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Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de Sdo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Projecto Vercial - Literatura Portuguesa < http://www.ipn.pllopsislitera!> Copyright © 1996, 1997, 1998, OPSIS Multimédia com ‘© apoio do Projecto Geira Este material pode ser redistribuido livremente, desde que nio scja alterado, ¢ que as informagdes acima sejam mantidas, Para maiores informagdes, escreva para . Estamos em busca de patrocinadores e voluntérios para nos ajudar a manter este projeto. Se vocé quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para ou AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplagio da serenissima e muito caldlica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso principe e mui alto rei ‘Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Comega a declaragio e argumento da obra, Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no onto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per forga havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estdo, scilicet, um deles passa pera o paraiso e 0 outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um scu arrais na proa: o do paraiso um anjo, ¢ © do inferno um arrais infernal e um companheiro, © primeivo imtrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que the leva um rabo mui comprido e ia cadeira de espaldas, E comeca o Arrais do Inferno ante que 0 Fidalgo venka, DIABO A barca, 4 barca, houlA! que temos gentil maré! = Ora venha o carro a ré! COMPANHEIRO Feito, feito! Bem esti! Vai tu muitierama, eatesa aquele palanco € despeja aquele banco, pera a gente que vir A area, & barea, hu-u! Asinha, que se quer it! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! = Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse lito! COMPANHEIRO. Em boa hora! Feito, feito! DIABO Abaixa aramd esse cu! Faze aquela poja lesta o alija aquela dig COMPANHEIRO "Oh-ob, capa! Oh-o, ga, ial DIABO Ob, que caravela ext! Pe bandeiras, que ¢ festa, Verga alta! Ancora a pique! +6 poderoso dom Antique, ca vindes vés?... Que cousa ¢ esta?, Vem 0 Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz: FIDALGO Esta barca onde vai ora, que assi esté apercebida? DIABO Vai pera ailha perdida, hide partir logo ess‘ora, FIDALGO Pera li vai a senhora? DIABO_Senhor, a vosso servigo. FIDALGO Parece-me isso corto. DIABO Porque a vedes lé de fora, FIDALGO Porém, a que terra passais? DIABO_ Pera o inferno, senhor. FIDALGO Terra é bem sem-sabor, DIABO Qué... E também cd zombais? FIDALGO. E passageiros achais pera tal habitagio? DIABO Vejo-vos eu em feigdo pera ir a0 nosso cas, FIDALGO Parece-te ati ass DIABO Em que esperas ter guarida? FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti?! Hii, hi, hi, hi, hi, hi, hil F tu viveste a teu prazer, cuidando ed guarecer ppor que rezam lé por ti! Embarea - ou embareai que haveis de ir derradeira! Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai. FIDALGO Qué? Qué? Qué? Assi lhe vai?! DIABO Vai ou vem! Embarcai prestes! Segundo lé escothestes, assi cd vos contentai Pois que ja a morte passastes, hhaveis de passar 0 rio, FIDALGO Nao hé aqui outro navio? DIABO _Nio, senhor, que este fretastes, € primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal? DIABO Do que vis vos contentastes. FIDALGO A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueitos! No me ouvis? Respondei-me! Houlé! Hou! (Pardeus, aviado estou! Canta isto & ja pior..) ue jericocins, salvanor! Cuidam c& que sfo eu grou? ANJO. Que quereis? FIDALGO Que me digais, pois part io sem aviso, se abarca do Paraiso 6 esta em que navegais. ANJO_ Esta é; que demandais? FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar, & bem que me recolhais. ANJO. Nio se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Nao sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria, ANJO. Pera vossa fantesia ‘mui estreita & esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom hé aqui mais cortesia? Vena a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira! ANJO. Nao vindes vés de maneira pera entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrard © 0 rabo cabera todo vosso senhorio, Ircis Id mais espagoso, vs € vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre povo queixoso, E porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achat-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso. DIABO A barca, & barca, senhores! ‘Oh! que maré tio de prata! Um ventozinho que mata e valentes remadores! Diz, cantando: Vis me veniredes a la mano, «ala mano me veniredes. FIDALGO Ao Inferno, todavia! Inferno hd i pera mi? Oh triste! Enquanto vivi no cuidei que 0 i havia: Tive que era fantesia! Folgava ser adarado, confiei em meu estado endo vi que me perdia, Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa dogura, que cd nos entenderemos. Tomarés um par de remos, «, chegando ao nosso cais, todos bem vos serviremas. FIDALGO_ Esperar-me- tomarei a outra vida ver minha dama querida gue se quer matar por mi, Dia, Que se quer matar por ti?! FIDALGO. Isto bem certo o sei eu. DIABO O namorado sande1 © maior que nunca vil vos aqui, FIDALGO Como pod’ isso ser, que mescrevia mil dias? DIABO Quantas mentiras que lias, tu... morto de prazer! FIDALGO Pera que é escarnecer, quem nom havia mais no bem? DIABO Assi vivas tu, amém, como te tinka querer! FIDALGO Isto quanto a0 que eu conhego. DIABO Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos prego. FIDALGO Dé-me licenga, te peso, que va ver minba mulacr. DIABO _E ela, por nao te ver, despenhar-se-A dum cabego! Quanto ela hoje rezou, antre seus gritos e gritas, foi dar gragas infinitas a quem a desassombrou. FIDALGO Cant'a ela, bem chorou! DIABO_ Nom ha i choro de alegria? FIDALGO Eas léstimas que dezia? DIABO Sua mac Ihas ensinou. Entrai, meu senhor, entrai Ei la prancha! Ponde o pé. FIDALGO Entremos, pois que assi ¢. DIABO Ora, senhor, descansai, ppasseai e suspirai Em tanto viri mais gente, FIDALGO 6 barea, como és ardente! Maldito quem em ti vai! Diz 0 Diabo ao Moco da cadeira DIABO_ Nom ntras cé! Vai-te di A cadeira & c& sobeja cousa que esteve na igreja rom se hi-de embarcar aqui CA lha dardo de marfi, marchetada de dolores, com tais modos de lavores, que estari fora de si A barca, & barca, boa gente, que queremos dar A vela! Chegar ela! Chegar ela! ‘Muitos e de boamente! Oh! que barca tio valente! Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo: ONZENEIRO Pera onde caminhais? DIABO Ob! que mé-hora venhais, onzeneito, meu parente! Como tardastes vés tanto? ONZENEIRO Mais quisera eu la tardar. ‘Na saffa do apanhar me deu Saturno quebranto, DIABO Ora mui muito mespanto ‘nom vos livrar 0 dinheiro! ONZENEIRO - Solamente para 0 barqueiro ‘nom me leixaram nem tanto, DIABO Ora entrai, entrai aqui! ONZENEIRO Nio hei ew i dembarcar! DIABO Oh! que gentil recear, fe que cousas pera mil ONZENEIRO Ainda agora faleci, leixa-me buscar batel! DIABO Pesar de Jam Pimentel! Porque nfo irés aqui? ONZENEIRO _ E pera onde é a viagem? DIABO Pera onde tu his-de ir. ONZENEIRO Havemos logo de partir? DIABO _ Nao cures de mais linguagem. ONZENEIRO Mas pera onde é a passagem? DIABO Pera a infernal comarca, ONZENEIRO Dix! Nom vou eu tal barca. Estoutra tem avantagem, Vai-se d barca do Anjo, ¢ diz: Hou da barca! Houli! Hou! Haveis logo de partir? ANJO_ E onde queres tu ir? ONZENEIRO Eu pera o Paraiso vou. ANJO. Pois cant‘eu mui fora estou de te levar para Ii Essoutra te levard; vai pera quem te enganou! ONZENEIRO Porqué? ANJO. Porque esse bolsio tomaré todo 0 navio, ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio! ANJO_ Nao jé no teu coragio. ONZENEIRO La me fica, de rondio, ‘inka fazenda ¢ alhca. ANJO © onzena, como és fea e filha de maldigao! Torna 0 Onzeneiro & barca do Inferno e di: ONZENEIRO Houlé! Hou! Demo barqueiro! Sabés vés no que me fundo? Quero ld tomar a0 mundo etrazer o meu dinheito, que aqueloutro marinheiro, porque me vé vir sem nada, ddi-me tanta borregada como arrais Id do Barreiro, DIABO Entra, entra, e remaras! ‘Nom percamos mais maré! ONZENEIRO Todavia, DIABO Per forga é! Que te pés, cd entrards! Iris servir Satands, pois que sempre te ajudou, ONZENEIRO Oh! Triste, quem me cegou? DIABO Cal'te, que ed choraras. Entrando 0 Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando 0 barrete: ONZENEIRO Santa Joana de Valdés! Ca é vossa senhoria? FIDALGO Dad demo a cortesia! DIABO. Ouvis? Falai vés cortés! ‘Vés, fidalgo, cuidarcis, que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis! Vem Joane, 0 Parvo, e diz ao Arrais do Inferno: PARVO Hou daquesta! DIABO Quem é? PARVO Eu soo. E esta a naviarra nossa? DIABO De quem? PARVO Dos tolos. DIABO. Vossa. Entra! PARVO De pulo ou de voo? Hou! Pesar de meu avé! Soma, vim adoecer € fui mi-hora morrer, e nela, pera mi so. DIABO" De que morreste? PARVO De qué? Samicas de caganeira DIABO. De qué? PARVO De caga merdeira! Mé rabugem que te dé! DIABO Entra! Poe aqui o pé! PARVO Houli! Nom tombe o zambuco! DIABO Entra, tolago eunuco, que se nos vai @ maré! PARVO Aguardai, aguardai, hould! E onde havemos nés dir ter? DIABO Ao porto de Lucifer. PARVO Ha-é-a, DIABO 6 Inferno! Entra cé! PARVO 0 Inferno?... Erami. Hiu! Hiu! Barea do cornudo. Pero Vinagre, beigudo, rachador dAlverca, huhé! Sapateiro da Candosal Antrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! Tua mulher & tinhosa e hi-de parir um sapo chantado no guardanapo! Neto de cagarrinhosa! Furta cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado nas ergucjas! Burrela, cormudo sejas! Toma o pio que te caiu! Armulher que te fugiv pera Itha da Madeira! Cormudo até mangueira, ‘toma o pio que te caiu! Hiu! Hiu! Lango-te da putha! Dé-dé! Pica naquela! Hump! Hump! Caga na vela! Hio, cabega de grulha! Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho da Pampulha! Mija n'agulha, mija n’agulha! Chega 0 Parvo ao batel do Anjo e dle: PARVO Hou da barca! ANJO Que me queres? PARVO — Queres-me passar além? ANJO Quem és tu? PARVO Samica alguém, ANJO. Tu passaris, se quiseres; porque em todos teus fazeres per malicia nom erraste Tua simpreza t'abaste pera gozar dos prazeres. Espera entanto per i ‘veremos se vem alguém, merecedor de tal bem, que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal, diz: SAPATEIRO Hou da barca! DIABO Quem vem i? Santo sapatciro honrado, como vens tio carregado?. SAPATEIRO Mandaram-me vir assi. E pera onde & a viagem? DIABO Pera o lago dos danados. SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tém sua passagem? DIABO Nom cures de mais linguagem! Esta é a tua barca, esta! SAPATEIRO Renegaria cu da festa da puta da barcagem! Como poder isso ser, confessado ¢ comungado?! DIABO Tu morreste excomungado: Nom o quiseste dizer. Esperavas de viver, calaste dous mil enganos, Tu roubaste bem trintanos. © povo com teu mester. Embarca, eramé pera ti, que ha jé muito que tespero! SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero! DIABO Que te pés, his-de ir, si, si! SAPATEIRO Quantas missas ew ouvi, nom me hio elas de prestar? DIABO Ouvir missa, entéo roubar, & caminho per'agui SAPATEIRO Eas ofertas que dario? E as horas dos finados? DIABO E08 dinheiros mal levados, que foi da satisfagao? SAPATEIRO Ah! Nom praza 6 cordovio, nem & puta da badana, se € esta boa waquitana em que se vé Jan Antio! Ora juro a Deus que € graga! Vai-se a barca do Anjo, e diz: Hou da santa caravela, poderés levar-me nela? ANIO__A cétrega tembaraga. SAPATEIRO Nom ha mereé que me Deus faga? Isto uxiquer ira, ANJO Essa barca que li esté Leva quem rouba de praga, Oh! almas embaracadas! SAPATEIRO Ora eu me maravitho haverdes por grao peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem iri chantadas num eantinho desse leito! ANJO. Se tu viveras dereito, Elas foram ca escusadas, SAPATEIRO Assi que determinais, que vi cozer d Inferno? ANIO Escrito estis no caderno das ementas infernais, Torna-se & barca dos danados, e diz: SAPATEIRO Hou barqueiros! Que aguardais? ‘Vamos, venha a prancha logo c levai-me aquele fogo! ‘Nao nos detenhamos mais! Vem um Frade com iia Moga pela mao, e um broquel ¢ ita espada na outra, e wm casco debaixo do capelo; ¢, ele mesmo fazendo a baixa, comecou de dancar, dizendo. FRADE Taicraisrai-ra-ti; ta taraitai-rai-i; tai titG;ta-ri-rim-rim-r3, Huh? DIABO Que & isso, padre?! Que vai li? FRADE Deo gratias! Som corteséo. DIABO Sabés também 0 torditio? FRADE. Porque ndo? Como ora seit DIABO Pois entrai! Eu tangerei ¢ faremos umn serio, Essa dama é ela vossa? FRADE Por minha la tenho cu, e sempre a tive de meu, DIABO. Fezestes bem, que é fermosa! E nio vos punham ld grosa no vosso convento santo? FRADE. E eles fazem outro tanto! DIABO Que cousa tdo preciosa, Enirai, padre reverendo! FRADE. Para onde levais gente? DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo. FRADE _Juro a Deus que nom tentendo! E este habito no me val? DIABO Gentil padre mundanal, 1 Berzebu vos encomendo! FRADE Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesu Cristo, que eu nom posso entender isto! Eu hei-de ser condenado”.. Um padre to namorado e tanto dado a virtude? Assi Deus me dé satide, que eu estou maravilhado! DIABO Nii curés de mais detenea, Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos. FRADE Nom ficou isso navenga, DIABO Pois dada esti jé.a sentengat FRADE. Pardeus! Essa seria elat Nao vai em tal caravela sinha senhora Florenga, Como? Por ser namorado e folgar com tia mulher se ha um frade de perder, com tanto salmo rezado?! DIABO Ora estés bem aviado! FRADE Mais estis bem corregido! DIABO Dovoto padre marido, haveis de ser cd pingado Descobriu o Frade a cabeca, tirando 0 capelo; e apareceu o casco, ¢ diz 0 Frade; FRADE Mantenha Deus esta cloroa! DIABO 6 padre Frei Capacete! Cuidei que tinheis barrete FRADE. Sabé que fui da pessoa! Esta espada 6 roloa este broquel, rol. DIABO Dé Vossa Reverenga liso desgrima, que 6 cousa boa! Comecou 0 frade a dar ligio d'esgrima com a espada ¢ broquel, que eram d'esgrimir, ¢ diz desta maneira: FRADE Deo gratias! Demos cagada! Pera sempre eonta sus! ‘Um fendente! Ora sus! Esta é a primeira evade Alto! Levantai a espada! Talho largo, ¢ um revés! E logo colher os pés, gue todo 0 al no é nada! Quando o recolher se tarda o ferir nom é prudente. ra, sus! Mui largamente, cortai na segunda guarda! = Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado, Aqui estou tio bem guardado como a palha n'albarda, Saio com meia espada. Hou la! Guardai as queixadas! DIABO Ob que valentes levadas! FRADE Ainda isto nom é nada Demos outra vez cagada! Contra sus e um fendente, «, cortando largamente, eis aqui sexta feitada Daqui saio com tia guia © um revés da primeira: esta é a quinta verdadeira, = Ob! quantos daqui feria! Padre que tal aprendia no Inferno hé-le haver pingos?! Ah! Nom praza a $20 Domingos com tanta descortesia! Tornou a tomar a Moga pela mao, dizendo: FRADE Vamos & barca da Gléria! Comecou o Frade a fazer 0 tordido e foram dangando até o batel do Anjo desta maneira: Deo gratias! Wa lugar cf pera minha reverenga? Ea senhora Florenga polo meu entraré ld! PARVO Andar, muitieramé! Furtaste esse trinchdo, frade? FRADE Senhora, dé-me & vontade que este feito mal esti, ‘Vamos onde havemos dir! ‘Nao praza a Deus coa a ribeira! Eu ndo vejo aqui maneira seno, enfim, concrudit. DIABO. Haveis, padre, de vir FRADE Agasalhai-me la Florenga, fe compra-se esta sentenga: cordenemos de partir Tanto que 0 Frade foi embarcado, veio ita Alcoviteira, per nome Brizida V. 4 barca infernal, diz desta maneira: a qual chegando BRIZIDA How la da barca, hou lit DIABO Quem chama? BRIZIDA Brizida Vaz DIABO. E aguarda-me, paz? Como nom vemn ela i? COMPANHEIRO ~ Diz que nom hide vircé sem Joana de Valdés. DIABO. Enirai vés, e remarcs BRIZIDA Nom quero eu entrar li DIABO Que sabroso arrecear! BRIZIDA. No éessa barca que eu cato DIABO E trazés vis muito fato? BRIZIDA 0 que me convém lever. Dia, Que é 0 que havés d'embarcar? BRIZIDA Seiscentos virgos postigos e trés arcas de feitigos que nom podem mais levar. Trés almérios de mentir, cinco coftes de enlheos, alguns furtos alheos, assi em jéias de vestir, guarda-roupa d'encobrir, enfim - casa movediga; um estrado de cortiga com dous coxins d'encobrir, ‘A mor cirroga que &: essas mogas que vendia Daquestra mercado trago eu muita, bof DIABO Ora ponde aqui o pé BRIZIDA. Hui! E eu vou pera o Paraiso! DIABO_ E quem te dine ati isso? BRIZIDA. La hei-de ir desta maré Eu sé Ga mértela tal! Agoutes tenho levados « tormentos suportados gue ninguém me foi igual Se fosse & fogo infernal, i iia todo © mundo! A estoutra barca, c& fundo, me vou, que & mais real. Chegando 4 Barca da Gloria diz ao Anjo: Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brisida Vaz. ANJO: Eu nao sei quem te ed traz BRIZIDA Pego-vo-lo de giolhos! Cuidais que trago piolhos, anjo de Deos, minha rosa? Eu sé aquela preciosa gue dava as mogas a molhos, ‘aque eriava as meninas ppera os cénegos da Sé. Passai-me, por vossa f6, meu amor, minhas boninas, olho de perlinhas finas! E cu som apostolada, angelada e martelada, e fiz cousas mui divinas, Santa Ursula nom converteu lantas cachopas come eu: todas salvas polo meu ue nenhiia se perdeu. E prouve Aquele do Céu gue todas acharam done. Cuidais que dormia eu sono? ‘Nem ponte se me perdeu! ANJO. Ora vai ki embarcar, no ests importunando. BRIZIDA Pais estou-vos eu contando © porque me haveis de levar, ANJO Nao cures de importunar, que niio podes vir aqui. BRIZIDA E que mé-hora eu servi, pois no me hé-de aproveitar! Torna-se Brizida Vaz Barca do Inferno, dizendo: BRIZIDA Hou barqueiros da mi-hora, aque é da prancha, que eis me vou? E ja ha muito que aqui estou, e parego mal ed de fre DIABO (Ora entrai, minha senhora, e sercis bem reeebida; se vivestes santa vida, vs 0 sentirés agora Tanto que Brizida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode ds costas; e, chegando ao hatel dos danados, diz: JUDEU DIABO JUDEU DIABO JUDEU, DIABO JUDEU DIABO sUDEU DIABO JUDEU Que vai ef? Hou marinheirot ‘Oh! que mé-hora vieste!. Cu esta barea que preste? Esa barca ¢ do barqueito. Passai-me por meu dinheiro. E 0 bode hi ca de vir? Pois também o bode hi-de vir. ‘Que escusado passageiro! Sem bode, como irei ld? ‘Nem cu nom passo cabrées. Eis aqui quatro tostes, te mais se vos pagara. Por vida do Semifard que me passcis o cabrio! Querés mais outro tostio? DIABO Nem tu nom his-de vir ed, JUDEU Porque nom ind o judeu onde vai Brisida Vaz? Ao senhor meirinho apraz? Senhor meirinho, irei cu? DIABO Eo fidalgo, quem the deu. JUDEU O mando, dizés, do batel? Corregedor, coronel, castigai este sandcu! Azari, pedra mitida, odo, chanto, fogo, lenka, caganeira que te venha! Mi correnga que te acuda! Par el Deu, que te sacuda oa beca nos facinhos! Fazes burla dos meirinhos? Dize, filo da cormuda! PARVO Furtaste a chiba cabrio? Parecés-me vos a mim gafanhoto d'Almeirim chacinado em um seirdo, DIABO Judeu, lé te passardo, porque vio mais despejados, PARVO E cle mijou nos finados nlergueja de Sao Gio! E comia a came da pancla no dia de Nosso Senhor! E aperta o salvador, ce mija na earavela! DIABO Sus, sus! Demos a velat Vos, Judeu, irés & toa, gue sois mui ruim pessoa, Levai o cabrio na tela! Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando @ barca do Inferno, com sua vara na mio, diz: CORREGEDOR How da barca! DIABO Que quereis? CORREGEDOR Esti aqui o senhor juiz? DIABO Oh amador de perdiz. gontil cfrrega trazcis! CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom é ela do meu jeito. DIABO Como vai lé 0 direito? CORREGEDOR Nestes feitos 0 vereis, DIABO_ Ora, pois, entrai, Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vaio batel? DIABO_ No Inferno vos pocremas. CORREGEDOR Como? A terra dos demos hi-de ir um corregedor? DIABO Santo descorregedor, cembarcai, ¢ remaremos! Ora, entrai, pois que viestes! CORREGEDOR Non est de regulae juris, no! DIABO Ita, Ita! Dai cé a mio! Remaremos um remo destes, Fazei conta que nacestes, [pera nosso companheiro. = Que fazes tu, barzoneiro? Faze-Ihe essa prancha prestes! CORREGEDOR Oh! Renego da viagem fede quem me hiede levar! HA ‘qui meirinho do mar? DIABO Nao hé tal costumagem, CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem, rem hoe nom potest esse, DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem. Entrai, entrai, corregedor! CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis- ‘Super jure magestatis tem vosso mando vigor? DIABO Quando éreis ouvidor nonne accepistis rapina? Pois ireis pela bolina conde nossa mercé for. Oh! que isea esse papel pera um fogo que eu sei! CORREGEDOR Domine, memento mei! DIABO Non es tempus, bacharel! Imbarquemini in batel quia Judicastis malitia. CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit, ¢ bem por nivel DIABO Eas peitas dos judeus que a vossa mulher levava? CORREGEDOR Isso eu nao 0 tomava cram ld percalgos seus. ‘Nom som pecatus meus peccavit wxore mea. DIABO Et vohis quoque cum ea, no temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum. Ut quid eos non audistis? CORREGEDOR Vés, arrais, nonne legistis que o dar quebra os pinedos? Os direitos estdo quedos, ssed aliquid tradidistis. DIABO Ora entrai, nos negros fados! Iris ao lago dos cies como estdo tio prosperados, CORREGEDOR E na terra dos danados esldo os Evangelistas? DIABO Os mestres das burlas vistas i estio bem fraguados. Estando 0 Corregedor nesta pritica com 0 Arrais infernal chegou um Procurador, carregado de livros, e diz 0 Corregedor ao Procurador: CORREGEDOR © senhor Procurador! PROCURADOR _ Bejo-vo-las méos, Juiz Que diz esse arrais? Que diz? DIABO Que serés bom remador. Entrai, bacharel doutor, e ireis dando na bomba, PROCURADOR _ E este barqueiro zomba, Jogatais de zombador? Essa gente quo ai est pera onde a levais? DIABO _ Pera as penas infernais. PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera li! Outro navio esta cé, muito milhor assombrado, DIABO Ora estés bem aviado! Entra, muitierama! CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor? PROCURADOR Bacharel som, Dou-me 4 Demo! io cuidei que era extremo, nem de morte minha dor. E vés, senhor Corregedor? CORREGEDOR Eu mui bem me confessei, mas tudo quanto roubei encobri ao confessor, Porque, se 0 nom tomais, no vos querem absolver, © mui mau de volver depois que o apanhais. DIABO _Pois porque nom embarcais? PROCURADOR Quia speramus in Deo. DIABO Imbarquemini in barco meo. Pera que esperatis mais? Vaio-se ambos ao batel da Glaria, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR 6 arrais dos gloriosas, ppassai-nos neste batel! ANJO. Oh! pragas pera papel, pera as almas odiosos! Como vindes preciosos, sendo fithos da cigncial CORREGEDOR Oh! haheatis cleméncia passai-nos como vossos! PARVO Hou, homens dos breviairos, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum mijais nos campanairos! CORREGEDOR Oh! nao nos sejais contrairos, pois nom temos outra ponte! PARVO Beleguinis bi sunt? Ego latinus macairos. ANJO A justiga divinal ‘vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh! nom praza a Sdo Margal! 0a ribeira, nem co rio! Cuidam li que & desvario hhaver c4 tamanho mal! PROCURADOR Que ribeira é esta tal! PARVO Parecés-me vos a mi como cagado nebri, mandado no Sardoal Embarquetis in zambuguis! CORREGEDOR Vena a negra prancha cé! Vamos ver este segredo. PROCURADOR Diz um texto do Degredo, DIABO Entrai, que ed se dita! E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse 0 Corregedor a Brizida Vaz, porque a conhecia: CORREGEDOR Oh! esteis muiticrama, senhora Brizida Vaz! BRIZIDA J siquer estou em paz, que no me leixéveis Ii. Cada hora sentenciada: ‘Justiga que manda fazer...» CORREGEDOR E v6s... tomar tecer ee urdir outra meada, BRIZIDA Dizede, juz dalgada ‘vem la Péto de Lixboa? Levielo-emos toa ré nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventuradas, disse 0 Arrais, tanto que chegou: DIABO_ Venhais embora, enforcado! Que diz ki Garcia Moniz? ENFORCADO Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado em morrer dependurado come o tordo na buiz, e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado, DIABO. Entra e4, governaris atd as portas do Inferno, ENFORCADO Nom é essa a nau que eu governo, DIABO Mando-te eu que aqui irs ENFORCADO Ob! nom praza a Barrabés! Se Garcia Moniz. diz gue os que morrem como cu fiz Sho livres de Satanas, E disse que a Deus prouvera que fora cle o enforeado; e que fosse Deus louvado que em bo'hora eu e& nacera; € que o Senhor mescolhera: por bem vi beleguins. E com isto mil latins, mui lindos, feitos de cera E, no passo derradeiro, me disse nos meus ouvidos que © lugar dos escolhidos eraa forca e o Limoeiro; nem guardido do moesteiro nom tinha to santa gente come Afonso Valente que é agora carcereiro, DIABO _ Dava-te consolagio isso, ou algum esforgo? ENFORCADO Com o barago no pescogo, ‘mui mal presta a pregagio. E ele leva a devagao que hi-de tomar a jentar, Mas quem hé-de estar no ar avorrece-Ihe o sermao, DIABO Entra, entra no batel, que ao Inferno hés-de ir! ENFORCADO 0 Moniz hi-de mentit? Disse-me que com So Miguel Jentaria po e mel tanto que fosse enforcado. Ora, jd passei meu fado, ej feito é 0 burel, Agora no sei que ¢ isso: ‘do me falou em ribeira, nem barqueiro, nem barqueia, seniio = logo 6 Paraiso. Isto muito em seu siso, era santo o meu baraso. Eu nio sei que aqui faso: gue é desta gloria emproviso? DIABO _Falou-te no Purgatorio? ENFORCADO | Disse que era o Limociro, ora por ele o salteiro © 0 pregao vitat6rio; fe que era mui notério gue aqueles deciprinados ram horas dos finados ce missas de Sio Gregério. DIABO Quero-te desenganar: se 0 que disse tomaras, certo é que te salvaras ‘Nao o quiseste tomar, Alto! Todos a trar, que esti em seco o batel! + Sai vés, Frei Babriel! Ajudai alia botar! Vem Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senkor ¢ acrecentamento de Sua santa fé catélica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem tém dos mistérios da Paixdo d'Aquele por Quem padecem, ‘outorgados por todos os Presi- dentes Sumas Pontifices da Madre Sania Igreja. E a cantiga que assi ‘cantavam, quanto a palavra dela, éa seguinte: CAVALEIROS 4 barca, 4 barca segura, barca bem guarnecida, ‘i barca, @ barca da vida! Senhores que trabathais pola vida transitéri, ‘meméria , por Deus, memoria deste temeroso cais! A barca, & barca, mortals, Barca bem guarnecida, i barca, é barca da vida! Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura, neste rio esté a ventura de prazeres ou dolores! A barca, & barca, senhores, barca mui nobrecida, 4 barea, é barca da vidal E passando per diante da proa do bate! dos danados assi cantando, com suas espadas € escudos, disse o Arrais da perdigdo desta maneira: DIABO Cavaleiros, vés passais ‘e nom perguntais onde is? 1° CAVALEIRO. Vés, Satands, presumis? Atentai com quem fais! 2° CAVALEIRO. Vos que nos demandais? Siquer conheeé-nos ber: rmorremos nas Partes Além, io queiras saber mais. DIABO Entrai cé! Que cousa & essa? Eu nom posso entender isto! CAVALEIROS Quem more por Jesu Cristo ‘no vai em tal barca como essa! Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito a barca da Gléria, e, tanto que chegam, diz 0 Anjo: ANJO. 6 cavaleiros de Deus, {Vs estou esperando, que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, rmartires da Santa [greja, gue quem morre em tal peleja ‘merece paz. eternal E assi embaream.

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