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258 © Desenvolvimento do Psiquismo mais o problema de uma organizacao eq e sensata da vida da sociedade humana —de uma organizaco que dé a cada um a possibilidade prdtica de se apropriar das realiza- ges do progresso ico 'e de participar enquanto criador ‘no erescimento destas realizagdes. Escolhi o problema do bioldgico e do social porque hoje ainda muitos sustentam a tese fatalista de uma determinacao do psiquismo do homem pela heranca bioldgica. Esta tese vem alimentar, em psicologia, as ideias da disoriminagao racial e nacional, do direito a0 genocidio e as guerras de exterminacdo. Ela ameaca a paz e a seguranca da humani- dade. Ela esté em contradigao flagrante com os dados objec- tivos das investigagdes psicolégicas cientificas, O HOMEM E A CULTURA 1. De longa data, é 0 homem considerado como um ser elaborar a sua eélebre a qual 0 homem é 0 produto da evolugao gradual do mundo animal fem uma origem animal. Depois, a anatomia comparada, a paleontologia, a embrio- logia ea antropologia forneceram imensas provas rovas desta teoria. Todavia a ideia de que o homem sc distingue radical- mente das espécies animais, mesmo as mais desenvolvidas, irmemente sustentada. Quanto a saber jue os diversos autores viam esta diferenca e como las neste dominic O essenci antes sobre © papel dos caracteres © das dif légicas inatas do homem. Uma grosseira exageracio do seu papel serviu de fundamento tedrico as teses pseud légicas ms ciondrias e mais racistas. A otientacio oposta, desenvolvida pela cigncia progres- sista, parte, pelo contrério, dé de que o homem é um ser de natureza social, que tudo o que tem de humano nele provém da sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela humanidade. No século passado, pouco apés 0 aparecimento do livro de Darwin, A Origem das espécies, Engels, sustentando a 22 © Desenvoivimento do Psiguismo ideia de uma origem animal do homem, mostrava a0 mesmo tempo que o homem é profundamente distinto dos seus ante- passados animais e que a hominizagio resultou da passagem A vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou a sua natureza e marcou 0 de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvi- mento dos animais, estava e esti submetido nao as leis biolé- gicas, mas a leis socio-histéricas. A luz dos dados actuais da paleantropologia, 0 processo da passagem dos animais ao homem pode rapidamente tra- sarse da seguinte ma Tratase de um longo proceso que compreende toda uma série de estédios. O primeiro estidio € 0 da prepara- ‘a0 biolégica do homem. Comeca no fim do tercidrio prossegue no infcio do quaterndrio. Os seus representantes, chamados australopitecos, eram animais que levavam uma ida gregéria; conheciam’a posigio 1 e serviam-se de que comporta uma série de grandes etapas pode designar-se como o da passagem ao homem. Vai desde 0 aparecimento do pitecantropo época de Neanderthal inclusive. Este estidio € marcado pelo inicio da fabricagio de instrumentos ¢ pelas primeiras formas, ainda embrioné . A formagio ibmetida, neste estédio, as leis continuava a traduzirse por leragdes anatémicas, transmitidas de geracio em geragio pela hereditariedade, Mas ao mesmo tempo, elementos novos iam no seu desenvolvimento. Comecavam a produzir-se, éncia do desenvolvimento do trabalho e da comuni- cagio pela linguagem que ele suscitava, modificagdes da igo anat6mica do homem, do seu cérebro, dos seus 6rgios dos sentidos, da sua mio dos éreios da linguagem; em resumo, 0 seu desenvolvimento biolégico tornava-e dependente do desenvolvimento da produgio. Mas a produ- ‘go € desde 0 inicio um proceso social que se desenvolve segundo as suas leis objectivas préprias, do homem estava (© Homem ¢ « Cutture 23 témica do homem a chistériay nascente da sociedade humana, Assim se desenvolvia 0 homem, tomado sujeito do pro- cesso social de trabalho, sob a accao de duas espécies de leis: em primeiro Tugar,’ as leis bioldgicas, em virtude das quais os seus drgios se ‘adaptaram 2s condigdes e as neces- sidades da produgdo; em segundo lugar, as leis socio-histé- ricas que regiam 0 desenvolvimento da propria produgio © 0s fendmenos que ela engendra. Notemos que numerosos autores modernos consideram toda a histéria do homem como um processo que conserva esta dupla determinago. Consideram, tal como Spencer, que o desenvolvimento da sociedade ou, como eles preferem dizer, © desenvolvimento do meio «supra-orginico» (isto é, social no faz sendio colocar o homem em condigées de existéncia particularmente complexas, as quais ele se adapta biologi- camente. Esta hipdtese no tem fundamento, Na realidade, a formagdo do homem passa ainda por um terceiro estidio, onde o papel respectivo do biolégico ¢ do social na natureza do homem sofreu nova mudanga. £ 0 estidio do apareci- mento do tipo do homem actual—o Homo sapiens. Ele constitui a etapa essencial, a viragem. £ 0 momento com efeito em que a evoluedo do homem se liberta totalmente da sua dependéncia inicial para com as mudangas biolégicas inevitavelmente lentas, que se transmitem por hereditarie- dade. Apenas as leis’ sociochistéricas regerio doravante a evolugio do homem. © antropélogo soviético I. I, Roguinski descreve assim esta viragem: «Do outro lado da fronteira, isto é, no homem em vias de se formar, a actividade do trabalho estava estrei- tamente ligada & evolugio morfolégica. Deste lado da fron- teira, isto é, no homem actual, «acabado», a actividade do 10 no tem qualquer foldgica '» ignifica que o homem def ji todas as propriedades desenvolvimento socic-histérico vras, a passagem do homem a ‘da em que a sua cul- tura’é cada vez mais elevada nao exige mudangas bioldgicas 1 LL Roguinsk, M. G. Levine: Fundamentor da entropotogta, Moscoro, 1588, 264 © Desenvolvimento do Psiquismo libertaramse, segundo a expresso de Vandel, do «despotismo da here © podem prosseguir 0 seu desenvolvimento num ritmo des- conhecido no mundo animal?. E, das quatro ou cinco dezenas demi dos primeiros representantes do 7. i ularidades biolégicas dé as suas modificagdes nao tes de variagdes reduzidas, sem alcance essencial nas con ses da vida social. Nio queremos com isto dizer que a passagem pés fim & accao das ou que a natureza do homem, uma vez con tenha sofrido qualquer mudanga. © homem ni temente subtraido ao campo de accdo das © que € verdade & que as modificagées biol rias no determinam 0 desenvolvimento socio-histérico do le; este ¢ doravante movido por outras que ndo as leis'da variacio e da_hereditariedade icas. Na obra que consagrou a teoria da evolugi fideia de uma maneira notével téncia detémse no limiar da uma luta, a luta contra a luta pela existéncia. «E um com- bate para que todas as pessoas na Terra possam satisfazer as suas necessidades, para que no conhecam nem a indi- géncia, nem a fome, nem a morte lenta... °, 2. A hominizagio, enquanto mudaneas essenciais na organizagdo fisica do homem, termina com o surgimento da hist6ria social da humanidade. Esta ideia nao nos parece, nos nossos dias, paradoxal. No coléqui hominizacio que se reun Ihada pela maiori © Homem ¢ a Cultura 265 Mas entio como & que a evolucio dos homens se pro- duziu? Qual 0 «mecanismo»? Pois, desde o principio da his- humana, os préprios homens ¢ as suas condicdes de i icar € as aquisigdes da evolu- 0 due cra a condicio necesséi lade do progresso histérico. Era preciso, portanto, que estas aquisigdes se fixassem. Mas como, se — jé vimos —elas nao podem fixarse sob 0 efeito da heranga biolégica? Foi sob uma forma absoluta- mente particular, forma que sé aparece com a sociedade humana: a dos fendmenos externos da cultura material e intelectual. Esta forma particular de fixagio e de transmissio as geragdes seguintes das aquisicdes da evolucdo. de aparecimento ao facto, diferentemente dos animai homens terem uma actividade criadora e produtiva. E antes de mais o caso da actividade humana fundamental: 0 tra- balho. Pela sua actividade, os homens no fazem senéo adap tarse & natureza. Eles modificam-na em fun¢io do desen- volvimento das suas necessidades. Criam 0s objectos que devem satisfazer as suas necessidades e igualmente os meios de producdo destes objectos, dos instrumentos as méquinas mais complexas. Constroem’ habitagdes, produzem as suas roupas e outros bens materiais. Os progressos realizados na producao de bens materiais sio acompanhados pelo desen- volvimento da cultura dos homens; o seu conhecimento do mundo circundante e deles mesmos enriquece-se, desenvol- vemsse a ciéncia ¢ a arte. ‘Ao mesmo tempo, no decurso da actividade dos homens, 'S aptiddes, os seus conhecimentos e o seu saber izam-se de certa maneira nos seus produtos (materiais, aperfeigoamento, por exemy pode considerar-se, deste ponto novo grau do desenvolvimento histérico nas aptiddes moto- ras do homem; também a complexificagio da fonética das linguas encarna os progressos realizados na articulagio dos sons e do ouvido verbal, os progressos das obras de arte, um desenvolvimento estético, et Cada geragio comeca, portanto, a sua vida num mundo de objectos e de fenémenos criado pelas geragdes preceden- vista, como marcando um axe 296 © Desenvolvimento do Psiquismo tes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo parti no trabalho, na produgdo e nas diversas formas de a social e desenvolvendo assim as aptiddes especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo. Com efeito, mesmo a aptidao ‘para usar a linguagem arti- culada s6 se forma, em cada geragio, pela aprendizagem da Iingua que se desenvolveu num’ proceso histérico, em fungao das caracteristicas objectivas desta lingua. O. mes se passa com o desenvolvimento do pensamento ou da sigao do saber. Esté fora de questio que a experiéncia in dual de um homem, por mais rica que seja, baste para prodi a formagio de um pensamento Iégico ou matemético abstracto ¢ sistemas conceptuais correspondentes. Seria pre- ciso nio uma vida, mas mil. De facto, 0 mesmo pensamento © 0 saber de uma geracio formam-se a partir da apropriacao dos resultados da actividade cognitiva das geragdes. prece- dentes. Esté hoje estabelecido com toda a certeza que se as crian- gas se desenvolverem desde ‘a mais tenra idade, fora da fenémenos por ela criados, dos animais (Zingg)*, Nao possuem nem linguagem nem pensamento e os seus préprios movimentos em nada se asse- melham aos dos humanos; no adquirem mesmo a posigio iecem-se, pelo contririo, casos inversos em que das de'povos que se encontram num nivel de entio nelas todas as aptiddes necessdrias para a sta plena integracdo nesta cultura. O caso citado por H. Piéron* € um exemplo. A tribo dos Guayaquils, no Paraguai, ¢ das m tivas que se conhecem actualmente. A’ sua ci izacio do mel porque um dos seus € a recolha do mel de abelhas selvagens I entrar em contacto com eles, pois nao tém lugar de habitagao fixa. Assim que os estrangeiros se aproximam, fogem para os bosques. Mas conseguiu-se um dia apanhar uma crianga desta tribo com sete anos de idade. Péde assim (© Homem e @ Cultum, a er'se a sua lingua que se verificou ser extremamente © etndlogo francés Vellard encontrou is anos num acampamento abando- nado pela tribo. Confiou a sua educacio A mie dele. Vinte ela em nada se distinguia no seu iento das intelectuais europeias, Dedica-se & etno- grafia e fala francés, espanhol e portugués. outros provam que as aptidées caracteres especificamente humanos ndo se transmi modo algum por hereditariedade biolégica, mag adquirem-se no decurso da vida por um processo de apropriacao da cul- tura ctiada pelas geragGes precedentes. Razio por que todas os homens actuals (pelo mienos no que respelia aos casos normais), qualquer que seja a sua pertenga étnica, possuem as disposigdes elaboradas no periodo de formagao do homem © que permite, quando reunidas as condigdes requeridas, a Tealizago deste proceso desconhecido no mundo dos animais, Podemos dizer que cada individuo aprende a ser um homem. O que a natureza The dé quando nasce nio Ihe basta para viver em sociedade. E-lhe ainda preciso adquirir 0 que foi alcangado no decurso do desenvolvimento fi da sociedade’ humana. O iindividuo é colocado diante de uma imensidade de rique- zas acumuladas ao longo dos séculos por inumerdveis geragces de homens, os vinicos seres, no nosso planeta, que sio cria- dores. AS’ geragdes Ihumanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa as geragGes seguintes que mi cam ¢ aperieicoam pelo trabalho e pela uta as riquezas que Ihes foram transmitidas e wpassam 0 testemunho» do desen- volvimento da humanidade. Foi Karl Marx, 0 fundador do socialismo cientifico, 0 primeiro que forneceu uma anélise teérica da natureza social do homem e do seu desenvolvimento socio-histérico: «Todas as suas (trata-se do homem—A. L.) relagdes humanas com © mundo, a visto, a audiego, 0 olfacto, 0 gosto, 0 tacto, 0 ensamento, a contemplagdo, o sentiment, a vontade, 2 actr 0 amor, em resumo, todos os Srgios da sua indivi- Gualidade que,’ na_ sua forma, si0°imediatamente. drgios , Slo no seu comportamento objective ou na sua r. (do com 0 objecto a apropriagao deste, a apropriagao da reali- 288 dade humana’». Mais de cem anos passaram depois que Marx escreveu estas linhas, mas as ideias que clas encerram permanecem até a0s nossos da verdadei 3. A questiio do desenvolvimento do homem, conside- rado em ligacio com o desenvolvimento da cultura e da sociedade, levanta uma série de interrogagdes. Em particular, leva a perguntarse em que consiste e como se desenrola o processo descrito mais acima de apropriacio pelos individuos ° ustria, das ciéncias ¢ da € a expressiio da historia verdadeira da natureza humana; é 0 saldo do sua transformagao histérica. Mas em que é que con- siste 0 proprio proceso de apropriacao deste mundo, que é ao mesmo tempo 0 processo de formagao das faculdades especi- ficas do homem? Devemos sublinhar que este processo ¢ sempre activo do onto de vista do homem. Para se apropriar dos objectos ou dos fenémenos que sao 0 produto do desenvolvimento hists- rico, & necessirio desenvolver em relagdo a eles uma ai dade que reproduza, pela sua forma, gos essenciais da actividade encarnada, acumulada no objecto. Esclaregamos esta ideia com a ajuda de um exemplo igdio do instrumento. instrumento & 0 que leva ‘material, os tragos icos da criagdo humana. Nao é apenas um objecto de uma forma determinada, possuindo dadas propriedades, instrumento € a0 mesmo tempo um objecto social no qual esto incorporadas ¢ fixadas as operagdes de trabalho historicamente elaboradas. facto de este contetido, simultaneamente soc estar eristalizado nos instrumentos human trumentos» dos animais. Estes © Homem ¢ a Cultura 200 © simio aprende a servirse de um pau para puxar um fruto para si, Mas estas operagdes ndo se fixam nos «instrumen- tos» dos animais e estes cinstrumentosy mio se tornam os suportes permanentes destas operacdes. Logo que 0 pau tenha desempenhado a sua funcio as mios do simio, tor- nase um objecto indiferente para ele, & por isso que os animais ngo guardam os seus «instrumentos» e no os trans- mitem de gerago em geracao. Eles ndo podem, portanto, preencher esta fungdo de «acumulaeio», segundo a expressio de J. Bernal, que € propria da cultura. # isto que explica que no existam nos processos de aquisico do ins- trumento: o emprego do «instrumento» no forma neles novas operacdes motoras; € 0 proprio instrumento que esté subor- dinado aos movimentos naturais, fundamentalmente instin- tivos, no sistema dos quais se integra. Esta relagdo é inversa no caso do homem. & a sua mio, pelo contrério, que se integra no sistema socio-historicamente elaborado das’ operagdes incorporadas no instrumento e € a mao que a ele se subordina. A apropriacdo dos instrumentos implica, portanto, uma reorganiza¢io dos movimentos natu- os do homem ¢ a formagio de faculdades moto- ras superiores. A aquisigéo do instrumento consiste, portanto, para o homem, em se apropriar das operacOes’ motoras que nele esto incorporadas. E a0 mesmo tempo um processo de for- magio activa de aptiddes novas, de fungées superiores, «psi- izam» a sua esfera motriz. Isto aplicase igualmente aos fenémenos da cultura inte- lectual. Assim, a aquisigao da linguagem no é outra coisa sendo 0 processo de apropriagdo das operades de palavras que sio fixadas historicamente nas suas significagoes, é igualmente a aquisi¢ao da fonética da lingua que se efectua no decurso da apropriagdo das operagGes que realizam a constincia do seu sistema fonol6gico objective. & no decurso destes processos que se formam no homem as funges de articulagao e de audicao da palavra, assim como esta activi- dade cerebral a que os fisidlogos chamam o «segundo sis- tema de sinalizagao» (Pavlov) E evidente que todas estas caracteristicas psicot siio formadas pela lingua que 0 homem fala e ni a0 ponto do conhecimento das caracteristicas de uma dada permitir descrever outras com a maior verosimilhanga, Pe 20 © Desenvolvimento do Psiquismo sem qualquer estudo particular. Assim, sabendo que a lingua materna de um dado grupo humano faz parte das linguas de tom, podemos estar absolutamente certos que todos os seus membros tém um ouvido tonal desenvolvido « A principal caracteristica do processo de apropriagio ou de aquisigdion que descrevemos é, portanto, criar no homem aptiddes novas, fungdes psiquicas novas. nisto que se dife- rencia do processo de aprendizagem dos animais. Enquanto este timo € 0 resultado de uma adapragao individual do comportamento genérico a condigdes de existéncia comple- Xas © mutantes, a assimilacao no homem é um processo de reproducdo, nas propriedades do individuo, das propriedades © aptiddes historicamente formadas da espécie humana. Jando do papel da aquisicao da cultura no desenvolvi- mento do homem, 0 autor de uma obra recente consagrada a este problema nota muito justamente que se o animal se contenta com o desenvolvimento da sua natureza, o homem consirdi a sua natureza®. ‘Mas como € que este proceso & possivel no plano fisio- ico © como se processa? Tratase de uma questio muito Com efeito, por um lado, os factos indicam que as id6es © as fungdes que se desenvolvem no decurso da his- toria social da humanidade nao se fixam no cerebro do homem ¢ nio se transmitem segundo as leis da hereditarie- dade. Por outro lado, é absolutamente evidente que uma aptidao ou uma fungao no pode ser sendo a fungio de um 6rg0 ou de um conjunto de drgios determinados. A resolugio da contradicio entre estas duas posigdes igualmente indiscutiveis constitui um dos sucessos mais importantes que a fisiologia e a psicofisiologia do nosso século obtiveram. Em W. Wundt encontramos jé a ideia de que o cardcter especifico da actividade se deve a0 facto de ela assentar nao sobre as fungdes fisiolégicas elementares do cérebro, mas sobre as associages que elas formam no decurso do desen- volvimento individual. Um novo passo decisivo foi transposto neste sentido com a descoberta, por Paviov, do trabalho por sistemas dos grandes hemisférios cerebrais. + Ver ALN. Leontiey, XB. Guippenretter: nfiutnela da lingua ‘aterna sobre a formacio do ouvidor, DOKI Ak. Pid. Naouk, RS.P-Ry 1030, ne 2 WG, Chateau: Le culture généraie, Paris, 1960, p. 98 © Homem e a Cultura m Por seu turno, um dos mais eminentes contemporineos de Pavlov, A. A. Oukhotonski, emitiu a ideia de que existem 6rgios particulares do sistema nervoso, os Srgios fisiolégicos ou funcionais ", © que sio estes «drgios fisiolégicos do cérebro? Sio érgios que funcionam da mesma maneira que os 6rgios habi- tuais, de morfologia constante, mas distinguem-se por serem neoformacdes que aparecessem no decurso do desenvolvi- mento individual (ontogénico). Eles constituem, portanto, 0 substrato material das aptiddes e fungdes especificas que se formam no decurso da apropriagao pelo homem do mundo dos objectos e fenémenos criados pela humanidade, isto é, da cultura, As. propri 10s de formacdo destes Srgios so s hoje, a0 ‘ponto de ser possivel construir «modelos» deles em laboratérios, Além disto, podemos doravante representar com maior clareza como se efectuou a hominizagdo do cérebro, aquilo que per- mitiu ao desenvolvimento do homem obedecer as leis socio- ist6ricas e acelerarse assim de maneira considerdvel: essa hominizagdo traduz-se pelo facto de que 0 c6rtex do cérebro humano, com os seus 15 bilides de células nervosas, se tor- nou, nuyia grau bem mais elevado que nos animais superiores, um ‘éreao capaz de formar érgaos funcionais. 4. Considerimos até agora 0 processo de apropriagao como 0 resultado de uma actividade efectiva do individuo em relagao aos objectos e fendmenos do mundo circundante eria- dos pelo desenvolvimento da cultura humana. Sublinhamos que esta actividade deve ser adequada, quer isto dizer que deve reproduzir os tragos da actividade cristalizada (acumu- lada) no objecto ou no fendmeno ou mais exactamente nos sistemas que formam. Mas podese suport que esta actividade adequada apareca no homem, na crianga, sob a influéncia dos proprios objectos e fenémenos? A falsidade de uma tal suposigdo é evidente. A crianca nao est de modo algum sozinha em face do mundo que a rodeia. As suas relagdes com o mundo tém sempre por intermediério a relagio do homem aos outros Ver A.A. Oukhtomset: Obras, t 1, Leninegrado, 1980, p. 200 mm © Desenvolvimento do Psiquisme idade esti sempre inserida na quer esta se efectue sob a sua idade em comum, quer sob a (0 verbal ou mesmo apenas mental, é a condigao necesséria e especifica do desenvolvimento do homem na sociedade. ‘As aquisigdes do desenvolvimento histérico das aptiddes humanas no’ sao simplesmente dadas aos homens nos fend- os da cultura material e espiritual que os encarnam, mas sio ai apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptiddes, «os drgios da sua individualidadey, a crianga, o ser humano, deve entrar fem relagdo com os fenémenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, mum processo de comunicacio com eles. Assim, a crianga aprende a actividade adequada. Pela ‘anto, um processo de sua fungio, este processo é, educagéio. fe que a educacdo pode ter e tem efectivamente diversas. Na origem, nas primeiras etapas do desenvolvimento da sociedade humana, como nas criancas ‘mais pequenas, é uma simples imitago dos actos do mei que se opera Sob 0 seu co: depois complicase e especializa-se, tomando formas tais a educacdo escolares, diferentes formas de formaco superior ¢ até a formagdo autodidacta. Mas o ponto principal que deve ser bem sublinhado é que este processo deve sempre ocorrer sem 0 ii dos resultados do desenvolvimento socio-i nidade nas geracdes seguintes seria impossiv' a continuidade do progres esta ideia, voltarei a uma imagem de Piéron as criangas mais pequenas e na ignificaria catéstrofe que s6 poupari qual pereceria toda a populacio adulta, isso nio © fim do género humano, mas a histéria seria interrompida. Os tesoiros da cu fisicamente, mas nio exist novas geracées 0 seu uso. AS cionar, 0s livros ficariam sem deriam a sua funcko est teria de recomecar. S is obras de arte per- ia da humanidade © Homem e a Cultura m possiyel com a O movimento da histéria s6 é, portant ges da cultura transmissio, &s novas geragdes, das ai humana, isto é com educacdo. ‘Quanto mais progride a humanidade, mais rica é a pré- tica socio-histérica acumulada por ela, mais cresce 0 papel especifico da educagio e mais complexa é a sua tarefa, Razo por que toda a etapa nova no desenvolvimento da humani- dade, bem como no dos diferentes povos, apela forcosamente para’ uma nova etapa no desenvolvimento da educagio: 0 tempo que a sociedade consagra & educagio das geracées aumenta; criam-se_ estabelecimentos de ensino, a instrugio toma formas especializadas, diferencia-se o trabalho do educa- dor do professor; os programas de estudo enriqui métodos pedagégicos aperfeigoamse, desenvolvese a ciéncia pedagégica. Esta relacdo entre 0 progresso histérico e 0 pro- seresso da educagdo 6 to estreita que se pode sem risco de errar julgar o nivel geral do desenvolvimento hist6rico da sociedade pelo nivel de desenvolvimento do seu sistema edu- cativo e inversamente. 5. Até agora considerimos 0 desenvolvimento do vidual, que vem ao mundo sem defesa ¢ desar- mado ¢ que possui ao nascer uma aptidio que apenas o dis- tingue fundamentalmente dos seus antepassados animais: a ; tal & por exemplo, a influéncia dos’ tipos congénitos “de actividade nervosa superior. Por outro lado, vimos qual era a tinica fonte ¢ a origem verdadeira do desenvolvimento no homem das forgas ¢ das aptidées que sio 0 produto da evolucdo socio-histérica. Sao (08 objectos © os fenémenos que encerram em si a actividade das geragoes precedentes e resultam de todo o desenvolvi- mento intelectual do género humano, do desenvolvimento do homem enquanto ser genérico (Marx). Mas esta nogo com- porta uma certa abstraccao cientifica tal como as de chuma- nidade», de «cultura humana», de «génio humano». mm © Desenvolvimento do Psiquismo Certamente que podemos representar as conquistas ines- gotdveis do desenvolvimento humano que mul dezenas de milhares de vezes as forcas fisicas ¢ intelectuais dos homens; 0s seus conhecimentos penetram os. segredos mais bem escondidos do Universo, as obras de arte dio uma 408 seus sentimentos. Mas todos tém acesso a estas aquisices? Sabemos muito bem que nio € esse 0 caso © que as aquisicées do seu desenvolvimento estZo como que separadas dos homens, pésito, quereria voltar a comparagao entre gica © progresso histérico, entre a’ natureza animal ¢ a natureza humana. A perfeigio da faculdade de adaptacio dos animais ao meio, a «sagacidaden, la expe- tudo isso repre- Pouco em relagio as aquisic&es do desenvol- vimento histérico da humanidade, mas se se abstrai de eventuais desvios individuais, tudo isso constitui apandgio de fodos os representantes da espécie considerada. Basta, por fanto, a0 naturalista estudar um s6 ou alguns para ter dma ideia justa da espécie no seu conjunto. Para o homem 0 caso é diferente. A unidade da espécie hhumana parece ser praticamente inexistente nio em virude das. diferengas de cor da pele, da forma dos olhos ou de quaisquer outros tragos exteriores, mas sim das enormes dife. Feneas nas condigdes la, da riqueza da activi- dade materi 1 de desenvolvimento das igente vindo de outro planeta visitasse a Terra € descrevesse as aptidées fisicas, menta: lades’ morais © 0s tragos do compé pertencentes as classes e cama ou habitando regides e paises diferentes, di tiria tratarse de re . Mas esta desigualdade entre os homens nao provém das suas diferencas gualdade econés © Homem e a Cultura 6 © facto de estas aquisigées se fixarem nos produtos objec- tivos da actividade humana modifica totalmente, vimo-lo, 0 Préprio tipo de desenvolvimento. Este libertase da ¢ua Sujeigdo as leis da evolugio, acelerase e novas perspectivas aparecem, impenséveis nas condigdes de um desenvolvimento movido pelas leis da variagdo e da hereditariedade. Mas este mesmo facto tem igualmente por consequéncia que 2s aqui- siges do desenvolvimento histérico possam separarse daque- les que criam este desenvolvimento, ta separa¢do toma antes de mais uma forma pratica, 2 alienagao econdmica dos meios e produtos do trabalho em face dos produtores directos. Ela aparece com a divisio social do trabalho, com as formas da propriedade privada e da luta de classes. Ela é portanto, engendrada pela acco das leis objectivas do desenvolvimento da sociedade que nao depen. dem da consciéncia ou da vontade dos homens. A. divisio social do trabalho transforma 0 produto do trabalho num objecto destinado a troca, o que modifica radi. calmente o lucro do produtor no produto que ele fabrica, Se este siltimo continua a ser, evidentemente, o resullado da actividade do homem, nao é'menos verdade que o cardcter concreto desta actividade se apaga nele: 0 produto toma um caricter totalmente impessoal © comeca a sua vida propria, independente do homem, a sua vida de mercadoria, A divisio social do trabalho tem igualmente como conse- jue a actividade material e intelectual, o prazer eo , @ produsio © 0 consumo se separem e pertencam a homens diferentes. Assim, enquanto globalmente a activi dade do homem se enriquece e se diversifica, a de cada ind! viduo tomado a parte estreita-se ¢ empobrece. Esta limitagao, este empobrecimento podem tornarse exiremos, sabemo-lo. bem, quando um operirio, por exemplo, forgas para realizar uma operacdo qui res de vezes. A concentragio das riquezas materiais nas mios de uma classe dominante 6 acompanhada de uma concentragio da jesmas fos, Se bem que as suas i para todos, s6 uma infima minoria de receber a forma- Go requerida, de enriquecer sistematicamente os seus conhe. Cimentos © de se entregar 4 arte; durante este tempo, os 76 (© Desenvolvimento do Psiquismo homens que constituem a massa da populagio, em particular da populagao rural, tém de contentarse com’ o minimo de desenvolvimento cultural nepessério & producao de riquezas ‘materiais nos limites das fungdes que Ihes so destinadas. Como a minoria dominante possui no apenas os meios de produgio material, mas também parte dos meios de produgdo e de difusio da cultura intelectual ¢ se esforga Por 0s colocar ao servigo dos seus interesses, produz-se uma estratificagdo desta mesma cultura. Enquanto no dominio das cigncias que asseguram & progresso técnico se verifica uma acumulacZo répida de conhecimentos positives, no dominio que toca ao homem e & sociedade, & sua natureza ¢ esséncia, as foreas que os fazem avangar © a0 seu futuro, nos dominios dos ideais morais e estéticos, 0 desenvolvi- mento segue duas vias radicalmente difer. para acumular as riquezas intelectuais ‘mentos e 0s ideais que ¢ humano no homem histérico: ela reflecte 1ados a justificar e perpetuar a ordem soci tente, em desviar as massas da sua Tuta pela justica, igu: dade e liberdade, anestesiando e paralisando a sua vontade. O choque destas duas tendéncias provoca aquilo a que se chama a luta ideolégica, © processo de alienagdo econmica, produto do desen- volvimento da divisdo social do trabalho e das relagdes de propriedade privada, nfo tem portanto por winica’ conse- quéncia afastar as massas da cultura intelectual, mas também dividir esta em elementos de duas categorias, umas progres- sistas, democriticas, servindo o desenvolvimento da humani- dade, e as outras que levantam obstéculos a este progresso, se penetram nas massas, e que formam o contetido da cul- tura declinante das classes reacciondrias da sociedade. ‘A concentracio e a estratificagio da cultura nio se produzem apenas no interior das’ nagdes A desigualdade de desenvolvimento cul manifesta-se la mais cruamente & escala do mundo, da humanidade E esta desigualdade que serve o mais das vezes para justificar uma distingdo entre os representantes das racas © Homem e 2 Culture : am dirigentes estio particularmente justificagao ideoldgica a0 seu nos avangados no seu desenvol Nao foi, portanto, um acaso s or a ideia de que estes povos se situam noutro nivel bi pertencem a uma variedade (subespécie) humana particular, viram a luz do dia em Inglaterra (Lawrence, G. Smith e ha segunda metade do século x1x, G. Kent ¢ os seus discipulos). Nada houve de fortuito’ no formidavel esforgo da propaganda racista nos Estados Unidos, nos primeiros anos do movimento de libertacio dos Negros. 0 democrata revolucionério rasso Tchernychevski (1828-1889) escrevia sobre este assunto: «Quando os plantadores dos Estados do Sul viram o esclavagismo ameacado, as conside- rages sdbias em favor da escravatura atingiram rapidamente © grau de elaboragdo necessirio na sua Iuta contra as ideias do partido que se tornava perigoso para os esclavagistas... fe encontrou-se neles forgas tio considerdveis para a Tuta jornalistica a, como devia encontrar-se a submeter povos me- 19 econémico e cultural. Para dar uma aparéncia cientifica & pretensa dett- ciéncia natural das racas «inferiores», apelou-se, como todos sabem, para i morfolégicos (mor- fologia comparac E aos primeiros que pertencem as tentativas repetida- mente feitas para provar a existéncia de diferencas itd micas no cérebro dos homens que pertencem a racas dife- rentes. Estas tentativas nado podiam deixar de fracassar. Foi assim, por exemplo, que o volume médio do cérebro de certas tribos negras se revelou mesmo, apés um estudo escru- puloso, mais elevado que o dos Brancos (dos Escoceses). © mesmo para a estrutura fina do cérebro. O. Klineberg cita no seu livro sobre a psicologia social dados que o teste- ®, Um colaborador do instituto de anatomia da sidade americana John Hopkins, Bean, publicou no ‘Tenerngchevski: Obras complefas, em 10 volumes, Ex, Mos- 1, pp. 809-810. ‘Or"ilineberg: Social Poichology, Nova Torque. 1854 ome seu tempo dados que mostravam que a parte front cértex cerebral era relativamente menos desenvolvi homens de raga negra que nos brancos e que o seu cérebro comportava igualmente algumas outras _particularidades estruturais confirmando 0 «facto est segundo a expresso de Bean, da inferioridade dos Negros. Como os dados sobre que se fundamentava Bean parecessem pouco convincentes ao director deste instituto, Mall, ele retomou as investigagdes sobre a mesma coleceio de cérebros, mas diferentemente de Bean, sem saber antecipadamente quais 0s que pertenciam a brancos e quais os que pertenciam a negros. Mall ¢ 05 seus colaboradores cl ram 0s cére- bros em dois grupos em funcio dos critérios indicados por Bean, quando contaram cada grupo, os dos represen- tantes das ragas negra e branca, verificaram que i nos igualmente repartidos: as conclusdes i berg a este propésito, que esperandose encontrar ubdesenvol- fo nos negros e conhecendo antecipadamente a prove- ia de cada um. dos cérebros, Bean «descobriu» entre apresenta um interesse particular na medida em que tocam directamente 0 problema do desenvolvimento cultural desi- © seu fundamento & a hipdtese mo. Esta hipstese resume-se a ideia de que as ragas humanas tém origens independentes ¢ que provém de antepassados diferentes. Assim se explicariam as diferencas pretensamente inultrapass4veis entre elas, tanto no que toca a0 nivel atingido como as possibilidades de desenvolvimento ulterior. Todavia, 0 progresso dos conhecimentos pal poldgicos tornow’ esta hipstese cada vez menos plat ia dos inyestigadores contempordneos defende posi- item a origem comum de todas as goes de uma espécie™ ini mha-o 0 facto de tiveis, em certas condigdes, como por exemplo a migragio © Homem ¢ a Cultura mm para outras regides geogrificas, de se modificarem bastante hitidamente no espago de uma vinica geracio. Outra prova de origem comum das ragas humanas é que certos caracte- res, tomados @ parte, cuja teunitio forma a especificidade de uma raga, se encontram em combinagdes diferentes nos representantes de ragas diferentes. Finalmente, devemos sobretudo sublinhar que as principais caracteristicas do homem contemporineo «acabado» (a saber, um cérebro altamente desenvolvido e a proporedo correspondente entre as partes encefélica e facial do cranio, a conformagio carac- ica da mo, as particularidades do esqueleto, adaptado fo vertical, 0 fraco desenvolvimento lento da cober- tura pilosa do corpo, etc.) existem em todas as ragas huma- nas sem excepeao. £ possivel admitir que as diferengas raciais provenham do facto de que a humanidade, espathandose cada vez mais sobre a Terra, se tenha fraccionado em grupos separados que prosseguindo o seu desenvolvimento sob a influéncia de con- digdes naturais desiguais tenham adquirido certas particula- ridades. Mas estas ndo tém significagdo adaptativa a no ser relativamente a factores naturais agindo directamente (por exemplo, a pigmentagéo da pele corresponde a uma acco intensa dos raios solares). © isolamento destes grupos refor- cou naturalmente a acumulaio hereditaria de tais caracte- Tisticas bioldgicas: vimos que 0 efeito das leis da heredita- iedade no cessa totalmente, mas apenas no que toca & fixagdo e A transmissio das’ aquisicdes socic-historicas da humanidade. Ora é justamente a este nivel que se observam as maiores diferencas. # certo que este relativo isolamento © desigualdade das condigdes e das circunstincias do progresso econémico e social péde criar, em povos humanos estabelecidos em resides diferentes ‘do mundo, uma certa desigualdade de desenvolvimento. Todavia, as diferengas enormes que se criaram entre o§ niveis de cultura material ¢ intelectual dos paises e povos diferentes no podem explicarse unicamente pelo efeito destes factores. De facto, no decurso do desen- ento da humanidade, dos meios de comunicagao, dos lagos econémicos e culturais entre os paises, apareceram e desenvolveramse rapidamente, Eles deveriam ter 0 efeito inverso, isto é, provocar uma igualizaco do nivel de desen- 230 © Desenvolvimento do Psiquismo volvimento dos diferentes paises e elevar os pafses retarda- tarios ao nivel dos paises mais avangados. Se, pelo contrério, a congentracao da cultura mundial nao cessou de se reforcar, a ponto de alguns paises se tornarem os portadores principais enquanto noutros esti abafada, é Porque as relagées entre os paises ndo assentam nos princi ios da igualdade de direitos, da cooperacao e entreajuda, ‘mas no principio da dominacao do forte sobre o fraco. A usurpacio de territérios dos paises menos avangados, a pilhagem de populacdes indizenas ¢ a sua redugio A escra: vatura, a colonizacdo destes paises, tudo isto é que interrom- it © provocou uma regressio da ia ndo apenas a0 facto de os povos ia, se verem privados dos meios ‘ao seu progresso cultural, mas também ao facto de terem sido levantadas barreiras artifi- ciais entre eles ¢ a cultura mundial. Se bem que os colo- nizadores tenham sempre dissimulado os seus objectivos interesseiros sob frases exaltando a sua missio cultural lizadora, de facto reduziram paises inteiros & miséria cul- tural. Quando importavam riquezas culturais des massas, tratava-se o mais das vezes de riquezas ficticias, levando-thes menos cultura yerdadeira do que a espuma que sobrenada a superficie das aguas. Assim se introduziram a concentracdo e a alienagio da cultura no s6 na histéria dos diferentes paises mas também © sob formas ainda menos disfargadas na historia da huma- nidade. Esta alienagio provocou uma ruptura entre, por um lado, as gigantescas possibilidades desenvolvidas pelo. homem e. Por outro, a pobreza ¢ a estreiteza de desenvolvimento que, se bem que em graus diferentes, € a parte que cabe aos homens coneretos. Esta ruptura nao € todavia eterna, como no sio eternas as relacdes socio-econdmicas que Ihe ‘deram origem. E © problema do seu desaparecimento completo que estd no centro dos debates sobre as perspectivas de desenvol- vimento do homem. sujeitos, na sua grande m: materiais mais indispensé preocupa antropdlogos, psiedlogos ¢ pre, quando se trata de a1 cias devem-se c| © Homem e a Cultura 21 homem, quer do ponto de vista biolégico quer do ponto de vista socio-hist6rico. E evidente que estes pontos de vista mio se encaram icamente num plano puramente abstracto; uns © outros tocam importantes problemas sociais, ¢ servem de funda- mento a tendéncias funcionalmente diferentes para a sua solugdo pratica. Os representantes da pri ra tendéncia, puramente biolé- ica, considerando 0 desenvolvimento do’ homem como 0 prolongamento directo da evolucao bioldgica, no querem ver as modificagdes que se produziram neste mesmo tipo de desenvoh tima etapa da sua forma- cdo. Arquitectam as suas teorias sobre o futuro do homem extrapolando pura simplesmente as mudangas morfolégicas que ocorreram no perfodo de preparaco e de formacio inicial do homem: recorrem mesmo a observagdes sobre as variagées de caracteres particulares no homem rineo, considerando outros como pregre: via do desenvolvimento futuro. Foi assim que apareceram as teorias sobre a transfor- macdo progressiva do homem actual num ser humano de tipo novo. Este ser, 0 Homo sapientissimus, & descrito dife- rentemente segundo os autores, mas todos Ihe atribuem carac- bioldgicas novas. Em. geral, véem-no maior, com um crinio mais redondo e muito mais volumoso que o do homem actual, um pequeno rosto chato, menor niimero de dentes e quatro dedos dos pés. Quanto aos seus caracteres psiquicos, 0 principal seria um intelecto poderoso e subtil 6s seus sentimentos, pelo contrério, enfraquecer-se-40 Claro que 0 importante nio esté nas descrigdes mais ou menos fantdsticas sobre 0 homem futuro, mas sim na con- cepedo das leis motoras do desenvolvimento que se esconde por detris delas e, sobretudo, nas conclusdes que delas de- correm inevitavelmente, no espirito do «darwinismo soci Se se pensa efectivamente que a evolucdo do homem se faz pelo desenvolvimento dos caracteres transmissiveis da espécie humana ndo podemos intervir no curso deste pro 500000. years from now», Journal of the 1885. 1 6 at 282 (© Desenvolvimento do Psiquisme cesso a nao ser com medidas de melhoramento destes carac- es hereditirios. F sobre esta ideia que assenta a eugenia do melhoramento da espécie humana), fun- dada no principio do sécul Francis Galton, autor da famosa obra O génio hereditdrio, suas leis € suas conse- quéncias. Para que se possam manter e desenvolver as faculdades humanas, os eugenistas exigem que se tome uma série de medidas ‘visando impedir a reprodugio das racas e dos homens «inferiores» e 0 seu cruzamento com representantes superiores do género humano, 0s «sangue azul. Ao lado destas medidas, encorajando a reproducao dos membros das classes privilegiadas da sociedade e das ragas superiores, limi- tando, pelo contrario, a reprodugdo das camadas inferiores io € dos povos «de com, os eugenisias pregam 2 ‘staurar uma selecedo sexual artificial como a para o apuramento de uma raca de animais . Os cugenistas mais reaccionérios vio mais izagio obrigatdria ¢ mesmo a eliminaco fisica das pessoas chereditariamente deficien- tes» e de populacdes inteiras. Véem nas guerras de exter nagio um dos meios mais eficazes para melhorar a raga humana, Sabe-se que esias teses monstruosas ¢ inumanas nao encontraram a sua aplicacio_pré- violencia ficaram apenas no papé tica nos campos de morte fascistas ¢ nos actos dos colonizadores racistas. A luta contra estas niincia da sua esséncia, antipopular ¢ reaccioné simplesmente apenas uma significagdo teGrica abstracta; 6 indispensével para abrir caminho ao triunfo das i democracia, da paz e do progresso da humanidade. futuro da humanidade ¢ verdadeiramente grandioso esté muito mais préximo do que imaginam aquel esperam através de uma mudanga de natureza bi Hoje, este futuro esté a vista; é a préxima etapa da histéria humana. ‘© homem nio nasce dotado das aquisicdes histéricas da humanidade. Resultando estas do desenvolvimento das gera- des humanas, no sio incorporadas nem nele, nem nas suas disposigées naturais, mas no mundo que o rodeia, nas gran- des obras da cultura humana. $6 apropriando-se delas no decurso da sua vida ele adquire propriedades e faculdades © Homem ¢ a Culture 260 verdadeiramente humanas. Este processo coloca-o, por assim dizer, aos ombros das geragdes anteriores ¢ eleva-o muito acima do mundo animal. ‘Mas na sociedade de classes, mesmo para o pequeno niimero que usufrui as aquisigdes da humanidade, estas mes- ‘mas aquisigoes manifestam-se na sua limitacdo, determinadas pela estreiteza ¢ cardcter obrigatoriamente restrito da sua propria actividade; para a esmagadora maioria das pessoas apropriacdo destas aquisigdes S6 € possivel dentro de tes miserdveis. ‘Vimos j4 que isto ¢ consequéncia do processo de aliena- do que intervém tanto na esfera econémica como na es {intelectual da vida; que a destruigéo das relagdes sociais assentes na exploragio do homem pelo homem, que engen- dram este processo, s6 ela pode por fim ¢ restituir a homens a sua natureza humana, em toda a sua si e diversidade. “Mas é um ideal acessivel 0 do desenvolvimento no homem de todas as suas aptidées humanas? A forca deste precon- ceito profundamente enraizado nos espiritos, segundo o qual © desenvolvimento espiritual do homem tem a sua origem & tio grande que leva a pr o problema a0 contrério: n&o seria a aquisico dos progressos da ciéncia a condigio da formacio das aptiddes cientificas, mas as aptiddes cientificas que seriam a condigao desta aquisi nao seré a apropriagdo da arte a condigio do desenvoh mento do talento artistico, mas 0 talento at cionaré a apropriagio da arte. Citam-se em aj factos que testemunham da aptiddo de uns e da incapacidade total de outros para tal ou lade, sem mesmo se interrogarem donde vém estas aptiddes; tem-se geralmente a espontaneidade da sua primeira aparicio por prova da sua idoneidade, verdadeiro problema ndo esti, portanto, na aptidio ou inaptidao das pessoas para s¢ tornarem senhores das aquisi- ges da cultura humana, fazer delas aquisiedes da sua perso- halidade e darlhe a sua contribuicao. fundo do problema & que cada homem, cada povo tenha a possibilidade pritica de tomar o caminho de um desenvolvimento que nada entrave. Tal € 0 fim para o qual deve tender agora a huma- nidade virada para o progresso. ue 2 © Desenvolvimento do Psiquismo Este fim & acessivel. Mas s6 0 € em condigées que per- tam libertar realmente os homens do fardo da necessidade de suprimir a divisio mutiladora entre trabalho intelectual e trabalho fisicg, criar um sistema de educacio que Ihes assegure um desenvolvimento multilateral ¢ harmo- nioso que dé a cada um a possibilidade de participar enquanto criador em todas as manifestagées de vida humana. O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMG NA CRIANCA

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