Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(1); 189-195, maio de 1999.
ARTIGO
Nao ha pior inimigo do
conhecimento que a terra firme
RENATO JANINE RIBEIRO
Para Ana Liicia
RESUMO: Neste artigo critico o modo como se fazem teses em ciéncias sociais
no Brasil, com dependéncia excessiva da bibliogratia e aplicagéo mecanica de
algumas idéias na moda a todo tipo de corpus, mesmo aquele que tem riquezas
de que a teoria nao da ainda conta. Ocorrera um esvaziamento do desejo de
pensar? A Universidade nao deveria incentivar, nos alunos, 0 espirito de risco,
‘em vez do anseio de acomodagao? Fago algumas sugest6es nesta dire¢do.
m problema que, como leitor, constato com freqiiéncia nos trabalhos
académicos em ciéncias humanas e sociais € sua timidez.e pequeno
alcance, Penso que isso esté ligado a um problema que vale a pena,
ainda que em poucas paginas, levantar.
O Brasil avangou muito, estes anos, em termos de produgio université-
ria. Hé cada vez mais teses, mais mestres, mais doutores. Mas nao estaremos.
assistindo a uma timidez muito grande no modo como os jovens pesquisadores
abordam seus temas? E isso perversamente —nao seré resultado, em parte, exa-
tamente desse avango, jé que ele insiste em metodologia, em formacio de base e
em varios outros elementos que tanto podem libertar quanto prender? Quero dizer
com isso: quando se fazem semindrios ou grupos de discussio de textos, quando
se estudam os textos de referencia, quando se conhece bem a bibliografia, isso
tanto pode ajudar a liberar a reflexdo, quanto pode ati-la a modelos jé constitu
dos. O primeiro papel ¢ altamente positivo, e aplaudo-0, Ocorre quando se éem
textos notaveis, que oferecem pistas novas. Voltarei a ele, adiante, para acrescen-
tar algumas observagdes. Mas comego pelo segundo, a meu ver o que merece
UNITERMOS:
teses,
bibliografia,
método,
humanidades,
ciéncias sociais.
Professor do Departa-
mento de Filosofia da
FFLCH - USP,
189RIBEIRO, Renato Janine. Nao ha inimigo pior do conhecimento que a terra firme. Tempo Social; Rev, Sociol, USP, S. Paulo,
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maior atengdo, porque nunca o vejo, sequer, mencionado.
Tenho constatado, em muitos trabalhos ditos de pesquisa, que pri-
meiro se procura uma bibliografia de referéncia, a qual depois € aplicada —
mecanicamente—a um objeto ou corpus de estudo. Esse procedimento destro-
aos melhores textos metodolégicos, e os melhores objetos de estudo, Foucault,
Geertz e tantos outros assim sao constituidos em chaves mestras para tratar
de assuntos que podem, sem diivida, ter a ver com o que eles trabalharam, mas
cujo potencial inovador se vé destituido.
Oleitor sabe de que falo. Vezes sem conta, alguém pede~ou dé-
uma bibliografia para lidar com tal ou qual tema, Estou longe de sugerir que
se trabalhe a partir do nada, que se prescinda do que o passado ja refletiu; mas
quero observar algo a mais: tal demanda, por parte do aluno, ou tal oferta, por
parte do professor (e geralmente atendendo a uma solicitagdo do estudante),
tem claramente a fungao de reduzir uma ansiedade. O tema escolhido para a
pesquisa ¢ dificil, digamos, e por vezes tentador; em suma (pelo menos em
Humanas), 0s assuntos que escolhemos tém a ver com nosso desejo, 0 que
explica que a.um s6 tempo nos atraiam e nos atemorizem. Mas seri correto,
sera, sobretudo, enriquecedor, esvaziar de pronto o temor, a dificuldade, a
ansiedade que um tema em nés suscita?
Nao sera isso 0 que mais est ocorrendo hoje, devido em boa medi-
da as agéncias de financiamento & pesquisa, apressadas que esto elas em
‘quantificar mais e mais teses defendidas: um esvaziamento do desejo de pen-
sar? Porque nao vejo raziio, para alguém fazer uma pesquisa de verdade, que
no seja 0 amor a pensar, a libido de conhecer. E, se é de amor ou desejo que
se trata, deve gerar tudo o que o amor intenso suscita, de tremedeira até suor
nas mios. O equivalente disso na drea de pesquisa € muito simples: 0 susto, 0
pavor diante da novidade. Mas um pavor que desperte a vontade de inovar, em
vez de levar 0 estudante a procurar terra firme, terreno conhecido,
‘Nao hé pior inimigo do conhecimento do que a terra firme. Ora, isto
significa, no que nos diz respeito, que devemos deixar de lado pelo menos
parte da desculpa bibliogrdfica. E claro que nao se espera de ninguém que
reinvente a roda: os autores que nos precederam deram pasos formidaveis, e
deles nos devemos valer para avangar, Mas € preciso que eles sejam ajudas, ¢
nao muletas. Um exemplo esclarecer4. Ha coisa de vinte anos, folheando 0
catilogo de uma (boa) editora brasileira, deparei com um livro que tratava, se
nfio me engano, de antropologia ou sociologia religiosa. Como depois do titu-
lo da obra (que se referia a um caso preciso de nossa hist6ria ou vida social)
estivesse transcrito 0 seu sumério, li este tiltimo —e nada tinha a ver como
titulo. O livro inteiro era uma discussio “com” (como se diz) alguns autores,
sobretudo, se bem me lembro, Gramsci. O tema sequer tinha sido aflorado!
Piedosamente, imagino que a pesquisa tenha comegado pela metodologia, ¢
como se estendesse muito 0 orientador teria recomendado ao pés-graduando
que defendesse, como mestrado, a inchada parte metodolégica.
Na verdade, a “questo de método” s6 tem sentido ser escritaporRIBEIRO, Renato Janine, Nao ha piorinimigo do conhecimento que a terra firme, Tempo Social; Rev, Sociol, USR S. Paulo,
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diltimo. O método € algo que nés vamos constituindo a medida que pesquisamos
~em filosofia, eu diria, 4 medida que escrevemos. S6 ao término do trabalho
€ que sabemos como ele funcionou. E isso vale até para as teses ou disserta-
es mediocres: porque, se alguém s6 consegue utilizar teorias alheias com
uma desesperadora falta de criatividade, parafraseando, repetindo etc., mes-
mo assim sempre realgard certos pontos da teoria imitada e deixard outros de
fora; € nisso estd sua, digamos, originalidade, ainda que fraca. Ora, se nunca
um leitor repete exatamente o que leu, se ha sempre alguma diferenga entre o
Jeitor ¢ 0 autor (ou entre o autor de uma tese e 0 autor citado em sua bibliogra-
fia) mesmo quando o primeiro destes é desesperadoramente mediocre, o que
nao aconteceré quando ele tiver alguma qualidade? Seguramente poderd ter
melhor nogiio do que the serviu mais, e do que Ihe serviu pouco ou nada, nos
autores em quem se inspirou.
Penso que este poderia ser um exercicio bom com a bibliografia:
em vez de redigir para a tese um enorme ensaio introdutério de resumo, geral-
mente mal feito, de obras que, elas, foram bem redigidas, indagar o que,em
cada uma delas, foi fecundo ¢ 0 que nao o foi. Até para, eventualmente, se
descobrir que 0 que ndo foi usado poderia ter sido mais rico, mais inspirador
para a tese! Seja como for, a metodologia s6 pode ser explicitadaa posteriori
Hi temas interessantissimos, mas que sao devastados pela tendén-
ciaa simplesmente reduzi-los a ilustragdo de uma tese bibliogrdfica. Vejam o
absurdo: todo autor que é utilizado como referencial s6 conseguiu esse papel
porque, em algum momento, inovou. Soube romper com as referéncias que 0
antecediam. Soube afastar-se, pelo menos um pouco, da tendéncia a conside-
rar 0s autores como autoridades ¢ estou sendo literal, pensando no termo
latino auctoritates, que designa o escritor a cuja obra os leitores, sobretudo os
pésteros, conferem 0 valor juridico de um precedente.
Esta ruptura com a autoridade nao precisa ocorrer s6 depois de um.
intermindvel rol de ritos de iniciagao e ascensao académica, — isto é, nao é
preciso primeiro fazer a iniciago cientifica, em seguida as teses', af os con-
cursos?, para, depois de bem cooptado pelo sistema, de bem legitimado em
sua trajetoria, de bem normatizado em suas condutas e mesmo nos modos de
sentir, 0 pesquisador se perceber autorizado a ousar, Porque quem nunca se
atreveu pode ter dificuldades em, em algum momento, comegar a ousar.
Tudo 0 que sugiro é que os temas de tese, que em Humanas, ao
contririo das Exatas e Biolégicas, geralmente tm muito a ver com 0 nosso
desejo (¢ esta é uma extraordindria qualidade nossa), sejam trabalhados com
maior abertura ao que eles tém a nos dizer.
Um pesquisador deve expor-se a seu objeto mais do que o faz.
Parece-me que, com freqiiéncia, os pesquisadores se vacinam contra seu obj
to; que, este uma vez escolhido, eles se portam como europeus do come¢o do
século (XX, é claro) que partiam para a Africa — ou norte-americanos para o
Brasil - carregados de remédios, gua mineral e desinfetantes. Mas 0 que ¢
desinfetar um tema? O que significa escolher um objeto de desejo ¢, depois
"A dissertago de mes-
trado, as teses de dou-
toradoe livre-docéncia.
2 Os concursos de con-
tratagdo, efetivagao, li-
vre-docente e titular
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