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II © Tempo Santo Antonio de no-de-pinho eo catolicismo afro-brasileiro! Marina de Mello e Souza” Apresentagdo O presente trabalho tem por objetivo analisar certas estatuetas magi co-religiosas, feitas e utilizadas por africanos e seus descendentes, na regitio do Vale do Paraiba paulista, principalmente no século XIX. Devemos seu conhecimento a alguns colecionadores e estudiosos de arte sacra, que, em meio a pesquisas sobre a imaginaria catélica brasileira, se depararam com essas pequenas imagens de Santo Antonio, esculpidas em madeira, osso ¢ metal, "Este artigo é fruto de uma pesquisa, desenvolvida em maio ¢ junho de 2000, no Latin American Program, do Woodrow Wilson International Genter for Scholars, Washington, financiada por um acordo entre este Centro ¢ o Ministério da Gultura do Brasil. © acesso facil & Biblioveca do Congresso, a possibilidade de usufruir da Biblioteca do Museu de Arte Africana da Smithsonian e as condigdes excepeionais de trabalho, oferecidas pelo Wilson Center, permi- tiram a coleta de grande quantidade de informagao em curto periodo de tempo, assim como asua elaboragao, que resultou neste texto. Agradego os comentarios de Joseph Tulehin, dire- tor do Latin American Program, c de Ralph Espach, & época em que Id estive, associacio a0 Programa, que muito acrescentaram primeira versio deste trabalho; a Kevin Dunn, meu estagiério no Wilson Center, pela reprodugdo de imagens e pela ajuda na localizagzo de al- guns textos; a Silvia Escorel de Moraes por seus comentérios © pela tradugao do texto para o inglés, a Ronaldo Vainfas, por informagées prestadas ao longo da sua redacao ¢ pelo convite de publicé-lo na revista Tempo, ¢ a Martha Abreu, pelos comentirios sempre frutiferos. *Doutora em Hist6ria pela Universidade Federal Fluminense. tmpo, Rio de Janeiro, né 11, pp. 171-188 17 Dossié Dossié com a absoluta predominancia do uso do né-de-pinho, que passou a distin- gui-las como um conjunto especifico. O primeiro estudioso a perceber os sentidos embutidos nessas estatuetas foi Robert Slenes, cujo conhecimento sobre as culturas banto per- mitiu que identificasse os signos africanos contidos nos santinhos, tidos como amuletos.’ Frutos dos processos de constituicio de novas formas culturais, a partir da diéspora imposta pelos europeus, esses santinhos, que mediam en- tre 3 © 15 centimetros, so testemunhos da forma particular como o cristia- nismo, imposto junto com a escravizacdo, foi incorporado por determinados grupos de africanos ¢ afro-descendentes. O projeto missiondrio de converter-A palavra de Cristo todos os povos contactados no contexto do expansionismo portugués, que seguiu o desbravamento dos mares, deixou marcas fundamentais na Africa Centro- Ocidental, mais especificamente nas bacias dos rios Zaire e Cuanza. Enquanto 0 primeiro foi a porta pela qual os exploradores adentraram o antigo reino do Congo, nos séculos XVI e XVII, 0 segundo facilitou o enraizamento dos in- teresses lusitanos, ou criados a partir do contato com os europeus, ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX. Se, no periodo da dominagao colonial da Afri- ca, de cerca de 1880 2 1960, foi rompida a intensa relagao que aquele conti- * As estatuetas de Santo Antonio aqui analisadas fazem parte dos conjuntos documentados por: Stanislaw Herstal, Imagens religiasas do Brasit, Sio Paulo, Ediglo do Autor, em colabora~ do com a Sociedade Brasileira de Expansio Comercial Lda., 1956; Eduardo Eztel, Imagens religiosas de So Paulo, Apreciagao histérica, Sio Paulo, Edig6es Melhoramentos, Editora da Uni- versidade de Sao Paulo, 1970; artigas de Carlos A.C. Lemos: “O Santo Antonio de né-de- pinho”, Arte ¢ Religiasidade no Brasil. Herancas Africanas, S20 Paulo, Pinacoteca do Estado de Sao Paulo, II Encontro Nacional da Cultura, Ministério da Cultura, 1977, ¢ “A imagindria dos eseravos de Sao Paulo”, A Maa Afro-Brasileira, Sio Paulo, Técnica Nacional de Engenharia, 1988, ambos organizados por Emanoel Aratijo; Carlos A.C. Lemos, A imagindria pautista, Sio Paulo, Edigdes Pinacoteca, 1999; Francisco de Castro Ramos Neto, “No-ce-pinho’: imagi- niria cat6lica afro-brasileira em Sie Paulo”, Emanoel Araiijo (org.), Os herdeiras da noite, Frag- mentos do imagindria negro, Pinacoteca do Estado de So Paulo, 1995, Exposigfo, promovida pelo Ministério da Cultura, no Centro de Cultura de Belo Horizonte, Minas Gerais, 21/12) 1995 a 5/2/1996. * Robert Slenes, ““Malungo, gnoma vem!” Africa coberta ¢ descoberta no Brasil”, Revista USP, nf 12 (dez/janjfev, 1991-2), reeditado em Negro de corpo e alma, Mostra do Redescobrimento, Sio Paulo, Fundagao Bienal de Sio Paulo, 2000, p. 219. Seguindo pistas de Mary Karasch (Slave Life in Ria de Janeiro 1808-1850) ¢ de W.G.L. Randles (Lancien royaume du Gongo des origines a la fin du XIX° sidcle, Paris, Ecole des Hautes Etudes, Mouton & Co, 1968), Robert Slenes aborda as varias maneiras pelas quais os habitantes da Africa Centro-Ocidental “reinterpretavam simbolos ¢ objetos rituais estrangeiros”, come imagens de Santo Antonio, “nos termos basicos de sua cultura de origem”’ Santo Antonio de né-de-pinko ¢ 0 catolicisma afro-brasileiro s, dos franceses, nente mantinha com o Brasil, antes da primazia dos ingles dos belgas ¢ dos norte-americanos, eram intensas as relagbes comerciais, politicas e culturais entre a costa americana ¢ a africana do Atlantico. Junto com escravos e mercadorias, vinham da Africa e, mais especifi- camente, da regito do Congo ¢ de Angola, maneiras de lidar com as coisas deste ¢ do outro mundo. Algumas dessas maneiras podem ser identificadas nas novas formas culturais. criadas por africanos de origem banto e por seus descendentes, que trabalhavam nas lavouras, no comércio ambulante, nos oficios artesanais ¢ nas casas do Vale do Paraiba paulista. A identificacao de signos africanos nas estatuetas de né-de-pinho é 0 que proponho, a seguir. Mas, para assim interpretar esses objetos magico-religiosos, 6 necessario fa- zer referéncia a aspectos da visio de mundo dos grupos de africanos, que forneceram a maioria dos bragos para a cafeicultura paulista, ao longo do sé- culo XIX, Ocatolicismo africano A conversao dos chefes bacongo’ ao catolicismo, apés a chegada dos portugueses a regitio do baixo rio Zaire, no final do século XV, ¢ assunto far- tamente documentado € bastante estudado, apesar de nem sempre muito conhecido.’ Considerado pela elite dirigente do Congo como elemento *Bacongo € 0 nome pelo qual a antropologia e a histéria tém identificado os povos habiantes de regides dos atuais Congo ¢ Angola. SA esse respeito ver, entre outros, Duarte Lopez e Filippo Pigafetta, RelagdZo do Reino do Congo «das Terras Circwnvisinhas (tradugio de Rosa Capeans), Lisboa, Agencia Geral do Uleramar, 1951; Carmen M. Radulet, O cronista Rui de Pina e a “Relagdo do Reino do Congo”, Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1992; Anténio Brasio, “O problema da eleigo e coro agto dos reis do Congo”, Revista Portuguesa de Historia, Coimbra, 1969 (XID, © “Embaixada do Congo a Roma em 15142”, Siudia, n* 32, 1971; Susan Heslin Broadhead, “Trade and Politics on the Congo Coast: 170-1870", Boston University Graduate School, Ph.D, 1971; UML Dissertation Services, “Beyond decline: the kingdom of the Kongo in the eighteenth and ninctecuth comtuies”, Iniernational Journal of African Historical Studies 12, 1979; Wyatt MacGattey, Religion and Society in Central Africa. The BaKongo of Lower Zaire, Chicago, The University of Chicago Press, 1986; “Dialogues of the deaf: Europeans on the Atlantic coast of Africa”, Stuart B. Sewartz.(ed.), dmplicit Understandings. Observing, Reporting, aud Reflecting on the Encounters Between Europeans and Other Peoples in the Early Modern Era, Cambridge, Cambridge Univeristy Press, 1994; “The West in Congolese Experience”, Philip D. Curtin (ed.), Africa & The West Intellectual Responses to European Culture, Madison, University of Wisconsin Press, 1972; “Kongo and the King of the Americans”, Journal of Modern African Studies, 6,2 (1968); W.G.L.. Randles, op. cin; John Thornton, The Kongolese Saint Anthony. Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706, Cambridge, Cambridge University Press, 1998; dem, Africa and Africans in the Making of the Adantic World, 1400-1860, Cambridge, 173 Dossié reforgador de seu poder frente as constantes disputas inerentes 4 estrutucura politica do reino, os novos ritos e ensinamentos, introduzidos pelos sacerdo- tes portugueses, foram em parte incorporados a religiao tradicional, sem que nela houvesse uma transformagao essencial. Pelo contririo, o que as inter- pretagdes atuais demonstram & que os ritas ¢ os simbolos da Igreja Catélic: foram traduzidos para a cultura bacongo, ganhando significados diferentes dos atribuidos pelo catolicismo.’ Nos primeiros tempos da cristianizagao, cruzes, santos € ostensérios cristios foram chamados de minkisi pelos proprios missiondrios, que busca- vam, assim, equivaléncias no universo religioso bacongo, utilizando a desig- nagio local corrente para objetos utilizados nos cultos religiosos e passando por cima da cnorme diferenga de significados que tinham para as duas reli- gides.’ Desssa forma, eles no chegavam a perceber que, para os bacongo, Deus continuava sendo Neambi Mpungo, criador de todas as coisas, ¢ os san- tos eram, para cles, seus ancestrais ¢ espiritos da natureza, que habitavam fontes de agua, pedras, arvores eo mundo dos mortos e intervinham nos pro- blemas dos vivos, por meio de ritos € objetos magico-religiosos. Essa substi- igdo formal de alguns ritos € simbolos e a sua dupla leitura — sob o prisma do catolicismo ¢ da religiio bacongo — permitiram que um sacerdote, ao ‘Cambridge University Press, 1992; Idem, The Kingdom of Kongo. Givil War and Transition 1641- 1718, Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1983; Zdem, “Early Kongo-Portuguese Relations: a New Interpretation”, David Henige (ed.), History in Africa, A Journal of Method, Massachusetts, Brandeis University, African Studies Association vol. 8, 1981; Idem, “The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750", Journal of African History, 25 (1984); Idem, “On the trail of Vodoo: African Christianity in Aftien and the Americas”, The Americas 55 (jan), pp. 261-78, 1988. © A esse respeito ver, por exemplo, Wyatt MacGaffey, “Dialogues of the deaf: Europeans on the Atlantic coast of Africa”, Stuart B. Schwartz (ed.), Implicit Understandings, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, * Os minkisi — plural de nbisi — sto confeccionados ¢ utilizados pelos sacerdotes, 08 nganga, havendo uma variedade de minkisi, adequados a usos diferentes e compostos de ingredientes especificos de cada um. Tais ingredientes, minerais, vegetais e animais, cujo conjunto ¢ cha- mado bilongo, definem as qualidades ¢ os poderes dos minkisi nos quais sio alojados, © 203 quais conferem poder, a partir dos rituais da sua combinagio, da sua confeogio c de seu uso, forecendo as possibilidades para que os espiritos curem e ajudem as pessoas em situagaes diversas. Esses abjetos mgico-religiosos foram estudados em varios textos, destacando-se: Wyate MacGaffey, “Fetishim revisited: Kongo nfis/in sociological perspective”, Africa, 47 (2), 1977; Idem, “The eyes of understanding: Kongo mindisi", Astonishment & Power, Washington, DG, National Muscum of African Art, Smithsonian Institution, 1993; Idem, “African objects and the idea of fetish”, Res25, spring, 1994; Robert Farris Thompson, Flash of the Spirit. African © Afro-American Art & Philosophy, New York, Vintage Books, 1984. 174 Santo Antonio de né-de-pinho e 0 catolicismo afro-brasileiro percorrer a regiao, tivesse dito que, num reino com tio poucos padres, nao havia encontrado um tinico cristo que houvesse voltado ao fetichismo anterior.* ‘A penetragio de alguns elementos do catolicismo na religido tradicio- nal dos poves da Africa Centro-Ocidental no dependeu apenas dos sacer- dotes catélicos, pois seus ensinamentos também foram propagados pelos catequistas nativos, que haviam sido discipulos dos missiondrios ¢ recebe- rama tarefa de transmitir o que haviam assimilado. Exemplo extremo de como 6 catolicismo foi reinterpretado & luz da religido tradicional foi o movimento dos antonianos, que eclodiu no final do século XVII ¢ levou a fogueira sua lider, Beatriz Kimpa Vita, que se dizia possuida por Santo Antonio freqlientadora assidua do reino celeste, ao qual chegava por meio de sonos catalépticos, equivalentes & morte € & ressurreigio, experimentados pelos membros do kimpaxi.? A escolha de Santo Antonio como en por Kimpa Vita, que continuou viva entre significativa parcela da populagio do reino do Congo, por muito tempo depois de sua execugiio, em 1706, € si- nal da popularidade alcangada por esse santo entre os bacongo. Nascido em Lisboa, por volta de 1193, Santo Antonio € patrono de Portugal, apesar de sua vida religiosa se ter desenrolado principalmente em Assis, na Tt ade maxima da seita liderada a, en- tre os franciscanos." Seu culto foi largamente difundido pelos missionaries lusitanos tanto na Africa quanto na América portuguesa. © Segundo o carmelita Diego de Incarnacién, citado por J. Cuvelicr, “Congolese Art in the Era of Christ the Redeemer”, The Arts in Belgian Gongo and Ruanda-Urundi (adapted from the French by Stephanie Chandlet), CID, Information and Documentation Center of Belgian Congo and Ruanda-Urundi, 1950, p. 36. +-Para uma descrigio dos ritos iniciéticos dos éimpasi, ver Joseph Van Wing, Ezudes Bakongo. Sociologie — Religion et Magic, Desclce de Brouwer, Museum Lessianum, 24 edigao, 1959 (1* edigio, 1921, Bélgica). Para o movimento antoniano ver, entre outros autores, John Thornton, The Kongolese Saint Anthony. Dona Beatris. Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706, Cambridge, Cambridge University Press, 1998; Wyatt MacGafeyy, op. ciz; Ronaldo Vainfas Mutina de Mello c Souza, “Catolizagio © poder no tempo do tréfico: o reine da Congo da conversdo coroada a0 movimento antoniano, séculos XV-XVILI”, Tempo, vol. 3, n26, dez. 1998. © David Hugh Farmer, The Oxford Dictionary of Saints, Oxford, Oxford University Press, 3 ed., 1992, pp. 26-7. Numa linha de reflexio que mostra a circulagio de idéias, sensibilidades e comportamen- tos pelo cizeuito atlantico que uniu Portugal, Africa e Brasil, Robert Slenes vem demonstran~ do como o culto a Santo Antonio esteve presente nessas trés drcas, sendo bastante provavel que os sermbes do Padre Antonio Vieira, que teve destacado papel na vida religiosa e politica de Portugal e do Brasil no sécula XVII (nasceu em Lisboa, em 1608, ¢ morreu na Bahia, em 1697), cenham inspirado as pregagdes dos capuchinhos no Congo. A suposigio de John ‘Thornton, de que devotos de Santo Antonio foram mandados como escravos para © Brasil, no 175 Dossié ‘Toni Malau e Nsundi Malau John Weeks, em seu relato sobre a vida dos bacongo, entre os quais passou 30 anos, iniciando seu trabalho como missionario batista em 1878, nao mencionou em seu texto as imagens de Santo Antonio, que sabemos existi- rem desde muito antes disso, mas reproduziu no livro uma fotografia de uma pequena estatua de madeira, que Ihe foi dada por uma pessoa que disse estar a imagem na familia ha varias gerages, sendy pur cla cousiderada um “feti- che”. Nela, Santo Antonio esta, como sempre, representado em seu traje de franciscano, tendo, na mio esquerda, um livro, sobre o qual o menino Jesus se apéia, em pé, trazendo este, por sua vez, na mio dircita, algo que pode ser um ramo. Na mao esquerda, 0 santo traz'uma cruz,!? Ao estudar a arte do metal entre os bacongo, Robert L. Wannyn, etndlogo belga, que, de 1931 a 1941, coletou uma série de objetos entre va- rias aldeias do Congo, notou que todas as pegas de cobre, lato, ferro ¢ outras ligas de metal eram de inspiragao crista.!* Feitas entre 0 comego do século XV o fim do XIX, tais pegas eram, em sua maioria, crucifixos, chamados de Néangi Kidire pelos natives, havendo também algumas pequenas imagens de Santo Antonio, Toni Malau, e Nossa Senhora, Nswndi Malaw. Quando in~ terrogava os nativos acerca da época de feitura de tais objetos, Wannyn rece- bia sempre a mesma resposta: tais objetos tinham sido feitos na época dos mafumalengo © eram mantidos entre 0 acervo de bens preciosos das familias, passando de uma geragiio a outra A época dos mafumalengo, que 0 autor percebe ser uma deformagao de flamengo, na verdade se estende para muito além do tempo em que ocupa- contexto da repressio a seita dos antonianos, no inicio do séeulo XVIII, fortalece « conextio do culto ao santo nas trés areas. Ver Robert W. Slenes, “Santo Antonio na encruzilhada reinterpretagdes do taumaturgo no Kongo e no Brasil", comunicagio apresentada no Simpésio de Arrabida, 1-5/11/1999, mimeo. # John H. Weeks, Among the primitive Bakongo. A record of thirty years’ close intercourse with the Bakongo an other tribes of Equarorial Africa, with a description of their habits, customs & relyious beliefs, New York, Negro University Press, 1969, p. 260. Em seu livro (Pioneering on the Congo, first printed in 1900, and reprinted in 1970, by Johnson Reprint Company, New Yori), William Holman Bentley, que, como John Weeks, pertencia a “Baptist Missionary Society”, apresen- ta.um desenho da mesma imagem, cuja fotografia est4 reproduzida no livro de Weeks, dizen- do, entretanto, ter sido cla encontrada nas ruinas da Catedral de Sio Salvador, capital do rei no do Congo. O mais provivel é que a informagio de Weeks seja a cotreta, tendo Bentley desenhado 0 objeto coletado pelo companheiro, e a ela atribufdo uma origem que pode ter ido a de outras imagens equivalentes, encontradas nas mencionadas ruinas. Robert L. Wannyn, L’Art Ancien du Métal au Bas-Congo, Belgique, Editions du Vieux Planquesaule Champles, 1961, p. 27. 176 Santo Antonio de né-de-pinko e 0 catolicismo afro-brasileiro ram Luanda (1641 a 1648), fundada pelos portugueses em 1575, numa re- giflo até ent&o controlada pelos mbundo, vizinhos ¢ aliados dos bacongo.'* Enquanto ocuparam a regio, os flamengos tiveram 0 apoio de d. Garcia II, que governou 0 reino do Congo de 1641 a 1663. Na cronologia levantada por Wannyn, a partir da hist6ria oral, contada pelos bacongo, o tempo dos mafumalengo corresponde ao periodo no qual as relagSes comerciais com os portugueses, € algumas vezes com os holandeses, foram determinantes nos processos hist6ricos da Africa Centro-Ocidental, a grosso modo, do século XVI ao inicio do XIX, Nessa época, 0 catolicismo, pregado pelos missiondrios catequistas locais, teve grande penetragdo na regizo, sendo, como ja mencio- nado, integrado de forma muito particular a religiao tradicional. E interes- sante notar que, segundo os informantes de Wannyn, 0 nome dado aos flamengos tenha sido adotado para indicar todo esse tempo, marcado pela pregacao cristd dos missiondrios catdlicos, portugueses, espanhéis ¢ italianos, € nao flamengos, que eram calvinistas. Durante a alianga com os holandeses, um dos pontos de autonomia mais defendido por d. Garcia II foi justamente a liberdade de culto religioso e a manutengio dos missionarios portugueses no territ6rio, mesmo que, no plano politico, a alianga se desse com os holan- deses, na época, em guerra com Portugal. No entanto, contraditoriamente, ao indicar a era na qual foram feitas as imagens de inspiragio catélica, o nome: dos flamengos era o invocado. Mesmo podendo ter-se originado no nome pelo qual os flamengos eram chamados, mafumalengo, provavelmente passou a designar os brancos europeus em geral. Junto com os ensinamentos cristios, os religi tos necessarios & realiza cifixos, que logo foram adotados pelos nativos como nova modalidade de objetos mégico-religiosos. Inseridos em sistemas culturais diversos, bacongo © portugueses criaram um campo de compreensao miitua, a partir do qual certas nogSes eram lidas de formas diferentes, cada um entendendo os fatos a partir de seu proprio universo cognitive. Um exemplo dessa dupla leitura pode ser visto na forma como a cruz era entendida pelas duas culturas. Estudos recentes tem mostrado como os bacongo explicam os fendmenos naturais € sobrenaturais, ¢ que, ao contrario Jos trouxeram os obje- ‘0 do culto, entre os quais, imagens de santos e cru- do que achavam até enti os estudiosos daquelas etnias, geralmente missio- "No romance de Pepeleta, A Glariasa Familia, que se passa em Luanda, durante a ocupagio dos holandeses, estes so chamados de ma/ufos pelos natives. W7 Dossié narios ou etnélogos ligados 4 administragao colonial belga, a cruz nao foi introduzida junto com o cristianismo, sendo, desde antes da chegada dos europeus, importante signo de entendimento e relacionamento com 0 mun- do circundante, vistvel ¢ invisivel.'" O desenho da cruz indica 0 ciclo basico da vida, pensado a partir dos quatro pontos percorridos pelo sol, no seu mo- vimento circular ¢ continuo: o nascimento, quando desponta no horizont maturidade, quando aleanga o mais alto ponto no céu; a morte, quando se pe, do outro lado do horizonte; ea existéncia no mundo dos mortos, quando esta no pélo oposto, iluminando o mundo invisivel, do qual segue seu trajeto cir- cular para comegar novo ciclo. Para os bacongo, é basica a divisio entre o mundo dos vivos eo mundo dos mortos, um acima da linha do horizonte, outro abaixo, tendo a agua como elemento de separagio entre ambos, assim como a possibilidade de relagZo entre esses dois mundos — o dos vivos ¢ 0 dos antepassados ¢ dos espiritos a, que habitam a metade invisivel do mundo, O eixo horizontal da sim como 0 nascimento, & morte dos ho- mens, ¢ 0 seu eixo vertical liga o ponto culminante do sol no mundo dos vi- vos € no mundo dos mortos, permitindo a conexao entre os dois niveis de existéncia. A ligagdo entre o mundo dos vivos e o dos mortos, de onde vém as regras de conduta € 0 auxilio para a solugio dos problemas terrenos, como doengas, secas ¢ 0 inforttnio, em geral, se dé por meio de ritos, nos quais se evocam os espiritos e os antepassados, para que resolvam as questdes que Ihes so colocadas. A cruz, no pensamento bacongo, remete a ideia da vida como um ciclo continuo, semelhante ao movimento de rotagio efetuado pelo sol, assim como 4 possibilidade de conexao entre os dois mundos. Segundo Fu-Kiau, 0 rito basico, e mais simples, a ser feito por todos aqueles que se querem tornar mensageiros do mundo dos mortos ¢ condutores de seu povo ou cla, é fazer um discurso sobre uma cruz, desenhada no chao, Com isso, so frisados os da nature: cruz liga o nascer ao pér-do-sol, 4 A. Fu-Kiau Bunsenki-Lumanisa, “Le mukongo et le monde qui Pentourait” (traduction frangaise par C. Zamega-Batukezanga), Recherches ef Synthises n® 1, Office National de la Recherche et de Développement, Kinshasa, 1969; Wyatt MacGaffey, of. cit; Robert Fattis “Thompson também incorporou em suas andlises as contribuighes de Fu-Kiau e MacGaffey; ver, entre outros textos, The Four Moments of the Sun: Kongo Art in Two Worlds, Washington, ational Gallery of Art, 1981. Para uma descrigZe interessante, porém carregada de precon- ceitos etnocéntricos acerca do uso do crucifixo entre os chefes bacongo, ver William Holman Bentley, Pioucering on the Gongo, London, Johnson Reprint Company Litda., 1970 (first edition, 1900), vol. I, pp. 35-6 178 Santo Antonio de né-de-pinko ¢ 0 catolicismo afro-brasileiro poderes religiosos que todo chefe deve ter, uma vez que poder temporal e religioso esto intimamente entrelagados. Ao se colocar sobre a cruz, que representa o ciclo da vida humana a divisdo entre os dois mundos, o chefe afirma a sua capacidade de fazer a conexao entre esses dois mundos ¢, assim, conduzir de maneira adequada a vida da comunidade, Mas sao as pequenas imagens de Santo Antonio e Nossa Senhora, co- nhecidas cama Tani Malau e Neundi Malau, que nos interessam mais de per- to, apesar de entre os bacongo terem ocupado um lugar de menor evidéncia que 0 crucifixo, presente desde os primeiros momentos da conversio dos chefes congoleses ao catolicismo, no final do século XY, ¢ incorporado como um dos emblemas de seu poder. Também referidas como produtos do perio- do mafumalengo, essas pequenas esculturas, de inspiragao basicamente euro- péia, cumpriam fungdes magico-religiosas, conforme padres simbélicos bacongo. Toni € contragao de Antonio, santo, cujo culto, como vimos, foi bas- tante difundido no reino do Congo. Malau, na maioria dos dialetos kikongo, exprime a idéia de sorte, sucesso, conquista, oportunidade. Toni Malan seria, portanto, um Santo Antonio portador de boa fortuna, isto é, um amuleto por meio do qual coisas boas se im alcangadas. De forma equivalente, Nsundi Malau seria uma Nossa Senhora, portadora de boa sorte, significando nsundi uma mulher jovem, que ainda ndo conheceu 0 sexo." Também no Brasil os santos eram chamados a intervir na vida dos ho- mens, sendo 0 catolicismo praticado pelo povo permeado de antigas crengas € rituais pagios. O catolicismo em vigor nos séculos XVI, XVII e XVIII com- portaya uma grande dose de pensamento magico, sendo as forgas divinas chamadas freqiientemente a intervir nos assuntos da vida cotidiana. Inter- mediiirios entre os homens ¢ Deus, aos santos eram dirigidos pedidos, que, se fossem atendidos, reverteriam em agrados para eles, mas, caso no os aten- 1& Bases significados encontram-se em Robert L. Wannyn, op. 0/7, pp. 42-4, qe, no enranta, nto faz a ligagdo entre 0 sentido das palavras ¢ 0 significado dos objetos, de portadores de boa fortuna, isto é, amuletos. W.G.L.Randles, ap. cif, pp. 150-1, também se refere a popularidade do culto a Santo Antonio entre os congoleses, tomando como prova disso as estatuetas de Ia tio chamadas Toni Malay, malau significando boa sorte, sucesso, conquista, Tais estatuetas, existentes em colegées atuais, mas de fabricagao antiga, do tempo dos mafimalengo, mostram sinais de grande desgaste em algumas partes, indicando terem sido esfregadas contra o corpo para que curassem doengas. A esse respeito ver Robert L. Wannyn, op. cit, p. 43, © “Ancient Religious Insigniae in Bas-Congo”, Tie Arts in Belgian Congo and Ruanda-Urundi, p.30; Douglas E. Bradley, Christian Imagery in African Art: The Britt Pamily Collection, The Snite Museum of Att, University of Notre Dame, 1980, p. 10 119; Dossié dessem, poderiam ser castigados, por meio de suas imagens. Dessa forma, se no Congo as imagens de santos e crucifixos foram utilizados como veiculos para obtengao de ajuda sobrenatural, com a aquiescéncia dos missiondrios, mas conforme os padrdes da religido dos bacongo, situagao equivalent exis- tiv no Brasil. Ao chegarem ao Vale do Rio Paraiba, sendo obrigados a adotar a reli- gido dos senhores (caso ja nao fossem adeptos de sua forma africana), os bacongo devem ter accito com relativa facilidade a idéia de que as imagens de santos eram veiculos de comunicagao com Deus, tomando-as como obje- tos magico-religiosos para a obtengao de ajuda sobrenatural. Os senhores, por outro lado (tal como os missiondrios, na Africa Centro-Ocidental), nao che- gavam a perceber que, ao utilizarem as imagens de santos em seus ritos reli- giosos, seus escravos estavam agindo em grande parte conforme os padrées de sua religio tradicional, e nfo seguindo os dogmas da Igreja Catélica, Apos- t6lica, Romana. As imagens de Santo Antonio, feitas ¢ utilizadas por africanos e seus descendentes, incorporavam elementos simbélicos de origens diversas, que podiam ser diferentemente interpretados, dependendo do universo cultural — europeu ou africano— de quem as abordava. Frutos de uma mestigagem. cultural, abriam possibilidades de muiltiplas leituras, definidas pelo instru- mental cognitivo daqueles que com elas se relacionavam. Se foram conside- radas talismas e fetiches pelos pesquisadores do século XX, que as coleta- ram, muitas vezes devem ter sido tomadas como prova da conversio dos negros pelos senhores € pelos sacerdotes contemporineos daqueles que as esculpiram, Objetos magico-religiosos do catolicismo negro no Brasil Existentes no antigo reino do Congo, principalmente do século XVI a0 XVIII, as pequenas imagens de Santo Antonio e Nossa Senhora, prova da incorporagao de elementos cristios pela religiao tradicional dos bacongo, tam- bém foram feitas na regio do Vale do Rio Paraiba, no Estado de Sio Paulo, durante o século XIX. Na maioria das vezes, foram confeccionados em né- de-pinho, a parte mais dura do pinheiro, dryore rara no Vale do Rio Paraiba e hoje quase totalmente extinta, havendo também algumas feitas de chifre, osso © chumbo, Datadas principalmente dos anos oitocentos, hoje integram algu- mas colegdes. Conhecidas como Santo Antonio de né-de-pinho, essas 180 Santo Antonio de né-de-pinko e 0 catolicismo afro-brasileiro estatuctas tém aparéncia variada, sendo sempre de pequenas proporgdes, de 3a 15 centimetros de altura, como ja mencionado. Eduardo Etzel, colecionador de imagens religiosas, adquiriu pessoal mente algumas dessas estatuetas e sobre clas deixou registro. No seu en- tender, tudo indica que fossem amuletos, envoltos em halos de mistério, “pois com muita relutancia alguns de seus possuidores se dipdem a mostrar ou ainda que, vinculadas ao passado, a sua caracte- tistica de talismas, objetos portadores de boa sorte, € que Ihes da sentido. Ele atribui a sua confecgao aos negros, argumentando que a dureza do né-de-pi- nho € a sua cor escura os aproximariam do ébano africano, e 0 aspecto tosco das pegas, além de “sinais estranhos, como cruzes”, por elas espalhados, re- velariam as marcas africanas do seu produtor. As pistas que ligam esas ima- gens de Santo Antonio a Africa estao indicadas, mas nao podem ser decodificadas pelo autor, que desconhece aspectos importantes da histéria da cultura dos povos, dentre os quais foram aprisionados ¢ escravizados os homens levados para 0 Vale do Rio Paraiba, na primeira metade do século XIX. Jé Robert Slenes percebeu qualidades do amuleto que o ligavam aos minkisi africanos, como ser feito de uma madeira especialmente dura ¢ mesmo mencian4-las” 17 Diz retorcida e representar determinada postura corporal." Mass pistas néo param ai, Ainda é proprio Eztel, com suas sucintas, porém densas indicagdes, que continua a fornecé-las, contribuindo involun- tariamente para a determinagio do significado dessas estatuetas. Para dizer que as antigas crengas, no Ambito das quais essas imagens tinham importén- cia, estavam desaparecendo desde o fim da escravidio, menciona como lhe foi permitido recolher as peas, sendo que algumas delas estayam “abando- nadas em santas-cruzes”. O fato de essas estaruetas terem sido deixadas ao lado de “santas-cruzes” remete a sentidos muito mais complexos do que “uma frouxidao das antigas crengas”.”” @ Eduardo Eztel, op. cit, p. 152; Stanislaw Herstal, Imagens Religiosas do Brasil, Sto Paulo, Edigdo do Autor, em colaboragao com a Sociedade Brasileira de Expansio Comercial Leda., 1956, p. 33, também menciona a caracteristica de amuleto dessas estatuctas, que chama de pequenas imagens de “bolso”,¢ que, “guardadas ciosamente dos olhos alheios, passaram des- conhecidas de geragao em geragao” 8 Robert Slenes, ““Malungu, ngoma vem!’ Africa coberta ¢ descoberta no Brasil”, em Negro de Corpo e Alma, p. 219 ¥ Eduardo Eztel, op. cif. p. 155. No eatolicismo popular brasileiro, a cruz é cultuada como simbolo do martirio de Jesus, sendo a ela dirigida uma festa especial, realizada no dia 3 de maio, em locais geralmente afastados das cidadies, como vilas ou bairros rurais, nos quais uma Ist Dossi Se associarmos a informago dada por Eztel com a importincia que a cruz tem no conjunto de explicagdes bacongo, acerca do ciclo da vida e da relago entre o mundo natural eo sobrenatural, esse dado ganha uma dimen- silo que ele nao poderia supor, por desconhecer a importincia de tal simbolo para os banto. Mesmo que convertidos ao cristianismo e utilizando a lingua- gem simbélica fornecida por essa religiao, a escolha de determinados elemen- tos, ¢ niio outros, foi inspirada pela cultura dentro da qual se criaram. Ao de- positarem as estatuetas junto 4 cruz, os escravos e seus descendentes esta- vam, de alguma forma, mantendo contato com o mundo dos mortos ¢ dos espiritos, utilizando-se para isso nfo s6 de um objeto impregnado de signifi- cados magico-religiosos —a estatueta de Santo Antonio —como de um sim- bolo —a cruz — que, como vimos, era fundamental para 0 estabelecimento da comunicagao entre o mundo dos vives e o dos mortos, espiritos ¢ ances- trais, aos quais se recorria para resolver as questées da vida terrena Santo Antonio, antigo conhecido dos bacongo, foi, também no Vale do Rio Paraiba, um dos santos majoritariamente escolhidos para ocupar posigdes de intermediarios entre os homens € os espiritos, e mais uma vez.os sacerdo- tes catélicos nao estranharam a relago que se desenvolveu entre os negros ¢ 0 santo. Isso porque, tanto no catolicismo popular europeu como no colonial, esses emissérios divinos eram chamados a intervir nos mais diversos tipos de questées terrenas, como encontrar um marido, um objeto desaparecido, ou um escravo fugido. Freqtientemente, a imagem do santo era tratada como algo vivo. Caso realizasse os pedidos que Ihe enderegavam, receberia recom- pensas, como flores, aderegos e roupa nova, sem falar nas rezas ¢ nas festas em seu louvor. Mas se nao ajudasse seu proprietirio a aleangat a graca pedi- da, seria castigada, mergulhada de ponta cabega dentro d’égua, relegada a um canto escuro, ou veria seqiiestrado o menino Jesus que trazia ao colo. E os sacerdotes podiam desaprovar, mas sabiam que os castigos s6 seriam suspensos quando 0 proprictario da imagem alcancasse a graga pedida Assim como era diferente do uso que 0 catolicismo popular fazia do santo, a forma como Santo Antonio foi utilizado pelos negros de ascendéncia bacongo também era diferente das equivaléncias entre os santos catélicos ¢ “santa cruz” foi crigida, muitas vezes protegida por um telhado, © onde, no dia da festa, as pessoas se reinem para rezar, cantar e, depois, dangar, comer ¢ beber, conforme 0 padrio comum as festas religiasas populares brasileiras, segundo o qual, depois das comemoragées religiosas, segue-se a festa profana, Na regio do Vale do Paraiba, entre as comunidades rurais principalmente, € comum, ainda hoje, s “festa de Santa Cruz”. 182 Santo Antonio de né-de-pinho e 0 catolicismo afro-brasileiro as divindades africanas, indicadas por estudiosos das religides afro-america- nas, geralmente de origem ioruba, num mecanismo segundo o qual nomes ¢ representagées cristaos sio associados a conceitos africanos. Nesses casos, comuns em religides afro-americanas que se constitufram no Brasil (candom- blé e umbanda), c em paises da América Central, como Cuba (santerta) ¢ Haiti (vudu), os santos foram associados a determinados orixas ¢ vudus a partir das suas representagées, que permitiam equivaléncias entre uns e outros, ou em, fungao de similitudes entre mitos de orixas africanos ¢ lendas de santos caté- licos. Dessa forma, detalhes como a cor de uma roupa ou a forma de um ade- rego, utilizados na representacao de um santo e de um orixa, podiam definir . Além. dos paralelos feitos entre os atributos estabelecidos na hagiografia crista com as representagdes ioruba, os mitos que acompanhavam as divindades e os santos também ajudaram a estabelecer as equivaléncias. Exemplo disso é a associagio entre Santa Barbara, mulher fragil, cujo marti- rio desencadeou a furria de Deus, que fez raios cairem sobre a terra, e Xango, homem viril, deus dos trovées. Mas esses santos catélicos servem apenas de representagao dos orixas, pois o poder destes nao reside nas imagens, e sim nas pedeas, nas ervas, nas plantas e nas talismas, sempre presentes nos alta- res, ao lado das imagens catélicas.”° Essa dissociagao entre a imagem dos santos e os receptaculos do poder das divindades nao ocorre com os Santo Antonio de né-de-pinho, que, a0 mesmo tempo que representa o santo, alojam seus poderes de protegio ¢ de portador de boa sorte. Também nao foi no Nove Mundo que os negros a ® Cf. James R. Gurtis, “Santeria: Persistence and Change in Afro-Cuban Cult Religion”, Bowling Green (org.), Objects of Special Devotion. Fetishes and Fetishism in Popular Culture, Bowling Green, Ohio, Bowling Green University Popular Press, 1982. E cnorme a bibliogra~ fia sobre religides afto-americanas que aborda esse assunto. Alguns exemplos so: para o Bra- sil, Roger Bastide, Les Religions Africaines au Brésil, Paris; Presses Universitaires de France, 1960; Arthur Ramos, A acultcragao negra no Brasil, S30 Paulo, Cia. Editora Nacional, 1942; ina Rodrigues, Us A/rrcanos no Brasil, ed., Sa0 Paulo, Gia. Editora Nacional, 1932; Edison Carneito, *Os cultos de origem africana no Brasil”, Rio de Janeiro, MEC/BN, 1959 (separa~ ta), 1959; Mary Karasch, op. cit. Para Cuba, Fernando Ortiz, Hampa Afro-Cubana, Los negros brajos. Madrid, Editorial América, 1906; Lydia Cabrera, £/ Monze, Miami, Rema Press, 1971; e Reglas de Congo Palo Monte Mayombe, Miami, Peninsular Printing Inc., 1979, entre outros. Para o Haiti, Alfred Métraux, Black Peasants and Voodoo, 1960; Lue de Heusch, “Kongo in Haiti: A New Approach to Religious Syneretism”, Man 24, 1989. Exemplos de alguns estu- dos que tratam das Américas como um todo sao: Robert Farris Thompson, Face of the Gods, op. cit; George Eaton Simpson, Black Religions in the New World, New York, Columbia University Press, 1978; Angelina Pollak-Eltz, Culfos Afroamericanos (Vudu y Hechicerta en las Américas), Caracas, Universidad Catélica Andres Bello, 1977. 183 Dossié adotaram como objeto magico-religioso, pois jd em suas terras de origem a imagem era conhecida e utilizada como talisma, O que houve em terras bra- sileiras foi a sua proliferagao, em determinada época e regio, nas quais foi intensa a chegada de pessoas de origem banto, escravizadas em suas terras natais. A adogio do catolicismo foi uma forma de integragiio dos africanos ¢ seus descendentes A sociedade escravista, estimulada pelos senhores ¢ pelos administradores ¢ aceita pelas comunidades negras, que, no entanto, tinham formas bastante particulares de vivenciar a religiao, reinterpretando simbo- los, ritos « dogmas a partir de suas culturas de origem. Comos vimos, esses processos de reinterpretagao eram comuns na Africa Centro-Ocidental e acon- teceram também no Brasil, mesmo diante da opressio, imposta pela socie- dade escravista. A enorme caréncia de registros acerca dos modos de vida dos escravos no Brasil, especialmente a forma como exerciam sua religiosidade, faz com que informages, esparsas e fragmentadas, assumam grande impor- vancia. As pequenas estatuetas de Santo Antonio, exemplos de produtos cul- turais formados no circuito que uniu Portugal, Africa e Brasil, sdo pistas que langam fachos de luz sobre aspectos da vida dos negros no Vale do Rio Paraiba, no século XIX. Considerando que todo processo cultural é din&mico, a andlise aqui proposta é valida para um determinado periodo, no qual a presenga de ma- neiras de pensar, sentir ¢ se comportar bacongo era mais forte, devido a pro- ximidade que o universo cultural de origem tinha para aqueles que haviam chegado recentemente na nova sociedade. Com a suspensio do trafico, os lagos com a cultura de origem deixaram de se renovar por meio dos africanos recém-chegados. Assim, pouco a pouco as elementos da religido catélica pas- saram a predominar, diluindo-se a influéncia banto no catolicismo popular brasileiro. Mas as estatuetas de Santo Antonio permaneceram como teste- munhas de crengas ¢ formas de religiosidade nas quais a presenga africana jente: A morfologia das pecas E grande a variedade e a quantidade de imagens de Santo Antonia de n6-de-pinho, pertencentes a algumas colegdes brasileiras. A divulgagao da sua existéncia deve-se principalmente ao trabalho dos colecionadores e a al- gumas exposigdes e publicagdes, nas quais foram inseridas, sendo as mais recentes organizadas por Emanoel Araujo, estudioso da arte afro-brasileira. 184 Santo Antonio de nb-de-pinho ¢ 0 catolicismo afro-brasileiro Emalguns desses santos, a influéncia da imagin4ria popular portuguesa € evidente, quer nas proporgoes entre as varias partes da imagem, quer na definigao dos detalhes, como nas feiges, nos membros ¢ nas vestes. Nesses casos, 0 conjunto compée um retrato relativamente realista do santo, com sua roupa de franciscano, tendo na mao esquerda o menino Jesus, sentado sobre o livro, trazendo, na direita, a cruz. Entretanto, na maioria desses santinhos, predominam tradigdes estéticas banto, como a simplificagéo das formas, 0 nao realismo ¢ o destaque para alguns aspectos simbolicamente importantes. Dentre estes, sobressai a cruz, sempre presente, enquanto € raro aparecer 0 livro, ¢ esté ausente, com freqiéncia, o menino Jesus. As estatuetas se comp&em de trés partes bastante distintas. A cabega, sempre bem marcada, O tronco (formando um todo compact com os bra- 0s, mais ou menos delineados pelo entalhe, mas nunca separados do corpo), que pode ser uma massa tinica, ou apresentar uma divisto na altura da cintu- ra, definida pelo cordao do habito ou pelos bragos, sempre dobrados sobre adbémen. Nos casos em que a veste franciscana se apresenta compacta, € 0 tronco € as pernas num volume sé, a base circular que arremata a imagem ganha propor¢oes maiores, integrando-se a escultura como um terceiro ele- mento. Dessa forma, a escultura pode apresentar trés partes, compostas pela cabega, pelo tronco, até a cintura, e pela parte de baixo da veste, ou pela ca~ bega, pelo tronco ¢ os membros inferiores ¢ pela base circular de sustengio. Essa estrutura basica da escultura lembra a que Robert Hottot descre- veu para o que chamou de “fetiches” zeée.?! Segundo o autor, que esteve na regio em 1906, ao camegar a esculpir uma imagem que seria transformada num objeto magico-religioso (minkisi), o escultor dividia em trés um cilindro de madeira, especialmente escolhida, talhando entio a cabega, 0 tronco, com 08 bragos pouco delineados, e as pernas.* Esse padrdo parece ter inspirado a forma dos Santo Antonio de né-de-pinho encontrados no Brasil. Apesar de a forma final diferir, é evidente a divisto em trés partes, tanto das estatuetas brasilciras quanto dos objetos de culto religioso /eée. Entretanto, é interes- sante notar que, para manter a estrurura tripartite nas esculturas de Santo Antonio, os escultores negros recorreram ao modelo da imaginaria portugue- # Povo banto, chamado também de tio, habitante da mangem direita do rio Zaire, na altura do Lago Malebo, ¢ com o qual os bacongo mantinham comércio desde antes da chegada dos, portugueses, no século XV. 2 Robert Hottot, Frank Willett, “Teke Fetishes”, Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, vol 86, n® \ Ganjun, 1956), pp. 25-36. 185 Dossié sa, no qual os santos repousam sempre sobre uma pequena base (que serve para que permanegam de pé, nos altares e oratérios), freqtientemente aumen- tando essa base ¢ transformando-a num elemento da imagem. Continuando a decifrar a aparéncia dessas figurinhas de madeira, po- demos destacar a postura ereta do santo, com as maos postas a frente do cor Po, ora unidas, ora sustentando a cruz € © menino, ora apenas a cruz, como é mais freqtiente. Em todas as situagdes, as maos se encontram a frente do corpo. Robert Farris Thompson diz que 0 corpo em pé remete a uma intervengio decisiva, na medida que atesta seu poder, 20 manter o equilfbrio ¢ ao contro- lara forga da gravidade.* Quanto ao gesto de pousar as duas palmas das maos sobre a barriga, chamado simbidila, “segurando firme”, é, entre os bembe povo banto, um sinal de reza. Ao pousar as duas mios sobre a barriga, dei xam-se para triis as questdes do nivel inferior, como citime e vinganga, ¢ ele- vam-se a mente € 0 coragao a niveis superiores. Com esse gesto, prepara-se 0 terreno, organiza-se 0 entorno, limpa-se o ambiente de possiveis discussées, para se aleangar as conquistas positivas."* Os Santo Antonio de né-de-pinho estilo quase sempre rezando, seja com as maos unidas na frente da barriga, numa ligeira modificagdo da tradigao catélica, segundo a qual as mos sio postas & altura do peito, seja com as mios postas frente a frente, semelhante a0 gesto simbidila. Mesmo quando tém nos bragos o menino Jesus ea cruz, as mios do santo se encontram espalmadas frente a frente, sobre o ventre. Tan to para os catélicos como para os banto, com esse gesto, o set, representado pela imagem, esté dirigindo seu pensamento para Deus, para Nzambi Mpungo, ou para ambos, misturados como as culturas que os criaram, As imagens de Santo Antonio de n6-de-pinho adquirem dimensio muito maior do que a de amuletos portadores de boa sorte, quando decifra- das a partir da cultura bacongo. Sob esse prisma, ganha significado especial 0 fato de serem feitas de uma determinada madeira, especialmente dura, e dificil de ser encontrada na regio onde foram confeccionadas. A escolha da madeira certamente tem um significado que nos escapa, mas que esta asso- ciado A sua dureza ea sua raridade, respeitando uma légica equivalente a que # Robert Farris Thompson, African Art in Motion. Icon and Art, Los Angeles, Berkeley, University of California Press, 1974, p. 49. * Robert Farris Thompson and Joseph Comet, Te Four Moments of the Sua: Kongo Artin Tso Worlds, Washington, National Gallery of Art, 1981, pp. 74-6, apoiado em informagzo de Fu- Kiau. 186 Santo Antonio de nb-de-pinko e 0 catolicismo afro-brasileiro rege a escolha das substancias animais, vegetais minerais, que vio compor 0 bilongo, elemento que ativa a forga do espirito contida no nkisi® ‘A leitura dos Santo Antonio de né-de-pinho, aqui proposta, mostra que esses pequenos objetos magico-religiosos exprimiam formas de relacionamen- to com a esfera do sobrenatural préprias dos banto. Quanto ao padrao esté co, partindo do modelo europeu, ganhou no Brasil total independéncia, Muitas vezes as pequenas esculturas deviam ser identificadas como Santo Antonio apenas porque eram assim chamadas, pois nada, na sua aparéncia, as ligava & figuragao corrente do santo. Eram representagaes estilizadas, bem ao gosto africano, de uma pessoa em pé, com as mios postas, a frente, ¢ uma cruz desenhada sobre 0 tronco, na altura do peito ou das pernas. Ao analisarmos sua morfologia, notamos que as imagens de Santo An- tonio parecem ter alcangado, nessa regitio do Brasil, significados bem mais complexos do que os correntes na Africa Centro-Ocidental, onde foram en- contradas estatuetas do santo, geralmente de cobre, muito mais figis aos pa- drécs estéticos ¢ simbélicos europeus. Foi longe da terra natal e da comuni- dade de origem que os afticanos e seus descendentes as transformaram num, yeiculo de expressio de conceitos banto, simplificando ao maximo a repre- sentagao do santo ¢ dando especial destaque a cruz, afirmando, assim, uma estética e uma cosmogonia préprias, muito diversas daquelas propostas pe- los senhores escravistas. Impossibilitados de realizar seus ritos tradicionais, nos quais os mindisi tinham fungao central, seja pela auséncia de ngangas ca pacitados para tal, seja pelas limitagdes impostas pela repressio senhorial, os santinhos, Toni Malau, que, na Africa, serviam de talismis, provavelmente sem fungdes importantes nos ritos magico-religiosos, passaram a ocupar um espaco maior, Continuaram sendo portadores de boa sorte ¢ usados para cu- rar doengas, ao serem friccionados nas partes do corpo afetadas, mas também, se tornaram intermeditirios entre os dois mundos, como atesta o destaque dado 2 Essas susbstiincias so escolhidas a partir de jogos de palavras, nos quais o som de seus nomes ou propriedades sto associados a0 som dos nomes das coisas sobre as quais se pede que o espfrito aja (como, por exemplo, o nome de uma doenga), assim como dos nomes dos tipos de ages que eles devem desempenhar (como, no caso de uma doenca, a cura). Essa relagio, fundada em metiforas, metonimias e jogos de palayras com sons semelhantes, € explieada por Wyatt MacGaffey em “The eyes of understanding Kongo minkisi”, Astonishment aid Power, ‘Washington, National Museum of African Art, Smithsonian Institution Press, 1993, e em Av Anzhology of Kongo Religion: Primary Texts from lower Zaire, Lawrence, University of Kansas, 1974, Sobre os posstveis significados que 0 né-de-pinho tinha para as negros, que com ele esculpiam as estatuetas de Santo Antonio, ver também Robert Slenes, ap. cit, 187 Dossié As cruzes nas pequenas esculturas e o fato de elas terem sido encontradas “abandonadas em santas-cruzes”. Dessa forma, a apropriagao do santo, aqui descrita, € completamente diferente da existente nas religides afro-americanas, nas quais 0 santo catéli- co se torna uma representagao, entre outras, dos deuses ou dos espiritos afri- canos. Os Santo Antonio de né-de-pinho sio, eles mesmos, objetos magico religiosos, por meio dos quais os homens mantiveram relagées com o sagrado € com o sobrenatural. ‘lendo-se noticia de sua existéncia apenas nessa regitio. das Américas, durante 0 século XIX, sao exemplo de uma criagio cultural : E 3 = = se ig we * < ry « « < “ e 188 restrita a determinado tempo e lu- gat, nos quais foram intensas as in- fluéncias dos povos da Africa Cen- tro-Ocidental. A medida que as mis- turas se tornaram mais intensas, os significados banto se dilufram na miscigenagio de signos, valores, comportamentos € visdes de mundo de africanos ¢ europeus, ¢ os santi- nhos de né-de-pinho ficaram restri- tos aos acervos de reliquias familia~ tes ¢ dos colecionadores. A sua exis téncia, entretanto, serve para que vislumbremos os processos pelos quais alguns africanos e seus descen- dentes utilizaram elementos cultu- rais préprios para se adapatarem a sociedade escravista, na qual foram forcados a se incluir. Santo AntOnio, em né-de-pinho. 15 em. Reproduzido de: Eduardo Etzel. /magens Religiasas de Sao Paulo. Methoramentos. Edusp, SP, 1971.

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