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Ana Elizabeth Cavalcanti Maria Cicilia de Carvalho Ribas SO depois: entre presente e futuro, nosso passado O escritor pernambucano Paulo Cavalcanti, ao escrever, na década de 1980, o seu livro sobre a trajetéria politica do ex- governador Miguel Arraes, intitulou-o O caso eu conto como 0 caso foi. Parece ser essa a sensagao que nos acomete sempre que nos propomos a contar uma hist6ria: contar 0 caso como 0 caso foi. No entanto, percebemos que isso nao é possivel, porque contar histérias passadas € sempre contextualiza-las, vé-las através da ética do presente, a tinica de que dispomos. Assim, é preciso contar com a mem6ria, que nos disponibiliza o passado ¢ o torna acessivel a uma visita, € sempre no presente que esse encontro se da, quando ja somos outros, embora permanecendo os mesmos. Pois é assim que contaremos a histéria do CPPL. Retomando © nosso percurso, contextuali produzindo, com esse encontro, novas signifi or , s somos agora. j Pluralidade e hot dois principios norte O trabalho cada de 1980, e1 psiquico precoc autismo infantil pr 18 ‘Ana Euzaniens Cavaican & MARIA Gioia oe denominadas também de psicoses precoces. Impulsionados Pelacom. plexidade dessa clinica, compreendemos, desde entio, a Necessidade de construir um espago terapéutico, institucional, que se Ofereces. s¢ como suporte para a equipe, as criangas ¢ suas famflias, Como costum4vamos falar na €poca, nao era possfye] lidar com criangas portadoras de tamanhas dificuldades olhando-as através da 6tica de um tnico saber. Movidos Por essa idéia, sustentavamos o principio da interdisciplinaridade, de certa forma J posto pelo modo como foi constituida a equipe inicial, composta de psicélogos, psicanalista, reabilitadores de linguagem, psiquiatra e assistente social. Havia ainda uma outra caracteristica da equipe marcou, de forma significativa, a nossa hist6ria: parte de seus. Componentes trabalhava com reabilitagao da audi¢ao ¢ da fala de surdos, utilizando a metodologia verbo-tonal;! outra iniciava a formacao psicanalftica, ¢ alguns colegas tinham dupla formagao: Psicanalitica e verbo-tonal. Assim, dentre outros saberes, dos quais desde cedo langamos mao na tentativa de compreender ¢ teorizar a nossa pratica, a psicanilise ¢ a metodologia verbo-tonal cram a dupla referéncia constitutiva de nosso trabalho. Em psicandlise, embora tivéssemos a refer€ncia dos textos de Winnicott desde 0 inicio, jamais deixamos de transitar pelas teorias de outros autores, inclusive daqueles cujas produges tericas psicandlise nao eram diretamente ligadas a nossa pratica as criangas ditas “autistas”. Nao se tratava de co de Babel ou de fazer montagens ecléticas, D exigéncias impostas, tanto por uma clinica método psicanalitico,? que nos langavam a na mares. Seguindo os nossos pacientes, driblando as ortodoxias das escolas psican: marcada que dali decorria, entrando em outros saberes passiveis de estabelecer int 1, Ométodo ve a reabilitaglo gap ed aa dos sur incando: jicandlise em grupi brincande i policado net 0 2, Exigéncia do método psi Laplach jcanal(tico na pe e em Angistia, Problemdticas 1. ‘SO DEPOIS: ENTRE PRESENTE E FUTURO, NOSSO PASSADO 19 utro lado, a prati 4 fi excite fone loPne NGI cea serie Ay Be i 10S aproximavamos das criancas. A sua visdo de linguagem, 0 lugar atribufdo ao brincar e a concep¢ao do corpo como receptor ¢ transmissor de linguagem e comunicagao, permet que encontrassemos linguagem onde aparentemente nao existia (Vial, Schmidtbauer-Rocha, 1972). A interdisciplinaridade, a dupla referéncia para constituigao do trabalho, o contato com varias teorias dentro ¢ fora do campo psicanalitico forjaram estes principios que nos norteiam até hoje: a pluralidade e a horizontalidade. E, se nos tempos iniciais nao podiamos compreender com tanta clareza 0 seu impacto em nossas formulacdes € em nossa clinica, hoje podemos perceber a sua importancia decisiva na construgao de uma pratica que se mostra refratdria a qualquer fundamentalismo ou doutrina. O principio da pluralidade permitiu a montagem de um cendrio diverso em varios aspectos. Ali eram veiculadas varias teorias, circulavam profissionais de diferentes formagées, tinhamos contato com modos diversos de abordagens e dispositivos clinicos. Como bem diz 0 titulo deste livro, era preciso “catar os yentos” — vindos n3o importa de que diregao — € deix4-los soprar pelo espaco institucional, canalizando ¢ transformando suas forgas em \ italid na clinica, porque, agora sabemos, foi assim que nos m e nos mantemos até hoje, em constante moy ae construgao de nossa pratica. O principio da horizontalidade possil semos inspirados na idéia de reciprocidac sabilidade; nao havia, portanto, uma hierarq saberes nem entre as fungdes exercidas na princfpios — da pluralidade e da horizontal ligados de modo indissocidvel. Assim, 0 nesses termos era simultaneamente 0 ex‘ liberdade com todas as suas implicagoes modo de funcionar que nos levou aintuir, balho, a necessidade de uma coeréncia et navam a pratica clinica € a gestao instil bios da pluralidade € horizontalidade de dores da gestio. A autogestao, um dos melhor correspondeu ds exigéncias de coe ee = [ANA ELIZABETH GAVALCANTI E NAIA WAGLIA DE GARVALHO Rigg O enquadramento e os espagos de articulagao O exercicio da liberdade e da autonomia nao é 4 assegurado pela simples aspiragao dos: envolvidos numa situ; trabalho. Hoje, a0 langar um ee Te nospectivo Dara NOS50 percurso, compreendemos gue As sed Nuon didtia pelos espagos de articulagéo pes a i estes, em que 8 Pala é livremente facultada a todos, 0s acordos mfnimos ~ orden; das relagdes na instituigdo ~ podem ser firmados € discutidos ally movimento de constante negociacao. . A clinica psicanalftica em torno das criangas Com softimenty psiquico precoce e suas familias nos levou a criar 0 servigo ~ que denominamos de Terapia Intensiva — € inventar para ele um enquadramento especifico para que tanto as criangas ¢ Seus familiares como a equipe tivessem assegurados os espagos de fala e dos cuidados. A partir dessa experiéncia na clinica compreendemos que era preciso estabelecer, também, um enquadramento para garantir os espagos de articulag@o relativos a todos os trabalhos desenvolvidos. Assim sendo, 0 enquadramento institucional do CPPL foi estabelecido pelo conjunto de acordos firmados entre pares, sustentados pelos espagos de articulagao, 0 que permitiu aos participantes da equipe transitarem pelos varios trabalhos € servigos ¢ se experimentarem no exereicio de diferentes fungdes — ora sendo coordenadores ou gerentes, ora sendo Coordenados ou gerenciados. Circulando entre os varios espacos & fungdes, criam um estilo proprio e enriquecem a instituigao com suas contribuigdes pessoais, sem perder de vista o projet institucional compartilhado, ‘SO DEPOIS: ENTRE PRESENTE E FUTURO, NOSSO PASSADO at reciso cuidar da equipe. Ou seja, além do conjunto de acordos estabelecidos com as crian¢as € seus pais, era necessdrio estabelecé- Jos entre os componentes da equipe, para construir e preservar 0 espaco da palavra ~ ¢ hoje, dirfamos, da ag&o terapéutica compartilhada —, possibilitando a escuta e a andlise do material clinico produzido no contato com as criangas ¢ suas familias. Assim, 0 duplo enquadramento, um dos principais dispositivos de nossa pratica, foi criado para dar ao espaco institucional sua yocacao terapéutica. J4 no primeiro texto, produzido com a participa¢ao de todos os componentes da equipe de entao, defendfamos a idéia de que ele permitia, 4 equipe, “recuperar 0 espago ¢ a distancia terapéutica entre ela ¢ as criangas, criando espagos de veiculagao da palavra”.> Acompreensao do duplo enquadramento estava muito ligada a idéia da transferéncia subjetal,‘um modo especifico de transferéncia muito presente na clinica com criangac-em sofrimento precoce, em que o analista, em vez de ser alvo ¢ objeto da transferéncia, como na situago cléssica, ocupa o lugar de sujeito. Nesse modo particular de transferéncia, € a propria subjetividade do analista que € atacada, impedindo que uma distancia psfquica se instale entre ele e 0 analisante. Sem essa distancia, cle € engolfado numa relagao fusional, com pouca ou nenhuma possibilidade de que af se instale um espago intermedidrio, mediado pela ilusdo ¢ habitado pela palavra. Daf a necessidade de criar, para as criangas, seus pais ea equipe, espagos de veiculagao da palavra, espacos intermediarios que possibilitem a todos a experiéncia da ilusao. ; . Para a equipe, a escrita apés as sessdes, as reunides clinicas © a produgao teérica tiveram e tém essa fungio. Desde 0 inicio, Ana Euzasem Canon € Masia Cicia 0€ CARVALHO Rug 22 entendfamos que estas introduziam uma distancia, numa °xpetigng uico mediada, como a que viviamos com as criangas, ny gM os A escrita apés as sessdes foi descrita no produzido pela equipe como se segue: w= a escrita apds as sessdes, aqui tomada como um teste, munho da cena terapéutica, onde se ocupa um lugar enise e em relagdo aos pacientes e colegas. Testemunho, além do momento descrito, dos movimentos transferenciais — cheio de atos falhos, muitas vezes incompreendido em sua dinamica e significado — € nosso material de anilise q Pos. ‘eriori. Ele € nossa meméria. Tem a fungo de evocar, ¢ néio de informar.S Primeirg textg Na reuniao clinica, num tecer de falas e das €scutas, como costumamos falar, desfaziam-se e refaziam-se os movimentos transferenciais, abrindo-se possibilidades de novas Significagoes intervengdes. Por fim, a produgao teérica sobre a Pratica clinica favorecia a sistematizagao ¢ transmissdo de nossa ex ‘periéncia, tanto no Ambito interno quanto externo a instituicao. Hoje, constatamos que estes Continuam sendo os espacos de articulagao da clinica e os definimos de modo similar. Portanto, 0 duplo enquadramento sofreu poucas modificacoes enquanto dispositivo clinico, No entanto, como acontece com qualquer dispositive da Pratica psicanalitica, foi assumindo novos sentidos ¢ recebendo diferentes interpretacées & luz das Modificacdes te6rico-clinicas que Perpassou a nossa pratica. cea marmos as Concep¢oes iniciais, Presentes em nossas Primeiras tentativas de ‘corizar 0 duplo enquadramento, percebemos saci 4 principio, contraditorias. Por um lado, 0 mite cit? (@quele que organiza), o que nos remeti ‘SO DEPOIS: ENTRE PRESENTE E FUTURO, NOSSO PASSADO 23 jntermediario, lugar da ago compartilhada e da palavra, mediadas pela ilusio. Num texto de 1995, o descreviamos da seguinte forma: £ assim que entendemos 0 nosso enquadramento. Quando estabelecemos seus principais fundamentos, instauramos uma espécie de lei, & qual estamos todos submetidos. Est4 acima de todos nés, independentemente da formagdo ou da fungao que exergamos na instituicao. Delimita um espago onde se possa viver a experiéncia analitica (...) B 0 enquadramento que permite a experiéncia da transgresso na palavra, sem a qual nao pode haver anélise, a0 mesmo tempo que a inibe na ago. Que fomenta a experiéncia da transferéncia, para depois dilui-la com sua andlise e elaborac4o. Que introduz a diferenga — somos uma equipe multidisciplinar — ¢, ao mesmo tempo, impoe a necessidade de se construir uma linguagem comum que garanta a nossa comunicagio. (...) Nesse sentido, falamos que empreendemos um tratamento psicanalitico institucional com as criangas psicéticas. O nosso enquadramento institucional, embora fuja aos moldes de um enquadramento classico, € psicanalitico, no sentido de que garante a construcio de um espaco analitico, onde & possfvel a emergéncia do desejo e sua expressao através de uma linguagem, a partir das trocas transferenciais. (Cavalcanti, 1995, p- 9) Essa citagdio mostra bem como essas duas concepgdes do duplo enquadramento — assentadas simultaneamente nas idéias de limite, enquanto interdito € lei, e de limite, enquanto contorno que cria um espago intermedidrio — puderam conviver, sem que criassem impasses, tanto em nossa pratica clinica como em suas feorzacces. Hoje, pensamos o i a Be on Ava Euzanems CAnLCANT E Mate Cun oF Cami gas es Z alguma o desejo como tal UE eSt4 Joga): fee araeee a nlalingiagend (. 308), AA 9, Nesse mesmo artigo, Masiid Khan (1977) comple eta essa linguagem seria drida ndo fosse carregada de afetg Criadg ue drea de ilusio no setting analitico. O autor destaca que Frey ik Via chamado a atengao para a valéncia afetiva da lingua a candlise, e que a agio “... € agao através da linguagem C/ou expr sdes afetivas na sesso, ¢ ndo a acao que envolve a EXDESSio mys, cular ou comportamental” (p. 308). Diz Freud (apud Khan, 197, “O paciente nao se lembra de nada que esqueceu OU Teprimiu, mas © exprime sob a forma de ago. Reproduz o esquecido oy Teprimj. do, nfo como uma lembranga, mas como ago; Tepete-o...” (p, 308), Assim, se hoje, ao pensarmos sobre o duplo enquadramento, privilegiamos sua dimensdo de contorno e de manejo (holdings handling) que dio suporte ao surgimento ¢ A sustentagao do espago terapéutico, compreendido como ¢spaco transicional, nao desconsideramos 0 lugar que af tém os acordos, que, uma vez firmados, podem continuar sendo compreendidos como “uma espécie de lei” & qual estamos todos submetidos, para que possamos agir ¢ criar em conjunto. Alids, como formula Winnicott ao descrever 0 espaco transicional como 0 resultado de um acordo l4cito entre aqueles que 0 construfram, No que diz respeito teorizagao sobre o duplo enquadramento, as contradig6es com as quais conviviamos eram apenas aparentes, © que explica sua atualidade, mesmo com todas as mudangas por que foram passando nossos Posicionamentos teéricos ao longo destes 25 anos. 0 mesmo nao podemos dizer acerca de nossas concepedes sobre o sofrimento Psiquico precoce das criangas ditas aulistas”. Af conviviamos nao com contradigGes, mas com um Paradoxo que nos trouxe dificuldades na clini i questionado, a eo eh ae > sicanalitica © yerbo-tonal, Por um lado, apoiados nas concepgées yerbo-tonals, no questiondvamos a presenga de linguagem e subjetividade nas criangas © nos telacionévamos com elas sem duvidar de que cram afetivas ¢ capazes de se comunicar; por outro, respaldados pela produgdo da maioria dos teéricos da psicandlise sobre o autismo, as descreviamos como seres sem linguagem-e sem subjetividade. Essas duas posigdes criavam uma situagiio paradoxal no dia-a-dia do trabalho clinico, dificil de se aprender e mais ainda de se explicitar. Sem que nos déssemos conta durante algum tempo, conviviamos com esse paradoxo presente em nossos textos produzidos até 1996, quando da produgio do livro Autismos, em que Teresa Campello (1996) nos levou a percebé-lo. Ao r-+ izar a leitura de todos os nossos textos produzidos até ent&o, observou: SO DEPOI: ENTRE PRESENTE € FUTURO, NOSSO PASSADO 25 Uma das maiores dificuldades sentidas por mim des- de 0 inicio, e que continua até hoje, € aprender as nogdes sobre a natureza da linguagem que sustentam o trabalho do CPPL. O caminho escolhido para uma aproximagao des- sas nogées foi acentuar uma contradicao, através da per- gunta: as criangas autistas tém linguagem? A resposta: sim e nao. Explico. Se, por um lado, a experiéncia do CPPL com criangas autistas parecia indicar ndo — (cito)° “No nosso caso na terapia intensiva, desde o infcio foi impossfvel estruturar 0. enquadramento cl4ssico. Bem ao contrdrio, 0 predominan- te foi sempre a motilidade, a visio, o tato, a auséncia de linguagem, alids, qualquer tipo de comunicagio” ~ por ou- tro, parecia indicar sim, podia-se escrever sobre as vicissi- tudes desta linguagem. Capsulado, ziam-se pres 26 Au Euzasery Can.cwvi e MAA Gets DE Cari Rigg, No entanto, inscritos numa tradi¢a0 nio-conformig tigante e menos submissa aos dogmas psicanalitic, contato com autores das mais diversas tendéncj po psicanalftico quanto fora dele. Esses enconti diferentes modos e em diferentes momentos de Nossa trajetgn: Nossos interlocutores nao se poupavam de uma conversa it da. Muitas conversas, muitos encontros, muito trabalhy Ieituras deixaram em nds suas marcas. Hoje damo-nos conta de que, além de nossa form tonal, foi esse modo de trabalhar ¢ produzir num interlocugao bastante ampliado que nos protegeu de aderi incondicional ¢ acritica, as teorias sobre o autismo p: campo psicanalitico. Assim, 0 encontro com Donald Meltzer é um exemplo interessante € até engragado das nossas buscas e eternas incertezas, Ele apresentava a crianga autista como inteligente, gentile muito sensfvel — exposta aos quatro ventos, para utilizar as suas palavras =, 0 que foi tao marcante para nés que, na €poca, até passou despercebido que cle podia estar acentuando a nogao de autismo (Meltzer, 1980). Hoje, constatamos que, gragas a essa leitura “atravessada” e com certeza interessada do texto, privilegiamos os aspectos que possibilitavam atribuir alguma Positividade as criangas autistas, povoando seu mundo interno e acentuando a complexidade de seu funcionamento psfquico. A luz dessas idéias de Meltzer, antigas leituras, sobretudo dos interacionistas, como Serge Lebovici ¢ Michel Soulé, tomayam novos sentidos. A positivagao dos modos de existéncia das ceriangas, Possibilitada pela leitura de Meltzer, abria caminhos para que mos vislumbrar em cada uma delas uma crianga singular. A © entao, mudando o rumo das indicagdes terapéuticas, Pudemos construir um caminho particular para cada crianga na trajet6ria do trat instituci ais i 8, manta AS, tanto ng © TOS Aconteceran me © muitas A620 Verb. Campo de it, de forma resentes no So DEPOIS: ENTRE PRESENTE € FUTURO, NOSSO PASSADO 27 linguagem ¢ do sujeito, povoando, definitivamente. © mundo das criangas ditas “autistas”, Nesse sentido, como bem disse Joel Birmai (1997) na apresentagao desse livro, “Decididamente o autismo i realiza ¢ se materializa no plural: autismos” (p. 11), Com oe produc, firmou-se, entdo, a posig¢ao em que o reconhecimento da singularidade dessas criangas era uma condi¢ao sine qua non. Afirmar a singularidade dos “autistas” colocou a equipe do cPPL, frente 4 enorme empreitada de reverter um modo de pensar sobre essas criangas descritas, desde Kanner, na negativa, marcadas pelo que lhes falta, ¢ nao pelo que tém ou pelo que sao. Afirmar a singularidade significava positivar seus modos particulares de existir, 0 que implicou a revisio de posicionamentos teérico-clinicos, dando outras dimens6es ao nosso trabalho. Agora tinhamos de construir novas narrativas e desistir de generalizacées. A teoria, mais do que nunca, tornou-se uma ferramenta que instiga 0 pensamento, e nao um sistema de pensar que produz questdes cujas respostas estio previstas. Adeus a metafisica. Novas mudangas de otica: © autismo, uma péssima invengao!” A instigante questao formulada por Teresa Campello, 2 que essas criangas tém? Vocés s6 falam o que elas nao tém : foio estopim para que nos debrugdssemos sobre a nossa clinica em busca de questdes e respostas. Tratava-se de ver cada crianga em ngularidade, descobrir a pessoa que estava conosco e compartilhar com ela, sem exigéncia, seu modo de oe ‘os lagos Jana EuzaoeTH CAVALCANTE MARIA CICKLA DE CARVALHO Rigg 28 Naliticg atidade linguap ge suas fami’ CTiangas aie Giagndstic, ta, CAusandy ao forma de intervir na clinica psica es aici a partir da afirmagao da an Ge CAO de subjetivagao e da existéncia de Bek radicais mudangas na evolugao delas e de poate rapidez ¢ a variedade das mudangas nas aia para o risco dos efeitos iatrogénicos do precoce, que se evidenciavam de forma brutal e Virulen estragos, as vezes irreversiveis, para as criangas € os seuy familiares.* Isso nos levou, além de questionar as Classificagies psicopatoldgicas ¢ 0 diagnéstico, a colocar em quest4o a Pertingncig eutilidade do quadro nosografico de autismo infantil precoce, Estas foram as quest6es que moveram a escrita do livro Autismo: construgdes e desconstrugdes (Cavalcanti e Rocha, 2001) € que terminaram por levar ao reconhecimento de que, cada uma das criangas, tem um modo de subjetivagao singular, com modos préprios de falar, estabelecer contatos e se comunicar. Assim, foram questionados os modelos de subjetivagdo presentes tanto na seg psicandlise como no método verbo-tonal, Em conseqiiéncia, seguiu- mo se uma desconstrugao da nogio de autismo, enquanto sindrome, tao Quadro psicopatolégico ou estrutura clinica, o que levou a um feliz co Encontro com 0 texto “Autismo”, de Winnicott (1966). Apés esse LA “encontro”, terminou-se por constatar que 0 quadro nosogréfico do autismo infantil precoce foi uma péssima invengao, e criou mais Ze estragos do que propiciou avangos em psicanilise. ae AS proposigdes de Winnicott sobre © autismo vieram a corroborar © que observavamos na clinica. Diz ele: & sac lgtém que esteve envolvido como eu estive por qu Acadas nos minimos detalhes da histéria da mae no Re Bi At iS ga So oeross STE PRESENTE d puTUHO, Nobo Pabaaco . 29 uma tendéncia que foi compen: produzido 0 quadro autista.(p. igo) -m"® SMe Podera ter Ou ainda: O assunto logo deixa de ser iniciais do transtorno que poderia em autismo © passa a ser toda a mento emocional humano ¢ do relaci tonamento do Proces- so maturacional de cada crianga com a proviso ambiental que pode ou nao, em cada caso particular, facilitar pro- cesso maturacional. (p. 181) autismo, © as rafzes IM ter se transformado historia do desenvolvi- E logo mais acrescenta: Em outras palavras, 0 que estou tentando dizer 6 que essa doenga do autismo no existe e que é um termo clini- co que descreve os extremos menos comuns de um fend- meno universal. (p. 185) Assim, prosseguindo com Winnicott nessa desconstrugio, con- seguiu-se como resultado o esfumagamento das fronteiras entre 0 mérbido ¢ o sadio, entre o normal e o anormal. Colocaram-se em ques- to as classificagdes psicopatolégicas e o modo de pensar que a sus- tentam, qual seja, 0 de conceber o psiquismo a partir de certas invariancias que introduzem as idéias de norma de desvio da norma. Hoje, ainda sob o impacto dessas formulagGes, tentamos res- ponder algumas quest6es levantadas. Este livro €, portanto, uma pro- dugio aberta que traz 0 que foi possivel claborar nesse continuo “catar dos ventos” que sopram de nossa clinica e de nossas ‘mais variadas interlocugdes. Assim, este livro, como este artigo, nao ie esgota nem finaliza, como a nossa hist6ria e pratica ae que continuam em movimento e em permanente construgao. Novos ventos soprem! ES Ana EuzapeTH Cavatcanti € Maria Ciciia og CARVALHS, Rinas LCANTI, Ana Elizabeth. A Construcao do espacg ANAlitigg « oa Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, Si P a ity. VIIL, n. 75, p. 5-11, julho/1995, 6, ang th e ROCHA, Paulina S. Autismo. CAVALCANTI, Ana Elizabetl e Pi isto: cong e desconstrugdes. Casa do Psicdlogo: Sao Paulo: 2001, TU CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como 0 caso Soi. Sig Paulo: Af Omega, 1978. Kuan, M. Masud R. Psicandlise: teoria € técnica, de Janeiro: Francisco Alves, 1977, MELTZER, Donald. Exploration dans le monde de l’autisme, Paris: Payot, 1980. WINNICOTT, Donald. W. (1951). Objetos transicionais ¢ fenémenos ttansicionais. In: Da pediatria a Psicandlise. Rio de Janeiro: Francis. co Alves, 1978, (1966). Autismo. In: SHEPHERD, Ray, JOHNs, Jennifer & ROBINSON, Helen, T. (orgs.). D. W. Winnicott — Pensando sobre crian- ¢a. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, LAPLANCHE, Jean. Angtistia. In: Problemdticas 1. So Paulo: Martins Fontes, 1993, VIAL, Monique, SCHMIDTBAUER-ROCHA, Paulina. 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