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la... iD EST = Dietrich Bonhoeffer © Traduzido do original alemao Nachfolge, 4" edigao, 1952. © 1937 Chr. Kaiser Verlag, Miinchen, Republica Federal da Alemanha. Os direitos para a lingua portuguesa pertencem a EDITORA SINODAL, 1980. Caixa Postal 11 93001-970 Sio Leopoldo/RS Fone/Fax: (51) 3037-2366 editora@editorasinodal.com.br www.editorasinodal.com.br Tradugao: Ilson Kayser Revisao: Geraldo Korndérfer c Luis M. Sander Coordenagio editorial: Luis M. Sander Série: Estudos Biblico-Teolégicos NT — 11 Publicado sob a coordenagao do Fundo de Publicagdes Teoldgicas/Instituto Ecuménico de Pés-Graduagao da Faculdades EST da Igreja Evangélica de Confis- sdo Luterana no Brasil (IECLB). Tel.:(51) 2111 1400 Fax: (51)2111 1411 est@est.edu.br www.est.edu.br Bonhoeffer, Dietrich Discipulado / Dietrich Bonhoeffer; tradugao Ilson Kayser. 8. ed. — Sd0 Leopoldo: Sinodal, 2004 15x 21 cm. ; 208 pag. ISBN 85-233-0767-2 Titulo original: Nachfolge. 1. Teologia crista. 1. Kayser, llson. II. Titulo. CDU 251 Catalogagao na publicagao: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273 1* Parte: Discipulado . 2 1 - A graca preciosa 9 2-O chamado ao discipulado . 20 3- A obediéncia simples 38 4-0 discipulado ¢ a cruz... 44 5 - O discipulado e o individuo Sl 6.1.2 - A Igreja visivel 6.1.3 - A justiga de Cristo 69 6.1.4 - O irmao 74 TL 80 6.1.7 - A vinganga. 83 6.1.8 - O inimigo — 0 “extraordinario” . 87 6.2 - Mateus 6 — Da abscondicidade da vida cristi 94 6.2.1 - A justia oculta 6.2.2 - A abscondicidade da oragao 6.2.3 - A abscondicidade das praticas piedosas . 6.2.4 - A singeleza da vida despreocupada .. 6.3 - Mateus 7 — A separagdo da comunidade dos discfpulos . 113 6.3.1 - Os discipulos e os descrentes 6.3.2 - A grande separacao . 6.3.3 - O final 7 - Os mensageiros ( Mt 9.35-10.42) 7.1- A ceifa...... 7.2 - Os apéstolos . 7.3 - O trabalho .....ccsccssecsseseeesesseesneseeessesessesneeneseeenees 7.4 - O sofrimento dos mensageiros . 7.5 - A decisao ...... 2" Parte: A Igreja de Jesus Cristo ¢ o discipulado .... 1 - Quest&es preliminares ............sccsscseseeeessssenesesessesseseenes 139 2-0 Batismo 3 - O Corpo de Cristo 4-A Igreja visivel 5 - Os santos 6 - A imagem de Cristo indice de passapens.- biblicas sistas attics cite dausaetes obese 205 Prefacio Epocas de reavivamento eclesidstico trazem consigo um enrique- cimento nas Sagradas Escrituras. Por detras das necessarias palavras de ordem da controvérsia eclesidstica, surge uma procura, uma busca mais decidida por aquele a quem unicamente interessa achar — pelo préprio Jesus. Que pretendia Jesus nos dizer? Que espera de nés hoje? De que maneira ele nos ajuda a sermos cristaos fiéis hoje? Em ultima andlise, nao nos interessa tanto saber as idéias deste ou daquele expoente da Igreja, mas aquilo que Jesus quer € o que queremos descobrir. Indo & igreja para ouvir a pregacdo, 0 que queremos ouvir é sua Palavra — isso nao apenas em interesse proprio, mas também por amor das pessoas para as quais a Igreja e sua mensagem se tornaram estranhas. Somos também de opiniao que se o préprio Jesus, e tao-somente Jesus com sua Palavra, estivesse em nosso meio na pregagao, seria outro o grupo de pessoas a escutar a Palavrae outro o grupo a rejeita-la. [sto nao significa que a pregagao da nossa Igreja tenha deixado de ser a Palavra de Deus; no entanto, quanto som estranho, quantas leis humanas, duras, quantas esperancas falsas e falsos consolos turvam ainda a cristalina mensagem de Jesus, dificultando a decisio auténtica! A culpa nao deve ser procura- da exclusivamente nos outros, quando acham dura e dificil a pregagao— mesmo que esta pretenda ser tao-somente pregagdo de Cristo — por estar carregada de formulas e conceitos estranhos aos ouvintes. E errado afirmar que todas as palavras de critica A nossa pregacio constituem ja por si rejeigao de Cristo, anticristianismo. Quereriamos, de fato, negar a comunhio com todas as muitas pessoas que vém 4 nossa pregagao, querem ouvi-la, acabando, porém, sempre concluindo que lhes dificultamos demasiadamente 0 acesso a Jesus? Elas acham que nao é propriamente da Palavra de Jesus que querem esquivar-se, mas que en- tre elas e Jesus ha demasiados elementos humanos, institucionais, dou- trinais. Quem de nos nao teria imediatamente & mao as respostas corre- tas, respostas que facilmente nos isentam da responsabilidade por aque- las pessoas? No entanto, nao seria também uma resposta se nos pergun- 6 téssemos a nds mesmos se nao nos tornamos, muitas vezes, empecilho para a Palavra de Jesus, apegando-nos talvez demasiadamente a deter- minadas formulagées, a um tipo de pregagao por demais dirigido para sua respectiva €poca, seu local, sua estrutura social, pregando, quem sabe, em termos muito dogmaticos, mas alheios a realidade da vida, repetindo sempre certos conceitos biblicos, relegando, porém, ao esque- cimento outras palavras importantes, pregando ainda em demasia opini- Ges € convicgdes pessoais, ¢ muito pouco a Jesus Cristo? Nao poderia haver nada t4o oposto & nossa intengdo e, a0 mesmo tempo, mais perni- cioso para nossa mensagem do que sobrecarregarmos com pesadas leis humanas os cansados e oprimidos que Jesus chama a si, afastando-os as- sim dele uma vez mais. O quanto estariamos, com isso, expondo ao ridi- culo perante cristaos e pagdos o amor de Jesus Cristo! Como, porém, nes- te caso de nada servem perguntas generalizadas e auto-acusagées, volte- mos as Escrituras, 4 Palavra e ao chamado do préprio Jesus Cristo. Neles procuramos, partindo da pobreza e estreiteza de nossas proprias convic- ces e perguntas, a amplitude e a riqueza que nos sao dadas em Jesus. Queremos falar do chamado ao discipulado de Jesus. Procedendo assim, colocaremos nés sobre o ser humano um jugo novo e mais pesa- do? Iremos acrescentar aos preceitos humanos, sob os quais gemem cor- pos e almas, preceitos ainda mais duros e implacaveis? Ao lembrar 0 discipulado de Jesus, iremos, porventura, espetar um aguilhao ainda mais agudo nas consciéncias j4 tao inquietas e feridas? Estarfamos, como acon- teceu tantas vezes na hist6ria da Igreja, instituindo exigéncias impossf- veis, atormentadoras, excéntricas, cuja obediéncia poderia constituir um luxo piedoso, privilégio de alguns poucos, mas que teria de ser rejeitada pelo trabalhador preocupado com o sustento, com a profissao, com 0 cuidado pela familia, como sendo a mais impia tentacao de Deus? Seria, porventura, do interesse da Igreja impor uma tirania espiritual aos seres humanos, ditando e ordenando por si prépria, sob ameaga de castigo terreno e eterno, aquilo em que se deve crer e 0 que se deve fazer para ser salvo? Deverd a mensagem da Igreja trazer nova tirania e violéncia sobre as almas? Até mesmo € possivel que pessoas anseiem por tal es- cravatura, mas poderia a Igreja jamais satisfazer tal desejo? Quando as Escrituras Sagradas falam do discipulado de Jesus, pro- clamam a libertagao do ser humano de todos os preceitos humanos, de tudo quanto oprime, sobrecarrega, provoca preocupagées e tormentos & 7 consciéncia. No discipulado, o ser humano sai de sob 0 jugo duro de suas pr6prias leis e submete-se ao jugo suave de Jesus Cristo. Seria isso menosprezo da seriedade dos mandamentos de Jesus? Nao. Antes, so- mente onde permanece de pé o mandamento integral de Jesus, o chama- do ao discipulado sem restrigGes, é que se toma possivel a plena liberta- gio da pessoa para a comunhio com Jesus. Quem segue indiviso ao mandamento de Jesus, quem se sujeita sem resisténcia ao jugo de Jesus, aesta pessoa se torna leve o fardo que tem de levar, recebendo, na suave pressio desse jugo, a forga necessdria para percorrer 0 caminho certo sem cansago. O mandamento de Jesus é duro, desumanamente duro para quem se op6e a ele. O mandamento de Jesus é suave e facil para quem se sujeita voluntariamente a ele. “Os seus mandamentos nao séo penosos.” (1 Jo 5.3). O mandamento de Jesus nada tem a ver com tratamentos psicolégicos radicais. Jesus nada nos exige sem nos dar forcas para 0 realizar. O mandamento de Jesus jamais pretende destruir a vida, mas a conservar, fortalecer e curar. No entanto, continua a preocupar-nos o problema do que poderia significar, na atualidade, o chamado ao discipulado de Jesus para 0 ope- rario, a pessoa de negdcios, o agricultor, 0 soldado — a pergunta se nio estd sendo levado um conflito insuportével para dentro da existéncia da pessoa e do cristio que trabalham no mundo. O cristianismo do discipu- lado de Jesus nao seria assunto para um numero por demais restrito de pessoas? Nao seria ele um reptidio das grandes massas, 0 desprezo dos fracos e pobres? Mas nao sera assim negada a grande misericérdia de Jesus Cristo, que veio aos pecadores e publicanos, aos pobres e fracos, aos transviados e desesperados? Que diremos a isso? Sio poucos ou sio muitos os que pertencem a Cristo? Jesus morreu na cruz sozinho, aban- donado por seus discipulos. A seu lado pendiam nao dois de seus segui- dores, mas dois criminosos. No entanto, ao pé da cruz encontravam-se todos, inimigos e crentes, céticos e medrosos, zombadores e convictos, e todos eles, com seus pecados, estavam incluidos na oragio de perdio elevada aos céus por Jesus naquela hora. O amor misericordioso de Deus vive em meio aos seus inimigos. E 0 mesmo Jesus Cristo que, por graca, nos chama a ser seus discfpulos e cuja graca salva 0 assassino na cruz na hora derradeira. Aonde 0 chamado ao discipulado conduzird as pessoas que lhe obedecerem? Que decisGes e separagdes acarretard esse chamado? Te- 8 mos que levar essa pergunta aquele que é 0 tinico que conhece a respos- ta. Somente Jesus Cristo, que nos ordena que o sigamos, sabe aonde o caminho conduz. Nés, porém, sabemos que esse caminho sera, sem di- vida, caminho de miseric6rdia sem limites. O discipulado é alegria. Em nossos dias, parece tao dificil trilhar a senda estreita da deci- sio eclesidstica a passo firme, e, no entanto, permanecer com os fracos e os sem-Deus em toda a amplitude do amor de Cristo para com todos os seres humanos, em toda a amplitude da paciéncia, da misericérdia, da “filantropia” de Deus (Tt 3.4)! Todavia, estas duas coisas devem ficar lado a lado; do contrario estaremos percorrendo caminho humano. Que Deus nos dé, em toda a seriedade do discipulado, a alegria, em todo “n&o” ao pecado, o “sim” ao pecador, em toda defesa contra os inimi- gos, a palavra convincente e cativante do Evangelho: Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vdés 0 meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coragio; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mt 11.28-30). 1* Parte: Discipulado 1. A graca preciosa A graga barata € a inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graca preciosa. Graga barata é graga como refugo, perdio malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graga como inesgotavel tesou- ro da Igreja, distribufdo diariamente com miaos levianas, sem pensar € sem limites; a graga sem prego, sem custo. A esséncia da graga seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o prego pago, sao também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipagdo. Que seria a graga se nao fosse barata? Graga barata significa a graga como doutrina, como princfpio, como sistema; significa perdao dos pecados como verdade geral, significa 0 amor de Deus como conceito cristéo de Deus. Quem 0 aceita j4 tem o perdao de seus pecados. A Igreja participa da graga ja pelo simples fato de ter essa doutrina da graga. Nesta Igreja, 0 mundo encontra facil co- bertura para seus pecados dos quais nao tem remorsos e€ nao deseja ver- dadeiramente libertar-se. A graga barata é, por isso, uma negagao da Palavra viva de Deus, negac¢éo da encarnagio do Verbo de Deus. Graga barata significa justificagao do pecado, e nio do pecador. Como a graga faz tudo sozinha, tudo também pode permanecer como antes. “Afinal, a minha forga nada faz.” O mundo continua sendo mun- do, e nés continuamos sendo pecadores “mesmo na vida mais piedosa”. Viva, pois, 0 crente como vive 0 mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e nao se atreva — sob pena de ser acusado de heresia entusiasta! — a ter, sob a graca, uma vida diferente da que tinha sob o pecado! Que se guarde de encolerizar-se contra a graga, de enver- gonhar essa graga grande e barata, e de instituir um novo culto do litera- 10 lismo tentando ter uma vida de obediéncia de acordo com os manda- mentos de Jesus Cristo! O mundo ¢ justificado pela graca, e, por isso — por amor da serie- dade dessa graca, para que nao haja resisténcia a essa graca insubstituf- vel! — que ocristio viva como o resto do mundo! E certo que ele gostaria de realizar algo de extraordinario, e constitui, sem dtivida, um grande sacrificio nao poder fazé-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, ele precisa fazer esse sacriffcio, praticar a autonegagao, renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graga ser realmente graga, para nao destruir ao mundo a fé nessa graca barata. Todavia, que o crente, em seu mundanismo, nessa rentincia necessdria que tem de fazer por amor do mundo — nio, por amor da graga! — continue consola- do e seguro (securus) na posse dessa graga, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente nao seja discfpulo, antes se console com a graga! Isto € graga barata como justificagao do pecado, mas nao justificagao do pe- cador penitente, que abandona 0 pecado e se arrepende; nao € 0 perdio que separa do pecado. A graca barata é a graca que nds dispensamos a nés préprios. A graga barata é a pregagao do perdao sem arrependimento, € 0 batismo sem a disciplina comunitaria, é a Ceia do Senhor sem confissao dos pecados, é a absolvigio sem confissdo pessoal. A graga barata é a graca sem discipulado, a gracga sem a cruz, a graca sem Jesus Cristo vivo, encarnado. A graga preciosa € 0 tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisi¢ao 0 comerciante se desfaz de todos os seus bens; 0 senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca 0 olho que o faz tropegar; 0 chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discfpulo larga suas redes e 0 segue. A graga preciosa € 0 Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta 4 qual se tem que bater. Essa graca é preciosa porque chama ao discipulado, e é graga por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao ser humano, e € graga por, assim, lhe dar a vida; € preciosa por condenar 0 pecado, e € graga por justificar o pecador. Essa graga € sobretudo pre- ciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de 11 seu Filho —“‘vocés foram comprados por prego” —e porque nao pode ser barato para nés aquilo que custou caro para Deus. A graga é preciosa sobretudo porque Deus nao achou que seu Filho fosse prego demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nds. A graga preciosa é aencarnacio de Deus. A graga preciosa é a graga como santuario de Deus, que tem que ser preservado do mundo, nao langado aos cies; e por isso € graga como palavra viva, a Palavra de Deus que ele proprio pronuncia de acordo com seu beneplacito. Chega até nds como gracioso chamado ao discipu- lado de Jesus; vem como palavra de perdao ao espirito angustiado e ao coragao esmagado. A graca é preciosa por obrigar o individuo a sujeitar- se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: “O meu jugo é suave e o meu fardo € leve” sio expressao da graga. Por duas vezes Pedro ouviu 0 chamado: “Segue-me!” Foi esta a primeira e a ultima palavra de Jesus a seu discfpulo (Mc 1.17; Jo 21.22). Toda sua vida se situa entre esses dois chamados. Da primeira vez, Pe- dro, no Lago de Genesaré, ao ouvir o chamado de Jesus, largara as redes e abandonara a profissdo, seguindo a Jesus em obediéncia cega. Da ulti- ma vez, é 0 Ressurreto que 0 encontra em seu antigo officio, novamente no Lago de Genesaré; e mais uma vez 0 chamado é: “Segue-me!” No espago entre esses dois chamados, havia toda uma vida de discipulado de Cristo. No meio dela encontra-se a confissao de que Jesus é 0 Cristo de Deus. Por trés vezes a mesma mensagem foi anunciada a Pedro, no inicio, no fim e em Cesaréia de Filipe, ou seja, a mensagem de que Cris- to € seu Senhor e Deus. A graga de Cristo que chama: “Segue-me!” € a mesma que se revela a Pedro em sua confissao do Filho de Deus. Houve, pois, uma intervengio tripla da graga no caminho de Pe- dro, a mesma graga proclamada em trés ocasiGes diferentes; ela era, as- sim, de fato a graga do préprio Cristo e nao a graga que Pedro atribufa a si mesmo. Foi essa mesma graca de Cristo que venceu esse discfpulo, levando-o a largar tudo por amor do discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissdo blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou 0 infiel Pedro 4 comunhao derradeira, a do martirio, pelo que Ihe foram perdoados todos os pecados. A graga e 0 discipulado permanecem indis- soluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graga preciosa. Com a expansio do cristianismo e a secularizagao crescente da 12 Igreja, a consciéncia dessa graga preciosa perdeu-se gradualmente. O mundo estava cristianizado, a graga passara a ser propriedade comum de um mundo cristao. Tinha-se tornado barata. No entanto, a Igreja Roma- Na conservava um Ultimo resto desta consciéncia. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo nao se ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sabia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciéncia da preciosidade da graga, ¢ de que esta encerra em si 0 discipulado. Por amor de Cristo, homens e mulheres abandonavam tudo quanto possufam, procurando cumprir os severos mandamentos de Jesus na pratica didria. Foi assim que a vida monastica se transformou num protesto vivo contra a secula- rizac&o do cristianismo, contra o barateamento da graca. Todavia, pelo pr6prio fato de ter tolerado esse protesto e de ter evitado uma cisio defi- nitiva, a Igreja o relativizou, encontrando nele até a justificagao de sua propria vida mundana; pois agora a vida monastica transformava-se numa realizagao especial de carater individual, realizagdo essa que nao pode- ria ser exigida a massa do povo cristio. A limitacio fatal do mandamento de Jesus a um grupo limitado de individuos de qualidades excepcionais levou a distingao entre uma realizagéo mAxima e uma realizagaéo minima na esfera da obediéncia crista. Assim, a cada ataque renovado contra a secularizacao da Igreja, podia-se apontar para a possibilidade da vida monastica dentro da mes- ma Igreja, ao lado da qual se justificava plenamente a outra possibilida- de do caminho mais facil. Desse modo, apelar para 0 conceito que a Igreja primitiva tinha da preciosidade da gracga — conceito que ficara preservado no monasticismo da Igreja Romana — teve que servir, para- doxalmente, uma vez mais como justificagao final da secularizagao da Igreja. Em tudo isso, 0 erro decisivo do monasticismo nao residia no fato de — a despeito de tantos mal-entendidos quanto ao contetido da vontade de Jesus — ter seguido 0 gracioso caminho do discipulado rigo- roso. Antes, o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianis- mo por se deixar transformar ele préprio na realizagiio excepcional, vo- luntaria, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si. Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graca pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. Lutero era monge. Tudo abandonara e desejava seguir a Cristo em obediéncia perfeita. Re- 13 nunciou ao mundo e dedicou-se 4 obra cristi. Aprendeu a obediéncia a Cristo e a sua Igreja, pois sabia que somente 0 obediente é que pode crer. O chamado para o convento custou a Lutero a total consagragao de sua vida. Com 0 caminho escolhido, Lutero fracassou em relago ao proprio Deus. Este lhe mostrou, através das Escrituras, que 0 discipulado de Jesus nao era a realizagio meritéria de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristdos. A humilde obra do discipulado convertera-se, no monasticismo, numa realizacio meritéria dos santos. A autonega¢io do seguidor revelou-se nele como a derradeira auto-afirmagao espiritual dos piedosos. Foi assim que 0 mundo se infiltrou no seio da vida monds- tica, mostrando-se de novo perigosamente ativo. A fuga do mundo reve- lara-se como a mais refinada forma de amor ao mundo. Nesse fracasso da liltima possibilidade de uma vida piedosa, Lute- to foi alcangado pela graga. Viu no colapso do mundo mondstico a mao salvadora de Deus estendida em Cristo. A ela se agarrou, certo de que “nossos esforcos nada podem nem mesmo na vida mais piedosa”. Foi a graca preciosa que lhe foi dada, e ela Ihe despedagou toda a sua existén- cia. Teve que largar uma vez mais as suas redes e seguir 0 Mestre. Da primeira vez, quando fora para 0 convento, abandonara tudo — menos a si mesmo, seu eu piedoso. Desta vez, até isso lhe foi tirado. Nao seguiu o Mestre por mérito proprio, mas baseado na graga de Deus. Nao lhe foi dito: “E certo que pecaste, mas tudo j4 esta perdoado; permanece onde estas e consola-te no perdio.” Lutero teve que abandonar o convento e regressar ao mundo, nao porque este, em si, fosse bom e santo, mas sim porque também 0 convento nada mais era do que mundo. O caminho de Lutero para fora do convento e de volta ao mundo constitui 0 ataque mais incisivo que o mundo sofreu desde os tempos da primeira Igreja. A rendncia do monge ao mundo é brincadeira compara- da 4 rentincia que 0 mundo experimentou por parte daquele que a ele regressara. O ataque agora era frontal; 0 discipulado de Jesus passaria a ser vivido no seio do mundo. Aquilo que, em circunstancias especiais e com as facilidades da vida monastica, era praticado como realizagio especial passava agora a ser algo necessario, ordenado a cada cristao no mundo. A obediéncia perfeita ao mandamento de Cristo deveria aconte- cer na vida profissional de todos os dias. Assim se aprofundou de forma imprevisivel 0 conflito entre a vida do cristo e a do mundo. O cristo atacava o mundo de perto; era uma luta corpo a corpo. 4 Mal-entendido mais funesto nio pode ocorrer na interpretagao da obra de Lutero do que supor que ele tivesse proclamado, com o desco- brimento do Evangelho da graga pura, uma dispensa da obediéncia ao mandamento de Jesus no mundo, ou que a descoberta da Reforma tives- se sido a canonizacio, a justificagao do mundo mediante a graga que tudo perdoa. No conceito de Lutero, porém, a profissio secular do cris- tAo tem sua justificagao apenas no fato de nela o protesto contra o mun- do atingir a sua maxima intensidade. A vocagio secular do cristao rece- be nova legitimidade a partir do Evangelho somente na medida em que € exercida no discipulado de Jesus. Nao a justificagao dos pecados, mas sim a do pecador é que levou Lutero a sair do convento. Lutero recebera a graca preciosa. Graga, por ser 4gua sobre a terra sedenta, consolo na angiistia, libertagaio da escravidio do caminho auto-escolhido, perdio de todos os pecados. Graga preciosa por nao isentar ninguém da obra, antes chamando com insisténcia ainda maior ao discipulado. Mas justa- mente naquilo em que era preciosa é que ela era graca, e no que era graga, era preciosa. Era este o segredo do Evangelho da Reforma, 0 se- gredo da justificagdo do pecador. No entanto, 0 vencedor da histéria da Reforma nao é 0 reconheci- mento de Lutero a respeito da graga pura e preciosa, mas sim 0 apurado instinto religioso do ser humano para descobrir onde é que a graga pode ser conseguida mais barata. Bastou um deslocamento muito ligeiro, quase imperceptivel, da énfase, para se consumar a obra mais perigosa e des- trutiva. Lutero ensinava que, mesmo nos caminhos e obras mais piedo- sos, 0 ser humano nao poderia subsistir perante Deus porque, no fundo, procura-se sempre a si préprio. Em face disso, ele préprio agarrara-se, na fé, 4 graga do livre e incondicional perdao de todos os pecados. Ao fazé-lo, Lutero sabia que essa graga Ihe custara toda uma vida —e ainda Ihe custava diariamente, pois a graga nado o dispensara do discipulado, antes era agora que estava verdadeiramente comprometido com ele. Ao falar da graga, Lutero referia-se implicitamente 4 sua prépria vida, vida que somente através da graga fora colocada na obediéncia plena a Cris- to. Nao podia falar da graga de outra maneira. A graga tudo faz, dissera Lutero, e seus seguidores repetiam-lhe literalmente essa afirmacdo; com uma diferenga, porém: muito em bre- ve, deixaram de fora, deixaram de pensar e dizer aquilo que para Lutero sempre estava implicito em seu pensamento: o discipulado, aquilo que 15 ele j4 nao precisava dizer expressamente, pois falava sempre como pes- soa a quem a graga conduzira ao mais Arduo discipulado de Jesus. A doutrina de seus seguidores era, assim, inatacdvel do ponto de vista da doutrina de Lutero, e, no entanto, foi seu ensino que resultou no fime na destruigao do movimento reformatério como revelaciio da graca precio- sa de Deus na terra. A justificagao do pecador no mundo transformou-se em justificagao do pecado ¢ do mundo. A graga preciosa transformou-se em graga barata sem discipulado. Quando Lutero afirmava que nossos esforgos nada podem nem mesmo na vida mais piedosa e que, por isso, aos olhos de Deus, nada vale senio “a graga e o favor do perdio”, dizia~o como alguém que até entdo e naquele mesmo momento se sentia novamente chamado ao disci- pulado de Jesus e a deixar tudo 0 que tinha. O reconhecimento da graga foi para ele a ultima ruptura radical com 0 pecado de sua vida, jamais, porém, ajustificagaio do pecado. Na aceitagao do perdao, esse reconhecimento foi a ultima rentincia radical 4 vida sob orientagdo prépria, e, por isso, s6 entio tornou-se um chamado sério ao discipulado. A graga era para Lute- ro um “resultado”, mas um resultado divino, nao humano. Esse resultado, porém, foi transformado por seus sucessores em premissa basica para um calculo. Nisso consiste todo o desastre. Se a graga € o “resultado” da vida crista, dado pelo préprio Cristo, entao esta vida nao esta dispensada, um Unico momento sequer, do discipulado. Se, porém, a graca constituir premissa basica de minha vida crista, entao tenho nela, antecipadamente, a justificagao dos pecados que cometer durante minha vida no mundo. Posso agora pecar apostando nessa gra- ¢a, pois o mundo esta, em principio, justificado por ela. Permanego, por isso, em minha existéncia de cidadania mundana como até agora; tudo fica como antes, € posso viver na certeza de que a graga de Deus me encobre. O mundo inteiro tornou-se “cristao” 4 sombra dessa graca, mas oO cristianismo mundanizou-se sob essa graga como nunca. Desapareceu © conflito entre a vida crist4 e a vida profissional de cidadao mundano. A vida crista consiste em viver no mundo ¢ tal qual o mundo, sem dele me distinguir, seja no que for, nem devendo — por amor da graca — dis- tinguir-me dele, embora, em determinadas oportunidades, eu saia do mun- do para entrar no 4mbito da Igreja, para af me assegurar do perdao dos pecados. Estou dispensado do discipulado de Jesus — mediante a graga barata, que é inevitavelmente 0 mais acerbo inimigo do discipulado, e 16 que necessariamente odeia e ultraja o verdadeiro discipulado. A graga como premissa inicial é graga da mais barata; a graga como resultado éa graga preciosa. E assustador reconhecer 0 quanto depende da forma como uma verdade evangélica é expressa e posta em pratica. Eamesma men- sagem da justificagiio téo-somente pela graca; no entanto, a ma utiliza- Gao dessa mensagem conduz a completa destruigio de sua esséncia. Quando o Dr. Fausto, apés uma vida dedicada a pesquisa do co- nhecimento, diz: “Vejo que nada podemos saber”, estamos diante dum resultado, algo completamente diferente do sentido que esta mesma fra- se teria se pronunciada por um estudante de primeiro semestre, para jus- tificar sua preguiga (Kierkegaard). Como resultado, essa frase é verda- deira, mas, como ponto de partida, é uma ilusdo. Isso significa que 0 conhecimento adquirido nao pode ser separado da existéncia em que foi obtido. Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possuia, pode dizer que é justificado téo-somente pela graca. Essa pessoa vé 0 préprio chamado ao discipulado como sendo graca, e a graca como sendo esse chamado. Engana-se, porém, a si pr6- prio quem se julga por ela dispensado do discipulado. Mas n§o teria o proprio Lutero se aproximado perigosamente des- ta total perversdo da compreensao da graca? Como entender a frase de Lutero: Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo -““Peca com coragem, mas cré com coragem ainda maior e alegra-te em Cristo”? (En- ders III, p. 208, 118ss.). Isso significaria: afinal, tu és pecador e nada po- des fazer para te livrar do pecado; quer sejas monge, quer mundano, quer pretendas ser justo, quer sejas fmpio, nao conseguirds escapar a armadilha do mundo; pecas. Peca, pois, com coragem — justamente baseando-te na graca ja acontecida, é claro. Estarfamos nés diante da proclamagao aberta da graca barata, da carta branca ao pecado, da aboli¢ao do discipulado? Estariamos diante do convite blasfemo de pecar 4 vontade, confiados na graga? Haverd afronta mais diabdlica contra a graga do que pecar confia- do na graga que Deus nos concedeu? Nao tera razaio 0 Catecismo catélico ao reconhecer neste pecado o pecado contra 0 Espirito Santo? Para compreender bem esta relag&o, tudo depende da distingio entre resultado e premissa. Se a frase de Lutero for encarada como pre- missa duma teologia da graca, ent&o est4 proclamada a graga barata. Mas a verdadeira compreensao da frase de Lutero consiste em vermos nela nao o principio, mas exclusivamente o fim, o resultado, a pedra 17 final, a palavra derradeira. Encarado como premissa, pecca fortiter trans- forma-se em principio ético; ao princ{pio pecca fortiter deve correspon- der o principio graga. Isso é justificagiio do pecado, uma inversio da frase de Lutero. “Peca com coragem” — isso, para Lutero, somente podia ser o informe derradeiro, a consolagao para a pessoa que, no caminho do discipulado, reconhece nao conseguir libertar-se do pecado e que, ame- drontada pelo pecado, j4 nao consegue confiar na graga de Deus. Para ele, “peca com coragem” nao é uma confirmagao fundamental da sua vida em desobediéncia, mas Evangelho da graga de Deus, perante o qual somos, sempre e em todas as circunstancias, pecadores, e o Evangelho que nos busca e justifica justamente na qualidade de pecadores. Confes- sa corajosamente teu pecado; nao procures fugir dele, porém, “cré com coragem ainda maior”. Es pecador e, portanto, continua sendo-o. Nao queiras ser qualquer outra coisa senao aquilo que és; sim, sé pecador todos os dias e, nao obstante, sé corajoso. Mas a quem se podera dizer isso sendo 4 pessoa que, diariamente, repudia seu pecado com todas as forgas de seu coragao, que, diariamente, renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de Jesus e que, no entanto, permanece incon- solavel por causa de sua infidelidade e pecado cotidianos? Quem podera ouvir isso sem risco para sua fé, sendo a pessoa que, por tal consolo, se sabe renovadamente chamada ao discipulado de Cristo? Assim a frase de Lutero, entendida como resultado, transforma-se na graga preciosa, a unica que é verdadeiramente graga. A graga como principio, pecca fortiter como principio, a graca barata é, no fim das contas, apenas uma nova lei que em nada ajuda e que nao liberta. A graga como palavra viva, pecca fortiter como consolo na tribulagdo e chamado ao discipulado, a graca preciosa, s6 ela € graga pura, que realmente traz perdio e liberta o pecador. Como corvos nos reunimos em torno do cadaver da graga barata e dela recebemos 0 veneno devido ao qual o discipulado de Jesus morreu em nosso meio. A doutrina da graga pura passou, de fato, por uma apo- teose incomparavel, a doutrina pura da graga tomou-se ela mesma Deus, tornou-se ela mesma graga. Em toda parte, as citagdes de Lutero, e, no entanto, a verdade convertida em ilusao! Se a Igreja possui, pelo menos, a doutrina da justificag4o, ent&o é, sem divida, uma Igreja justificada, diz-se. Assim, a verdadeira heranga luterana seria o maior barateamento possivel da graga. Ser luterano seria deixar 0 discipulado de Jesus aos 18 legalistas, aos reformados ou aos entusiastas, tudo por amor da graga; seria justificar o mundo ¢ transformar em herege o cristéo que envere- dasse pelo caminho do discipulado. Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém, as expensas do discipulado, a um prego demasiada- mente barato. Triunfara a graga barata. Mas saberemos também que esta graca barata foi extremamente cruel para nés? O prego que hoje temos que pagar com o colapso das igrejas organizadas sera qualquer outra coisa senao uma conseqiiéncia necessaria do barateamento da graca? Tornaram-se baratos a mensagem € Os sacramentos; batizou-se, confirmou-se, absolveu-se todo um povo sem perguntas nem condigGes; por humanitarismo, deu-se 0 santudrio aos zombadores e incrédulos, dispensaram-se rios sem fim de graga, mas o chamado ao discipulado rigoroso de Cristo ouvia-se cada vez mais raramente. Onde ficaram as percepg6es da Igreja primitiva que, na cate- quese do batismo, tinha tanto cuidado em vigiar a fronteira entre a Igreja €0 mundo, em vigiar a graga preciosa? Onde ficaram os avisos de Lute- To contra a proclamagao de um evangelho que garantia seguranca aos seres humanos em sua vida sem Deus? Quando foi o mundo mais cruel- mente e mais desapiedadamente cristianizado do que aqui? Que sao os 3 mil saxGes assassinados segundo 0 corpo por Carlos Magno, compara- dos com os milhées de almas mortas na atualidade? Acontece que os pecados dos pais esto sendo castigados nos filhos até a terceira e quarta geracdo. A graga barata foi muito cruel para nossa Igreja Evangélica. A graga barata decerto foi também cruel pessoalmente para a mai- oria de nés. Nao nos abriu, antes fechou o caminho para Cristo. Nao nos chamou ao discipulado, antes nos endureceu na desobediéncia. Ou nao foi crueldade quando tendo, quem sabe, escutado o chamado ao discipu- lado de Jesus como 0 chamado da graga de Cristo, tendo mesmo arrisca- do os primeiros passos do discipulado na disciplina da obediéncia ao mandamento, fomos assaltados pela mensagem da graga barata? Pude- mos nés interpretar essa mensagem de outra forma senao que o que ela pretendia era deter-nos no caminho, chamando a um bom senso tao mundano, sufocando em nos a alegria do discipulado ao sugerir que tudo nao passava de um caminho escolhido por nds mesmos, um dispéndio de energias, esforcos e disciplina desnecessdrio e, até mesmo, muito perigoso, pois na graca tudo ja estaria pronto e consumado? O pavio fumegante foi desapiedadamente extinto. Foi cruel falar assim a um ser 19 humano porque ele, desorientado por uma oferta tio barata, iria neces- sariamente abandonar seu caminho — 0 caminho para 0 qual Cristo 0 chamara ~ para, agora, agarrar-se 4 graga barata que o privou, para sem- pre, do conhecimento da graga preciosa. Era inevitavel que 0 ser huma- no enganado e fraco se sentisse subitamente forte na posse da graca ba- rata, quando, na realidade, havia perdido a forga para a obediéncia, para o discipulado. A mensagem da graga barata tem arruinado mais cristaos do que qualquer mandamento de obras. Em tudo que segue, queremos falar em nome de todas as pessoas que estao atribuladas e para as quais a palavra da graca se tornou assus- tadoramente vazia. Por amor da verdade, essa palavra tem que ser pro- nunciada em nome daqueles entre nds que reconhecem que, devido a graga barata, perderam o discipulado de Cristo e, junto com o discipula- do de Cristo, a compreensio da graga preciosa. Simplesmente por nao querermos negar que jd nao estamos no verdadeiro discipulado de Cris- to, que somos, é certo, membros de uma Igreja ortodoxamente crente na doutrina da graga pura, mas nio membros de uma Igreja do discipulado, é preciso tentar compreender de novo a graga e 0 discipulado em sua verdadeira relagio mtitua. J4 nio ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais evidente que o problema da Igreja se resume nisso: como viver hoje uma vida crista? Felizes aqueles que se encontram ja no fim do caminho que pre- tendemos percorrer e que, com espanto, compreendem o que de fato parece incompreensivel: que a graca é preciosa justamente por ser graga pura, por ser a graga de Deus em Jesus Cristo! Felizes aqueles que, no singelo discipulado de Jesus, se encontram possufdos por essa graca, podendo, humildes em espirito, louvar a graga de Cristo que tudo opera! Felizes aqueles que, no conhecimento desta graga, podem viver no mun- do sem para ele se perderem, e para os quais, no discipulado de Cristo, a patria celestial é uma certeza tal que estao verdadeiramente livres para a vida neste mundo! Felizes aqucles para os quais 0 discipulado de Jesus Cristo nada mais é senao a vida baseada na graga, e para os quais a graga nada mais € sendo 0 discipulado! Felizes aqueles que, neste sentido, se tornaram cristéos para os quais a mensagem da graga foi misericérdia! 20 2 -O chamado ao discipulado Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. (Mc 2.14). Soa o chamado, e imediatamente segue 0 ato obediente da pessoa que foi chamada. A resposta do discipulo nao é uma confissao oral da fé em Jesus, mas sim um ato de obediéncia. Como é possivel essa seqiién- cia imediata de chamado e obediéncia? Para a razio natural, isso é cho- cante, e ela se esforga para separar estes elementos tao intimamente li- gados; é preciso interpolar, explicar qualquer coisa; seja como for, é preciso encontrar uma intermediagao psicolégica, historica. Pergunta-se tolamente se 0 publicano nao conhecia a Jesus antes, estando, assim, ja preparado para segui-lo tao logo ouvisse o chamado. O texto, porém, mantém-se teimosamente mudo acerca deste ponto, dando toda a énfase A seqiiéncia imediata de chamado e agiio. Nao lhe interessam razdes psicolégicas para explicar as decisGes piedosas de um ser humano. Por que nao? Porque para esta seqiéncia de chamado e agdo s6 existe uma raziio valida: o proprio Jesus Cristo, E ele quem chama, e, por isso, 0 publicano o segue. Neste encontro é testemunhada a autoridade de Je- sus, que é incondicional, imediata e sem explicagdes. Nada o precede e nada lhe segue senao a obediéncia da pessoa que foi chamada. O fato de Jesus ser 0 Cristo di-lhe todo o poder para chamar e exigir obediéncia & sua palavra. Jesus chama ao discipulado nao como ensinador e exem- plo, mas em sua qualidade de Cristo, Filho de Deus. Assim, neste breve trecho, anuncia-se Jesus Cristo e 0 que ele espera do ser humano, e nada mais. Nenhum louvor cabe ao discfpulo por seu cristianismo decidido. O olhar nao deve pousar sobre ele, mas somente sobre aquele que chama e sobre sua autoridade. Nao se aponta tampouco um caminho para a fé, para o discipulado; nao ha qualquer outro caminho para a fé senao o da obediéncia ao chamado de Jesus. Que sabemos a respeito do contetido do discipulado? Segue-me! Vai andando atraés de mim! Eis tudo. Segui-lo, eis uma coisa sem con- tetido. Isso de fato nao constitui um programa de vida cuja realizagdo fizesse sentido. Nao é um objetivo, um ideal pelo qual se deva lutar; 21 nem é algo que, pelos padrdes humanos, merega 0 sacrificio de qualquer coisa ou de nés préprios. E 0 que acontece? O ser humano que foi cha- mado larga tudo quanto tem, nao para fazer algo que tenha valor especi- al, mas simplesmente por causa daquele chamado, porque, de outro modo, nao pode seguir os passos de Jesus. A esse ato nao se atribui o menor valor. Em si, continua sendo uma coisa absolutamente destitufda de im- portancia, sem merecer atengio. Destruiram-se as pontes e simplesmen- te caminha-se em frente. Uma vez chamada para fora, a pessoa tem que abandonar a existéncia anterior, tem que simplesmente “existir” no sen- tido rigoroso da palavra. O que é velho fica para tras, totalmente aban- donado. O discipulo é arrancado de sua relativa seguranga de vida e langa- do a incerteza completa (i. é, na verdade, para a absoluta seguranga ¢ protegao da comunhao com Jesus); de uma situagao previsivel e calcula- vel (i. é, na verdade, de uma situagao totalmente imprevisivel) para den- tro do imprevisivel e fortuito (na verdade, para dentro do Gnico que é necessirio e previsivel); do dominio das possibilidades finitas (i. é, na realidade, das possibilidades infinitas) para o dominio das possibilida- des infinitas (i. é, na verdade, para a Gnica realidade libertadora). Uma vez mais, nao se trata de uma lei de cardter geral, ¢ sim do exato oposto de todo legalismo. Repetimos, nada mais € senao estar ligado tao-so- mente a Jesus Cristo, ou seja, a subversaio completa de todo programa- tismo, de todo ideal, de todo legalismo. Por Jesus ser 0 tnico contetido, no pode haver qualquer outro. Ao lado de Jesus nao ha mais quaisquer outros contetidos neste caso, pois ele proprio é 0 inico contetido. Ochamado ao discipulado €, portanto, comprometimento exclusi- vo com a pessoa de Jesus Cristo, a subversio de todos os legalismos mediante a graga daquele que chama. E chamado da graga, mandamento gracioso. Fica além do antagonismo de lei e Evangelho. Cristo chama, 0 discipulo segue; isso é graga e mandamento ao mesmo tempo. “E andarei com largueza, pois me empenho pelos teus preceitos.” (SI 119. 45). O discipulado é comprometimento com Cristo; por Cristo existir, tem que haver discipulado. Uma concepgao de Cristo, um sistema dou- trinério, um conhecimento religioso geral da graga ou do perdio nao implicam necessariamente o discipulado; na realidade, excluem-no, so hostis a ele. Com a idéia pode-se ter uma relagio de conhecimento, de admiragao — talvez até mesmo de realizagao —, mas nunca a relagdo de 22 discipulado pessoal e obediente. Cristianismo sem Jesus Cristo vivo permanece necessariamente um cristianismo sem discipulado; ¢ cristia- nismo sem discipulado € sempre cristianismo sem Jesus Cristo; é uma idéia, um mito. Um cristianismo no qual s6 existe Deus Pai, mas nao existe Cristo como Filho vivo, exclui 0 discipulado. Somente porque o Filho de Deus tornou-se ser humano, por ele ser Mediador, é que o dis- cipulado constitui 0 relacionamento correto com ele. O discipulado esta vinculado ao Mediador, e, onde quer que se fale corretamente do disci- pulado, af se fala do Mediador, Jesus Cristo, Filho de Deus. Somente o Mediador, Deus feito ser humano, pode chamar ao discipulado. O discipulado sem Jesus Cristo é a escolha pessoal de um cami- nho talvez ideal, um caminho, quem sabe, de martfrio, mas nfo encerra promessa; Jesus o repudiara. E seguiram para outra aldeia. Indo eles caminho fora, alguém lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus Ihe respondeu: As ra- posas tém seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem nao tem onde reclinar a cabega. A outro disse Jesus: Segue-me. Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos 0 sepultar os seus préprios mortos. Tu, po- rém, vai, e prega o reino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe repli- cou: Ninguém que, tendo posto a mao no arado, olha para trs, é apto para o reino de Deus. (Le 9.56-62). O primeiro discipulo oferece-se ele proprio para seguir a Jesus; nao foi chamado, e a resposta de Jesus chama a atengio do entusiasta para o fato de que este nao sabe o que faz. Nao o pode, mesmo, saber. E esse 0 sentido da resposta na qual a vida com Jesus é mostrada aquele discipulo em toda a sua realidade. Aqui fala aquele que esta a caminho da cruz, cuja vida inteira é descrita no Credo Apostdlico numa sé pala- vra: “padeceu”. Isso ninguém pode querer por escolha prépria. Ninguém pode chamar-se a si préprio, diz Jesus, e suas palavras ficam sem res- posta. O abismo entre a oferta espontinea ao discipulado ¢ 0 verdadeiro discipulado continua aberto. Quando, porém, é 0 préprio Jesus que chama, ele langa uma ponte sobre 0 mais profundo abismo. O segundo discipulo quer enterrar seu pai antes de seguir a Jesus. Ea lei que o prende. Ele sabe perfeitamente © que quer ¢ 0 que lhe cabe fazer. Primeiro, é necessdrio cumprir a lei, 23 depois seguira o Mestre. Interpde-se aqui, entre a chamada e Jesus, um mandamento claro da lei. A isso se contrapée poderosamente o chama- do de Jesus, e, portanto, sob hipétese alguma, algo deve interpor-se en- tre Jesus e a pessoa chamada, nem que seja 0 que ha de maior e mais sagrado — nem que seja a lei. Agora, por amor de Jesus, a lei que se pre- tendia interpor tem que ser quebrada, pois, entre Jesus e aquele a quem ele chamou, ela j4 nao possui quaisquer direitos. Assim, Jesus opde-se aqui a lei e ordena o discipulado. S6 Cristo pode falar assim; é sua a tltima pala- vra; ninguém pode opor-se. Este chamado, essa graga so irresistfveis. O terceiro compreende o discipulado como o primeiro, como oferta que s6 ele préprio pode fazer, como um programa de vida pessoal, auto- escolhido. Ao contrario do primeiro, porém, julga justo que, por seu turno, imponha condigées. Assim procedendo, cai em total contradigao. Quer ajuntar-se a Jesus e, ao mesmo tempo, interp6e algo entre si e 0 Mestre: “Deixa-me primeiro...” Quer segui-lo, mas quer, ele mesmo, impor as condigées do discipulado. O discipulado é, para ele, uma pos- sibilidade de cuja realizagio faz parte o cumprimento de condigdes e exigéncias prévias. Assim o discipulado transforma-se em algo huma- namente acessivel ¢ compreensivel. Primeiro, faz-se uma coisa, e de- pois faz-se outra. Tudo tem sua legitimidade e seu tempo. O discipulo prontifica-se, mas, ao fazé-lo, tem o direito de impor condigées. E evi- dente que, nesse momento, o discipulado deixa de ser discipulado. Trans- forma-se em programa de vida que eu fago de acordo com meu critérioe posso justificar 4 luz da razao e da ética. O terceiro discfpulo, portanto, quer ingressar no discipulado, mas, no momento em que o afirma, j4 nado quer ser discipulo. Com sua oferta, ele proprio anula o discipulado, pois este nao tolera quaisquer condigdes que possam se interpor entre Jesus a obediéncia. O terceiro discipulo entra, portanto, em contradigaéo nao somente com Jesus, mas também consigo mesmo. Nao quer o que Jesus quer, e também nao quer o que ele préprio quer. Julga-se a si préprio, desentende-se consigo mesmo, e isso apenas ao dizer: “Deixa-me pri- meiro...” A resposta de Jesus confirma figurativamente este conflito in- timo que exclui o discipulado: “Ninguém que, tendo posto a mio no arado, olha para tras, € apto para o reino de Deus.” Ser discipulo significa dar determinados passos. Jé 0 primeiro passo que segue ao chamado separa o discfpulo de sua existéncia anterior. As- sim, o chamado ao discipulado cria imediatamente uma nova situagao. 24 Permanecer na situag4o antiga e ser discipulo é impossfvel. A princfpio isso era bem visivel. O publicano teve que abandonar a coletoria; Pedro teve que largar as redes, para seguir a Jesus. Segundo nosso entendi- mento, teria havido outras solugGes: Jesus poderia ter proporcionado ao publicano um novo conhecimento de Deus e permitir que ele continuas- se em sua antiga situacdo. Isso seria possivel se Jesus nao fosse o Filho de Deus feito ser humano. Como, porém, Jesus é 0 Cristo, tinha que se tornar claro de antem&o que sua mensagem nao é uma doutrina, mas nova criagao da existéncia. Tratava-se de caminhar realmente com Je- sus. A pessoa que era chamada compreendia que, para ela, s6 havia uma possibilidade de fé em Jesus, a saber, abandonar tudo e ir com o Filho de Deus feito ser humano. Com 0 primeiro passo, o discfpulo fica na situagio de poder crer. Se nao seguir ap6s Jesus, se ficar para tras, ndo aprenderd a crer. A pes- soa que é chamada tem que sair de sua situagio, em que é€ impossivel crer, para outra na qual j4 € possivel crer. Este passo nao tem em si qualquer valor programiatico; justifica-se apenas pela comunhao assim estabelecida com Jesus Cristo. Enquanto Levi continuar na alfandega, ou Pedro, junto a suas redes, poderiam prosseguir honesta e fielmente em sua profissao respectiva, poderiam ter o antigo ou o novo conheci- mento de Deus; porém, se quiserem aprender a crer em Deus, devem seguir apés 0 Filho de Deus feito ser humano e caminhar com ele. Antes era diferente. Podiam viver no siléncio e no anonimato, re- alizando sua tarefa, guardando a lei e esperando o Messias. Agora, po- rém, ele jé estava ali; seu chamado se fizera ouvir. Crer ja nao era ficar em siléncio e esperar; crer significava ir com ele no discipulado. Agora, seu chamado dissolvia todos os elos por amor & unio exclusiva com Jesus Cristo. Agora, era preciso destruir todas as pontes, dar 0 passo para a inseguranga infinita, a fim de conhecer o que Jesus exige e 0 que Jesus da. Se Levi continuasse na alfandega, poderia, sem dtivida, contar com Jesus como seu ajudador em toda necessidade, mas nao lhe teria sido possivel reconhecer nele o tinico Senhor em cujas maos poderia confiar toda a sua vida; nao teria aprendido a crer. E necessario criar a situagdo em que Jesus, Deus feito ser humano, pode ser crido, a situagao impossfvel em que se aposta tudo num nimero — na palavra de Jesus. Pedro tem de sair do barco e pisar as 4guas revoltas, a fim de experimen- tar sua impoténcia e a onipoténcia de seu Senhor. Se nao tivesse saido 25 daquele barco, nio teria aprendido a crer. A situagdo absolutamente im- possivel ¢ eticamente irresponsdvel, a cena sobre as 4guas agitadas do lago teve que ser provocada para que a fé se tomasse possfvel. O cami- nho para a fé passa pela obediéncia ao chamado de Cristo. Exige-se um passo decisivo, senao o chamado de Jesus ecoa no vacuo, e todo suposto discipulado, sem esse passo ao qual Jesus nos chama, transforma-se em falsa onda entusidstica. E grande o perigo de distinguir entre uma situagaio em que a fé é possivel e uma outra em que a fé é impossivel. Ai é necessdrio, em primeiro lugar, que se torne bem claro que jamais a propria situagio determina ou revela a que espécie ela pertence. Somente o chamado de Jesus Cristo a caracteriza como a situagao em que a fé se torna possivel. Em segundo lugar, a situagao em que a fé € possivel nunca surge a partir do ser humano. Somente 0 chamado cria a situagao. Em terceiro lugar, esta situagdo nunca encerra valor proprio; somente se justifica mediante ochamado. Por tiltimo e principalmente, também a situagao na qual a fé € possivel é possibilitada sempre e unicamente na fé. O conceito de uma situagdo em que a fé se tora possivel nada mais é do que a descrigdo da relagio entre as duas frases seguintes que sio igualmente verdadeiras: sd 0 crente é obediente, e sé o obediente é que cré. Apresentar a primeira frase sem a segunda constitui grave perda de fidelidade biblica. $6 0 crente é obediente, ¢ isso consideramos com- preensivel. A obediéncia resulta da fé como os bons frutos de uma arvo- re saudavel, dizemos. Primeiro a fé, depois a obediéncia. Se assim se quiser provar apenas a justificag&o pela fé e nao pelo ato de obediéncia, entdo estamos diante da premissa necessaria e irrefutavel de tudo o mais. Se, porém, se procurar estabelecer cronologicamente que primeiro se deve crer, seguindo-se, depois, a obediéncia, entao fé ¢ obediéncia sio separadas uma da outra, ficando em aberto a seguinte pergunta eminen- temente pratica: quando deve comegar a obediéncia? Assim, a obedién- cia permanece separada da fé. Por causa da justificacao, a fé e a obedi- €ncia devem ficar apartadas uma da outra; esta separagio, porém, ja- mais deverd destruir a unidade de ambas, unidade que reside no fato de a fé sé existir na obediéncia ¢ jamais sem ela, ¢ de que a fé somente é fé no ato da obediéncia. Por causa da impropriedade da idéia da obediéncia como conse- 26 qiiéncia da fé, e para salientar a unidade indissoltivel de fé e obediéncia, deve-se acrescentar a frase “‘s6 o crente é obediente” esta outra frase: “$6 o obediente é que cré.” Se, na primeira, a fé é premissa da obedién- cia, na segunda, a obediéncia é premissa da fé. Exatamente da mesma forma que a obediéncia é considerada conseqiiéncia da fé, cumpre con- siderd-la também como premissa da fé. S6 0 obediente € que cré. E necessério prestar obediéncia a uma ordem concreta, para que possa haver fé. E preciso dar um primeiro passo obediente, para que a fé nao se transforme numa auto-ilusao pie- dosa ou na graga que chamamos barata. Tudo depende do primeiro pas- so, que se distingue qualitativamente de todos que se seguem. O primei- ro passo de obediéncia impde a Pedro abandonar as redes e saltar do barco, € ao jovem rico, abandonar sua fortuna. A fé somente é possivel Nesta nova existéncia que a obediéncia criou. Este primeiro passo deverd, antes de mais nada, ser considerado a obra externa que consiste na troca de uma forma de existéncia por outra. Esse passo pode ser dado por qualquer pessoa; o ser humano tem liber- dade para dé-lo. E um ato situado dentro do ambito da iustitia civilis [justiga civil], em que o ser humano é livre. Pedro nao pode converter- se, mas pode abandonar as redes. Essencialmente exige-se, nos evange- lhos, com o primeiro passo, um ato que ira afetar a vida inteira. A Igreja Romana exigia esse passo apenas como possibilidade extraordindria do monasticismo, enquanto que, para os outros crentes, bastava a disposi- giao de se submeterem incondicionalmente a Igrejae seus preceitos. Tam- bém nos escritos confessionais luteranos reconhece-se, de forma signi- ficativa, a importancia de um primeiro passo: uma vez eliminado funda- mentalmente o perigo de um equivoco sinergistico, pode- se e deve-se deixar espaco para aquele primeiro ato externo necessirio para a fé; no caso, 0 passo para a Igreja, onde é pregada a Palavra da salvagao. Este passo pode ser dado em plena liberdade. Vem 4 igreja! Isso tu podes fazer gragas & tua liberdade humana. Aos domingos podes sair de casae ir ao culto, Se nao o fizeres, ausentas-te arbitrariamente do local onde a fé é possivel. Assim, os escritos confessionais luteranos revelam ter co- nhecimento de uma situagdo em que a fé é possivel, e de outra em que a fé é impossivel. E certo que esta percepgao fica muito escondida, quase como se dela se tivesse vergonha, mas existe como percepgio da impor- tancia do primeiro passo como ato externo. 27 Assegurada essa percepgao, cumpre dizer, em segundo lugar, que © primeiro passo, como ato puramente externo, constitui e permanece uma obra morta da lei e que, em si, nunca conduz a Cristo. Como ato externo, a nova existéncia continua sendo exatamente igual 4 velha; na melhor das hipéteses, ter-se-4 conseguido uma nova lei para a vida, um novo estilo de vida, que, porém, nada tem a ver com a nova vida em Cristo. O alcoolista que renuncia ao alcool e o rico que distribui seu dinheiro libertam-se do Alcool ¢ do dinheiro, mas nao de si préprios. Permanecem, portanto, mergulhados em si mesmos — possivelmente mais do que antes. Sob a exigéncia das obras, permanecem na morte da vida antiga. Tal obra tem que ser realizada, mas por si propria nao liberta da morte, da desobediéncia ou do afastamento de Deus. Se, porventura, entendermos nosso primeiro passo como premissa da graga, da fé, esta- remos j4 condenados por nossas préprias obras e totalmente excluidos da graga. Nesta obra externa esta inclufdo tudo aquilo a que normalmen- te chamamos de mentalidade, boa intengdo, tudo aquilo que a Igreja Romana chama de facere quod in se est [fazer 0 que estd ao seu alcan- ce]. Se dermos 0 primeiro passo com a intengao de ingressar numa situ- acdio em que a fé se torna possivel, entio essa possibilidade de crer nao passa de uma obra, de uma nova possibilidade de vida dentro da existén- cia antiga; ela é entendida de modo completamente errénco e continua- mos na descrenga. Contudo, é necessario que acontega essa obra externa, temos que entrar nessa situagao em que a fé se torna possivel. Temos que dar esse passo. Que significa isso? Significa que somente daremos esse passo como convém, se 0 encararmos nio como obra nossa que tem que ser posta em pratica, mas unicamente como algo que é feito em obediéncia a palavra de Jesus Cristo, que no-lo ordena. Pedro sabe que, por decisaio propria, nao pode sair do barco. Ao primeiro passo, afundar-se-ia; por isso, pede: “Manda-me ir ter contigo, por sobre as aguas.” E Cristo res- ponde: “Vem!” Assim, Cristo deve ter antes chamado, e sé com base em sua palavra é que se pode dar o passo da fé. Este chamado é sua graga que chama da morte para a nova vida de obediéncia. Agora, porém, que Cristo j4 chamou, Pedro tem que sair do barco para ir ter com ele. As- sim, na pratica, 0 primeiro passo da obediéncia € j4 um ato de fé na palavra de Cristo. A fé, porém, seria totalmente incompreendida como fé se se quisesse concluir que 0 primeiro passo nao é mais necessério 28 por jd existir a fé. Em resposta a isso, é necess4rio arriscar-se imediata- mente a frase: primeiro, é preciso dar 0 passo da obediéncia, antes que se possa crer. O desobediente nao pode crer. Queixas-te de nao poderes crer? Ninguém deve admirar-se de nao poder crer enquanto se opuser ou esquivar, em algum ponto, numa deso- bediéncia consciente ao mandamento de Jesus. Nao queres sujeitar a esse mandamento uma paixdo pecaminosa, uma inimizade, uma espe- tanga, os planos de tua vida, tua razio? Nao te admires se nao receberes o Espirito Santo, se nao conseguires orar, se tua stplica por fé continuar vazia! Vai antes reconciliar-te com teu irmio, abandona 0 pecado de que és cativo, e poderds novamente crer! Se repudiares a palavra imperativa de Deus, nao poderds receber sua palavra graciosa. Como poderias en- contrar a comunhio daquele a quem te esquivas conscientemente, seja em que assunto for? O desobediente nao pode crer; somente o obediente € que cré. E assim que 0 chamado gracioso de Jesus Cristo ao discipulado se transforma em dura lei: Faze isto! Deixa aquilo! Sai do barco e vai ter com Jesus! A pessoa que invoca sua fé ou falta de fé como desculpa de sua desobediéncia efetiva ao chamado de Jesus, ele diz: sé primeiro obe- diente, pratica 0 ato externo, deixa 0 que te prende, abandona o que te separa da vontade de Deus! Nao digas: “Falta-me a fé para isso!” Nao a terds enquanto permaneceres na desobediéncia, enquanto nio te decidi- res a dar o primeiro passo. Nem digas: “Eu tenho fé e j4 nao preciso dar © primeiro passo.” Nao a tens enquanto nao deres esse passo e porque niio o queres dar; antes, te obstinas na descrenga por detras da aura de uma fé humilde. Nao é boa safda desculpar a falta de obediéncia com falta de fé, e a caréncia de fé, com falta de obediéncia. E essa a desobe- diéncia dos “‘crentes”: justamente quando se lhes exige a obediéncia, confessam sua descrenga, fazendo com essa confissio seu jogo funesto (Mc 9.24). Se crés, d4o primeiro passo; ele conduz a Cristo. Se nao crés, da-o igualmente, pois a ordem é essa! Nada se te pergunta acerca de tua fé ou de tua falta de fé; antes, o que se te ordena € 0 ato de obediéncia e que o ponhas em pratica imediatamente. Com isso, surge a situagao em que a fé se torna possfvel ¢ existe de fato. Assim, essa situagao nao existe por si, mas Cristo cria para ti uma situagdo em que a fé se torna possivel para ti. Deve-se ingressar nessa situagdo, para que a fé seja fé auténtica e nao auto-ilusdo. Justamente 29 por se tratar s6 da verdadeira fé em Jesus Cristo, justamente por sé a fé ser e continuar sendo 0 objetivo (de fé em fé —- Rm 1.17), é que esta situagao é indispensavel. Quem levantar af um protesto demasiado pre- cipitado e demasiado protestante, devera antes perguntar a si préprio se a graca que defende nao seria a graga barata, pois, na realidade, as duas frases citadas, quando permanecem lado a lado, nao se tornam tropeco para a fé verdadeira, enquanto que, isoladas, provocam inevitavelmente grandes dificuldades. S6 aquele que cré é obediente — diz-se ao obedien- te que esta no crente. S60 obediente é que cré — diz-se ao crente que esta no obediente. Tomando-se isoladamente a primeira frase, entregamos 0 crente a graga barata, o que vale dizer, 8 condenagao. Tomando-se isola- damente a segunda frase, entregamos 0 crente as obras, o que vale dizer, igualmente 4 condenagao. Partindo deste ponto, demos uma olhadela a pratica da cura de almas. Para quem a exerce, é de grande importancia falar sempre basea- do no conhecimento das duas frases. Cumpre-lhe saber que a queixa sobre a falta de fé se origina, repetidas vezes, na desobediéncia consci- ente, ou ja inconsciente, e que a esta desobediéncia corresponde facil- mente o consolo da graga barata. A desobediéncia, porém, continua in- tacta, e a mensagem da graga transforma-se em consolo que o desobedi- ente anuncia a si proprio e no perdao dos pecados que ele concede a si mesmo. Contudo, a proclamagao torna-se vazia para ele; j4 nao a ouve. E, mesmo que por mil vezes ministre a si mesmo 0 perdao de seus peca- dos, nao conseguira crer no perdao verdadeiro, justamente porque, na realidade, ele nunca lhe foi dado. A descrenga alimenta-se da graga ba- rata porque deseja permanecer na desobediéncia. Trata-se de uma situa- cao freqiiente na pratica atual da cura de almas. O resultado é que, pela administracio do perdao a si mesmo, o ser humano se endurece na deso- bediéncia, pretextando nao poder conhecer o bem e 0 mandamento de Deus por serem tao amb{guos e admitirem tantas interpretagdes. A cons- ciéncia da desobediéncia, a princfpio ainda clara, embota cada vez mais, endurecendo finalmente. A essa altura 0 desobediente esté tao atrapa- Ihado e emaranhado que ja nao pode ouvir a Palavra; de fato, é-lhe im- possivel crer. Trava-se, entao, mais ou menos a seguinte didlogo entre o desobediente e 0 pastor: “Ja nao posso crer”. —“Escuta a Palavra que te € anunciada “Escuto-a, mas ela nada me diz, continua vazia, nao me atinge.” — “Nao queres ouvir!” — “‘Quero, sim.” — Nesse ponto, em geral, 30 interrompe-se 0 didlogo, porque o pastor ja naio sabe o que replicar. Ele conhece apenas esta uma frase: “Somente o crente é que é obediente”, e esta frase j4 ndo basta para ajudar ao desobediente endurecido que nio tem nem pode ter essa fé. O cura de almas, nestes casos, julga estar diante do enigma dos enigmas — que a uns Deus da a fé, e a outros nega. Com essa frase, capitula-se simplesmente. O ser humano endurecido permanece isolado econtinua a lamentar, resignado, sua caréncia. Todavia, é agora que che- gou 0 ponto critico do didlogo, no qual deve haver uma inversio total. A partir dai j4 nao se argumenta mais; as perguntas e as caréncias do deso- bediente passam para um segundo plano e sao tomadas menos a sério. O que, porém, sera tomado a sério é 0 proprio desobediente que se esconde por detras de todas as perguntas e caréncias. Surge, agora, a oportunida- de de irromper na fortaleza que o interlocutor construiu ao seu redor, com aquela outra frase: “Somente 0 obediente é que cré”. O didlogo interrompe-se. O pastor continuaré: “Es desobediente, recusas a obedi- €ncia a Cristo, queres reservar uma parcela de dominio para ti préprio. Nao podes ouvir a Cristo por seres desobediente, nao podes crer na gra- ¢a por nao quereres obedecer; num recesso escondido de teu coragao, obstinas-te contra o chamado de Cristo. Tua caréncia é teu pecado.” Com isso, 0 proprio Cristo volta a cena, atacando frontalmente o dem6nio que se alojava no outro e que, até esse momento, se escondia por detrés da graca barata. Agora tudo depende de o pastor ter engatilhadas ambas as frases: somente o obediente é que cré, e s6 0 crente é que obedece. Ele tem que chamar, em nome de Jesus, 4 obediéncia, 4 agio, ao primeiro passo. Abandona o que te prende e segue-o! Neste momento, tudo de- pende desse passo. A posigdo assumida pelo desobediente deve ser rom- pida, pois nela Cristo j4 nao pode ser ouvido. O fugitivo tem que sair do esconderijo que construiu para si proprio. Somente 14 fora é que pode, de novo, ver, ouvir e crer livremente. E verdade que, perante Cristo, nada se ganhou por a obra estar feita, pois, em si, também esta obra permanece obra morta. Mesmo assim, Pedro teve que pisar a superficie do mar agitado, para que pudesse crer. A situagdo é, em suma, esta: através da afirmagao de que somente © crente é que é obediente, 0 ser humano envenenou-se com a graga barata. Permanece na desobediéncia e consola-se num perdio que a si mesmo anuncia, fechando-se, assim, a Palavra de Deus. O assalto a for- 31 taleza malogra enquanto apenas lhe repetirem a frase por detrds da qual se ocultava. E necessdrio produzir uma mudanga; 0 outro tem que ser chamado a obediéncia: somente 0 obediente é que cré! Sera, assim, alguém desencaminhado para 0 caminho das obras préprias? Nao! Antes, se Ihe aponta o fato de sua fé niio ser fé, e ele é liberto do enredamento em si mesmo. Ele deve sair para o ar livre da decisao. Deste modo, o chamado de Jesus a fé e ao discipulado torna-se novamente audivel para ele. Com isso estamos no Amago da histéria do jovem rico. E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre, que farei eu de bom, para alcangar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom, sé existe um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele Ihe perguntou: Quais? Respondeu Jesus: Nao matards, nao adulterards, nao dirds falso teste- munho; honra a teu pai ¢ a tua mie, ¢ amaras 0 teu préximo como a ti mesmo. Replicou-lhe 0 jovem: Tudo isso tenho observado; que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, da aos pobres, e terds um tesouro no céu; depois vem, e segue-me. Ten- do, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades. (Mt 19.16-22). A pergunta do jovem acerca da vida eterna é a pergunta acerca da salvacao, a Gnica pergunta séria que se pode fazer. Mas nao é€ facil fazé- la de modo correto. Isso mostra o fato de que aquele jovem estava, apa- rentemente, fazendo aquela pergunta decisiva, mas na realidade estava fazendo uma pergunta bem diferente, esquivando-se do verdadeiro pro- blema. Dirige-se ao “Mestre”. Pretende ouvir a opiniao, o conselho, a sentenga do “Mestre”, do grande doutrinador acerca desta pergunta. Da, assim, mostras, primeiro, de que a considera da maior importancia, pelo que Jesus haveria de responder algo de significativo. Em segundo lugar, porém, espera do Mestre, do grande doutrinador, um pronunciamento importante, mas nio uma ordem divina que o venha a comprometer. A pergunta acerca da vida eterna é, para 0 jovem, uma questio a respeito da qual deseja falar e discutir com um “Mestre”. Mas logo de inicio, a frase de Jesus se lhe atravessa em seus planos: “Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom, s6 existe um.” Naquela pergunta, ele revelou seu coragao. Viera para conversar com o grande rabino acerca da vida eterna, mas fica sabendo que, na 32 verdade, com tal pergunta, se encontra, nao perante um “Mestre”, mas perante o préprio Deus. Assim, nao receberd do Filho de Deus qualquer Tesposta que nao aponte claramente para 0 mandamento de seu Pai. Nao recebera qualquer resposta de um grande mestre que acrescente uma opi- niao pessoal & vontade ja revelada de Deus. Jesus aponta para 0 tinico bom Deus, mostrando-se, nisso, seu Filho perfeito e obediente. Se, porém, o interrogador se vé colocado perante o préprio Deus, esta sendo surpreen- dido como quem foge ao seu mandamento revelado, alias mandamento conhecido por ele. O jovem conhece os mandamentos, mas nao consegue satisfazer-se com eles; deseja ir além. Sua pergunta foi desmascarada como sendo piedade imaginada e por ele mesmo escolhida. Por que 0 jovem nao se da por satisfeito com 0 mandamento revelado? Por que procede como se nao soubesse, h4 muito, a resposta 4 sua pergunta? Por que quer acusar a Deus de 0 ter deixado na incerteza com respeito a esta questo decisiva da vida? Assim, 0 jovem ja esta preso e perante o tribunal, sendo chamado da pergunta sem compromisso a respeito da salvag4o para a obediéncia simples aos mandamentos revelados. Segue uma segunda tentativa de fuga. O jovem responde com nova pergunta: “Quais?” Nesta, oculta-se o préprio Satands. Era a tinica eva- siva possivel para quem se via preso desta maneira. Naturalmente, 0 jovem conhece os mandamentos; mas quem seria capaz de dizer qual dentre os tantos se aplicaria justamente a ele, neste dado momento? A revelagio dos mandamentos tem sentido miltiplo, nao é clara, diz o jovem rico. Ele nem vé os mandamentos; vé apenas a si mesmo, seus problemas, seus conflitos. Fugindo ao mandamento claro de Deus, reco- Ihe-se para o terreno interessante, incontestavelmente humano do “con- flito ético”. O mal nao reside no fato de ele conhecer 0 conflito ético, mas no fato de se aproveitar dele como argumento contra os mandamen- tos de Deus. Alias, os mandamentos foram dados para acabar com o conflito ético. O conflito ético como arquifenédmeno ético do ser huma- no apés a queda representa a prdépria oposi¢o do ser humano contra Deus. Foi a serpente que, no Parajso, o implantou no coragiio do primei- ro ser humano. “E assim que Deus disse?” O ser humano é arrastado para longe do mandamento claro e da obediéncia simples, infantil, pela diivida ética que sugere que 0 mandamento de Deus ainda precisa ser exposto e interpretado. “E assim que Deus disse?” O préprio ser huma- no teria de decidir sobre 0 que é bom, apoiado em seu conhecimento do 33 bem e do mal, nos ditames de sua consciéncia. O mandamento teria um sentido miiltiplo, ¢ Deus quereria que o ser humano o interpretasse e expusesse € decidisse em liberdade. Assim, jd se recusou obediéncia ao mandamento. Em lugar da agio simples, surgiu 0 pensamento diiplice. O ser humano da livre conscién- cia gloria-se contra 0 filho da obediéncia. O apelo ao conflito ético & recusa da obediéncia; nele, o ser humano retorna da realidade de Deus para a possibilidade humana, da fé para a divida. Assim, acontece 0 inesperado: a pergunta com a qual o jovem procura ocultar sua desobe- diéncia revela-o, afinal, tal qual é - ser humano sob 0 pecado. Esta reve- lagio é provocada pela resposta de Jesus, que enumera os mandamentos revelados de Deus. Ao cité-los, Jesus confirma que tais mandamentos foram dados por Deus. Uma vez mais, 0 jovem esta no confronto. Ele esperava ainda poder desviar o andamento das coisas para uma conversa sem compromisso sobre quest6es da eternidade. Esperava que Jesus lhe oferecesse uma solucao do conflito ético. Em vez disso, 0 que se aborda nao é a pergunta deste ser humano, mas 0 proprio ser humano. A tnica resposta ao problema do conflito ético é o mandamento de Deus e, por- tanto, o imperativo de p6r termo as discussdes e obedecer, de vez. So- mente Satands oferece uma solugio do conflito ético: “Continua discu- tindo e estards dispensado da obediéncia.” Jesus nao visa o problema do jovem, mas 0 préprio jovem. Ele nem toma a sério 0 conflito ético que tanto preocupa 0 rapaz. Para Jesus importa uma s6 coisa: que este jovem afinal ouga o mandamento e obedega. Justamente onde o conflito ético pretende ser tomado tio a sério, justamente onde ele atormenta e escra- viza o ser humano, impedindo-o de chegar ao ato libertador da obedién- cia — justamente ai € que se revela toda a sua impiedade, ai ele deve ser desmascarado, em toda a sua impia falta de seriedade, como desobedi- €éncia definitiva. Séria é somente a obediéncia que pée termo ao conflito 0 destréi, que nos liberta para sermos filhos de Deus. E esse 0 diagnés- tico divino para esse jovem. Por duas vezes nosso jovem foi confrontado com a verdade da palavra de Deus. Jd nao mais pode fugir ao mandamento do Senhor. Sim, o mandamento é€ claro e é preciso lhe obedecer! Porém — isso nao basta! “Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?” Ao dar esta resposta, o jovem deve té-lo feito com a mesma sinceridade com que falara de suas preocupagécs. Justamente af reside sua teimosia contra 34 Jesus. Ele conhece os mandamentos, tem-nos observado; sup6e, porém, que isso nao constitua ainda toda a vontade de Deus, que tenha de haver ainda algo a acrescentar — algo de extraordindrio, de especial —, ¢ ele esta disposto a cumpri-lo. O mandamento revelado de Deus é incomple- to, diz o jovem rico em sua derradeira tentativa de fuga do verdadeiro mandamento, na Ultima tentativa de afirmar sua auto-suficiéncia, 0 di- reito de decidir, ele préprio, acerca do bem e do mal. Agora j4 confirma € aceita 0 mandamento; simultaneamente, porém, arremete contra ele frontalmente. “Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?” O evan- gelista Marcos acrescenta neste ponto: “Mas Jesus, fitando-o, o amou” (Mc 10.21). Jesus enxerga a maneira desesperada com que aquele jo- vem se fechou a Palavra viva de Deus, observa como ele, com toda a seriedade, com todo o seu ser, se revolta contra 0 mandamento vivo, contra a obediéncia simples. Queria ajudar aquele jovem porque o ama- va; por isso, dé-lhe uma Ultima resposta: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, da aos pobres, e terés um tesouro no céu; depois vem, e segue-me.” Nestas palavras ao jovem, deve-se atentar em trés coisas: Primeiro, agora é 0 préprio Jesus quem ordena; Jesus que, pouco antes, apontara ao jovem nio o “Mestre”, mas 0 Gnico que é bom, Deus, passa ele proprio a usar a autoridade de pronunciar a ultima palavra e mandamento. O rapaz tem que reconhecer que esta diante do préprio Filho de Deus. Fora nessa qualidade, oculta ao jovem, que Jesus lhe apontara o Pai e nao o “Mestre”, o que revela a perfeita uniao de Jesus e do Pai. E essa mesma unifio que dé autoridade a Jesus de pronunciar agora 0 mandamento do Pai. Nosso jovem deve ter percebido isso clara- mente ao ouvir 0 chamado de Jesus ao discipulado. A stimula de todos Os mandamentos € que 0 jovem devera viver na comunhao com Cristo; Cristo € 0 objetivo dos mandamentos, 0 mesmo Cristo que af esta diante dele a chamé-lo. Nao ha mais possibilidade de se refugiar na inverdade do conflito ético. O mandamento é claro: “Segue-me!” O segundo ponto a considerar € 0 seguinte: também esse chamado ao discipulado carece de esclarecimentos para ser insofismavelmente claro. E preciso tirar ao jovem toda possibilidade de ver, uma vez mais, no discipulado uma aventura ética, uma possibilidade, um estilo de vida extraordinariamente interessante, mas revogivel, em tiltimo caso. O dis- cipulado estaria ainda mal entendido se 0 jovem visse nele apenas um remate de sua atuagao ¢ busca anterior, um acréscimo ao passado, um 35 complemento, um acabamento, um aperfeigoamento. Para que nao haja mais diivida, é preciso criar uma situagaio que nao mais permita que se volte atrds, uma situagdo irrevogdvel, e que, ao mesmo tempo, mostre que, de forma alguma, constitui um mero acréscimo ao passado. Jesus cria esta situac&o necesséria com o chamado 4 pobreza voluntaria. Ela representa 0 aspecto existencial, 0 aspecto pastoral do assunto, visando ajudar o jovem a, finalmente, compreender e obedecer de fato. Essa si- tuagao decorre do amor que Jesus tem aquele jovem. Constitui apenas 0 elo intermediario entre 0 caminho até ai percorrido pelo joveme o disci- pulado. Mas ela nao é, note-se bem, nao é idéntica ao discipulado nem sequer constitui 0 primeiro passo no discipulado; esse passo 6, isto sim, aobediéncia na qual o discipulado se realiza. Primeiro, 0 jovem tera que vender tudo que tem e da-lo aos pobres e, depois, voltara para ser disci- pulo. O objetivo é 0 discipulado, e, no caso deste jovem, o caminho para 0 discipulado é 0 da pobreza voluntaria. O terceiro ponto: 4 pergunta do jovem quanto ao que ainda lhe falta, Jesus responde: “Se queres ser perfeito...” Isso poderia sugerir que, de fato, se trate de um simples acréscimo ao passado. E é, de fato, um acréscimo, mas um acréscimo que jd encerra a anulagao de todo o passa- do. Até ali, o jovem nao fora perfeito, pois compreendera e cumprira mal os mandamentos. Somente agora pode compreendé-los bem, agora no discipulado, mas téo-somente porque Jesus 0 chama. Ao responder a pergunta do jovem, Jesus a tira das maos dele. A pergunta do jovem referia-se ao caminho que deveria percorrer para alcangar a vida eterna; Jesus, porém, lhe responde: Eu te chamo, e isso é tudo. O jovem procurava uma resposta 4 sua pergunta. A resposta é: Jesus Cristo. O jovem queria ouvir a Palavra do bom “Mestre” e agora reconhece que essa palavra é 0 proprio homem a quem perguntara. O jovem esta na presenga de Jesus, 0 Filho de Deus; esse é 0 encontro pleno. Nesta circunstancia hd somente “sim” ou “nao” — obediéncia ou desobediéncia. A resposta do jovem rico é “nao”. Afastou-se triste, de- sapontado, viu enganada sua esperanga, e, mesmo assim, nado consegue desprender-se do passado. Tinha muitos bens. Também neste caso, 0 chamado ao discipulado nao revela outro contetido que nao seja 0 pré- prio Jesus Cristo, a ligagao, a comunhao com ele. Porém, a existéncia do discfpulo nao consiste na veneracdo entusidstica de um bom Mestre, mas sim, na obediéncia ao Filho de Deus. 36 Esta hist6ria do jovem rico tem sua paralela exata no preambulo & parabola do Bom Samaritano. E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com o intuito de pdr Jesus 4 prova, e disse-Ihe: Mestre, que farei para herdar a vida eter- na? Entao Jesus lhe perguntou: Que est4 escrito na lei? Como interpre- tas? A isto ele respondeu: Amards ao Senhor teu Deus de todo o teu coragao, de toda a tua alma, de todas as tuas forgas e de todo o teu enten- dimento; ¢ amards a teu pr6ximo como a ti mesmo. Entao Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isso, ¢ viverds. Ele, porém, querendo jus- tificar-se, perguntou a Jesus: Quem é 0 meu préximo? (Le 10.25-29). A pergunta do doutor da lei é idéntica 4 do jovem rico; s6 que, nesse caso, confirma-se, logo de inicio, que se trata de uma armadilha. O interlocutor sabia j4 antecipadamente a solugao, que deveriaculminar na aporia do conflito ético. E a resposta de Jesus é igualmente idéntica a que dera ao jovem rico. Seu interlocutor conhece, no fundo, a resposta, mas, perguntando ociosamente, quer esquivar-se 4 obediéncia ao man- damento de Deus. Para ele, resta apenas esta informagao: Faze o que sabes, e viverds. Em sua primeira tentativa, esta desarvorado o doutor. Uma vez mais, porém, como no caso do jovem rico, vem a fuga para o conflito €tico: “Quem é 0 meu préximo?” Desde entao a pergunta do manhoso doutor foi repetida, vezes sem conta, de boa fé ou em ignorancia, pas- sando-se por pergunta séria e justificada de um espirito inquiridor. No entanto, houve esquecimento do contexto. Toda a histéria do Bom Sa- Maritano constituiu uma Gnica recusa e destruicdo desta pergunta como sendo satanica; trata-se de pergunta sem fim, sem resposta. Ela brota “das mentes pervertidas daqueles que foram privados da verdade, dos que tém a mania por questées e contendas de palavras”. Desta pergunta, porém, “nascem inveja, provocagées, difamagGes, suspeitas malignas, altercagdes sem fim” (1 Tm 6.4ss.). E a pergunta dos arrogantes “que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade”, “tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto 0 poder” (2 Tm 3.5ss.). Sao os incapazes de crer, perguntam porque “tém cauterizada a propria consciéncia” (1 Tm 4.2), porque nao querem obedecer a Palavra de Deus. “Quem é 0 meu préximo?” Haveria uma resposta a esta pergunta? Seria oirmao na came, o compatriota, o irmao de fé, o inimigo? Nao se pode- ria afirmar e negar tanto uma como outra coisa, com igual raziio? Nao 37 terminard esta pergunta em dilema e desobediéncia? Sim, esta pergunta €arevolta contra o proprio mandamento de Deus. Quero obedecer, Deus, porém, nao me diz como proceder. O mandamento de Deus é ambiguo, deixa-me em eterno conflito. A pergunta “Que deverei fazer?” foi o primeiro logro. A resposta é: Obedece ao mandamento que conheces. Nio fiques perguntando; age! A pergunta “Quem € 0 meu préximo?” é a pergunta do desespero ou da auto-seguranga com que se justifica a desobediéncia. A resposta a esta pergunta é: Tu mesmo és 0 préximo. Vai e sé obediente no amor atuante. Ser pr6ximo nao é mera qualidade do outro, mas é 0 direito que 0 outro tem sobre mim — sé isto. A todo momento, em cada situacao, é a mim que se exige ago e obediéncia. Literalmente, nao sobra tempo para in- quirir quanto a qualificagao de meu semelhante. Tenho que agir, tenho que obedecer, tenho que ser o préximo para 0 outro. Se, porém, pergun- tas um tanto assustado se nao deverias, antecipadamente, saber e plane- jar como deves agir, a isso somente se pode retorquir que nao é possivel planejar e saber senao na prépria ago, sabendo-te sempre ja exigido. Somente obedecendo se aprende o que é obediéncia, e nao fazendo per- guntas. Somente na obediéncia se reconhece a verdade. Do conflito da consciéncia e do pecado atinge-nos 0 chamado de Jesus a obediéncia sim- ples. O jovem rico foi chamado por Jesus a graga do discipulado, enquan- to que o doutor da lei que o queria p6r a prova foi mandado de volta a lei. 38 3 - A obediéncia simples Quando Jesus exigiu pobreza voluntaria ao jovem rico, este perce- beu que estava diante da alternativa: obediéncia ou desobediéncia. Quan- do Levi foi chamado da coletoria, ¢ Pedro de suas redes, nao havia diivi- da de que o apelo de Jesus era sério. Eles deveriam abandonar tudo para © seguir. Quando Pedro foi chamado a pisar a superficie agitada das Aguas do lago, teve que se levantar e ousar aquele passo. Em tudo isso, exigia-se uma Unica coisa: confiar na Palavra de Jesus Cristo e conside- ra-la terreno mais s6lido que todas as certezas do mundo. As forgas que pretendiam interpor-se entre a palavra de Jesus e a obediéncia eram tio fortes entéo como o sao hoje. Opunham-se a razao, a consciéncia, a res- ponsabilidade, a piedade, e, até mesmo, a lei € 0 principio escrituristico intervinham para impedir este extremismo, esta onda entusidstica sem lei. Mas 0 chamado de Jesus venceu todas as barreiras e imp6s obediéncia. Se, hoje, Jesus Cristo falasse desta forma a um de nés através das Sagradas Escrituras, provavelmente argumentarfamos da seguinte for- ma: é certo que Jesus nos ordena algo bem definido; quando, porém, Jesus ordena, devo considerar que ele jamais exige obediéncia legalista, mas procura em mim uma Unica coisa: que eu creia. Minha fé, porém, nao depende de pobreza ou riqueza, ou de algo semelhante; antes, na fé posso ser tanto rico como pobre. Que eu nao possua bens nao é essenci- al. O importante é que os possua como se nio os possuisse e que esteja intimamente livre deles, e nado prenda meu coragao a eles. Por exemplo: Jesus diz: “Vende o que tens!’””, mas o que ele quer dizer, na realidade, é o seguinte: Na verdade, nio importa que cumpras esta ordem ao pé da letra; podes, tranqitilamente, conservar teus bens, apenas deves té-los como se nio os tivesses. Nao prendas 0 corag4o ao que possuis. A obe- diéncia 4 palavra de Jesus consistiria, portanto, exatamente na rejeigio da obediéncia simples, por esta ser legalista, para entéo sermos obedien- tes “na fé”. Neste ponto, distinguimo-nos do jovem rico. Este, em sua tristeza, nao pode tranqililizar-se dizendo para si mesmo: apesar da or- dem de Jesus, continuarei com minhas riquezas; apenas passarei a ser intimamente livre delas, consolar-me-ei, em toda a minha insuficiéncia, 39 no perdao dos pecados e, pela fé, terei comunhio com Jesus. Ao contra- rio disso, 0 rapaz retirou-se triste e, junto com a obediéncia, perdeu tam- bém a fé. O rapaz foi absolutamente sincero nesta atitude. Separou-se de Jesus, e sem dtivida esta sinceridade encerra maior promessa do que uma comunhio aparente com Jesus, baseada na desobediéncia. E evi- dente que, na opiniao de Jesus, o jovem nunca conseguiria libertar-se intimamente de suas riquezas. Decerto aquele jovem sério e esforgado jéo tentara mil vezes. Que seus esforgos malograram, mostra o fato de, no momento decisivo, nao ter conseguido obedecer a palavra de Jesus. Neste ponto, pois, 0 jovem foi sincero. Nés, porém, em nossa argumentagao, distinguimo-nos fundamen- talmente do ouvinte biblico da palavra de Jesus. Se Jesus disser a ele: “Deixa tudo e segue-me. Abandona tua profissio e a familia, teu povo e acasa de teu pai!”, o ouvinte biblico sabe que ha somente a resposta da obediéncia simples, porque tal obediéncia tem a promessa da comunhio com Jesus. Nos, porém, dirfamos: o chamado de Jesus tem que ser leva- do incondicionalmente a sério, sem dtivida. Mas a verdadeira obedién- cia consiste em ficar em minha profisso0, em minha familia, e servir a Jesus af mesmo, porém, em verdadeira liberdade interior. Por exemplo, Jesus diria: “Para fora!” Nés, porém, entendemos este chamado como um convite a ficarmos 14 dentro, sé que como se, interiormente, tivésse- mos safdo. Ou entao, Jesus diria: “Nao se preocupem!” N6s, porém, entenderiamos assim: mas é claro que temos de nos preocupar ¢ traba- Ihar para o sustento da familia e o préprio sustento, Qualquer outro pro- cedimento seria irresponsavel. O que se requer é que, no intimo, esteja- mos livres de tais preocupagGes. Ou ainda, Jesus diria: “A qualquer que te ferir a face direita, volta-Ihe também a outra.” Nés, porém, entenderfamos assim: é na luta e na réplica que se engrandece o ser humano no amor pelo irmao. Finalmente, Jesus diria: “Busquem, em primeiro lugar, 0 reino e sua justiga”. Ns, porém, entenderfamos assim: é claro que, bem antes disso, temos que nos preocupar com mil outras coisas; de outro modo, como poderiamos subsistir? O que se pretenderia exprimir é que o ser humano deve ter a disposigao intima de empenhar tudo pelo reino de Deus. Em tudo isso se constata uma s6 coisa: a aboligao consciente da obediéncia simples, literal. Como é€ possivel tal perversio? Que sucedeu para que a palavra de Jesus tenha que servir para semelhante brincadcira, seja entregue 4 zom- 40 baria do mundo? Noutros setores, ao se dar ordens, as circunstancias sio claras. O pai diz ao filho: “Vai para a cama!”, ¢ o filho bem sabe o que papai quer dizer. Uma criancga com treinamento pseudoteolégico, po- rém, argumentaria assim: papai disse: “Vai para a cama”. Esta querendo dizer que estou cansado; porém, ele nao gosta que eu esteja cansado, quer que eu esteja livre do cansago. Bem, posso livrar-me do cansago brincando. De fato, meu pai disse: “Vai para a cama!” Mas 0 que ele quer dizer na verdade é: “Vai brincar!” Se a crianga procedesse assim com seu pai, ou 0 cidaddo com as autoridades, ouviriam uma linguagem muito clara, a linguagem do castigo. Somente em relacdo as ordens de Jesus as coisas se passam de forma diferente. Ai, a obediéncia simples é pervertida e transformada em desobediéncia. Como é isso possivel? Isso é possivel porque esta argumentagio errada se baseia, de fato, em algo absolutamente certo. A ordem de Jesus ao jovem rico ou o cha- mado a uma situacao em que a fé seja possivel tém, de fato, um tinico objetivo — o de chamar o ser humano 4a fé em Cristo, 4 comunhio com ele. Em tltima andlise, nada depende desta ou daquela agao do ser hu- mano; antes, tudo depende da fé em Jesus como Filho de Deus e Medi- ador. De fato, no fim das contas, nada depende de pobreza ou riqueza, casamento ou celibato, de ter ou nao ter uma profissao; antes, tudo de- pende da fé. Até aqui, nada de errado; é possivel crer em Cristo sendo possuidor de muitos bens, crer de tal forma que possuamos essas rique- Zas como se nao as possuissemos. Esta possibilidade, porém, é uma pos- sibilidade extrema da existéncia crista como tal, uma possibilidade face 4 solene expectativa da volta iminente de Cristo, e nao se constitui na possibilidade mais préxima e mais simples. A interpretagao paradoxal dos mandamentos tem sua legitimida- de crist@, mas jamais deverd conduzir 4 abolicdo da interpretagaio sim- ples desses mandamentos. Tal direito, tal possibilidade os tem somente a pessoa que, em determinado momento de sua vida, j4 se confrontou seriamente com a interpretagao simples e que, assim, esté na comunhao de Jesus, no discipulado, na expectativa do fim. Esta é a possibilidade infinitamente mais dificil, e mais: a possibilidade impossivel, humana- mente falando, de interpretar paradoxalmente 0 chamado de Jesus, e, como tal, ela corre sempre 0 perigo extremo de se transformar em seu anténimo, numa safda confortavel, na fuga 4 obediéncia concreta. Quem ignora que lhe seria muito mais facil dar uma interpretagdo singela ao 41 mandamento de Jesus e lhe obedecer ao pé da letra — por exemplo, a ordem de Jesus, vender, de fato, os bens em vez de conserva-los —, quem nao sabe disso nao tem direito a interpretagdo paradoxal de suas pala- vras. Portanto, a compreensao paradoxal do mandamento de Jesus ne- cessariamente inclui sempre a interpretagio literal. O chamado concreto de Jesus e a obediéncia simples tém sentido irrevogdvel. Jesus chama a uma situagao concreta em que a fé se torna possivel; chama de forma t&o concreta, e também quer ser compreendi- do concretamente, por saber que s6 na obediéncia concreta o ser huma- no fica livre para a fé. Onde é eliminada, de princfpio, a obediéncia simples, af, uma vez mais, a graga preciosa do chamado de Jesus se transforma em graga barata da autojustificagao. Af se erige, também, uma falsa lei, que endu- rece os ouvidos ao chamado concreto de Cristo. Esta falsa lei é a lei do mundo, 4 qual se opée e corresponde a lei da graga. E o mundo nao é, neste caso, o mundo vencido por Cristo e que, na comunhio com ele, tem que ser vencido diariamente; antes, tornou-se lei rigida, inquebran- tavel, um principio. A graga, por sua vez, deixa de ser o dom do Deus vivo, pelo qual somos arrancados ao mundo e colocados na obediéncia de Cristo; antes, € uma lei, divina genérica, um principio divino, o qual interessa apenas aplicar a casos especiais. A luta de principios contra o “legalismo” da obediéncia simples erige ela mesma mais perigosa lei, a lei do mundo e a lei da graga. A luta de principio contra “o legalismo” é, ela prépria, a mais legalista de todas. O legalismo somente é vencido pela verdadeira obediéncia ao chamado gracioso de Jesus ao discipula- do, no qual a lei € cumprida pelo prdprio Cristo e por ele revogada. Onde a obediéncia simples é eliminada de princfpio, af se introduz um prinefpio escrituristico nio-evangélico. A condigao prévia para a compreensiao das Escrituras é entéo a posse de uma chave que abra 0 acesso a elas. E ai a chave nao € 0 Cristo vivo em julgamento e graga, € seu uso jd nao depende apenas da vontade do Espirito Santo vivo; antes, achave que da acesso as Escrituras é uma doutrina geral da graga, e nds proprios dispomos dela. O problema do discipulado revela-se aqui tam- bém como problema hermenéutico. Para uma hermenéutica evangélica, tem de ficar bem claro que nao € possfvel nos identificarmos diretamen- te com os discipulos que foram chamados pessoalmente por Jesus; estes personagens chamados nas Escrituras integram a Palavra de Deus e fa- 42 zem, eles préprios, parte da pregagio. Na pregaco, nao escutamos ape- nas a resposta de Jesus 4 pergunta de um discfpulo — pergunta que bem poderia ser a nossa —, mas pergunta € resposta séo ambas, como palavra da Escritura, objeto da pregagao. A obediéncia simples estaria mal com- preendida em termos hermenéuticos se pretendéssemos agir e ser disci- pulos em identificag&o direta com as pessoas que foram chamadas pes- soalmente por Jesus. Todavia, o Cristo que nos é anunciado nas Escritu- ras é, em toda a sua Palavra, aquele que da a fé somente ao obediente e que somente ao obediente da a fé. Nao podemos nem devemos ir além da palavra das Escrituras, em busca dos acontecimentos tais quais ocor- reram; antes, as Escrituras como um todo nos chamam ao discipulado, pois nao queremos violentar legalisticamente as Escrituras por meio de um principio, nem que seja a doutrina da graga. Permanece, pois, de pé que a interpretagao paradoxal do manda- mento de Jesus encerra a interpretagao simples, justamente por nao pre- tendermos impor uma lei, mas proclamar a Cristo. Quase desnecessario seria dizer uma palavra contra a suspeita de que, por esta obediéncia simples, desejdssemos referir-nos a qualquer mérito do ser humano, a um facere quod in se est, auma condigio prévia da fé que fosse necessé- rio satisfazer. A obediéncia ao chamado de Jesus nunca é um ato que o ser humano possa realizar por sua propria iniciativa. Assim, desfazer-se dos bens nio é ainda a obediéncia; é possivel, inclusive, que semelhante ato seja exatamente o contrario da obediéncia — a escolha livre de determina- do estilo de vida, de um ideal cristao, de um ideal franciscano de pobreza. Ao dar seus bens, 0 ser humano poderia nao estar fazendo nada mais do que afirmando a si mesmo e a um ideal, ¢ nio o mandamento de Jesus, e, em vez de libertar-se, ficar ainda mais escravizado. O passo para dentro da situagao jamais € oferta do ser humano a Jesus, mas sempre a oferta graci- osa de Jesus ao ser humano. Ele sé é legitimo onde é dado dessa maneira, mas af nao é mais uma possibilidade de que a pessoa pudesse dispor. Entdo disse Jesus a seus discipulos: Em verdade lhes digo que um rico dificilmente entrar no reino dos céus. E ainda lhes digo que é mais facil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no teino de Deus. Ouvindo isto, os discipulos ficaram grandemente mara- vilhados, e disseram: Sendo asssim, quem pode ser salvo? Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto € impossfvel ao ser humano, mas para Deus tudo é possivel. (Mt 19.23-26). 43 Do espanto dos discfpulos, ao ouvirem a palavra de Jesus, e da pergunta acerca de quem entio poderia ser salvo, depreende-se que com- preendiam 0 caso do jovem rico nao como caso isolado, mas como caso geral. Nao perguntaram: “Qual rico?”, mas em termos bem gerais: “Quem pode ser salvo?”; isso porque todos, inclusive os discfpulos, pertencem a esses ricos para os quais é tao diffcil entrar no reino dos céus. A res- posta de Jesus confirma que os discipulos haviam interpretado correta- mente suas palavras. Ser salvo através do discipulado nao é uma possi- bilidade ao alcance do ser humano, mas para Deus tudo € possfvel. 44 4-O discipulado e a cruz Ent&o comegou ele a ensinar-lhes que era necessdrio que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciaos. pelos prin- cipais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de trés dias ressuscitasse. E isto ele expunha claramente. Mas Pedro, chamando-o parte, comegou a reprové-lo. Jesus, porém, voltou-se e, fitando os seus discfpulos, repreendeu a Pedro e disse: Arreda! Satands, porque nao co- gitas das coisas de Deus, ¢, sim das dos seres humanos. Entao, convo- cando a multidadoe juntamente os seus discipulos, disse-lhes: Se alguém quer vir apés mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdé-ia-4; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salva-la-4. Que aproveita ao ser hu- mano ganhar 0 mundo inteiro e perder a sua alma? Porque qualquer que, nesta geracdo adiiltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do homem se envergonharé dele, quando vier na gléria de seu Pai com os santos anjos. (Mc 8.31-38). O chamado ao discipulado esta, aqui, no contexto do antincio da Paixao de Jesus. Jesus esta para sofrer e ser rejeitado. E esse o imperati- vo da promessa de Deus, para que se cumpram as Escrituras. Paixao e rejeigdo no sio a mesma coisa. Jesus podia ser o Cristo festejado ainda na Paixao. Em sua Paixao poderiam concentrar-se toda a piedade e ad- miracgio do mundo. A Paixdo como acontecimento tragico poderia ainda ter valor préprio, honra e dignidade prépria. Jesus, porém, € 0 Cristo rejeitado na Paixao. A rejeigao tira da Paixdo toda a dignidade e honra. Ela deve ser sofrimento sem honra. Paixdo e rejeigio, eis em resumo a definicgao da cruz de Jesus. Ser crucificado é sindnimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por forga da necessidade divina. Qualquer tentati- va de impedir 0 que é necessario é satinica, mesmo que esta tentativa provenha do circulo dos discfpulos (0 que é uma agravante), pois assim nao se quer permitir que Cristo seja Cristo. O fato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se culpado, logo apés sua confissio de Jesus como 0 Cristo e de sua instalago, revela que, logo de inicio, a Igreja se escandalizou com o Cristo sofredor. Ela nao quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo, nao quer permitir que ele Ihe imponha 45 a lei do sofrimento. O protesto de Pedro exprime sua relutancia em se dispor a sofrer. Deste modo € que Satands entrou na Igreja, pretendendo arrancé-la 4 cruz de seu Senhor. Jesus, portanto, viu-se na contingéncia de esclarecer de modo in- sofismével que o imperativo do sofrimento era extensivo aos discipulos. Assim como 0 Cristo somente é Cristo quando sofredor e rejeitado, tam- bém o discfpulo somente é discipulo quando sofredor ¢ rejeitado, cruci- ficado com Cristo. O discipulado como uniao com a pessoa de Jesus Cristo coloca 0 discfpulo sob a lei de Cristo, ou seja, sob a cruz. Porém, ao comunicar esta verdade inaliendvel a seus discipulos, Jesus comega por lhes dar plena liberdade, 0 que é digno de nota. “Se alguém quiser vir apés mim...”, diz Jesus. Nao é algo 6bvio, nem mes- mo entre os discipulos. Ninguém pode ser forgado a isso, nem mesmo se pode esperar que alguém o faca; antes: “se alguém quiser” segui-lo, a despeito de quaisquer outras ofertas que lhe sejam feitas. Uma vez mais, tudo depende da decisiio individual; em pleno discipulado, toda a carrei- ra 6, uma vez mais, interrompida, tudo fica em aberto, nada se espera, nada se imp6e. Tao incisivo é 0 que agora se vai dizer que, uma vez mais, antes de se anunciar a lei do discipulado, os proprios discfpulos tém que sentir-se em liberdade. “Se alguém quer vir apés mim, a si mesmo se negue.” Assim como Pedro disse com relagao a Cristo: “Nao conhego esse homem”, deverd o discfpulo dizer em relagiio a si mesmo. A autonegagio jamais pode con- sistir de uma série, por longa que seja, de atos avulsos de automartiriza- Go ou de exercicios ascéticos; autonegagao nao € suicidio, porque ain- da af a vontade do ser humano pode impor-se. A autonegacao consiste em conhecer apenas a Cristo, e néo mais a si préprio; em ver somente aquele que segue em frente sem olharmos 0 caminho que julgamos tao diffcil. A autonegagio diz apenas isso: ele vai na frente; apega-te a cle. “.., tome asua cruz”. Jesus, em sua graca, preparou os discipulos para 0 impacto destas palavras através do ensino da autonegacao. S6 apés termos esquecido real e totalmente a nés prdéprios, somente apés nao nos conhecermos mais andés mesmos, é que poderemos estar pron- tos para levar a cruz por amor a ele. Se conhecermos tao-somente a ele, nao conheceremos mais as dores de nossa cruz, pois s6 a Jesus € que veremos. Se ele nfo nos tivesse bondosamente preparado para ouvirmos estas palavras, ndo as podeniamos suportar. Todavia, assim 46 ele nos deu condigées de aceitar também esta dura palavra como gra- ga. Tal palavra nos encontra na alegria do discipulado ¢ nele nos con- firma. A cruz nao é desventura nem pesado destino; é 0 sofrimento que resulta da unido exclusiva com Cristo. A cruz nao é sofrimento casual, mas sofrimento necessdrio. A cruz nao é sofrimento relacionado com a existéncia natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo, A cruz nio é, essencialmente, apenas sofrimento, mas sim sofrimento e rejeigio — rejei¢do no sentido rigoroso, rejeigao por amor de Jesus Cristo, e nao em conseqiiéncia de qualquer outra atitude ou confissao. Um cristianismo que nfo vinha mais tomando o discipulado a sério, que transformara o Evangelho no consolo da graga barata e para o qual a existéncia natural ea existéncia crista estavam inseparavelmente misturadas, tal cristianis- mo tinha que considerar a cruz uma desventura didria, uma tribulagao e angistia de nossa vida natural. Esqueceu-se que cruz significa sempre também rejei¢ao, que o oprébrio do sofrimento é inerente a cruz. Ser rejeitado no sofrimento, desprezado e abandonado pelos seres humanos, como se lamenta tanto o Salmista, eis a caracteristica essencial do sofri- mento da cruz que j4 nao é compreensivel a uma cristandade incapaz de distinguir entre existéncia civil e existéncia crista. A cruz é a compaixdo com Cristo, sofrer com Cristo. Somente a uniao com Cristo, tal como esta se verifica no discipulado, esta, de fato, sob a cruz. “... tome a sua cruz.” Ela j4 esta preparada desde o inicio; falta apenas leva-la. Porém, para que ninguém pense que tem que sair a pro- cura de uma cruz qualquer, seja onde for, ou que deve procurar volunta- riamente 0 sofrimento, Jesus diz que existe uma cruz ja preparada para cada um de nds, uma cruz a nds destinada e atribuida por Deus. Cada qual tem que suportar a medida de sofrimento e rejeigao que lhe é reser- vada. Essa medida varia de pessoa para pessoa, pois a um Deus honra com maior sofrimento, dando-lhe, inclusive, a graga do martirio; a ou- tro, porém, nao permite que seja tentado além de suas forgas. No entan- to, acruz € uma so. A cruz é imposta a cada crente. O primeiro sofrimento com Cristo, ao qual ninguém escapa, é o chamado que nos chama para fora das vin- culagdes com o mundo. E a morte do velho ser humano no encontro com Jesus Cristo. Quem entra no discipulado entrega-se 4 morte de Jesus, expoe sua vida 4 morte. Isso é assim desde 0 principio; a cruz nao 60 47 fim horrivel de uma vida piedosa e feliz, mas se encontra no comego da comunhio com Jesus Cristo. Todo chamado de Jesus conduz a morte. Quer devamos abandonar casa e profissao, como o fizeram os primeiros discfpulos, para o seguir, quer, com Lutero, abandonemos o convento para ingressar na profissao secular, em ambos os casos aguarda-nos a mesma morte, a morte em Jesus Cristo, a extingao do velho ser humano por causa do chamado de Jesus. Porque o chamado de Jesus ao jovem Tico Ihe traz a morte, porque este somente pode ser discipulo como al- guém cuja vontade prépria morreu, porque cada ordem de Jesus nos chama a morrer com todos os nossos desejos e ambigées, e porque nio podemos desejar nossa prépria morte, por isso Cristo tem que ser, em sua Palavra, nossa morte e nossa vida. O chamado ao discipulado de Jesus, o Batismo em nome de Jesus Cristo é morte e vida. O chamado de Cristo, 0 Batismo coloca 0 cristdo em luta didria contra 0 pecado e 0 diabo. Assim, cada dia, com suas tentagGes da carne e do mundo, traz consigo novos sofrimentos de Jesus Cristo para 0 discfpulo. Os ferimen- tos af infligidos, as cicatrizes que o cristao leva desta luta, so sinais vivos da comunhio na cruz de Jesus. HA, porém, outro sofrimento e outro vexame que a nenhum crente é poupado. E certo que somente 0 sofrimento de Cristo é sofrimento expiatério; todavia, por Cristo ter sofrido pelo pecado do mundo, por ter caido sobre ele todo o fardo da culpa, € por Jesus Cristo ter dado aos que 0 seguem parte no fruto de seu sofrimento, recaem também sobre 0 dis- cfpulo a tentagao e o pecado que o encobrem de grande vergonha e o expulsam, qual bode expiatério, para fora das portas da cidade. Assim o cristo toma sobre si os pecados e a culpa de outros seres humanos. Certamente 0 cristio estaria aniquilado sob tal peso, nao estivesse sendo ele proprio sustentado por aquele que tomou sobre si todos os pecados. Deste modo, porém, o cristao pode, na forga da Paixao de Cristo, supor- tar os pecados que sobre ele caem no momento em que os perdoa. O cristo toma fardos sobre si - “‘Levem as cargas uns dos outros, e assim cumprirao a lei de Cristo.” (Gl 6. 2). Assim como Cristo toma sobre si nosso fardo, devemos também nds levar as cargas dos irmios; a lei de Cristo, que tem que ser cumprida, é carregar a cruz. O fardo do irmaio que devo levar ndo é apenas sua situagao, a maneira de ser, o tempera- mento, mas, acima de tudo, seus pecados. Nao posso levd-los sobre mim de outra forma sendo perdoando-os a ele no poder da cruz de Cristo, 48 cruz da qual me tornei participante. Assim o chamado de Jesus para levarmos nossa cruz coloca cada discfpulo na comunhao do perdao dos pecados. O perdao dos pecados € o sofrimento de Cristo ordenado ao discfpulo, imposto a todos os cristaos. Como, porém, saberd o discfpulo qual é sua cruz? Ele a recebera ao entrar no discipulado do Senhor sofredor; na comunhio de Jesus, reconhecera sua cruz. O sofrimento €, pois, a caracteristica dos seguidores de Cristo. O discfpulo nao est4 acima de seu mestre. O discipulado é passio passiva, € sofrimento obrigatério. Por isso, Lutero incluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto da Confessio Augustana definiu a Igreja como comunidade dos que sao “perseguidos ¢ martiriza- dos por causa do Evangelho”. Quem nao quiser tomar sobre si a cruz, quem nao quiser expor sua vida ao sofrimento e a rejeigdo por parte dos seres humanos, perde a comunhio com Cristo e nao é seu discfpulo. Quem, porém, perder sua vida no discipulado, no carregar da cruz, tor- nard a encontra-la no préprio discipulado, na comunhao da cruz com Cristo. O oposto do discipulado é envergonhar-se de Cristo, envergo- nhar-se da cruz, escandalizar-se por causa da cruz. O discipulado é uniao com o Cristo sofredor. Por isso, nada ha de estranho no sofrimento do cristao; antes, é graca, é alegria. Os relatos sobre os primeiros martires da Igreja testemunham que Cristo transfigu- ra para Os seus 0 momento extremo do suplicio com a certeza indescriti- vel de sua proximidade e comunhio. Assim, nos tormentos mais atrozes sofridos por amor a Cristo, os martires experimentaram a maxima ale- gria e bem-aventuranga da comunhio com seu Senhor. Suportar a cruz se lhes revelou como a Gnica maneira de triunfar sobre o sofrimento. Isto, porém, aplica-se a todos quantos seguem a Cristo, porque foi igual- mente valido para ele. Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre 0 seu rosto, orando e dizen- do: Meu Pai, se possivel, passe de mim esse calice! Todavia, ndo como eu quero, e, sim, como tu queres... Tornando a retirar-se, orou de novo, dizendo: Meu Pai, se nao € possivel passar de mim esse cdlice sem que eu o beba, faca-se a tua vontade. (Mt 26.39 e 42). Jesus pede ao Pai que faca passar aquele calice; e o Pai ouviu a prece do Filho. O calice do sofrimento passaria— porém, unicamente ao

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