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Uma historia nao contada Negro, racismo e branqueamento em Sao Paulo no pés-aboligao Petrénio Domingues Editora Senac Sao Paulo — Sao Paulo — 2019 Nota do editor Um dicionério enciclopédico da lingua portuguesa que circulou no Brasil antes da abolicdo da escravatura, de autoria de Aratijo Correia Lacerda e José Maria de Almeida, definia negro como “escravo, preto; que macula, denigre, calunia; horrivel, hediondo, medonho, tenebroso, malvado, cruel”. (Até o verbo denegrir, referente a negro em qualquer sentido de algo escuro, torna-se mais contundente por lembrar homem negro.) Em Sao Paulo, cidade e estado, 0 explicito racismo antinegro encontrava uma preocupante resisténcia, dessas que vao as propor¢des de revolta geral, com ex-escravos no auxilio de escravos, armas de fogo, confronto em vez de fuga. A luta de classes confundindo-se com a luta de ragas. Em tal “clima”, uma alternativa crescia: trazer brancos para o trabalho no campo e na indtistria nascente, branquear a mao-de-obra ~ e foi essa a ténica no p6s-abolicao, com implicacées que ainda perduram. Sao Paulo ilustrou 0 processo muito bem, e Petrénio Domingues conta isso com minticia, argticia e veeméncia. O Senac Sao Paulo, que ja langou titulos em favor da democracia racial no pais, contribui novamente para 0 tema com Uina histéria nao contada. Prefacio O livro que vocé agora ira ler foi o resultado de alguns anos de trabalho de Petrénio Domingues. Sua primeira preocupacao, quando ele me procurou para que eu, na condi¢ao de orientador, Ihe ajudasse a encaminhar o projeto, era deslindar 0 que chamava “o mito da malandragem”, que, como se sabe, pendia ou pende sobre a figura do negro como entidade social da Primeira Republica. Petrénio preocupava-se com a assertiva, quase sempre corrente nos meios de comunica¢ao da 6poca, que apresentava 0 negro como malandro e nao raro vagabundo. Como semelhante imagem teria sido criada? Como seria possivel aprofundar a compreensao acerca do papel do negro na fase posterior a aboligao? Manifestei entao a Petronio que seu tema envolvia aspectos culturais cujas fontes nao estao ainda bem caracterizadas e estimulei-o a tratar 0 tema com aspecto mais histérico-econémico, com fontes mais precisas, capazes de serem manipuladas no prazo de uma dissertacao de mestrado. Devo dizer-lhe, caro leitor, que Petronio nao é facilmente convencivel. Por detras do seu sorriso maneiro ele consegue entrincheirar-se, evoluir no terreno e oferecer uma guerra de resisténcia implacavel ao mais atento dos orientadores. Assim, sofremos ele e eu intimeros percalgos, emboscadas, atalaias e azurrapes mtituos. Eu a arrasté-lo para as fontes disponiveis; ele a afastar-se rumo ao seu desejo original. Por fim, resultaram as paginas que vao ler e que sao uma interessante visao sobre aspectos da histéria econdmica da Primeira Reptiblica. Um debrucar-se sobre a varanda do tempo e, de nado muita distancia, observar as particularidades criadas pela crescente onda de imigrantes da chamada “nova imigracao”, ou seja, a enorme pressao demografica, no processo de formacao do mercado de trabalho, desencadeada pelos interesses dos grandes proprietarios. O colapso da escravidio resultou economicamente de trés movimentos conjugados: a) o fim da primeira Revolugao Industrial (1760-1840) e 0 comeco da chamada segunda Revolugao Industrial (1880-1920); b) a queda do custo de reprodugéo do homem branco na Europa (1760-1860), em razdo do impacto sanitario e farmacolégico da Revolugao Industrial; c) 0 crescente custo do escravo negro africano, devido ao crescente custo de reproducéo dos negros na Africa. Assim, o homem branco tornou-se, sob a forma de assalariado, mais barato que o escravo negro. Conseqiientemente, era possivel substituir mesmo na periferia 0 trabalho escravo pelo trabalho livre e embolsar o ganho adicional. Finalmente, a eliminagao dos escravos traria 0 beneficio de expandir 0 mercado comprador de bens industriais na periferia do sistema. As condicées que tornam, portanto, 0 abolicionismo atraente existiam fora dele, sob a forma de interesses econémicos. O crescimento de tais interesses levou 4 proibigao do trafico de escravos pela Inglaterra e ao gradual estrangulamento das economias escravistas, até a desaparicgao das suas Ultimas formas, em Cuba (1887) e no Brasil (1888). Desse modo, milhdes de individuos viram-se langados na condicao de trabalhadores que deveriam receber alguma forma de salario, em uma sociedade em que a evolucao dos saldrios evidenciava-se visivelmente paralitica (em Sao Paulo, por exemplo, o salario rural nao chegou a dobrar entre 1840 e 1906). Os proprietarios em larga escala introduziram enorme quantidade de imigrantes, ano a ano, para se assegurarem de mao-de-obra adequada a precos cadentes. Houve anos em que, considerando-se apenas a imigracio italiana, ela pareou com a populagao da cidade do Rio de Janeiro, 4 época. Seria como se hoje em dia entrassem 5 ou 6 milhdes de imigrantes ao ano, de uma tinica procedéncia. Ao atirar o numero da forga de trabalho 14 para cima, a classe proprietaria transferia para os trabalhadores o problema do custo de subsisténcia, fixando a reproducao da forga de trabalho em nivel muito baixo. E bem verdade que isso no longo prazo sabotaria as possibilidades de acumulacao interna. Uma forca de trabalho excessivamente barata nao podia gerar diferenciacdes sociais importantes dentro dela, renovando dessa forma as divisdes sociais do trabalho e gerando uma burguesia mais ampla. No entanto, no pensamento da oligarquia dominante este problema inexistia. Tratava-se simplesmente de ganhar 0 maximo no tempo minimo, sem nenhum horizonte de solidariedade, de classe ou de cidadania. E na presenca da formacao desse enorme ajuntamento de trabalho que o negro e os membros da nova imigracao deveriam se encontrar no quadro mercadolégico do pés-abolicao. Os imigrantes europeus substituiram os negros praticamente em todas as atividades importantes. Tomaram-lhes os empregos, os postos de trabalho, as ruas, os bairros em que viviam e impediram a sua presenca na escola, na oficina e na fabrica. As proporgdes do movimento de exclusao podem ser acompanhadas apenas na crénica policial, porque a historiografia nado ousou ainda debrucar-se sobre 0 todo de suas implicacées. Semelhantes questdes foram percebidas e de certo modo consideradas por Petronio no texto que vocé vai ler. Muito desse assunto o autor havera de trazer em outros trabalhos subseqiientes. A questao da malandragem é um tanto complicada. Nao se tem um conhecimento rigoroso da origem do termo. Reza a tradic¢ao mediterranica que 0 malandro nada mais é do que um elemento resultante da diaspora de parte dos kazdnidas, que se recusaram a se converter ao judaismo, na Baixa Idade Média. Nesse caso, os ciganos seriam os turcos que mantiveram o seu sistema familiar, ao passo que os “habitantes da terra ma” (mallander) seriam aqueles que abandonaram a estrutura familiar propria dos turcos. Seriam, assim, “malandros” aqueles milhares de imigrantes turcos despejados pelo Bésforo no Mediterraneo, e encontraveis em todas as cidades, particularmente no arco que vai da Sicilia as ilhas Maiorcas, compreendendo Napoles, Génova, Nice, Marselha, Barcelona, etc. Dedicados desde sempre a pesca, 4 marinharia, ao pequeno comércio, ao entretenimento nos mercados e vias publicas, os representantes da terra ma evidentemente atraiam os perseguidos de todas as partes, os preteridos, os aventureiros, os alijados e se associavam a eles. Assim, desde logo, os malandros haveriam de se caracterizar como expertos nas artes de lograr a autoridade, enfrentar a policia, praticar com éxito os jogos de azar, a magia, a prostituicao, etc. O vagabundo trata-se de algo um tanto diferente. Como diz essa palavra provencal, trata-se de um servo da gleba fugitivo, sendo “bond” servo da gleba e “vaga” o ato de escape as suas obrigacdes. Na verdade, podemos crer que, na bacia mediterranica, os vagabundos precederam aos malandros, com eles mais tarde se juntando; e talvez aceitando a sua lideranga para o estabelecimento de regras de um viver comum, ao arrepio da lei. E de entender que a intensa imigracdo italiana e espanhola no fim da escravidio, os contingentes mediterranicos que desde 0 século XVII sempre mereceram destaque no povoamento do Brasil, recebeu notdvel reforgo — o que permite compreender a atualidade das expressdes “malandro” e “vagabundo” — , fosse no estertor do Segundo Reinado, fosse no alvorecer da Primeira Reptiblica. Como foi, portanto, que um termo usado para classificar uma camada social do Mediterraneo passou entao a designar os negros? Certamente o ardor desses Ultimos na luta pela preservacao ou pela afirmacao de sua liberdade, desde a agonia do cativeiro, é que pode explicar nao s6 a proximidade de idedrio como até a eventual interpenetragao dessas distintas camadas étnicas, que aqui deveriam tender, nas condigées brasileiras, para certa homogeneidade social. A navalha do portugués, ou mais possivelmente do marujo do Mediterraneo, deve ter-se identificado com o negro livre carregador dos armazéns portudrios. Arma passivel de rapida desaparicao, podia substituir com éxito o facao e a foice dos distantes canaviais. Assim também a capoeira soube substituir 0 savate e o varapau. Nao é absurdo que a figura do negro amante da liberdade, arredio a entregar-se a um trabalho desqualificante e mal remunerado, se haja associado a rebeldes importados pela imigragao descuidada. Mas causa certa estranheza que sé ele, 0 negro, tenha vindo a se caracterizar na Primeira Reptblica como o navalhista, 0 caceteiro, o cafetao e o organizador do jogo de azar. No entanto, guardadas as devidas propor¢ées, 0 que ocorria era organizar-se a sociedade com quase cem por cento de negros dedicados a qualquer forma possivel de trabalho. Ambulantes, pescadores, marceneiros, carregadores de todos os tipos, etc. abundavam nas cidades, indicando que abaixo da mao-de-obra operario-imigrante havia toda uma camada de trabalhadores sub-remunerada, com ganhos que nao poderiam explicar a sua reproducao social. Esta é a histéria do trabalhador negro na Primeira Republica. Trata-se de um trabalhador semi-escravo, um trabalhador rejeitado pelos assalariadores, um trabalhador hostilizado socialmente pela prépria classe operdria em formacdo nas cidades. Este negro alijado constitui o seu proprio mundo, ideando ai as suas proprias mitificagoes. Desde a margem extrema do todo social, ele se reorganiza e vai pouco a pouco reabsorvendo as camadas societarias que pareciam destinadas a destrui-lo. Nos livros de ocorréncias que sobreviveram das delegacias da Primeira Reptiblica, onde se praticava uma forma de genocidio contra 0 negro, o famoso “apanhar borracha”, pode-se verificar a enorme quantidade de conflitos ocorridos dentro e fora dos locais de trabalho. Nesses lugares, rejeitava-se 0 negro em sua condicao de ser humano. Nos relatérios dos hospicios, completam-se os dados do fichdrio policial. Os negros sao sempre visualizados como mentirosos, parandicos, alcodlatras e dementes, negando-se-Ihes por completo a historicidade de suas proprias narrativas de vida. Seriam as manias de perseguicdes dos negros meras desculpas para escapar a uma derrota na competicao pelo trabalho, ou teriam elas algum fundamento no desconforto real das relagGes sociais e ideolégicas? Petrénio em seu trabalho descreve o papel secunddrio desempenhado pelo negro como trabalhador industrial no processo de industrializagéo de Sao Paulo na Primeira Republica. Esse papel secundario nao derivava de uma incapacidade inata do negro para o trabalho industrial. Como se pode comprovar da literatura do Segundo Reinado, e como se pode verificar posteriormente, ao analisar a Era Vargas, 0 negro estava apto para o trabalho industrial, nao sendo de modo algum menos capaz individualmente do que os seus colegas fabris de outras origens. A questo se cifrava numa verdadeira frente tinica criada pelas organizagdes sindicais e patronais, pelo ambiente europeu do trabalho em Sao Paulo, para eficazmente excluir 0 negro de qualquer atividade “de ponta” no processo produtivo. Nao se desejava confiar nele, pagar-Ihe melhor ou, mesmo, obrigar-se cada qual a dirigir- The a palavra em condigGes nem sequer aparentes de igualdade. A forga do racismo entre patrdes e empregados de origem européia é que explica o grau de exclusao do negro no processo de industrializagao de Sao Paulo. A historiografia recente ousou abordar muitos aspectos do referido processo de industrializagao. No entanto, uma visdo preconceituosa, muito comum nos meios académicos, chega a negar que haja interesse cientifico na interpretacdo do télos do racismo na conformacéo do modo capitalista brasileiro. Para essa historiografia negativamente comprometida, 0 racismo nao seria um assunto historico-econdmico ou mesmo submetivel a trato cientifico. Opondo-se a semelhantes distorgdes, Petrénio incluiu-se entre os que oferecem um comprometimento positivo da historiografia, buscando deslindar as mais graves peculiaridades de nossa historia, e por que estas nos levaram ao lugar em que ora nos encontramos. Wilson do Nascimento Barbosa Professor do Departamento de Historia da FFLCH-USP Este livro € dedicado a meus pais, Durval Domingues Filho e Maria José Domingues, carinhosamente, ou tradicionalmente, conhecidos como Paim e Mainha. Sem o amor de vocés eu nao existiria, Entretanto, vocés me proporcionaram muito mais. Como nao é possivel expressar em palavras, s6 vou mencionar uma das virtudes dos “velhos”: terem me mostrado a importéncia dos estudos. Se eu nao tivesse aprendido com vocés a valorizar “os estudos”, nao teria chegado até aqui. Meu eterno muito obrigado por tudo que vocés fizeram (e fazem) por mim. Agradecimentos Este livro é uma versio modificada da minha dissertacéo de mestrado em hist6ria, intitulada Uma histéria néo contada: negro, racismo e branqueamento em Sao Paulo no pés-aboligao, defendida na Universidade de Sao Paulo (USP) em 14 de fevereiro de 2001. Era uma tarde quente do verao paulista, o salao nobre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas (FFLCH) estava repleto e, naquela ocasiao, eu estava muito tenso. Familiares, amigos, ativistas do movimento negro e curiosos assistiram por aproximadamente trés horas as argiiigGes da banca examinadora e minha exposicao acerca da pesquisa. No final, 0 resultado tao desejado: ela foi aprovada e eu era investido com o titulo de mestre. Depois, foi sé comemorar! Assim, este livro é o registro de uma importante fase de minha vida intelectual, sendo publicado em momento oportuno. Quando a sociedade civil brasileira se debruca para discutir reparacdes para a populacdo negra — pelas acoes afirmativas e pelas cotas -, é de fundamental importancia voltar no tempo para entender como, afinal, foi produzido (e reproduzido) o atual sistema promotor de desigualdades raciais, pelo menos em Sao Paulo. Realizar uma pesquisa no campo da hist6ria em um pais que nao tem tradicgao em preservar sua meméria nao é uma tarefa facil. E, se o assunto escolhido para a investigagao é a historia do negro, 0 racismo e a ideologia do branqueamento, as dificuldades sao bem maiores. As raz6es pululam: a cultura oficial reduz a histéria do negro a escravidao; 0 mito da democracia racial ainda permanece vivo, negando o preconceito racial no Brasil; o engenhoso racismo brasileiro invisibiliza © negro e silencia a “questo racial”; a ideologia do branqueamento impede a construcao da identidade do negro, etc. Esses e outros inimeros fatores foram entraves da minha longa jornada. No entanto, nao reservarei este diminuto espaco somente para discorrer sobre os obstaculos, mas principalmente para agradecer algumas daquelas pessoas que, conscientemente ou nao, direta ou indiretamente, contribuiram para a realizacao dessa empreitada. Meu orientador, Wilson do Nascimento Barbosa, teve importancia crucial em minha formagao intelectual. A informalidade ja me franqueia a liberdade de me referir a ele omitindo 0 cerimonial “professor doutor”. Foram varios cursos desde os idos da graduacao, interminaveis conversas, divergéncias, mas também muita satisfacao em ser orientado por alguém cuja visdo de historia 6 comprometida, até as tltimas conseqiiéncias, com a luta pela justica social e racial. Meu muito obrigado pela paciéncia e pela generosidade! Gostaria, ainda, de agradecer: ‘Ao professor doutor Jorge Luts da Silva Grespan e & professora doutora Leila Maria Gongalves Leite Hernandez, do Departamento de Historia da USP, pela avaliacao criteriosa no exame de qualificacgao. Esta participou como integrante da banca de defesa da dissertacao, consorte ao professor Clovis Moura. Na ocasiao, eles apresentaram preciosas sugest6es, as quais, na medida do possivel, foram incorporadas aqui. Aos milhares de negros anénimos que formam o movimento negro organizado. Sem vocés, a luta politica anti-racista deste pais nao seria a mesma. Muito axé! Deixo um abrago especial para todos os combativos companheiros e companheiras da coordenacao na gestao “Raca e Classe” (1998-2000) do Nucleo de Consciéncia Negra na USP: um colegiado que tive a honra de integrar. A luta continua! A Sandra Regina, Fabiana Schleumer, Marina Mello, Amarildo Matias Lourengo, José Soares de Oliveira, Claudio Marques Neto, Arnaldo Lopes, pela amizade compartilhada. Ao Julio Augusto Xavier Galharte, pela primeira revisao do texto. A Helen Rose dos Santos, pela leitura de trés capitulos, criticas e sugestdes. A Rafael Ferreira Silva, pela assisténcia na fase de publicagao do livro. ‘Ao meu irmao Pedro José Domingues, cujas discussées te6ricas informais sempre exigiram de mim muita reflexao. A minha irmazinha do coracao, Patricia Maria Domingues, e ao meu outro irmao, Paulo José Domingues. A Erika Cristina Reedmann, pela compreensao, dedicacao e paciéncia. Nao esquecerei da sua sensibilidade comigo nos instantes de estresse nem de ter dividido contigo momentos de felicidade em determinada fase de minha vida. A Andréia Lisboa de Sousa, pelo incentivo e companherismo na tiltima fase da pesquisa, pela revisao, paciéncia, cumplicidade, irreveréncia e pela parceria nas Histérias do Péto, de que em breve o ptiblico tomara conhecimento. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolégico (CNPq), pela bolsa concedida para a realizacao da pesquisa. Apresentacao O debate de temas ligados ao mundo do afro-descendente no pés-abolicgao tem sido uma das lacunas da historiografia. Para o senso comum, a trajetéria do negro no Brasil se confunde com a histéria do sistema escravista. Com o fim da escravidio fecham-se as cortinas do cenario historiografico para os ex-escravos. Neste instante, suas experiéncias e vivéncias ficam diluidas na categoria povo ou classe social, chegando a ponto de alguns desavisados pensarem que os negros abandonaram a condi¢ao de produtores de uma histéria especifica. Abolindo-se a escravidao, 0 foco das atencdes desloca-se diametralmente. Em vez do negro, os novos personagens privilegiados pela historiografia paulista sao imigrantes, operarios, anarquistas, ou temas como industrializagao, urbanizacao, modernizacao, oligarquia cafeeira. Se prestarmos minimamente atencao, verificamos que 0 nao-branco foi esquecido da histéria da Primeira Republica (1889-1930), com raras excegdes, que servem para confirmar a regra. Portanto, é pertinente formularmos a seguinte questao: sera que a auséncia dos ex-escravos e negros de um modo geral dos anais da histéria no perfodo péds- abolicao € fortuita ou esta inserida numa determinada visdo da histéria? A eliminacao, no pés-13 de maio de 1888, da “mancha negra” das dreas de pesquisa provavelmente esteja no bojo de uma linha ideolégica de construgéo do conhecimento hist6rico eurocentrista, paulista e por que nao dizer movida por um certo preconceito racial, ainda que silenciado. Nao temos ilusdes, como escreve Adam Schaff: [..-] todo aquele que estuda a sociedade, sem excetuar 0 historiador, sofre a acéo das determinacdes sociais gerais, quer dizer de todas as determinacées ligadas 4 época e comuns a todos os homens que nela vivem, bem como das determinacoes particulares, proprias da classe e do gtupo social aos quais 0 individuo pertence e que representa de uma maneira ou de outra. A posicdo do historiador esta sujeita a uma coloragao de classe que the é dificil ultrapassar [...]. Regra geral, nao tem dela consciéncia e considera as suas proprias atitudes e atividades como “puramente” cientificas, ou seja, determinadas apenas _pelas consideragées cientfficas.[1] Entendemos, entretanto, que a construgao do conhecimento histdrico nao se restringe ao condicionamento classista. A questao é mais ampla e complexa. Além do recorte de classe, a atividade de pesquisa é influenciada, de forma combinada, pelos interesses de género, raca, orientacao sexual. Em um pais marcado pelo preconceito racial, uma gama da producao historiografica é, em larga escala, sua imagem e semelhanca. Os preconceitos de naturezas diversas, em particular 0 racial, influenciam na escolha de temas, personagens, na selecao e manipulagao dos dados, na interpretagao do processo; em suma, sao reproduzidos nas teorias e abordagens supostamente incolores, pois, na esséncia, estao a servico da dominacao da “raga” branca. Afinal, a histéria ndéo é dada, mas construida socialmente. Um pais multirracial e poliétnico nao pode aceitar que se escreva apenas a hist6ria dos vencedores, ou seja, dos considerados brancos. Embora negada, a historia do negro nao é irrelevante. Pelo contrario, é tao importante quanto a de qualquer outro segmento da populacao. Uma historia plural pressupée 0 registro da diferenca, 0 acolhimento da diversidade e 0 reconhecimento do “outro”. Embora o racismo ja tenha sido objeto de muitas pesquisas, trata-se de um assunto ainda subexplorado no campo da historia do Brasil. Nesse sentido, recuperar 0 racismo como dimensao da histéria nao é uma tarefa facil. Nao é facil, em primeiro lugar, porque essa dimensao da pratica social dificilmente é concebida enquanto eixo metodolégico. Em segundo lugar, porque, muitas vezes, é€ uma dimensao oculta, dificilmente assumida pelos atores histéricos. E, finalmente, as pesquisas histéricas nao tém a pratica de resgatar o racismo antinegro pela lente do proprio negro, imperando uma abordagem plasmada pelos interesses dos vencedores, em geral, etnocéntrica. Dai o desafio colocado para qualquer investigacao nessa area. No primeiro capitulo, [Representagdes, racismo e branqueamento], abordaremos, em linhas gerais, de um lado, a_ historia do racismo institucionalizado antinegro e, de outro, a trajetoria das propostas e projetos tedricos de branqueamento do Brasil até o fim da escravidao. Retrataremos a representacao estereotipada do negro nas obras dos intelectuais, politicos e viajantes, que fundamentava ideologicamente a necessidade da imigracao de brancos europeus. O discurso do racismo cientifico e do branqueamento marcou, inclusive, o pensamento do abolicionismo institucionalizado. Em Sao Paulo, a politica de “inundar” 0 estado com milhares de imigrantes europeus foi a safda encontrada pela elite, na transicao do trabalho escravo para o livre, para substituir 0 trabalhador negro pelo branco. Mostraremos como esse estado empreendeu uma série de medidas de favorecimento ao imigrante em detrimento do ex-escravo e do negro de um modo geral. Por fim, analisaremos como 0 processo de luta abolicionista escrava e dos negros intensificou 0 clima de conflito racial no estado. No segundo capitulo, [Racismo e exclusdo do negro do mercado de trabalho livre], faremos um balango do papel do racismo na formagao da forga de trabalho livre, tendo S40 Paulo como palco. Mostraremos como alguns aspectos da transicao do trabalho escravo para 0 assalariado, tais como o suposto problema de mao-de-obra para atender a expansao da lavoura cafeeira, a versdo de que os imigrantes europeus eram, culturalmente, superiores e, finalmente, a hipotética falta de habilidade do negro para assumir as novas profissOes da nascente industrializagao, constituiam discursos ideolégicos empregados para justificar 0 alijamento do negro do sistema produtivo, as vezes, de forma instrumental. Demonstraremos como aprioristicamente os ex-escravos e seus descendentes foram banidos das oportunidades de emprego. O negro era impedido, inclusive, de concorrer aos novos postos de trabalho. Nas palavras das vitimas, implementou-se uma espécie de “guerra muda e odiosa”, encabecada pelo patronato da elite tradicional e encampada pelos novos empregadores imigrantes. No terceiro capitulo, [Racismo a paulista: segregacionista e costumeiro], indicaremos como o racismo, de 1889 a 1930, em Sao Paulo, era de dinamica diferente do convencionado racismo-padrao brasileiro. Ao invés de dissimulado, era ostensivo; ao invés de cordial, era violento; ao invés de informal, estava, muitas vezes, expresso na lei. Revelaremos como esse racismo era oscilante: ora se amparava nos costumes, ora se manifestava em normas segregacionistas. Alids, a linha de isolamento racial era relativamente rigorosa, separando negros e brancos na capital e no interior. Na segunda parte, conceituaremos o modelo das relacées raciais no pés-abolicdo. Descreveremos também como os imigrantes, em particular os italianos, discriminavam cotidianamente os negros, gerando um cenario de tensao racial na cidade de Sao Paulo. No quarto capitulo, [A luta dos negros pela sobrevivéncia], enfocaremos a situacao da “elite” e da “plebe” negras, da familia e das moradias deste segmento da populacao e, sobretudo, tragaremos as linhas gerais da participagao do menor e do adulto negro no mercado de trabalho formal e informal, no setor fabril e nos setores de servigos e comércio ambulante. Destacaremos, ainda, as estratégias de sobrevivéncia consideradas ilicitas, além de desvelar a permanéncia de algumas praticas escravistas nas relagdes trabalhistas. No quinto capitulo, [O ideal do branqueamento}, pretendemos fazer um balanco histérico do ideal de branqueamento no pés-aboligaéo, centrado em Sao Paulo, onde foi articulado com veeméncia pela elite intelectual bandeirante. Além disso, buscaremos mostrar de que maneira um ideal que defendia o desaparecimento da populacao negra foi, “contraditoriamente”, absorvido por setores dessa populagao, através, por exemplo, da sua imprensa e da sociabilidade familiar. Apesar de todas as condigGes econdmicas, sociais, culturais e existenciais adversas, foi no pés-aboligao que a comunidade negra deu os primeiros passos no sentido de afirmar, de forma sistematica, uma consciéncia racial. No sexto e tltimo capitulo, [O negro no mundo dos negros], revelaremos de que maneira o negro, em Sao Paulo, resistiu ao projeto das elites de exclusao social e racismo, construindo um mundo paralelo relativamente autonomo e um circuito étnico coeso, constituido de pontos de concentracao na cidade, associacdes recreativas, sociedades beneficentes, jornais, escolas, times de futebol, grupos de teatro, concurso de misse, salao de beleza, orfanato, literatura especifica, projeto de partido politico e hospital. Mostraremos que o grau de organizagao da comunidade negra era equivalente ao das demais comunidades étnicas da capital. Nessa nossa empreitada, consultamos uma ampla documentacao e empregamos géneros de fontes diversas. Aproveitamos, sobretudo, os jornais da “imprensa negra” (nome dado ao conjunto de jornais produzidos por negros e para negros, publicados no inicio do século XX em Sao Paulo) e as entrevistas de muitos filhos e netos de escravos ou manumitidos, em suma, os depoimentos da primeira geracao do acervo “Memoria da escravidao das familias negras do Estado de S40 Paulo”. Em menor escala, utilizamos: legislacdo, projetos e teses de imigracio de europeus, produzidos por brasileiros e estrangeiros; textos abolicionistas, obras de cronistas, memorialistas, intelectuais da época; atas de congressos, relatérios de chefe de policia, secretdrio de Seguranga Publica, presidente de provincia; recenseamentos, prontudrios de processos criminais; e jornais da “imprensa branca”.[2] Gostariamos de ressaltar, antes de tudo, que esta pesquisa nao é a tltima palavra sobre o assunto. Pelo contrario, nosso propésito é oferecer um outro enfoque para questdes antigas, por isso ficamos passiveis de talvez expor mais perguntas do que respostas, apresentar hipdteses nao confirmadas, problemas nao resolvidos, nés nao desatados, porém, de consolo, desconfiamos que nossa modesta contribui¢ao para a historia das relagées raciais e da trajetéria do negro no pés-abolicdo possa ser 0 primeiro passo, em conjunto com outras obras, para que novas pesquisas aprofundem muitos dos temas abordados. Nesse sentido, colocamos um ponto final nesta introdugao, endossando as palavras de Adam Schaff: As verdades parciais, fragmentarias, nao sao erros; constituem verdades objetivas, se bem que incompletas. Se a histéria nunca esta definitivamente acabada, se esta subordinada a constantes reinter- pretacdes, daf resulta apenas ser ela um processo, e nao uma imagem definitivamente acabada, nao uma verdade absoluta. Desde o momento em que se toma o conhecimento histérico como proceso e superagao das verdades histéricas - como verdades aditivas, cumulativas -, compreende-se o porqué da constante reinterpretacao da histéria, da variabilidade da imagem histérica; variabilidade que, longe de negar a objetividade da verdade hist6rica, pelo contrario a confirma.[3] [1] Adam Schaff, Historia e verdade, trad. Maria Paula Duarte (Sao Paulo: Martins Fontes, 1978), p. 184, {2] Muitas vezes, utilizamos o termo “imprensa branca” em oposigao a “imprensa negra”. Trata- se de uma referéncia aos jornais regulares da grande imprensa, de ampla circulagao, produzidos por brancos e voltados, via de regra, para o ptiblico nao-negro. [3] Adam Schaff, Histdria e verdade, cit., p. 277. Capitulo 1 Representagoes, racismo e branqueamento A consciéncia critica dos nossos intelectuais em relagao ao problema étnico do Brasil, em geral, e do negro, no particular, ainda nao se cristalizou em nivel de uma reformulacao das categorias ideolégicas e estéticas com as quais manipulam a sua imaginagao. Ainda s40 muito europeus, brancos, 0 que vale dizer ideologicamente colonizado. Clévis Moura A discriminagao racial inscrita na lei: da Col6nia ao Império A discriminacao racial foi uma pratica comum no Brasil desde a colénia, perpassando pelo Império e atingindo a Republica. Ela nao ficou exclusivamente no plano do discurso ou das intencoes, mas se traduziu em politicas publicas, isto 6, ela se inscreveu em forma de lei. Como foi constatado pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, a discriminagao era um elemento constitutivo da legislagao portuguesa no perfodo colonial Deveria ficar provado, através de minuciosas investigagdes sobre a vida da pessoa e seus descendentes, que ela nao possuia vestigios de mulato, negro, mouro, judeu ou cristao-novo. Sé apds essa comprovacao é que o individu poderia ocupar cargos publicos, freqiientar universidades ou colégios religiosos, ingressar nas Ordens Sacras e Menores, participar como irmao das Casas de Misericérdia ou desfrutar de situagdes honorfficas.(1] A partir de 1514-1521, as Ordenagdes Manuelinas (legislacao portuguesa) passaram a discriminar trés novos grupos: cristao-novo, cigano e indigena. Em 1603, as OrdenagGes Manuelinas passaram a discriminar também os grupos negro e mulato. Assim, é no inicio do século XVII que surge uma “discriminacao legalizada e especifica contra negros e mulatos, por causa da ligacao estreita entre a escravatura humana e o sangue negro”.[2] Apartados racialmente e considerados inabeis para determinados cargos civis, religiosos e militares, esses segmentos ficaram relegados a uma posicao de subalternidade na estrutura tanto da sociedade portuguesa quanto da sociedade colonial brasileira. O conceito de pureza de sangue, sustentado pela Igreja desde a Idade Média até o século XIX, impedia que o negro ocupasse algum papel de relevancia na vida social brasileira, pois, na 6tica dos “donos do poder”, ele era portador de sangue impuro ou infecto. Tratava-se de uma discriminacao racial de natureza teolégica. Para conhecer a origem dos individuos, varias instituig6es civis e religiosas adotaram como critério de selecao investigar a vida do candidato até a quarta geracgdo. Se na arvore genealdgica tivesse alguma gota de “sangue impuro”, eliminava-se 0 candidato, pois “o judeu, 0 mulato, 0 negro e 0 mouro sao considerados ‘racas contaminadas’, maculadas pelo sangue infecto que as torna indbeis para 0 exercicio da profissao religiosa” [3] £ interessante notar que o teste da limpeza de sangue, introduzido no Brasil Colénia, gerou um modelo de discriminagao racial baseado na cor da pele e no sangue. Isso significa que a base da discriminagao racial contra 0 negro nao era exclusivamente o grau de pigmentacado da pele do individuo, mas também sua origem. Invalidando a explicacao corrente de considerar o Brasil colonial como inferno para os negros e paraiso para os mulatos, Boxer constatou que as restrigdes raciais também afetavam os mulatos, chegando a ponto de serem proibidos de carregar armas, roupas faustosas, ocupar altas posigdes na Igreja e no Estado. Em 1680, por exemplo, os “pardos” foram expulsos das escolas dirigidas pelos jesuttas.[4] ‘A Coroa portuguesa, em 1621, determinou que nenhum negro, mulato ou indio, ainda que alforriados, podia aprender 0 oficio de ourives ou exercé-lo. Quando precisaram indicar quatro pessoas para ocupar cargos na administragao publica na Bahia, em 1715, a Coroa ordenou que os indicados deveriam ser todos homens brancos, livres de “sangue infecto”. Em 1713, a Camara da Vila de Sao Paulo decretou uma ordem real, segundo a qual “nenhum negro, carijé, mulato [...] possa usar de armas de fogo, nem curtas nem compridas, sob pena de se lhe tomarem por perdidas e [...] dias de prisao que me parecer”.[5] Em Carta Régia de 20 de julho de 1809, d. Joao, principe regente, determinava a formacao de milicias da capitania do Rio Grande do Sul. O paragrafo 4°, do artigo 6° das Instrucées, estabelecia: “todos os milicianos serao tirados da classe dos brancos, e serao reputados como tais aqueles cujos bisavés nao tiverem sido pretos, e cujos pais tenham nascido livres”. Esta definicao legal de negro, segundo José Hondrio Rodrigues, era a mesma que vigora hoje nos Estados Unidos, isto é, “um oitavo de sangue negro” era suficiente para decidir a “negritude” do individuo.[6] Em 1835 uma lei votada “em uma cidade de Sao Paulo exigia que todos os negros, livres e escravos, assistissem ao culto reunidos sob 0 coro da igreja, sob pena de prisao e multa”.[7] Como atesta Roger Bastide, durante a escravidao “negros e brancos eram separados na capela, diante de Deus, e nos cemitérios, diante da morte”. Em Sao Paulo, a Igreja fazia “penetrar nas almas dos descendentes de africanos a nocao da sua separacéo e da sua subordinacao aos brancos”. Havia as confrarias de negros e de brancos, com suas respectivas igrejas. Nas capelas das fazendas, “a missa nao se celebrava na mesma hora para os escravos e 0s patroes, ou entao estes tiltimos ficavam dentro do recinto, enquanto os escravos ficavam de fora, no adro, contentando-se em seguir o ritual através da porta aberta”. Nas procissdes, 0 separatismo continuava com “as confrarias, de pretos abrindo a marcha, os ‘homens bons’ - a aristocracia branca — no fim, e, entre os dois grupos, o clero”.[8] Chegou-se ao extremo de se interditar legalmente o casamento entre branco e negro, enquanto com 0 indio ele era permitido, senao recomendado.[9] Uma lei promulgada em agosto de 1671, escreve Roger Bastide, relembrava que ninguém com sangue judeu, mourisco, negro ou mulato, ou casado com uma mulher nessas condicées, estava autorizado a ocupar qualquer posto oficial ou qualquer cargo ptiblico, e ordenava que os processos existentes destinados a impedi-lo deviam ser reforcados.[10] Uma lei de 24 de maio de 1745 proibia negros e mulatos de se trajarem como brancos, sendo o nao-cumprimento passivel de graves penas. A Irmandade Nossa Senhora das Dores da Catedral da Sé, ligada a Arquidiocese de So Paulo, proibia expressamente o ingresso de “pretos” e “pardos”. Registrado em 1780, o estatuto da irmandade inscrevia logo no primeiro artigo: Todas as pessoas assim homens, como mulheres, que quiserem poderao se alistar nela, exceto os pardos e pretos, sem que a entrada paguem coisa alguma, mas sim darao anualmente a esmola, que adiante se determina.{11] Todos os planos de construgao de nicleos coloniais para povoar o Brasil no século XIX rechagaram 0 homem negro, fosse liberto ou escravo. Um exemplo era a lei de 25 de novembro de 1808, que permitia a concessao de sesmarias a todos os estrangeiros (leia-se europeus) que viessem residir no Brasil: Sendo conveniente ao meu real servico e ao bem piiblico, aumentar a lavoura e a populagao, que se acha muito diminuta neste Estado; e por outros motivos que me foram presentes: hei por bem, que aos estrangeiros residentes no Brasil se possam conceder datas de terras por sesmarias pela mesma forma, com que segundo as minhas reais ordens se concedem aos meus vassalos, sem embargo de quaisquer leis ou disposigdes em contrario[12] Mesmo apés 0 fim do dominio portugués no Brasil, em 1822, a tonica das politicas piblicas continuou norteada pelo viés discriminatério. Em 5 de dezembro de 1824, a Constitui¢ao brasileira em lei complementar proibia o negro e 0 leproso de freqiientarem escolas. Segundo Carl Degler, a separacao entre brancos e negros persistiu no exército até 0 advento da Republica, no final do século XIX, e a exclusao dos “pretos de certos cargos na Igreja e no Estado pela propria Constituicao Imperial certamente limitava sua participacao na sociedade”. [13] A linha racial na época da escravidao, referenda Emilia Viotti da Costa, afirmava-se [...] em todas as circunstancias, na rua, nos saldes, na mesa do chefe de familia, até na Igreja, onde a nuanga mais ou menos escura dos fidis estabelecia barreiras intransponiveis. Mais do que isso: 0 preconceito era consagrado pela Constituicao do Império que recusava formalmente aos libertos os direitos eletivos.(14] A discriminagao racial da legislacao “trabalhista” e de colonizacao no século XIX A formagao do mercado de trabalho livre no Brasil foi marcada por uma legislacdo discriminatoria. Em 1830, um decreto-lei regulamentava a locacao de servigo no campo. Essa foi a primeira tentativa de organizar, efetivamente, 0 mercado de trabalho livre no pais. Em um de seus artigos ficava exposto o sentido segregacionista: “Art. 7° - O contrato mantido pela presente Lei nao podera celebrar-se, debaixo de qualquer pretexto que seja, com os africanos barbaros, & excecao daqueles que atualmente existem no Brasil”.[15] No dia 11 de outubro de 1837, uma nova lei de locacdo de servicos foi aprovada. Ao contrario da legislacao anterior, em seus dezessete artigos simplesmente nao continha uma tinica referéncia “aos africanos barbaros”, sequer aqueles que viviam no Brasil.[16] Ocultava-se a presenga de um dos segmentos da populacao no pais. Lendo 0 texto da lei, fica-se com a impressao de que a matéria foi legislada em um pais europeu, pois 0 termo colono, invariavelmente, é uma alusao ao branco. A partir de meados do século XIX, a discriminacdo contra 0 negro era um elemento constituinte de praticamente todos os programas de imigracao. O projeto de colonizagao para povoamento e ocupagao territorial, por exemplo, foi pautado por dispositivos desse género. Em 28 de outubro de 1848 foi aprovada a Lei n° 514 pela qual 0 governo do Império concedia a cada provincia 36 léguas quadradas de terras devolutas destinadas 4 colonizagao e textualmente especificava em seu artigo 16: “A cada uma das provincias do Império ficam concedidas no mesmo, ou em diferentes lugares de seu territdrio, seis léguas em quadra de terras devolutas, as quais serao exclusivamente destinadas a colonizacéo, e nao poderao ser roteadas por bracos escravos”.{17] Assim, era sonegado ao escravo 0 direito de acesso A terra, diferentemente do que se fazia com os imigrantes brancos europeus. Nao é exagero afirmar que todo 0 sistema de colénias agricolas era direcionado para estes. Em meados do século XIX, o fim da escravidao no Brasil acenava para um horizonte proximo, devido a interrup¢ao do trafico negreiro, em 1850, que cessou a fonte fornecedora de mao-de-obra para a lavoura. E, estrategicamente, nesse mesmo ano, a classe dominante aprovou uma legislacao que regulamentava a propriedade da terra no pais, a famosa Lei de Terras. A terra deixava de ser um bem social e tornava-se uma propriedade privada passivel de compra e venda no mercado. Era uma medida que do ponto de vista econdmico estabelecia as bases para a capitalizagao do campo. Em seus dois primeiros artigos estavam escritos: Art.1°— Ficam proibidas as aquisigdes de terras devolutas por outro titulo que nao seja o de compra. Excetuam-se as terras situadas nos limites do Império com paises estrangeiros em uma zona de dez léguas, as quais poderao ser concedidas gratuitamente. Art. 2°— Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derrubarem matos, ou lhes puserem fogo, serao obrigados a despejo, com perda de benfeitorias, e além disso sofrerao a pena de dois a seis meses, de prisdo, e multa de cem mil-réis.(18] Mas, afinal, quais os objetivos dessa lei? Numa conjuntura de debate nacional sob as formas de desescravizacao do pais, parece-nos que um dos propésitos da capitalizacao do campo foi impedir o acesso a terra pelos negros: tanto os libertos quanto os cativos. J4 havia um consenso segundo 0 qual o fim do trafico negreiro selava o destino, mais cedo ou mais tarde, da escravidao no pais. Dai a necessidade de medidas preventivas, implementadas para privar o negro de possibilidades de tornar-se proprietario. O carater excludente da lei ficou menos velado quando certificamos que se procurou incentivar a colonizacao de imigrantes europeus através da concessao de lotes de terras devolutas. Do ponto de vista racial, a Lei de Terras de 1850 tinha uma conotacao discriminatéria: Art. 18 - O governo fica autorizado a mandar vir anualmente, custa do Tesouro, certo ntimero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administracao ptiblica, ou na formagao de Colénias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessérias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem.[19] 0 governo do Império preocupava-se em endossar 0 projeto embrionario de substituicéo racial da forca de trabalho, impulsionando a entrada de colonos europeus numa situacao privilegiada. Os colonos a que se referia o texto da lei nao eram os africanos e sim os europeus. Talvez esse artigo tenha se inspirado no projeto formulado em 1843 pelo ministro da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, que visava regulamentar a estrutura fundiaria no pais. Expressando os anseios da elite fundiaria, seu projeto buscava “dar ao governo meios de importar colonos que venham prestar servicos e trabalhos por conta dos proprietarios que ja existem, e que com o produto de seu trabalho acumulem um capital com que possam fazer fortuna e tornar-se proprietarios”.[20] Este projeto, de um ministro de Estado, tinha um sentido de favorecimento do imigrante europeu, prevendo, inclusive, a ascensao deste em proprietério de terras, apés alguns anos de trabalho remunerado na lavoura. Também, segundo o projeto, o produto da venda dos lotes de terras destinar-se-ia a subvencionar a vinda de novos colonos, desprezando-se o trabalhador nativo como opgao de forga de trabalho assalariada.[21] O préximo passo no sentido de efetivar a transformacéo no mercado de trabalho no pais foi dado em 1871, com a aprovacao da Lei do Ventre Livre. Esta lei traduzia a estratégia politica da elite latifundidria de dirigir um processo de abolicao gradual, com tempo suficiente para habilitar e disciplinar 0 ex-escravo no mercado de trabalho livre em gestacao. Uma questao importante assinalada por Ademir Gebara é que [.-] 1871 marca 0 inicio da intervencao do Estado no mercado de trabalho, que pela primeira vez envolve-se diretamente nas relacdes de trabalho, O Estado estabelece o referencial para o processo de desescravizacio, articulando a abolicéo 4 regulamentacao do trabalho livre [...].[22] No dia 1° de marco de 1879, foi aprovada a Lei de Locagao de Servigos, em resposta quer & premente necessidade de organizacéo do mercado de trabalho livre, quer ao crescente movimento de luta escrava, e estabelecia que: Art. 10 — A locagao de servigos propriamente dita sera regulada pela disposicao dos artigos seguintes: Art. 11 - A duracao dela, sendo brasileiro 0 locador, nao passard de seis anos, salvo o direito de renovagao. bel Art. 14 ~ Sendo estrangeiro o locador, 0 prazo convencional da locacao nio exceder de cinco anos, salvo expressa renovacao. Ll Art. 16 - O prazo da locacao de servigos dos libertos é 0 mesmo determinado pela Lei de 28 de setembro de 1871.[23] ‘A nova Lei de Locagao de Servicos surgia como a possivel solugao para todas as mazelas acerca da regulamentagao do trabalho livre no pais. Seu propdsito era garantir o controle da mao-de-obra pela elite fundidria, garantindo a “satide” da producao agricola. De forma inédita na histéria do Brasil, a nova lei trazia um artigo que reprimia as greves e criminalizava seus protagonistas. Ao analisar 0 dispositivo que rege o tempo dos contratos, mais uma vez, percebe-se um tratamento diferenciado para o imigrante, para o trabalhador nacional e, numa situagao desvantajosa, encontravam-se os negros forros, que pela Lei do Ventre [...] quando vais 4 reza Com teu vestido de cassa, Nao hd mesmo quem nao fale, Orgulho da minha raca: ~ Olha que preta bonita! ~ E que andar cheio de graca!...[119] Lino Guedes imprimiu um sentido positivo aos valores estéticos da raga negra, contribuindo, desta maneira, para 0 resgate (ou manutencao) da auto-estima de sua comunidade, influenciada nocivamente pela ideologia do branqueamento. Sua obra minava o eventual complexo de inferioridade do negro. Mais: representava uma tentativa de sistematizar, no plano poético, o que mais tarde foi conceituado de ideologia da negritude, uma contra-ideologia dos valores dominantes da raga branca. Pratica desportiva As associacdes da comunidade negra procuravam incentivar a_pratica desportiva, organizando jogos, competigdes, torneios, em que se disputava a conquista de prémios e troféus. A modalidade esportiva mais comum era o futebol, entretanto, praticava-se também o pugilismo, o pingue-pongue e o atletismo. O time de futebol de negros de melhor elenco era o Sao Geraldo, vencedor do campeonato da Divisao Intermediaria da Liga Amadora de Futebol (LAF), em 1929, e campedo municipal pela Associacdo Paulista de Esportes Atléticos (Apea), em 1931. Algumas associacdes mantinham o departamento de esporte. J4 outras eram estritamente desportivas, como a jé mencionada Associagao Atlética Sao Geraldo, fundada em 1910, e o Clube Cravos Vermelhos, estabelecido em 1916. Essas duas eram as mais populares. Mas, além delas, havia 0 Esporte Clube Onze Galos Pretos, que mantinha quadras poliesportivas, times de futebol, equipes de corredores e boxeadores. Ainda surgiram os clubes futebolisticos: 28 de Setembro, Clube Atlético Piracicabano, Esporte Clube Brasil, Monroe, Marujos Paulistas, Vergueiro, Unido Fluminense, Cruz Vermelha, Vitdria Paulista, Centro Esportivo Flor da Penha.[120] No dia 28 de junho de 1929, era noticiada a fundagao do Esporte Clube Onze Galos Pretos: “foi fundada nesta capital, entre os mocos pretos, uma agremiagao, para a pratica do futebol, a qual recebeu o titulo de E. C. Onze Galos Pretos”.[121] Os times de negros foram uma resposta a linha de cor imposta pelos clubes dos brancos em geral e das coldnias estrangeiras em particular. A exclusao dos negros nesses clubes, como assinalamos alhures, era rigorosa. O plantel de futebol do Pavilhdo Paulista e muitos outros. Durante o perfodo de 1900 a 1930, os mais importantes foram, sem dtivida, 0 Camisa Verde, Campos Elisios e Vai-Vai.[128] Além desses, vale a pena mencionar também a existéncia dos grupos carnavalescos Soberanos, Infantil Mocidade — vencedor do carnaval de 1929 -[129] e 0 Bloco Flor da Mocidade, cujo presidente declarava em entrevista nas vésperas do carnaval: “mais de cem pessoas farei desfilar pelas ruas de So Paulo”. [130] Naquela época, os cordées carnavalescos eram vistos como coisa “de negro vadio”, por isso sofriam repressao policial. Devido a precariedade socioecondmica dos componentes, a sede desses corddes era improvisada na casa do principal dirigente. Para se manter cobravam-se mensalidades dos integrantes, promoviam- se bailes e passava-se 0 livro de ouro entre os comerciantes do bairro. Mas nao se realizavam atividades apenas ligadas ao carnaval; eram também organizados piqueniques, excursdes a praia de Santos e a Pirapora, para a festa no santuéario de Bom Jesus de Pirapora, realizada no més de agosto.[131] Grupos teatrais Ha informagoes de que os negros normalmente eram vetados de participar dos elencos das produgées teatrais da cidade de Sao Paulo no cenario cultural da Primeira Republica. A solugéo entdo encontrada pela comunidade negra foi promover o “teatro negro”. Eram grupos teatrais amadores constituidos estritamente por elementos daquela comunidade. Eles se apresentavam em espacos alternativos, sobretudo nos eventos festivos das associagdes negras, e, esporadicamente, nas casas de destaque, como a Apolo e o Recreio.[132] Alguns clubes mantinham grupos teatrais proprios, como o Grémio Dramatico e Recreativo Kosmos, a Associagéo Atlética Recreativa California, 0 Grémio Dramatico, Recreativo e Literério Auriverde, o Centro Civico Palmares. Seus estatutos, alias, determinavam a obrigatoriedade da atividade teatral. Ja outras associagdes eram exclusivamente voltadas para a arte cénica. Com esse perfil encontramos o Grémio Dramatico Bardo do Rio Branco, o Grupo Afro-brasileiro e Sertanejos Paulistas, 0 Grémio Dramatico Luis Gama, 0 Grémio Dramatico Nova Heranga. Ainda existiam os grupos de teatro negro Benedito Otavio e Ba-ta-clan. [133] Em 24 de marco de 1929, o jornal Progresso noticiava os preparativos para a criacdo de mais uma companhia: “aguarda a chegada a Sao Paulo, em julho, de Oduvaldo [Osvaldo] Viana [...] para lancar as bases do teatro Negro Paulista. O género a ser explorado pela companhia negra sera a comédia ligeira e burleta”. No interior do estado, organizaram-se também grupos de “teatro negro”, como noticiava o jornal O Clarim da Alvorada: Na vizinha cidade de Itapira, estreou no dia 9 deste més, no Teatro Recreio, esta trupe de mogos de cor, que daqui partiram sob a diregao dos irmaos Felipe Costa e B. de Paula. A peca de estréia é a revista de nossos costumes intitulada “A malandragem”, com 48 quadros e bem musicada, 6 ator da revista 0 nosso prezado amigo, Joao Felipe da Costa. Como estrela do conjunto negro, seguiu a senhorinha Otila Goncalves, conhecida na roda dos seus intimeros admiradores por “Vénus de Jambo” paulista; com a sua beleza rivaliza-se com a famosa Deu Costa, que fora a estrela da companhia Batallan Negra, e com sua graca rivaliza-se com a estimada Rosa Negra, que tanto sucesso lancou nesta capital, e na capital da Repiiblica.[134] De acordo com Maria Franco, as reunides e festividades dos grupos auténomos de teatro ocorriam mais aos sdbados, ao passo que as apresentacdes dos grupos ligados as associacdes negras aconteciam aos domingos, sextas e, algumas vezes, nos dias de semana.[{135]Alguns grupos teatrais adquiriram certa popularidade no seio da comunidade negra, chegando até a se apresentarem nas cidades do interior do estado. Este foi o caso de uma peca montada pelo Camisa Verde, reunindo mtsicos e integrantes do préprio cordao. Segundo Von Simson, a referida peca [.] foi escrita pelo dirigente da agremiagao, Dionisio Barbosa, e apresentava em meio ao texto, uma série de ntimeros musicais de cardter caipira, como 0 catereté, executados e dancados pela turma do cordao. A encenacao dessa comédia parece ter alcancado algum sucesso, pois foi apresentada no Centro Portugués do Bom Retiro, em Sao Paulo, e percorreu algumas cidades do interior paulista como $ao Carlos, Campinas e Santos.[136] 0 intercambio com a producao cultural dos negros cariocas nao era incomum. José Correia Leite relata: Isso foi mais ou menos em 1926, num grande acontecimento para a comunidade negra: a vinda da Companhia Negra de Revista, do Rio de Janeiro. A estréia foi no antigo Teatro Apolo. A companhia tinha como estrela a atriz Rosa Negra. Todos eram atores negros. Apareceu para apresentar a companhia um negrinho pequenino, chamado Otelinho. Era esse Grande Otelo de hoje. Ele cantava a mtisica “Cristo nasceu na Bahia” — a tinica coisa que ele fazia no espetaculo. Depois dali, ele safa correndo para ir aos bailes. Ficava “louco” aqui, porque ele nunca tinha visto [...] O que aconteceu com ele, aconteceu comigo. Ele veio do Rio de Janeiro, e 14 nao tinha bailes de negros. LA, os bailes, ao que me parece, eram mistos. Ele chegou aqui, ficou entusiasmado. Ele era bem recebido, festejado. Ao redor dele s6 tinha negros. Ele dizia que, quando a companhia terminasse a temporada, ele ia ficar com a raga. “Aqui é que estd a raca”, dizia.(137] [112] Ver O Clarim da Alvorada, Sao Paulo, 5-2-1928, p. 3. [113] Na avaliagao de David Brookshaw, “Lino Guedes foi o primeiro poeta negro do Brasil a experimentar e expressar conscientemente a alma de seu povo”, em David Brookshaw, Raga e cor na literatura brasileira, trad. Marta Kirst (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983), p. 177. Parte da obra de Lino Guedes ainda é analisada em Zild Bernd, Introdugdo a literatura negra (Sa0 Paulo: Brasiliense, 1986), pp. 68-73. Oswaldo de Camargo considera Lino Guedes o iniciador da negritude no pais; cf. Oswaldo Camargo, O negro escrito (Sao Paulo: Imesp, 1987), p. 75. ‘ip. Aurea, 1927). [114] Lino Guedes, O canto do cisne preto (Sao Paulo: [115] Ver Progresso, Sao Paulo, 20-8-1930, p. 2. [116] Lino Guedes, O canto do cisne preto, cit., p. 28. (117] Ibid, p. 23. [118] Jbid., p. 45. 119] Ibid., p. 15. [120] Ver Progresso, Sao Paulo, 22-7-1928, p. 3; 15-11-1928, p. 5; € 26-9-1929, p. 7. [121] Ver Progresso, Sao Paulo, 28-7-1929, p. 5. [122] Ver “Os pretos estao na pontinha”, em Progresso, Sao Paulo, 7-9-1928, p. 2; “Branco contra preto”, em Progresso, Sa0 Paulo, 24-11-1929, p. 2; e “Preto branco”, em Progresso, S40 Paulo, 20-4-1930, p. 4. [123] Depoimentos do sr. Dionisio Barbosa ao MIS, em 20-11-1975. [124] Ver Progresso, Sao Paulo, 15-11-1928, p. 5. [125] Cf. Progresso, Séo Paulo, 28-4-1929, p. 5. [126] Ver Progresso, Sao Paulo, 15-2-1930, p. 5; e 20-4-1930, p. 5. [127] Paulino de Jesus Francisco Cardoso, A luta contra a apatia: estudo sobre a instituigao do movimento negro anti-racista na cidade de Sao Paulo (1915-1951), dissertagao de mestrado (Sio Paulo: PUC, 1993), p. 113. [128] 1éda Marques Brito, Samba na cidade de Sao Paulo (1900-1950): um exercicio de resisténcia cultural (S40 Paulo: FFLCH-USP, 1986), p. 82. [129] Ver Progresso, Sao Paulo, 23-6-1929, p. 5. [130] Ver Progresso, Sa0 Paulo, 15-2-1930, pp. 4-6. [131] Ver Progresso, Sao Paulo, 31-8-1929, p. 4. [132] Ver Progresso, Sao Paulo, 19-8-1928, p. 2. [133] Cf. Getulino, Campinas, 26-8-1923, p. 2; 23-9-1923, p. 2; Progresso, Sao Paulo, 24-2-1929, p. 2; O Clarim da Alvorada, So Paulo, 27-7-1930, p. 1. [134] Ver O Clarim da Alvorada, Sao Paulo, 13-5-1929, p. 3. [135] Maria Isabel Silva Franco, A redescoberta da festa: 0 teatro amador na cidade de S40 Paulo nas primeiras décadas do século XX, dissertagao de mestrado (Sao Paulo: FFLCH-USP, 1994), p. 110. [136] Olga Rodrigues de Moraes Von Simson, Brancos ¢ negros no carnaval popular paulistano (1914-1988), tese de doutorado (Sao Paulo: FFLCH-USP, 1989), p. 100. [137] E disse o vetho militante José Correia Leite...,cit., p. 50. A guisa de consideragées finais Se Sao Paulo sempre acolheu, de bracos abertos, a maior parte dos imigrantes europeus, 0 mesmo nao aconteceu com os afticanos da diaspora e seus descendentes. Na transicao do trabalho escravo para o trabalho livre, por exemplo, a elite paulista implementou um projeto de branqueamento da populacdo, fundado no programa de imigracao em massa de europeus e substituigao do trabalhador negro pelo branco. Apés a escravidao, esse projeto foi complementado pela politica de marginalizagéo dos ex-escravos e de seus descendentes. Entretanto, as vitimas demonstraram uma significativa capacidade de resisténcia e luta contra a exclusao social e o racismo. Se, de um lado, a comunidade negra paulistana desenvolveu um consideravel grau de organizacdo e consciéncia racial, de outro, ela assimilou alguns dos elementos ideolégicos do branqueamento. Com efeito, trata-se de aparentes contradicées, pois a consciéncia racial se constréi na experiéncia social, de maneira continua, dinamica, com avangos e recuos dos atores historicos. Nesse sentido, os possiveis “acertos” e “erros” dos negros devem ser entendidos como estratégias legitimas de integragao a sociedade inclusiva. Para um grupo destituido de poder como agente politico, produtivo e social, a “simples” sobrevivéncia fisica e a preservagdéo de alguns de seus valores étnicos e existenciais significaram, mais do que resisténcia, canais de enfrentamento da ordem vigente. O racismo a paulista na Primeira Republica (1889-1930) foi perverso porque: primeiro, privou o negro de direitos fundamentais no exercicio da cidadania no campo da educacao, satide, politica, lazer; segundo, eliminou as chances do trabalhador negro de concorrer em condigoes de igualdade com o branco nas velhas e novas oportunidades de emprego. Uma politica de preferéncia racial e favorecimento do trabalhador branco no pés-aboligao causou danos ainda hoje irrepardveis aos descendentes de escravos. Um regime de segregacao racial, alternadamente de fato e de direito, cindiu, em linhas gerais, a cidade de Sao Paulo em dois pélos: o “mundo do branco” e o “mundo do negro”. Mas, por que os resultados dessa pesquisa estao em descompasso com as explicagdes correntes sobre a tematica? Os autores, com raras excegdes, cometeram o erro de apenas dar voz aos vencedores, incorporando o discurso viciado da classe dominante, que - na transicao da escravidao para o trabalho assalariado — difundia suposta incapacidade intelectual, despreparo profissional e inferioridade dos negros como verdade absoluta. Nesse sentido, a vitéria do imigrante europeu, do branco “civilizado” sobre o negro “primitivo”, é justificada como produto de um processo natural e inevitavel. Alega-se que nao havia outra saida a nao ser aquela encaminhada de fato. Ora, o movimento histérico nao se envereda por via unica. A solugao encontrada foi uma entre as diversas possibilidades que se apresentavam; foi justamente aquela que correspondia aos interesses de raga e classe da elite branca. Raramente se tentou ouvir 0 que os vencidos tinham a dizer sobre essas questdes. O negro continuou, na maior parte dos estudos, sendo objeto de um enfoque, no minimo, etnocéntrico; nao sendo reconhecido como 0 sujeito mais habilitado para contar sua propria histéria, com lutas, derrotas, vit6rias e dramas cotidianos. Portanto, os resultados dessa pesquisa destoam de muitas outras porque privilegiamos o “gritar” do negro neste movimento de producao do conhecimento histérico. Nessa tarefa, modificando-se a ordem do “olhar racial”, altera-se o produto. As explicagdes centradas no branco — que sempre cumpriu o papel de dominagao e vem legitimando o status quo da desigualdade racial no pais - foram questionadas. Afinal, essas explicagdes nao dao conta do “outro”; nao aceitam a diversidade; e, geralmente, nao realizam a travessia 4 outra margem da historia. Por isso enfatizamos: a luz de um pensamento critico, este livro tenta restituir ao vencido 0 direito inaliendvel de (re)construcao do seu passado. O depoimento de Aristide Barbosa, antigo ativista negro, é uma sintese reveladora: “A historia tem disso: podem nos mentir, mentir, mas, assim que se descuidarem, a histéria volta na sua real acepcao” [1]

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