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NAO CUMPRIMENTO DE CONTRATOS BILATERAIS (Interpretacdo dos artigos 676.° e 709.° do Cédigo Civil) Peto Pror, Doutor INocfNclo GaLvio TELES 1. A cada passo se celebram contratos de que nascem reci- pocras obrigagées para os contraentes — contratos bilaterais ou sinalagmaticos- Esses contratos, como todos os outros, sio por via de regra cumpridos, porque, para felicidade nossa, ainda nio esta de todo embotado no homem o sentimento do respeito pela palavra dada, e assim as relagdes sociais vio-se desenvolvendo normalmente, sem atritos ¢ sem sobressaltos. Mas essa regra da pacifica e espont&nea execugao das obriga- ges assumidas tem excepgdes, as quais, se sio em pequeno nu- mero quando confrontadas com o princ{pio geral de que se afastam, constituem, em si consideradas, uma avultada massa de casos, para que nao devemos olhar indiferentes. E assim de téda a vantagem procurar conhecer, tio bem quanto possivel, o regime da lei para o nao cumprimento dos contratos bilaterais, onde maiores s&0 as dificuldades, pela presenga de duas ou mais obrigacdes simultaneas que, no dizer de um autor, «se contrapdem entre si e se equilibram como os dois pratos de uma balangan. Exige-o a trangiiilidade social: quanto melhor f6r conhecida a lei no seu espirito, maior justiga reinard entre os homens. 84 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 2. Sempre que, celebrado um contrato bilateral, uma das partes n&o cumpre, a outra, se j4 cumpriu ou esta pronta a fazé-lo, pode optar por uma de duas solugdes extremas, que a lei coloca a sua disposigéo, em alternativa : ou considera subsistente o contrato, € déle procura extrair tédas as conseqiiéncias, directas ¢ indirectas, ou considera-o insubsistente, dando como destruidos os seus efeitos, Ambas as solugdes sao Idgicas, E légica a primeira. O contrato, que nao encontrou igual fide- lidade nos dois contraentes, nao tem, por hipétese, qualquer defeito intrinseco: é valido. E da mesma forma nao ha, por hipétese, qualquer facto, a éle extrinseco, que necessariamente determine a sua ineficdcia: é, em principio, eficaz. Valido e eficaz, le est em pleno vigor, e assim o contraente que o nio trafu tem o poder de exigir do outro que a éle se submeta. A segunda solugao também é légica. Pode um acto jurfdico ter-se constitufdo validamente e a lei achar de justiga que a deter- minada pessoa se dé a faculdade de fazer cessar, com valor re- troactivo ou nao, os seus efeitos, alegando como fundamento, nao o mero arbitrio, mas uma situacio objectiva pela lei descrita, a qual situacao consiste, ou puramente no prejuizo que para o inte- ressado deriva do acto, ou nesse prejuizo e em outros pressupostos, ou no nao cumprimento por uma das partes, etc. A éste estado de coisas adapta-se bem, segundo me parece, o conceito de rescisdo, embora a lei, que se mostra nao raro fluida e hesitante na termi- nologia, empregue tal palavra, em n&o poucos dos seus preceitos, para abranger ainda outras situagdes. Aquela pessoa em cujas mos se encontra a sorte do acto é por vezes um terceiro, mas pode ser uma das partes. Assim acontece precisamente nos casos de nao cumprimento dos contratos bilateriais: quem af tem direito & rescisdo é aquéle dos contraentes que se manteve fiel ao seu com- promisso, ¢ o facto que lhe da tal direito é o nao cumprimento, imputdvel ou nao, por parte do outro. 3. A) Conhecidos os dois grandes caminhos que pode seguir o pactuante a quem a lei deve protec¢do, compete ver, de modo mais concreto, que faculdades lhe s&o conferidas, ao trilhar um e ao trilhar o outro. REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 85 Comegarei por considerar a hipétese de €sse pactuante optar pela subsisténcia do contrato, hipétese a que se referem 0 § 1,° do art. 676 do Cédigo Civil e, em parte, 0 corpo do art. 709 do mesmo Cédigo, Diz o § 1.° do art. 676: «se nenhum dos pactuantes tiver cum- prido o contrato e sé um déles se prestar a cumprri-lo, éste pode exigir do outro, ou sé a execugio do contrato, ou sé a pena con- vencional ou, na falta desta, a devida indemnizac’o, mas nunca uma € outra coisa, simultaneamenten. Diz por seu turno, o corpo do art. 709, na parte que de mo- mento nos interessa : «se o contrato fér bilateral e algum dos con- traentes deixar de cumprir pela sua parte, poderd o outro con- traente... exigir que o remisso seja compelido judicialmente a cumprir aquilo a que se obrigou ou a indemnizd-lo de perdas e danos.» E de censurar o facto de o legislador ter consagrado A mesma matéria duas disposigées, colocadas em lugares diversos e redi- gidas de modos diferentes, mas de contetido praticamente igual. Julgaré surpreender-se entre elas uma diferenca de pressu- postos, visto que o § 1.° do art. 676 supde que nenhum dos pactuan- tes cumpriu ainda, ¢ o art. 709, pela sua generalidade, tanto supde @sse caso como o de um dos pactuantes ter j4 cumprido. Mas a verdade é que tal aspecto é de secundaria importancia, sempre que o contraente fiel (chamemos-lhe assim) se decide pela manutencao dos efeitos do contrato. Neste caso, a circuns- tancia de sse contraente j4 haver cumprido, ou nao, nada afecta a esséncia das coisas, no que toca aos poderes que lhe sao dados contra o remisso, Se um executou o contrato € 0 outro o violou, o primeiro poderé exigir mais ou menos, mas nada tem a satisfazer. Se porém nenhum cumpriu ainda, nada pode qualquer déles pretender, desde que nao se preste a executar as préprias obri- gasdes: porque enquanto nao revelar essa disposi¢io, 0 outro pactuante ter4 o direito de resistir e protelar o cumprimento, nao incorrendo em falta, dada a interdependéncia das obrigagdes das duas partes (exceptio non adimpleti contractus, principio geral de que se faz aplicag&o no art. 1574 do Cédigo Civil). 86 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS A diferenca é, portanto, de valor escasso, e consiste no se- guinte : quando um dos contraentes tenha dado cumprimento ao contrato, éle pode limitar-se a atacar, sem que nada lhe seja de exigir; de contrario, deve prontificar-se a cumprir para nao ser igualmente considerado remisso. ‘Mas, quer ésse contraente tenha cumprido, quer nao tenha cumprido ainda, ¢que faculdades lhe sio reconhecidas, dentro da base de que lhe convém a subsisténcia do contrato? 4, Nao resta divida que o pactuante, que ao contrato nao deso- bedeceu, conserva em principio o direito & prestagdo, como facto voluntario, se bem que n&o espontaneo, do devedor. Assim o dizem os preceitos, transcritos, do § 1.° do art. 676 e do art. 709 do Cédigo Civil. O primeiro declara que o contraente, que nado esta em falta, «pode exigir do outro... a execugao do contrato» ; e 0 segundo estabelece, semelhantemente, que «pode exigir que o remisso seja compelido judicialmente a cumprir aquilo a que se obrigoun. Argumentar-se-4 que estas disposicées nao téem o significado que lhes atribuo, pois so equivalentes e na segunda admite-se a possibilidade de o contraente em falta ser forgado, através dos tri- bunais, ao cumprimento do contrato — o que nao pode referir-se & prépria prestagfio, em si considerada, porque essa, como facto voluntario, como acto do devedor, est4 necessariamente subtrafda ao império da férca fisica: nemo potest precise cogi ad factum. As palavras legais hd pouco reproduzidas prender-se-iam, dentro desta argumentagio, com a realizagio do direito do credor sdbre o patriménio do devedor, direito destinado a assegurar ao primeiro, se o patriménio do segundo para isso chegar, um equi- valente da prestaco nao efectuada. Nao creio que seja assim. 08 1.° do art. 676( abstraindo por agora da chamada pena con- vencional) contrapde & execugao do contrato a devida indemni- zagGo, e o art. 709 também contrapée ao cumprimento daquilo a que o remisso se obrigou a indemnizagao de perdas e danos. Ora, segundo penso e mais & frente procurarei evidenciar, se estas expressdes wdevida indemnizagaon ¢ «indemnizagao de per- das e danos» abrangem outros aspectos, também compreendem o REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 87 proprio equivalente patrimoinal da prestacéo que nao logrou realizar-se. Sendo assim, é ébvio que, ao falar a lei, nas citadas disposigoes, de execugo do contrato e de cumprimento daquilo a que o remisso se obrigou, nao pode querer aludir ao equivalente patrimonial, que noutras palavras se encontra referido. Alude necessariamente ao cumprimento voluntdrio, conquanto — repito — nio espon- taneo, E no deve impressionar o facto de se declarar no art. 709 que © contraente pontual pode exigir que o outro «seja compelido judi- cialmente a cumprirn- Este modo de dizer, apesar de reportado, como o entendo, ao cumprimento voluntério, n&o esté em disso- nancia com a maxima acima recordada, ¢ fundamental no capitulo das obrigagées, de que nao é Hicito forgar quem quer que seja, pela coaccao fisica, & realizacdo de um facto, ainda que essa coaccio proceda dos orgios constituidos. HA casos, embora excepcionais na legislac&o portuguesa, em que ao credor s&o facultados meios indirectos de conseguir a efectuag&o voluntéria da prestacao, pela aplicagiio ao devedor de um mal que ameaca prolongar-se ou repetir-se enquanto éle voluntariamente nao cumprir, A ésses casos quadra bem a férmula interpretanda do art. 709 do Cédigo Civil. Por outro lado, é preciso nfo esquecer que a simples instau- ago e€ prosseguimento de uma acc&o ou execucio contra o de- vedor constitui por natureza um meio genérico de incutir temor no &nimo do demandado ou executado, coagindo-o ao cumprimento voluntério, menos gravoso. E independentemente destas consideragées, nao pode negar-se que o art. 709 prevé a possibilidade de se compelir o remisso a cumprir, e, se é éle que cumpre, trata-se, por sem diivida, da reali- zac&o voluntéria da prestacao. 5. Quando o devedor, apesar de todos os esforgos, se recusa, mesmo tardiamente, a efectuar a prestag4o, ou a prestagao j4 nao é possivel ou nenhum interésse tem para o credor, poder éste Procurar, através do patrimdnio daquele, um beneficio que equi- valha ao da prestacdo, assim frustrada. Por vezes, excepcionalmente, o credor logra, pelo mecanisme 88 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS da execucao judicial, um resultado em tudo igual ao que lhe traria @ prestagdo, que contudo falhou, como facto pessoal do devedor que éste no quis praticar. Sucede isso em trés casos : 1.) quando est4 em jégo um crédito pecunidrio e o pagamento No processo se faz pela entrega de dinheiro ou pelo produto da venda (Céd. do Proc. Civ., art. 882); 2.°) quando a execugio versa sébre coisa certa e esta é encon- trada no patriménio do devedor (Céd. do Proc. Civ., art. 928 e seguintes) ; 3.°) quando 0 facto que devia ser prestado tem cardcter fungtvel € 0 exeqiiente requere a sua prestagao por outrem (Céd. do Proc. Civ., art. 933), Nos demais casos, o credor recebe um quid (geralmente di- nheiro) que, se n&o representa o préprio contetido da prestago, vale monetariamente o mesmo que esta. Todos éstes resultados traduzem o exercicio, por via judicial, do direito do credor edbre o patriménio do devedor. E enquadram-se na categoria genérica de indemnizacio ou in- demnizagao de perdas e danos, estabelecida no § 1.° do art, 676 e no artigo 709 do Cédigo Civil — embora em bom rigor terminold- gico assim nao devesse acontecer. A minha afirmagao é exacta pelo menos quanto aos casos ge- tais, em que 0 credor ndo obtém aquéle especifico resultado a que tendia a prestacado, Relativamente aos outros casos, nos quais alcanga @sse resultado, é de duvidar se Ihes corresponde com propriedade, e mesmo a face da terminologia legal, o conceito e © nome de indemnizagao ou de indemnizagao de perdas e danos. Mas podem sem esférgo, e mediante uma interpretacao ligeira- mente extensiva, considerar-se abrangidos nas férmulas wexecugao do contrato» e «cumprimento daquilo a que o devedor se obrigoun, Porque, embora nao haja néles um cumprimento voluntério, a verdade € que se consegue o mesmo resultado que com tal cum- primento se obteria. ; 6. Devemos assim dar como certo que, violado um contrato bilateral por uma das partes, pode a outra, como pode alias qual- quer credor cuja pretensio nao foi pontualmente satisfeita, por em REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS. 89 movimento o seu origindrio direito de crédito em ordem & actuago de uma das duas grandes faculdades que néle se compreendem : o direito & prestacg&o ou — se o devedor se conservar renitente ou a prestac&o fér agora impossivel ou ja no tiver interésse — o direito de execucgao, que do patriménio do devedor consente extrair va- lores que ao crédor tragam um beneficio igual ou equivalente Aquele com que contava. Por isso, oferece-se A nossa consideragio um problema, de altissimo interésse pratico, e que perturbadoras diividas tem susci- tado: ¢ poderd, nos contratos bilaterais, o contraente que cumpriu, ou esta pronto a cumprir, exigir do outro, nao sé. a prestag&o ou um sucedaneo patrimonial da Prestagdo, mas também o ressarcimento dos prejuizos que sofreu por nao ter havido, por parte désse outro contraente, execugao pontual ? Suponha-se que A comprou a B um certo ntimero de aparelhos, que pagou adiantadamente, obrigando-se B a fazer entrega déles no dia I de Janeiro de 1946. Se, chegado ésse dia, B no fizer tal entrega, A conservard, é claro, 0 direito de exigir o cumprimento voluntatio, e poderé também mover contra 0 remisso a xecugao por coisa certa ou, no caso de esta execugdo resultar infrutffera, obter, no préprio pro- cesso, o pagamento do valor respectivo, Procedendo assim, A limitar-se-A a dar tealizag&o ao seu pri- mitivo direito de crédito, nos térmos j& expostos, ou fazendo actuar © direito & prestacio ou fazendo actuar o direito de execugio, que vem a desenvolver-se sébre 0 patriménio do devedor, afim de conseguir, através déle, o préprio beneficio que o credor pretendia (no nosso caso os aparelhos) ou um beneficio equivalente (0 valor em dinheiro dos mesmos aparelhos). Mas imagine-se que, pelo facto de B nao realizar a prestaco ou néo a realizar pontualmente, A sofre prejuizos. Nao me refiro ao prejuizo que representa a propria violacao do direito de crédito, em sj encarada, porque ésse desaparece logo que o titular déste direito 0 faz valer, obtendo o objecto da presta¢Zo ou um equiva- lente patrimonial. Refiro-me, sim, aos prejuizos que ao credor traz o facto ilfcito da violagao, pela repercussées que determina sdébre outros aspectos da sua esfera juridica. Seria o caso de A, em conseqiiéncia da falta de B, perder a oportunidade de fazer um 90 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS negécio com os aparelhos que B deveria entregar-lhe, no qual ga- nharia determinada importancia. ¢Serd o devedor (neste exemplo, B) obrigado a pagar também © valor désses prejuizos, a que deu causa com a sua conduta ilicita? Nos casos gerais, a resposta é inegavelmente afirmativa, mas, se se trata de contratos sinalagmaticos, a diivida PGe-se, mercé da redaccSo defeituosa da lei. O §11.° do art. 676 est4, com efeito, assim concebido: «se ne- nhum dos pactuantes tiver cumprido o contrato e s6 um déles se Prestar a cumpri-lo, éste pode exigir do outro, ou sda execugio do contrato, ou sé a pena convencional ou, na falta desta, a devida indemnizag&o, mas nunca uma e outra coisa, simulténeamentey. E, de seu lado, o art. 709 diz: «se o contrato fér bilateral e algum dos contraentes deixar de cumprir pela sua parte, poderd o outro contraente... exigir que o remisso seja compelido judicialmente a cumprir aquilo a que se obrigou ou a indemnizé-lo de perdas € danos». O modo como esto redigidos os dois preceitos favorece, & pri- meira vista, a solugio de que néo podem exigir-se, simulténea- mente, a prestacio (ou um suceddneo dela) e o ressarcimento pelos preiuizos sofridos. O credor teria de contentar-se ou com aquela prestagéo (ou respectivo sucedaneo patrimonial) ou com ste ressarcimento. Contra tal solucdo reage, a meu ver, o bom senso e reagem 08 mais elementares principios informadores da responsabilidade contratual, ; Nada hd, com efeito, de especifico no direito de crédito nascido de um contrato bilateral que obste légicamente a que o seu titular possa prevalecer-se déle e, ao mesmo tempo, do direito a ser in- demnizado dos prejufzos que a violagao do primeiro lhe ocasionou. A falta do devedor nao faz desaparecer, dbviamente, o primi- tivo direito do credor, que continua a poder invocd-lo; mas, em compensagio, faz surgir um direito & reparag&o dos prejuizos, que emerge, nos térmos gerais de direito e nomeadamente nos térmos dos arts. 2361 e 705 do Cédigo Civil, do facto ilicito que naquela falta se consubstancia, Se o-credor estd assim investido na titulari- dade de dois direitos, ¢ porque sé h4-de poder exercer um? Acresce que, por férga do § 2.° do art. 676, wo direito de exigir REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS OL @ pena convencianal ou a dita indemnizacio (a indemnizacio refe- rida no § |.°) nasce da simples mora na execugio do contraton. Este §, cujo interésse para a resolugaio do nosso problema se torna inttil evidenciar, mostra explicitamente que é possfvel cumular, com a execugSo do contrato bilateral, a indemnizagao correspon- dente aos prejuizos que da simples mora resultaram. E é facil dar uma explicagio da maneira, alias extremamente incorrecta, por que o legislador se exprimiu no § 1.° do art. 676 € no art: 709. As expressées «indemnizagion e vindemnizagao de perdas e danos» atribuiu éle, nestes preceitos, um significado muito amplo, de molde a abranger, nao sé a reparacao dos prejuizos causados pela inobservancia do contrato, como também o equiva- lente patrimonial da prestaciio (cfr. art. 706), Ora, como a reali- zag&o voluntdria desta nao pode ser evidentemente cumulada com © seu equivalente pecunidrio, dai a alternativa estabelecida entre a execuciio do contrato (art. 676) ou o cumprimento daquilo a que o remisso se obrigou (art. 709) e, por outro lado, a indemnizac&o de perdas e danos, que tal equivalente abrange também. Isto n&o impede contudo, pelas razdes expostas, que o credor tenha direito & reparacao dos prejuizos tanto no caso de pedir um equivalente da prestago como no caso de pretender a prépria realizag&o desta. Em reférgo de tal argumentacao, pode invocar-se o preceituado genéricamente no art. 931 do Cédigo de Processo Civil, relative & execugio para entrega de coisa certa, e segundo o qual, use nao fér encontrada a coisa que o exeqiiente devia receber, pode éle, no mesmo proceso, fazer liquidar o seu valor e as perdas e danos, provenientes da falta de entregan. 7. O§ 1.° do art. 676 contrapde & indemnizagao a pena conven- cional, estatuindo que sé na falta desta poder4 aquela ser exigida. As duas ‘ealidades sio assim, ao que parece, equivalentes para €sse preceito de lei, excluindo-se uma A outra. Isto nao constitui argumento contra a opiniao que defendi ante- riormente. Certo é que, em meu modo de ver, a palavra «indemnizagaon tem, nesta disposicio legal, um sentido bastante amplo e pouco rigoroso, compreendendo, a par da indemnizagio propriamente 92 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS dita, ou seja, do ressarcimento dos prejuizos sofridos, o valor da Prestacdo nao efectuada- ‘Mas nao pode negar-se que a cléusula penal é susceptivel de abranger também ésses dois aspectos, Nada na lei o protbe, autoriza-o o principio da autonomia da vontade. Assim como as partes t&em o poder de calcular préviamente o quantum possivel dos prejuizos que o néo cumprimento ocasionar4, e de fixar ésse quantum como reparacéo devida pelo remisso, assim cumpre reconhecer-lhes, & face da lei, a faculdade de determinar, também préviamente, o valor da prestagao, para o caso de nao execucdo desta. E as duas estipulagdes podem, sem esfdrgo, considerar-se abrangidas no conceito legal de cldusula penal — sendo até de admitir que nao se encontrem convenientemente diferenciadas, pela fixag&o indistinta de um quantitativo global, que seja a expressio pecunidria tanto da prestagdo como dos prejuizos que se receiam. Tendo em consideragdo tédas as observagées anteriores, é facil concluir que a cldusula penal pode ser chamada a desem- penhar trés papéis distintos : — ou se limita a fixar o valor da prestacao; —ou se limita a fixar o valor dos prejuizos ; — ou fixa, cumulativamente, o valor da prestacao e o valor dos prejuizos. Se os contraentes forem claros nas suas estipulagdes, mostrando de forma inequivoca que significagio pretendem atribuir A clau- sula penal, nao haverd senao que respeitar a vontade assim mani- festada. De contrario, tem a dtivida de desfazer-se segundo os Processos normais de interpretagdo dos actos juridicos, na qual interpretagdo se atender4, designadamente, ao quantitative con- vencionado, que, por exemplo, se fér muito reduzido, menor do que o valor corrente da prestacSo, nao é de presumir se alargue, no intuito das partes, a esta, funcionando também como seu substi- tutivo, Trata-se de um problema, como qualquer outro, de inter- pretac&o da vontade. Tal é realidade. E é também uma realidade que a técnica rigo- rosa, dom precioso das leis, esté ausente do Cédigo Civil, nesta parte, Sendo assim, no causa estranheza que o § 1.° do art. 676.’ REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 93 estabeleca a pena convencional e a indemnizag&q como térmos antitéticos, como térmos que se excluem reciprocamente. Em muitos casos assim acontece — e tanto basta para dar um sentido a lei, Mas, noutros, as coisas passam-se de modo diferente, como de seguida se reconhecera. a) Olhemos primeiro 0 caso de o interessado nao obter o objecto da prestagi0 em espécie, quer na data do vencimento, quer mais tarde. Conquanto se trate de obrigac&o derivada de contrato bilateral, dupla faculdade assistira ao credor, de harmonia com o sustentado neste estudo, —a faculdade de exigir o equivalente da prestacio e a de exigir o ressarcimento dos lucros cessantes ¢ danos emer- gentes, uma e€ outra coisa comportadas pela elasticidade legal da palavra cindemnizagaon. Ora, se no contrato se tiver fixado uma cldsula penal, e esta for extensiva a ésses dois aspectos, representando por vontade dos contraentes nao sé o valor dos prejufzos como também o da pres- taco (terceira hipétese acima considerada), é manifesto que, en- tao, <6 a cldusula penal sera de exigir, nada podendo cumular-se com ela. A tal caso adapta-se, com perfeigao, a letra da lei. Mas, se o significado da clausula penal fér diverso, compreen- dendo-se nela ou sé 0 valor da prestag&o ou sé 0 valor dos prejui- zos, no vejo que razdo superior de légica ou de justica ou que imperiosa razdo de lei se opde a que o credor obtenha, além do cumprimento da mesma clausula, e a titulo de indemnizagao, no sentido do § 1.° do art. 676.°, respectivamente a reparagio da lesio sofrida ou o equivalente da prestagio em falta. Dentro da interpretacdo que propugno, e que mais razodvel se me afigura, teria o credor, caso nenhuma cldusula penal houvesse sido estipulada, o direito de exigir do remisso tanto o valor que viesse a atribuir-se & prestagdo como o montante em que se com- putassem as perdas.e danos. Se no contrato se introduziu uma cldusula penal, mas dela sémente se fz constar a prévia fixagdo ou daquele valor ou déste montante, deixando o resto sujeito a determinago ulterior, parece ébvio que o credor poderd cuimu- lar, com o quantitativo constante da cldusula,aquéle que assim vier a ser posteriormente fixado. O contrario seria a negacZo dos mais elementares prinefpios. coy REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 5) Concentremos agora a nossa teng&o no caso oposto de o interessado lograr o objecto, em espécie, da prestacio, embora depois da data do vencimento (; mora). Nao teré éle, nesse caso, manifestamente, direito ao equiva- lente pecuniério da Prestagdo, porque, se nao fosse assim, haveria da sua parte um locupletamento, recebendo duas vezes o mesmo valor —em espécie e por meio de um sucedaneo patrimonial. E éste até, como evidenciei, o motivo Por que no § 1.” do art. 676.° e no art. 709.° se contrapée a execug&o ou © cumprimento do contrato 4 indemnizacao, usada esta tltima palavra para abran- ger o préprio valor daquilo a que o remisso se encontrava adstrito. Mas, como também procurei demonstrar, o pactuante que res- Peitou o contrato ficaré, ainda aqui, ¢ n3o obstante conseguir o cumprimento ou execugao (impontual), com direito & reparacao dos prejuizos resultantes da mora, As disposigdes citadas nao o dizem expressamente, mas da mesma forma nao o tepelem (dentro da interpretacao atrés defendida), e varios elementos, que apontei, conduzem com seguranga a essa conclusio. Ora bem. Nos casos de simples mora, ha igualmente a consi- derar e distinguir as trés diversas modalidades que pode revestir, quanto & sua extensdo e func&o, a cldusula penal: ou esta visa fixar o valor da prestaco, ou o dos prejuizos, ou um e outro. Na primeira hipétese o credor, sem embargo da existéncia de mora, no poderé exigir o cumprimento da cléusula penal, porque a cldusula se destinava a dizer o que pagaria o devedor se o con- trato nao fésse executado, e o contrato foi-o, embora tardiamente. Mas ficar-lhe-4 salvo o direito & indemnizagiio em sentido restrito. Na segunda hipétese, poderd exigir aquéle cumprimento, nao porém esta indemnizacao. Na terceira hipétese, também Ihe assistird a faculdade de fazer funcionar a cléusula penal: sé na Parte, todavia, em que nela se faga a antecipada avaliacao dos prejuizos. 8. B) Supusemos até aqui que o contraente pontual se decidiu pela subsisténcia do contrato. Sabemos, no entanto, que éle pode adoptar solugao diversa, dando por destrutdos os efeitos do acérdo que celebrou- Qual seré, entio, o regime legal? REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS S A matéria est4 regulada nao sé no corpo do art, 709 e no eeu § como ainda no corpo do art. 676, O proémio do art. 709.°, na parte que nos interessa aqui, diz © seguinte: «Se o contrato fér bilateral e algum dos contraentes deixar de cumprir pela sua parte, poderd 0 outro contraente ter-se igualmente por desobrigado... E o § tinico acrescenta: «gual- mente se pode ter como desobrigado um dos contraentes, se 0 outro se achar ffsica ou legalmente impossibilitado de cumprir © con- traton. O proémio do art. 676 esté redigido desta forma: «O pac- tuante, que satisfez aquilo a que se obrigou, pode exigir do que nao houver satisfeito ndo s6 0 que pela sua parte prestou, ou a correspondente indemnizagao, mas também a pena convencional estipulada, e, na falta desta convengao, indemnizag&o por perdas e danosy. Poder supor-se que esta tiltima disposigdo se refere & facul- dade de fazer actuar 0 contrato, ¢ nao de o rescindir. De facto, a conjugacao désse preceito com 0 preceito contido no § 1.°, por mim anteriormente analisado, parece justificar tal ponto de vista. Este §.1.° diz respeito as hipsteses em que o contraente, que a lei quere proteger, prefere a manutencio e efectivacio do contrato, mas, como vimos, apenas fala, na sua letra, do caso de nenhum dos contraentes ter ainda cumprido, Em contrapartida, o corpo do artigo alude, também restritamente, As situagdes nas quais um dos pactuantes ja satisfez. Esta contraposig&o pode conduzir quem leia _desprevenidamente o artigo a pensar que, em todo éle, se regula sé a faculdade de pér em movimento o mecanismo contra- tual, distinguindo-se nesta hipdtese geral duas hipétese mais simples, a de uma das partes ter j4 realizado a sua prestagiio e a de nenhuma o haver feito ainda, sub-hipéteses que estariam pre- venidas respectivamente no proémio e no § 1.° Mas nfo creio que seja essa a boa interpretagao. Aquela con- traposicao é perigosa, e explica-se como deficiéncia do texto legis- lativo, entre outras tio gaves ¢ tio numerosas neste capitulo. A anilise do corpo do art. 676 dé-nos a conviccio inabalvel de que éle é atinente, na efectividade, A rescisdo do contrato bila- teral com base no ndo cumprimento por parte de um dos con- traentes. 96 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS, Que se diz af ? Diz-se logo em primeiro lugar o seguinte : «o pactuante, que satisfez Aquilo a que se obrigou, pode exigir do que nao houver satisfeito... o que pela sua parte prestou.Ora, se © primeiro pode exigir do segundo o que pela sua parte prestou, isso significa, sem possibilidade de quaisquer dividas, que os efei. tos do contrato se encontram destruidos, que éste foi rescindido. Estando o contrato de pé, e querendo o contraente nao remisso que éle assim se mantenha, Iicito ndo lhe é, se j cumpriu, pedir a restituigao do que satisfez, e, se ainda nao cumpriu, abster-se de © fazer. Desde que o contrato conserve a sua férga vinculativa, qualquer das partes Ihe deve obediéncia, nao tendo nenhuma delas, no caso de o haver executado, causa legitima para pedir & outra @ restituigéo do que prestou : a prestacSo efectuada tem funda- mento € nao pode impugnar-se, porque foi imposta por uma con- veng&o cuja obrigatoriedade perdura. Em sintese, o art. 676 regula no seu corpo e no seu § 1° situagdes radicalmente diversas, porquanto neste supde que o con- trato subsiste e naquele que é rescindido. Qualquer destas duas hipéteses comporta duas sub-hipéteses, consoante o contraente que tem legitimidade para resolver acérca do destino do contrato, deixando-o com vida ou preferindo a sua rescisio, JA realizou de seu lado a prestac&o a que estava adstrito ou nao o féz. O corpo do artigo 26 prevé a primeira destas sub-hipéteses e o § a segunda, mas isso nfo impede, pelas ponderosas razdes apresentadas, que cada um se aplique a uma hipétese geral distinta— num caso rescisao do contrato, no outro perduragao dos seus efeitos. 9. Pensa-se muitas vezes que a rescisio é um modo de des- truigdo da eficécia dos actos juridicos que sé pode realizar-se por pessoa diversa de quem os praticou, e precisamente pelo juiz, A intervengéo do tribunal, com valor constitutivo, seria atributo especifico da rescisio, distinguindo-a da revogaciio propriamente dita, Nesta — na revogacio — o ac6rdo destruir-se-ia pela vontade contréria das préprias partes (distrate) ou, pelo menos, de uma delas, se a lei ou contrato assim o consentisse (revogacSo unila- teral), naquela—na rescisio — destruir-se-ia pela intervencdo imparcial de um terceiro, o juiz. Julgo, no entanto, que a disting&o, assim concebida, nao tem REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 7 fundamento. O que separa a verdadeira revogaciio da rescisio nao € a circunstfncia de haver ou n&o coincidéncia entre o agente ou agentes respectivos ¢ os sujeitos do acto, mas a circunstAncia, diferente, de aquéles procederem no exercicio de um poder dis- criciondrio ou terem de invocar certo fundamento, concretamente previsto e definido pela lei. Se a vigéncia do acto terminar, sé para o futuro ou também em relagio ao passado, porque as partes (ou uma delas) assim o querem livremente, estamos diante da figura de revogacao, Se porém o fenémeno se verifica porque h& para isso, e abstraindo dos casos de anulagao, um fundamento que dé a uma das partes ou ao tribunal, a pedido daquela ou de terceiro, o poder de destruir a eficdcia do acto, a figura que surge é a de rescisao, Tanto a revo- gacdo (unilateral) como a rescisio podem, pois, ter por sujeito um dos sujeitos do acto : a diferenga entre uma e outra residira no facto de, quanto & primeira, éle agir discricionariamente, e vinculada- mente quanto & segunda. Daqui se conclui que hd duas espécies de rescisio, a rescisdo jurisdicional, operada pelo tribunal, e a rescisdo ndo jurisdicional, resultante da s6 vontade, convenientemente manifestada, de um dos sujeitos do acto rescindivel. . Ora a rescis&io dos contratos bilaterais, que se funda no nao cumprimento por um dos contraentes, pertence a esta segunda espécie. Para o contrato se rescindir, nao é essencial a intervencio do juiz ; e, quando tal intervengao se dé, a rescisio nao existiré s6 a partir do momento em que o tribunal se pronuncie, mas desde que o interessado tenha exteriorizado, de maneira idénea, a sua vontade a ela conforme. Assim me leva a pensar o modo como se exprimiu o legislador no art. 709. Nos precisos térmos déste artigo, «se o contrato for bilateral e algum dos contraentes deixar de cumprir pela sua parte, poderé o outro contraente ter-se igualmente por desobrigadon, E 0 8 unico diz que «igualmente se pode ter como desobrigado um dos contraentes, se o outro se achar fisica ou legalmente impossibilitado de cumprir o contraton. O advérbio «igualmenten, empregado no corpo do artigo, é incorrecto, porque faz supor que o contraente remisso, pelo facto de nao ter cumprido, ficou desobrigado. Nao é assim, ébviamente. Ano 5.°, n.* |e 2 7 98 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS O nao cumprimento, nos contratos bilaterais, nio funciona como condigao resolutiva (iuris ou facti), sem embargo de tradicional © comummente se Ihe dar o nome de condigao resolutiva técita, © por isso no determina por si, automaticamente, a ineficdcia do acto; essa ineficdcia existiré ou nao consoante a vontade do outro contraente; € uma ineficdcia ope voluntatis (por via de rescisSo), nfo uma eficdcia ope legis (caducidade). A prova do que afirmo encontra-se na circunstancia de ésse outro contraente ter liber- dade de escolha, podendo, se tal preferir, deixar invulnerados os efeitos do contrato. Mas a apontada incorreccao de linguagem é indiferente para © nosso fim. A lei declara, com particular energia, que um dos contraentes pode ter-se por desobrigado, sempre que a obrigacSo, que sua se contrapde, nao é cumprida, e assim esta fica despro- vida de causa,—seja ou nao o facto imputavel ao devedor daquela. Se o contraente pode ter-se por desobrigado, isso signi- fica que basta a sua vontade para a rescisio do contrato, nao sendo © tribunal que a decreta. Claro que o tribunal pode ser chamado a pronunciar-se, quer Porque a outra parte entende que nao havia fundamento para a YescisAo, quer porque o autor desta tem direitos a fazer valer, dela emergentes. Mas a sentenga que sébre a controvérsia for proferida nao ter valor constituitivo, ainda que dé raziio ao réu na primeira hipotese € ao autor na segunda, porquanto nao rescindird, ela pré- Pria, o contrato, limitando-se a declarar que éste se encontra res- cindido (além de condenar o réu em uma ou mais prestagdes, se fér'caso disso). Parece-me, no entanto, ao abrigo de téda a duvida que nao basta qualquer manifestagio de vontade do interessado para que @ rescisdo se considere operada. Deve tal vontade ser levada ao conhecimento da outra parte: de tal modo que sé depois de ésse conhecimento existir poderd reputar-se rescindindo o contrato. Qualquer meio de comunicago serve, desde que possa fazer-se @ sua prova, porque nenhum em especial postula a lei. Serve por exemplo a declaracdo perante testemunhas, uma notificago judi- cial avulsa, a citagio para a acgio intentada, com furdamento ha rescisdo, contra aquéle que nao cumpriu. E a necessidade de uma declaragio dirigida ou comunicada REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS, on a éste (declaracdo recepticia) afigura-se-me indubitavel, dado que a rescisio lhe interessa sobremodo e sem essa formalidade nenhuma certeza poderia haver sébre a vida do acto, 10. Quando o contraente que rescinde o contrato tenha cum- prido, da rescisio nasce para éle o direito & restituigao daquilo que prestou. Acha-se tal faculdade consignada logo na primeira parte do corpo do art. 676, Isto bem se compreende, Pois que, nos casos gerais (e é a ésses casos que me refiro), a rescisio dos contratos sinalagmaticos, fun- dada no nao cumprimento por uma das partes, tem cardcter re- troactivo : produz os seus efeitos ex tunc, nao ex nunc; resolve o contrato, nao o dissolve, Este deixa assim de existir, ou melhor de ser eficaz, nao apenas para o futuro, mas também quanto ao passado. As obrigagdes que déle promanavam desaparecem retroactivamente e, portanto, se alguma foi executada, aquéle que a cumpriu tem direito a ser reposto no estado anterior, obtendo a restituicio do que prestou. Essa restitui¢o nem sempre pode fazer-se em espécie, Quando tal aconteca, o interessado tem, de harmonia com os principios gerais, a faculdade de pedir a aestimatio ou o equivalente daquilo que devia ser-lhe restitufdo. Estabelece-o o art. 676, quando diz: «o pactuante, que satisfez Aquilo a que se obrigou, pode exigir do que nao houver satisfeito o que pela sua parte prestou, ou @ correspondente indemnizagaon. E de notar, entre paréntesis, a circunstancia curioea de neste Preceito o Cédigo empregat, sem sombra de divida, o térmo «indemnizagéo» para significar 9 mero valor ou equivalente patrimonial de uma prestagao nao efectuada — o que vem corro- borar a interpretagio que dou ao § 1.° do art. 676.°, bem como & parte correspondente do art. 709.° Aquela prestagio nao é, claro, @ que contitui objecto do direito nascido do contrato, mas a que constitui objecto do direito nascido da rescisdio — o direito & res- tituig&o do que, em execugiio do contrato, foi prestado. 11. Mesmo nos casos de rescisio, havera lugar a indemnizagéo de perdas e danos ? Se h4, ¢ que fungdo desempenha ela? Por muitos prejuizos que sofra com a rescisio o contraente 100 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS que a ela tem direito e a actua, nenhuma indemnizacio de perdas e danos poder& pretender ésse contraente se a rescisdo se baseia num facto nao imputdvel & outra parte. A resciséo, com efeito, tanto é possivel quando o nado cumprimento constitui um facto (subjectivamente) ilicito, como quando constitui um facto (subjec- tivamente) licito, desde que, nesta ultima hipétese, a prestacio ee tenha tornado impossivel : num e noutro caso a obrigacao nao foi executada nem o ser4 mais e, assim, a obrigacSo contraposta, que naquela tinha a sua razio de ser, fica sem causa, o que é suficiente para legitimar a rescisio, como entendeu, e bem, o decreto n.° 19.126, acrescentando ao art. 709 0 § nico que j& conhecemos, Ora, se a resciséo de um contrato bilateral se funda no nao cumprimento por um dos pactuantes, mas ésse nao cum- primento ndo é ilicito, falta um pressuposto essencial para a indemnizagio de perdas e danos. Aquéle pactuante ndo deu causa (subjectivamente) a rescisdo: nao tem, pois, de responder pelos prejuizos que éle determine. E nos outros casos, que sio os casos normais, ¢ quid iuris ? Abstractamente poderia pensar-se que a rescisio ndo é cumu- lavel com a indemnizag3o de perdas e danos, Dir-se-A: se a rescisio faz desaparecer, retroactivamente, as obrigagdes decor- rentes do contrato, o nao cumprimento delas, se foi em determi- nado momento um facto ilfcito, perdeu tal qualidade, com valor para o pretérito, logo que o contrato se rescindiu, nao havendo assim que responder pelas suas conseqiiéncias. Cronolégicamente, existiu um facto ilicito; juridicamente, dado que se supde que as obrigagSes nunca tiveram vida, nenhum facto ilfcito existiu ou existe. E na verdade o Cédigo Civil germ&nico ($§ 325 e 326) con- sagra esta orientacdo. Perante a legislacao portuguesa, as coisas n&o se passam assim. Efectivamente, o art: 676 da, em térmos expressos, ao contraente que tem o poder de rescindir o contrato a faculdade de exigir, «ndo sé o que pela sua parte prestou, ou a correspondente indem- nizagio, mas também a pena convencional estipulada, e, na falta desta convenco, indemnizagao por perdas e danos». Pregunta-se no entanto: qual a fung&o desta indemnizacio por perdas e danos ? que prejuizos visa ela reparar? De ordindrio os autores, assim nacionais como estrangeiros, REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 401 respondem, mais ou menos explicitamente, que tal indemnizagio tem por fim colocar o interessado na situagao em que se encon- traria se a contraprestagao tivesse sido excutada (pontualmente). Raciocinemos a face de um exemplo. Suponha-se que A, dono do prédio X, ¢ B, dono do prédio Y, celebraram entre si a troca déstes prédios, cujo valor era igual (400 contos). Antes porém de o prédio Y ser entregue a A, devorou-o um incéndio, por culpa de B, que a tal entrega se encontrava obrigado. A perdeu, por hipétese, o ensejo de realizar duas vendas: a venda do prédio X, que nfo fez, por ulteriormente © ter alienado a B, ¢ a venda do prédio Y, que também no féz, Por entretanto éle ter perecido. A oferta quanto ao prédio X era de 600 contos e quanto ao prédio Y de 500. Querendo A fazer valer o contrato de troca, pode — pelo me- nos dentro da interpretagao que defendo — pedir o valor da pres- taco nao realizada, ou sejam 400 contos, e ainda o prejufzo que the adveio de o prédio Y no ter sido entregue, ou sejam 100 con- tos, pois se o fésse, té-lo-ia vendido por 500, Mas dever&, em contrapartida, se ainda nao entregou o prédio X, prontificar-se a entregd-lo. Admita-se, porém, que A prefere a resciséo, ¢ Que direitos lhe assistem nesse caso? Conservard o prédio X, ou obterd a sua restituicao, se déle j4 féz entrega ; e no poder pretender o valor da prestagao que era devida por B. Mas, no tocante aos prejufzos, gem que medida deverd ser ressarcido? em 100 contos, lucro que teria obtido pela venda do prédio Y, ou em 200, lucro que auferiria ee houvesse vendido o prédio X? Para a orientacio comum, a primeira solugao é a exacta, visto que a execucSo do contrato por B teria dado a A a possibilidade de alienar o prédio Y, nao o prédio X. Nao creio, todavia, que essa orientagao seja de aplaudir. O contraente remisso, no caso de rescistio, nado deve ser obrigado a colocar 0 outro contraente na situag&o em que éste se encontraria se éle, remisso, tivesse cumprido, porque o dever de cumprir desa~ Pareceu juridicamente no passado, em conseqiiéncia da retroacti- vidade da rescisio. Deve, sim, colocé-lo na situagio em que estaria 8e ndo tivesse sido sequer celebrado o contrato a cuja resciséo o remisso deu causa. Contetido da indemnizagao é, pois neste caso, 102 REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS como nos de culpa in contrahendo, dentro da doutrina de Ihering, o chamado interésse contratual negativo. A qualificagéo da conduta do contraente infiel como ndo cum: primento (ilicito) nunca existiu de direito — embora tenha exis- tido de facto — visto reputar-se retroactivamente anigiilada a obrigagio respectiva. A ilicitude dessa conduta sé subsiste na medida em que esta foi causa reprovdvel da rescisdo. Portanto, 08 prejuizos que ao referido contraente cumpre indemnizar so 8 que nao se teriam verificado se éle se houvesse abstido de colaborar num contrato de cuja morte veio a ser o causador. Assim, no exemplo de h4 pouco a indemnizacio seria de 200 contos, n3o apenas de 100, porque, na realidade, se a troca nao tivesse sido celebrada, A teria vendido por 600 contos o prédio X. As duas orientagées diferem designadamente no seguinte, corolario das premissas expostas : na Idgica da doutrina corrente, se a contraprestacao, que devia ser realizada e o nao foi, valer mais do que a prestagao, o sujeito passivo desta poderd pedir, a titulo de indemnizac&o, aquéle excesso de valor, que deixou de lucrar em virtude da falta de cumprimento do contrato. Esta conseqiiéncia constitui mais um argumento contra o ponto de vista que rejeito. Se o interessado pretende que o valor global da contraprestacao fique representado no seu patriménio, 0 justo € que consiga ésse resultado, nao através da rescisio, mas sim através da efectivacao do contrato, cumprindo de seu lado, se ainda nio cumpriu, e exigindo aquéle valor global como equi- valente da contraprestacao em falta. 12. O art. 676 estabelece que, havendo cldusula penal, serd ela cumprida, ¢ sé na sua auséncia se pedird a indemnizacSo por perdas e danos- ¢ Ora como conciliar esta disposigio com a doutrina expendida ? ¢ Nao certo que, se a eficdcia do contrato deve considerar-se aniquilada retroactivamente, assim deve considerar-se também a da cléusula penal, simples acessério? @ E nao é por igual certo que essa clausula visa de ordindrio cobrir os prejuizos emergentes do nio cumprimento ? REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS 103 Estas razées tém inegavel valor; mas nao afectam a solidez da tese aqui defendida. De harmonia com essa tese, cuia procedéncia resulta das con- sideragSes apresentadas, deve interpretar-se o art. 676, na parte m que se ocupa da pena convencional, como referindo-se a uma pena (passe a imprecisao do térmo legal) estipulada precisamente, na intengao das partes, para o caso de rescisdo. Com isto se tes- ponde a objec¢ao formulada em segundo lugar. E a primeira objeceao fica, ipso facto, destruida, porquanto uma cldusula penal com éste conteido nao pode deixar de ter, substancialmente pelo menos, a natureza de um acto indepen- dente, cuja eficdcia em nada é atingida pela ineficdcia do contrato sinalagmatico a que diz respeito. 13. Outros aspectos gostaria de versar, como a rescisko dos con- tratos de trato sucessivo ou execugio continuada, que nio apre- senta, excepcionalmente, cardcter retroactivo. ” Mas nao o consente a indole déste despretencioso estudo. Inocéncio Galvéo Teles

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