diante de uma situagao de desigualdade de género e raga, nos esforgando luas, trés, quatro vezes mais para que nossas pautas e vidas nio sejam apagadas. Por isso, ainda nao ¢ facil ser uma fem negra no Brasil. Nao ¢ facil educar até mesmo feministas homens negros para que nos vejam com direitos ¢ ao respeito, mesmo nas nossas diferencas. A mental dade colonial se perpetua quando muitos dos simbolos do femi- nismo e da esquerda nacional se esquecem da mulher negra, que continua limpando 0 chao das universidades e das casas. Nos nao esquecemos. A nossa ancestralidade nos guia. Como pontua Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo € desestabilizado a partir da base da piramide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo” PARA ONDE VAMOS: INTERNET, LACRE E A INTERSECCIONALIDADE Causando um tombamento Também t6 corregado de argumento Seu discursondo convence, sé lamento Sequra a ondo, Sendo ficaré ao relento KoralConko, "Tombei” Acepigrafe deste texto traz um trecho de “Tombei”, miisica da cantora, rapper e apresentadora Karol Gonka, um marco para 272 meee tt! consolidar a geragéio tombamento. Essa geracao, de jovens negras e negros cansados da invisibilidade estética e do repi- dio as suas caracteristieas fisicas, vistas como negativas por uma sociedade racista, passou a ignorar o que 0 mereado define como padrao ¢ a recriar sua propria defini¢ao de esté- tica. Lacraram. As trancas, comuns entre as matriarcas negras, ficaram coloridas. Os turbantes, que as avés e mies usavam na casa da “patroa”, ganharam cores e estampas para sair na balada. O cabelo, que foi um problema na infancia, hoje é visto como solucao. A geracdo tombamento é um mix de afirmacao da sua ancestralidade com (te)eriagao de uma possibilidade histérica. Isso a aproxima do contexto aftofuturista — movi- mento que utiliza misica, arte e moda para fazer uma mistura da cultura africana com tecnologia, ciéncia e futuro. A geracdo tombamento cria para si imagens de referéncia que até ento haviam sido negligenciadas. B nao é sé uma questao de representatividade, mas de experimentacao, auto- nomia ¢ reimaginacdo sobre si mesmo, O resultado? Um con- tingente de jovens negros, em sua grande maioria de origem periférica, que por meio da estética e da cultura transformam seus corpos, até entdo mar; riminalizados por um sistema excludente, em at itica, reafirmando sua negritude. Endo é um movimento apenas nacional: a valoriza- cao da beleza negra e 0 tombamento brasileiros influenciam e interagem com varios tombamentos pelo mundo, como com os Fas Rebels (Africa do Sul) e os Afropunks (que nos Esta- dos Unidos e na Europa tém representantes famosos como S30 negros que de forma nao premedi- tada criam uma estética mundial bastante semelhante.* i necessério considerar como o acesso a internet e as redes sociais mudou algumas relacdes e visbes de sujeitos sobre si. A rede reconfigura um contexto no qual o racismo tornava reconstruir a autoestima do negro, jé que antes nao havia exem- 273 Se niio entramos no mérito de debater o que ainda faz a mulher negra ocupar os piores empregos, receber os piores salé- rios e ser submetida as piores condigdes de satide no Brasil, no podemos marginalizar um suposto comportamento agressivo da mulher negra, que € apenas uma resposta a negligéncia do Estado e da sociedade. Somos apenas mulheres negras diante de uma situagao de desigualdade de género e raga, nos esforgando duas, trés, quatro vezes mais para que n« sejam apagadas, Por isso, ainda nao é fécil ser uma feminista negra no Brasil. Nao ¢ facil educar até mesmo feministas e homens negros para que nos vejam como iguais no acesso a direitos e ao respeito, mesmo nas nossas diferencas. A mentali- dade colonial se perpetua quando muitos dos simbolos do fer nismo e da esquerda nacional se esquecem da mulher negra, que continua limpando 0 chao das universidades e das casas. Nos nao esquecemos. A nossa ancestralidade nos guia. Como pontua Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo € desestabilizado a partir da base da piramide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”.s PARA ONDE VAMOS: INTERNET, LACRE E A INTERSECCIONALIDADE Causando um tombamento Tombém t6 corregada de orgumento Seu discurso ndo convence, sé lomento Segura a ondo, sendo ficaré ao relento Korol Conka, “Tombei” A epigrafe deste texto traz um trecho de “Tombei”, miisica da cantora, rapper e apresentadora Karol Conka, um marco para 272 consolidar a geracdo tombamento. Essa geracao, de jovens negras e negros cansados da invisibilidade estética e do repi- dio as suas caracteristicas fisicas, vistas como negativas por uma sociedade racista, passou a ignorar o que o mereado define como padrao e a recriar sua propria definigao de esté- tica. Lacraram. As trancas, comuns entre as matriarcas negras, ficaram coloridas. Os turbantes, que as avés e mies usavam na casa da “patroa”, ganharam cores e estampas para sair na balada. O cabelo, que foi um problema na infancia, hoje é visto como solucao. A geracdo tombamento é um mix de afirmacao da sua ancestralidade com (re)eriagao de uma possibilidade histérica. Iss0 a aproxima do contexto afrofuturista — movi- mento que utiliza misica, arte e moda para fazer uma mistura da cultura africana com tecnologia, ciéncia e futuro. A geracao tombamento cria para si imagens de referéncia que até entao haviam sido negligenciadas. B nao é sé uma questao de representatividade, mas de experimentacao, auto- nomia e reimaginacdo sobre si mesmo, O resultado? Um con- tingente de jovens negros, em sua grande maioria de origem periférica, que por meio da estética e da cultura transformam seus corpos, até entdo marginalizados e criminalizados por um sistema excludente, em ativismo e politica, reafirmando sua negritude. E nao é um movimento apenas nacional: a valoriza- go da beleza negra e 0 tombamento brasileiros influenciam e interagem com varios tombamentos pelo mundo, como com os Fashion Rebels (Africa do Sul) e os Afropunks (que nos Esta- dos Unidos e na Europa tém representantes famosos como Jaden e Willow Smith). Sao negros que de forma nao premedi- tada eriam uma estética mundial bastante semelhante.* # necessario considerar como 0 acesso A internet e as redes sociais mudou algumas relacdes e visbes de sujeitos sobre si. A rede reconfigura um contexto no qual o racismo tornava dific reconstruir a autoestima do negro, jé que antes nao havia exem- 273 Plos positivos de empoderamento. Vivemos num pais onde somos educados para nao aereditar no poder que temos e no Poder que nossa identidade estética representa, Contudo, sea eseravidao objetificou, humilhou e matou corpos negros, ela nao {oi capaz de apagar nossa cultura, nossa religido e nossa pre- senga. Por outro lado, continuamos no pais que quer ser negro apenas quando convém, enquanto diariamente ceifa nossas vidas. Por isso nio é & toa que as discusses que mais ganham debates fervorosos nas redes sociais, movimentadas por jovens ativistas negros, giram em torno da identidade racial, Entre elas, destaco a questo da apropriagao cultural e do colorismo. Apropriacao cultural Apropriacdo cultural é um fendmeno estrutural e sistémico, ou seja, nao pode ser entendido ou problematizado a partir de um Ponto de vista individual. Claro que um individuo pode usu- fruir da apropriacao cultural de um grupo ou um povo quando ndo possui autocritica ou conhecimento sobre o tema. No entanto, as consequéncias desse proceso séo sempre em nivel coletivo, na estrutura: favorece a marginalizacao desses grupos 0u povos socialmente invisibilizados e oprimidos inconscien- temente. Num contexto capitalista, a apropriacao cultural transpassa o desrespeito as culturas alheias, invisibilizadas diante da imposicao da cultura europeia e norte-americana, ¢ se torna lucrativa, Ao falar de apropriacdio cultural, estamos questionando um tamo da “

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