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EUGENIA: QUANDO A BIOLOGIA FAZ FALTA AO CIDADAO Nelio Marco Vincenzo Bizzo Faculdade de Educagao da USP RESUMO ‘A partir da polamica levantada pela publicagao do livre The Bell Curve nos Estados Unidos, este artigo apresenta um histéroo {das progapbes eugénicas, retomando os enuneiados eugénicos originals, desde Francis Galton, @ saus pressupostos darwina: os. O artigo procura mostrar 0 contexto om que as idéas do ‘melhoramento da raga’ se estabeleceram, Na Inglaterra, isso Signiticou sobretudo uma discriminagaa contra os pobres, sem vinculo dito com a cor da pole. No Brasil, a introdugso do ides rio eugénico pode ser localizada na iteratura a partir do inicio este século, Sua implomentago teve como palco o ambiente ‘educacional EUGENIA — RACISMO — GI — BIOLOGIA SOCIAL DARWINISMO ABSTRACT EUGENICS: BY WANT OF BIOLOGY. Based on the debate ‘caused by tho publication of The Bell Curva in the United States, ths article presents a rundown on the preachings of eugenics, It goes back tothe early pronouncements, beginning with Francis Galton and his Darwinian presuppositions, and attempts to show the context of the establishment of the ideas of "aco improvement’ In England, this meant, primarily, discrimination against the poor, but did not involve the color of the skin. in Brazil, eugenic thought may be found in its literature of the beginning of this century. The stage for its implementation was ‘education, Este trabalho ¢ uma sintese de um dos capitulos da tose de livre-docéncia, dotendida junto & Faculdade de Educagdo da USP, fem agosto de 1994, tendo sido apresentaco na XVII Reunigo Anual da ANPE, em outubro de 1994 38 Cad, Pesq., $0 Paulo, 1.92, p. 98-82, fev. 1995 A TEORIZACAO DA DESIGUALDADE OU CURVAS E SINOS ‘A recente publicagéo de The Bell Curve nos Estados Unidos trouxe de volta uma polémica que alguns (poucos) acreditavam superada, A definigao de pa- drOes raciais, @ especialmente comparagdes entre ca- racteristicas desses padrdes, suscitam polémicas pelo menos desde 0 século passado, O que é realmente notavel € que o langamento de livros anti-racistas, ‘como 0 ultimo de Sandra Harding, The “racial” eco- nomy of science: towards a democratic future (1993), nao obtenha um décimo do estrondo. © mesmo pode ser dito de seu livro anterior, Whose science? Whose knowledge? (1991), verdadeiro cult do cientista demo- rata, Entre nds, pudemos ver artigos apaixonados ga- nhando espago nos jornais, defendendo posigdes que pouco dependiam do contetido do livro em si. Alguns, ‘como Fatima Oliveira, do Cebrap, comparam as teses de Murray @ Hemstein & fraude cientitica do psicdiogo britanico Cyril Burt (O Estado de S. Paulo, 6/11/94), Outros definem a iniciativa como uma simples mani- festagao de autoritarismo para com as diferenas cul- turais, ou entao como uma forma de legitimar cortes de subsidios & satide e educagdo dos negros; nao fal- tou quem associasse o livro a uma simples manifes- tagao neonazista. “A maioria das criticas € politica’, atirmou o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, re- ferindo-se a conviogSes que, de certa forma, inde- pendem do trabalho empirico de pesquisa citado no livro (Fotha de S. Paulo, 30/10/94), Deve-se levar em conta que muitas das criticas publicadas na grande imprensa dirigidas a The Bell Curve evitam analisar os dados apresentados e 0 ar- ‘gumento do livra em si. Concentrar esforgos nos pres- Supostos genéricos de uma pesquisa que compara ra- as humanas, ou que investiga 0 Ql de diferentes pessoas, pode comprometer a critica e acabar por re- forgar o argumento original. As criticas, via de regra, rocuram mostrar que as conclusdes ndo sao cienti- ficas, que sao, sobretudo, ideolégicas. No entanto, hem sempre conseguem justificar suas posigdes de forma convincente Este artigo analisa 0 histérico @ 0 contexto social mais amplo que envolveram as formulagdes eugéni- cas ofiginais, perguntando-se se poderao ser total- mente isentas de valores mesmo sendo consideradas plenamente cientificas. Tal perspectiva é importante, uma vez que caminhamos na diregao da elucidagao da estrutura molecular do material hereditario humano © a tentaao de modificd-lo, no sentido de “melhorar a espécie” ou de “salvar a nagao”, estara sempre pre- sente. A tentativa de manipulagao genética da popu- lagao nao 6, em absoluto, algo muito recente na his- toria humana. O infanticidio, a esterilizago em mas- sa, 0 racismo e 0 genocidio fizeram parte de varias culturas ha séculos, até mesmo nos tempos pré-co- lombianes, A partir de meados do século passado essas pra- ticas comegaram a ser tematizadas pelos cientistas, Eugenia passando a adquirr relevancia cientiica. Um dos re- sultados foi a criagao da Eugenia como disciplina de {undo biolégico-matematico Procuraremos aqui resgatar as idéias eugénicas otiginais, observar seu transito para a area cientifica, sua penetragao pioneira no Brasil, na literatura e na educagao até a década de 1930. O préximo passo seré perceber sua reedigao no contexto atual, dentro das novas perspectivas do Projeto Genoma @ da clo- nagem de embrides humanos. © acompanhamento, ainda que bastante limitado @ sumario, da trajetéria das propostas eugénicas ¢ de sua teorizagao cientifica buscara, a seguir, demonstrar que as propostas eugénicas foram — e provavelmen- te continuam sendo — muito mais expresso de po- lticas sociais de segmentos restos da sociedade do que aplicagao pratica de toorias cientiicas universais. © argumento, @ no apenas a critica a ele, seria po- itico, & medida que teafirma conviogdes que, de certa forma, independem do trabalho empirico de pesquisa. PROBLEMAS DO PASSADO DA EUGENIA OU CURVA EM SINO ‘A mengao eugenia remete-nos quase de imediato ao contexto germanico entre-guerras © a Adolf Hitler. Apontar o totalitarismo nazista como emblematico da causa eugénica ndo é descabido. Todavia, ha de se levar em consideragao que © pensamento eugénico, mesmo 0 germanico, nao teve origem no contexto so clopoltico do Ill Reich @ tampouco I4 conheceu seu fim. Criticar 0 projeto racial nazista, embora necess4- fio, ndo significa, em absoluto, enfrentar a esséncia da’ questo da eugenia como programa biopsicosso- cial, © abismo de Taigeto, na Grécia, talvez seja o mais antigo emblema da eugenia como pratica social. Esparta, cidade-estado despstica, tinha plena cons- cléncia ‘da vantagem de possuir cidadaos do sexo masculino, fortes @ robustos, para formarem as fileiras de seu exército. Todos os bebés que nascessem sem vigor fisico, ou com qualquer tipo de malformagao, eram sacrificados no abismo. Até hoje, no regime de castas de muitas sociedades e mesmo dentro da ética aristocratica européia de sangue azul — expresses do mesmo esforgo eugénico —, em vez do infanticidio ‘espartano, adotaram-se praticas menos chocantes. De todo modo, a nobreza nunca se destacou pelo vigor fisico, as vezes até pelo contrario. ‘A eugenia, jd em formato cientifico mas ainda sem esse nome, estard em livro apenas em 1869, quando Francis Galton, primo de Charles Darwin', pu- 1 Como veremos, seu parentesco com Darwin vinha a conti ‘mar sua tese cential.O tormo “genius” tinha sido, na época, interpretado como uma auto-exallacdo arrogante desse cien tista que tinha sido alfabetizado com um ano © meio, lia bem ‘298 dois e meio, escrevia aos Wes, recitava poesia aos cinco f discutia a Hada aos seis, Apesar de nao ter tido um de- sempedho notavel, afinal graduara-se na melhor faculdade de matematica do planeta 39 blica Hereditary genius, minucioso trabalho de levan- tamento de geneaiogias. Galton perseguiu talentos re- correntes em diferentes gerapdes de cerca de quatro- centas familias aristocraticas. Tendo a mao provas ca- bais do profundo nepotismo daquela sociedade aristo- ctdtica, preferiu, entretanto, concluir que as vocagdes © 08 talentos, @ no as oportunidades, passavam de pai para filho Embora 0 argumento nao fosse de todo inédit, ois outros cientistas jé especulavam a respeito das Potencialidades biolégicas do homem do ponto de vis- ta de sua vida social, Galton com certeza incentivou varias pessoas do meio cientiico propriamente dito a publicarem suas idéias, como Charies Darwin. Exis- tem evidéncias de que Darwin iria ciscutir 0 Homem abertamente em seu Origem das espécies, mas fato- res circunstanciais acabaram mudando 0 curso dos acontecimentos (Bizz0, 1992). Adiando a idéia, cole- tou mais dados para um apéndice do livro The varia- tion of animals and plants under domestication (1868). Entretanto, as vésperas da publicagao, admitiu a Al- ‘red Russel Wallace, co-descobridor do mecanismo de selegao natural em 1858, que 0 apéndice sobre o Ho- mem, “o mais domesticado dos animais’, jé estava muito grande e ganharia a forma de um novo livre? Dessa forma aparece Descent of Man (1871), no qual, ao tratar da “sele¢ao natural’ nas nagdes civilizadas, Darwin reiterou varios argumentos de Galton. Nesse livio Darwin escreveu Nos selvagens, as fraquezas do corpo e da mente a0 imediatamente oliminadas; aqueles que so- brevivem apresentam normalmente um estado vi- goroso de saude. Nés, homens civilizados, por outro lado, envidamos todos os esforcos para de- ler 0 proceso de eliminagao; construimos asilos para os loucos, aleijados @ doentes; instituimos leis para os pobres e os nossos médicos exerci- tam ao maximo a sua habilidade para salvar a vida de quem quer que seja até o uitimo momen- to. Hai motivo para se crer que a vacinagao tenha salvo um grande numero daqueles que, por débil constituigao fisica, ndo teriam em tempo resistido 4 variola. Desta maneira, os membros fracos das sociedades civiizadas propagam o seu género, Ninguém que tenha se dedicado 4 criagéo de ani- mais domésticos duvidard que isto pode ser alta- mente perigoso para a raga humana. E surpreen- dente ver com que rapidez a falta de cuidados, ou cuidados inapropriados, leva 4 degeneragao uma raga doméstica; mas, com excegao do ho- mem, 6 raro que alguém seja to ignorante a pon: to de permitir que seus piores animais se repro: duzam. (Darwin, 1982. p.161-2) Conforme acreditava Galton, de acordo com as correntes de pensamento dominantes na época, 0 fato de os seres humanas estarem divididos em ragas de- finidas implicava a existéncia de um representante ti- pico da raga, ou seja, um padrao, Como esse padrao fosse algo abstrato e dificil de ser encontrado, uma explicagao razoavel precisava ser encontrada. Galton acreditava que a falta de selecao nos casamentos es- 40 tava fazendo desaparecer os individuos tipicos dos padres racials. A miscigenacao estaria destruindo as ragas. Francis Galton retomou algumas experiéncias ma- tematicas do belga Lambert Adolphe Jacques Quéte- let? (1786-1874), um pioneiro da estatistica que havia utiizado 0 conceito de distribuigao normal, ou “desvio da média", ao analisar levantamentos censitarios, e percebeu algumas regularidades entre membros de uma mesma populagao. Para Galton, se isso era ver- dadeiro para caracteristicas biolégicas como a estatu- ra, por exemplo, também deveria ser verdadeiro para todas as outras caracteristicas “tisiolégicas’, inclusive a inteligéncia, Dizia ele: Agora, se este 6 0 caso com a estatura, entéo também seré verdadeiro com cada caracteristica fisica, como perimetro cefélico, tamanho do cére- bro, peso da matéria cinzenta, nimero de fibras cerebrais etc., e, num passo que nenhum fisiolo- gista hesitaria, capacidade mental. Este 6 0 meu objetivo: esta analogia mostra que deve haver uma média de capacidade mental obedecendo a certa constancia nos habitantes das ilhas briténicas, e que os desvios dessa mé- dig, aqueles mais proximos da genialidade ou aqueles mais préximos da estupidez, devem se- guir @ lei que governa os desvios de todas as mé- dias verdadeiras. (Galton, 1869. p.28) Como vernos, as curvas em forma de sino jé fas- cinavam os matematicos desde 0 século passado. Esta seria uma aplicagao da matematica & Biologia, com repercussdes profundas, vastas e duradouras no cenério educacional (Humes, 1983). A biologizagao e ‘a neuronizagao da andlise do desempenho escolar e (0 delineamento de politicas educacionais foram duas reas onde os efeitos dessa aplicagdo se fizeram sen- tir com muita intensidade. Diante das "provas mate- maticas" das limitagoes intelectuais de certos estratos da populacdo, politicos e fildsofos, como Herbert ‘Spencer, tentardo provar que a educagao dos fithos dos trabalhadores ¢ initil (Spencer, 1977). Todavia, as “provas matematicas" de Galton ndo tardariam a perder suas aspas. Uma escola de pen- samento estava sendo fundada e uma série de ferra- mentas matematicas seriam desenvolvidas com o fim especifico de definir padres raciais a partir de dados censitérios. Assim surgiram a andlise de regressao, o teste exato de Fisher, 0 prosaico qui-quadrado, e tan- 2 Os escrtos populares de Gould, como Danwin © os grandes enigmas da vida (1987), afkmam que Darwin no admila a aplicagao de suas teorias ao Homem. A publicagao de Descent of Man aparece am sua analise como algo inteira: ‘mente misterioso @ inexplicvel, como se fosse uma conver Ho lardia a causa do danwinssmo social. Basta lembrar que Darwin comegou a colecionar fatos sobre o Homem em seu ‘Caderno M" (de Man), iniciado em julho de 1838! 3 0 coeficiente de associacge, proposto pelo escocts G. U ‘Yule em 1912, ¢ designado pela letra “Q" em sua homena- gern, Cad, Pesq. n.92, fev. 1995 tos outros algoritmos estatistices inventados por Gal- ton, mas também por disoipulos como Karl Pearson, Ronald Fisher ¢ tantos outros. ‘A EUGENIA FAZ ESCOLA, APESAR DAS DIFICULDADES, OU ENSINO CURVO Para entender 0 crescimento e a difusdo da eugenia No Ambito cientitico ¢ necessario considerar dois fa- tores importantes. Em primeiro lugar, a elite cientifica, de inicio cética, passou a apoiar as teses eugénicas, apesar das dificuldades de comprovagao empirica dos ressupostos eugénicos. Ninguém menos que Charles Darwin passou a colaborar diretamente com seu pri- ‘mo, agora amigo, Francis Galton. Em segundo lugar, Galton conseguiu fundar uma escola de pensamento que reuniu alunos notaveis e produziu produtos cien- tificos nada despreziveis: a Biometria figura como uma. de suas principals realizagoes; a identificagao indivi- dual, pelas impressdes digitais, método adotado até hoje, foi um desses produtos; ferramentas estatisticas, que continuam indispenséveis em nossos dias, foram outro produto importantissimo. A partir de uma série de curvas de distribuigio normal, Galton conseguiu uma sintese que poderia re- velar qual seria o padrao original da raca. Imagine- mos, por exemplo, um levantamento que revele o ta- manho do pé de uma populagdo. As pessoas adultas de 1,60m apresentam pés de tamanhos que variam de acordo com uma distribuigéio normal, que se repe- tird com todas as alturas. Tomando todos os levan- tamentos, é possivel colocar os resultados das dife- rentes pranchas num Unico quadro. Na reta horizontal, teremos 0 tamanho do pé e na vertical a altura da pessoa. Langados os resultados de todas as alturas, teremos cada um dos individuos representado por um Ponto no gréfico. O resultado sera uma nuvem de Pontos da qual sera possivel deduzir uma tendéncia de variagao retilinea, A reta resultante, que passa pelo centro da nuvem, sera o resultado da regressio revelaria, segundo seu inventor, o padrao original da raga, A nuvem seria a dispersdo causada pela falta de cuidados reprodutivos, pela falta de selecdo dos reprodutores, pelo cruzamento de membros tipicos da raga com membros “degenerados”, Boa parte da estatistica que conhecemos, utiiza- da para comprovar “desigualdades raciais" de forma cientifica e “ideologicamente isenta’, ou "politicamente neutra’, foi, na verdade, desenvolvida especificamente ara teorizar sobre essas mesmas “desigualdades ra- Ciais’ (Mackenzie, 1982). Nao é de estranhar, portan- to, a consisténcia dos resultados de estudos como The Bell Curve. A conviogao da superioridade racial do branco eu- ropeu levou cientistas a teorizé-la, apoderando-se in- clusive dos testes de Binet e adotando levantamentos censitarios'. Essas teorias produziram algoritmos ma- tematicos inéditos, que foram, entao, aplicados de vol- ta a levantamentos censitarios, especialmente de tes- Eugenia. tes de Ql, @ 0 resultado foi a confirmagao das con- vicedes inicais de seus inventores. AS conclusdes passaram a ser reflexo do que esté na ‘natureza’ e no na mente daqueles que criaram os métodos para estudécta E importante ressaltar que 0 conceito de regres- sto é utlizado até hoje em um sem-niimero de api cagdes, da biologia a engenharia, E, portant, irénico que tenha sido desenvolvido com elementos que nao ‘sao mais aceitos hoje em dia, mas ainda alcance re- sultades plonamonte vaidos, [A regressdo fez com que nuvens de pontos — os seres humanos coneretos — fossem transformadas fem retas — 0s padides raciais abstratos. Galton cria- (a a regressio para calcular a esséncia da raga, apro- ximagao aristotélica da problematica bioldgica. A re- {gressao indicaria 0 caminho a ser perseguido no sen- tido de apurar uma raga com 0 suceder-se das gera- es. Para tanto, deveriam ser introduzidas modifica- es no corpo e no intelecto dos individuos, no sen- tido de retomo ao padrao racial original. Essas modi- ficagdes deveriam ser, pelo menos em parte, transmi- tidas as geragdes posteriores. Aqui a robustez tedr- commatematica da eugenia comegava a mostrar sua fragiidade empirica Como a transmissao das caracteristicas adauiti- das se firmara como detalhe crucial no programa eu- génico, Galton langaria mao da teoria apresentada no ano anterior por Charles Darwin. Em seu The Varia- tion of animals and plants under domestication (1868), Darwin pretendia explicar, com a “hipdtese proviséria da pangénese"’, os fendmenos hereditarios conheci- dos até entao, Por essa hipotese, as modificagées so- fridas pelas diferentes partes do corpo seriam comu- nicadas aos érgaos reprodutores, os quais passariam para a geracdo seguinte a informagéo modificada. Para Galton, essa hipétese 6 de “enorme utiidade para aqueles que pesquisam a herecitariedade. E uma chave que abre todas as portas que nos impe- dem de conhecer sua natureza. (..) 0s fatos da he- ranga do talento devem ser vistos da forma como a teoria da Pangénese assim nos permite” (Galton, 4 Allted Binet formulou seu primaro taste psicolégico em 1908. ‘Seu objetvo era identi criangas que pudessem ter dif: culdades para progredi nos estudos nas escolas de Paris ‘Seu “teste de inteligéne:a”indicaria as crangas que deveriam ser estimuladas mais do que as outras, para molhorar rapi- damenta seus resultados no taste, Binet nunca atirmou que © que ele media pudesse ser um atnbuto “inato’, muito me- ‘os “hereditério” ou “Txo". Logo apos a morte prematura de Binet, em 1911, os eugenisias se apossaram de seu teste para estudos biometricos 5. Darwin tivha uma tooria para expicar a heranga das carac- teristcas bildgicas, que ele denominou de pangénese. Suas ‘elas a esse respoito postulavam a existencia de centros produtores de gémulas em todos os orgaos. Todas as mo- ‘ificagsas que elas sotrassem acarcetariam modificagoes nas ‘gémulas produzidas. Elas seriam Yansportadas ato 08 Orgaos Sexuais na época da reproducdo e poderiam transmit 8S 00> vas gerages as caracterstcas moatficadas dos 6rgaos. 41 1869. p.350, grifo nosso). O modelo de transmisso hereditaria que subsidiava o programa eugénico de Galton assegurava a transmissio de todas as carac- teristicas presentes no individuo aos seus descen- dentes, mesmo daquelas adquiridas durante sua vida, @ de outras recebidas dos ancestrais mas que nao tinham se manifestado no individuo. © levantamento genealdgico era fundamental para Galton, pois iria de- terminar quais as caracteristicas latentes que pode- riam estar presentes no individuo, herdadas de gera- ‘G6es anteriores. ‘© modelo pangenético de Darwin previa que o ‘exame fisico do individuo revelaria com seguranga aquilo que seria transmitido & prole, Outras caracte- Tisticas poderiam também ser transmitidas, mas ape- nas acrescentando particulas hereditarias & prole @ nunca subtraindo aquelas que ja tivessem se mani- festado, © levantamento censitério das caracteristicas das populagdes, como no caso dos attributos intelectual das familias aristocraticas das ilhas briténicas, revela- ria as caracteristicas patentes da raga. Tal método ex- cluia a possibilidade de as camadas subalternas da populagéo demonstrarem qualquer attibuto estranho As suas condigdes materiais de vida. Dessa forma, as imposig6es sociais transformavam-se em expressao das possibilidades biolégicas da ‘raga’; os privlégios conferidos pelo nepotismo passavam’ a ser vistos, ‘como impeto hereditério®. A pobreza material ¢ inte- lectual de largas parcels da populagao era vista ‘como simples consequéncia de uma determinagéo biolégica e hereditaria. Caso nao tivesse sido herdada de _geragdes anteriores, assim o seria a partir de entao, Como vemos, as duas premissas basicas da eu- genia, em seu bergo — raga humana, definigao de potenciaidades a alcangar, preservar € melhorar, @ transmissao pangenética das caracteristicas, regra, para determinar o surgimento © perpetuacao das po- tencialidades —, eram as palavras-chave do programa eugénico original. Pode-se tentar tragar a trajetéria das propostas eugénicas a partir das novas edigdes do mesmo livro de Galton. Em sua segunda edicdo (1892) traz um longo pretacio, assinado pelo proprio Galton, Nessa altura, com as idéias pangensticas de Darwin jé aban- donadas, a eugenia ndo podia mais contar com a transmissao dos melhoramentos dos individuos de uma geragao seguinte. No entanto, ainda nao havia uma teoria que pudesse tomar o lugar da pangénese explicar a transmissao das caracteristicas heredité- fas. Galton entrentou a questao reconhecendo que, se de fato nao houvesse transmissao das caracteristicas, © programa eugénico perderia sentido, e seria dificil defender satide e educagao para individuos cujos fi- |hos nasceriam tao ignorantes e susceptiveis a mo- léstias quanto seus pais quando criangas. Afinal, a idéia de uma educagao para as mulheres semelhante 42 dos homens — introduzida na Inglaterra em meados da década de 1830 sob a influéncia dos “lamarckis- tas-vermethos”, que propagandeavam as grandes van- tagens para as geragdes vindouras caso o sistema fosse adotado antes do matriménio — entusiasmara 9 jovem Darwin pouco antes de suas nupcias com Emma (Desmond e Moore, 1992). Por ocasiéo da reedigao do livro, Galton, ao se desculpar pela falta de oportunidade para rever seu cohtatido, razdo pela qual a segunda edicao era idén- tica a anterior, reconhecia que, se 0 fizesse, 0 capitulo final, sobre as conciusdes, seria revisto, em especial no que se refere a “teoria proviséria da pangénese”. Mesmo assim, apesar de todo 0 trabalho de August Weismann e de sua escola de Freiburg no sentido de responsabilizar a selegao natural como tinica forga motriz da evolugao, Galton ainda procurava por uma salvagao do seu programa eugénico: O tinico ponto seriamente em questao agora 6 sa ber se influéncias hereditérias muito pequenas, acumuladas durante muitas geragdes sempre na mesma diregao, podem ou nao afetar as qualida- des da espécie. (Galton, 1892. p.XV) Esse ponto era crucial para Galton e seu modelo ‘matematico. Dava-lhe a certeza de que, se nao hou- vesse influéncia das condig6es de vida de uma gera- 0 sobre a heranga biolégica transmitida a seguinte, © resultado seria sempre uma nuvem de pontos em tomo de uma linha média imagindria, nunca conver- tida numa reta real, onde os pontos plotados fossem, todos eles, coincidentes com a reta. Os pontos fora da reta deveriam ter sido totalmente eliminados. ‘A SEGUNDA ONDA DO PROGRAMA EUGENICO OU CURVA ASSASSINA Entre a segunda edigéo de Hereditary genius, em 1892, © sua reimpresséo, em 1925, muita coisa se modificara no panorama biolégico. Galton falecera em 1911, aos 89 anos, no auge de sua popularidade. Contudo, sua suspeita sobre a transmissao pangené- tica de pelo menos pequena parte das caracteristicas biolégicas demonstrara-se descabida. Nenhuma ca- racteristica adquirida durante a vida dos seres huma- nos, devido a meihoramentos das condigdes de vida, passava a integrar seu patriménio genético. Como sa- bemos, 0 mendelismo — independéncia des células germinativas em relagdo As somaticas (que devemos a Weismann) — e a teoria cromossémica da heranga ja estavam plenamente estabelecidos. 6 0 mpeto hereditério era um concelto que tratava da predis: posigao de variagao em sentido predeterminado 7. E interessante notar as reteréncias a “hipotese proviséria da Pangénese". Em 1869 Galton se referia a ela como “rear able Theory of Pangenesis’, na abertura do capitulo de con- clustes. Em 1882 ola volta a ganhar a qualidade de “prow séria™, mas continua como "teotia’, apesar de todas as opo- sigdes que enfrentava, Cad, Pesg. n.92, fev. 1995 ‘As consequéncias desse novo cenatio cientifico, gue negava as premissas basicas da eugenia, deve- iam ter sido muito profundas para o programa eugé- nico, como, de resto, 0 préprio Galton anunciara em 1892. Estranhamente, contudo, nao 0 foram. Pelo contrario, a década de 1920 sera a década de uma ova gestagao das idéias eugénicas, que ressurgirao das cinzas com vigor inaudito. O grande paradoxo dessa década consistia em que, destruidos todos os argumentos cientificos que poderiam justificar a euge- ria, esperar-se-iam pregagdes eugénicas muito mais brandas, relativizadas pelos recentes avangos cient ficos, Contudo, ao contrario, a argumentagao eugéni- ca nao apenas se radicalizou como passou a deman- dar contrapartidas institucionais urgentes para a “sal- vagao dos estados nacionais’, como esterlizagao compulséria de todos os pobres, suspensao de assis- téncia social para familias pobres numerosas, incen- tivo & reprodugao das familias ricas etc, E muito dificil especular sobre os condicionantes sociais patrocinadores da empreitada eugénica na dé- cada de 20, criando esse verdadeiro paradoxo so- cial-eugénico (Bizzo, 1995). Sem duvida devem ter sido fatores poderosos © suficiente para ofuscar a completa falta de amparo cientifico que as teses eu- génicas gozavam naquele momento. Os apoios que @ eugenia recebia eram, com certeza, muito importan- tes para legitima-la junto a amplos segmentos da po- pulagao, Leonard Darwin, filho de Charles Darwin, dividia seu tempo entre combater a legislagdo de amparo aos Pobres © promover a instalagao de leis eugénicas j Praticadas na América. Nao $6 se tornara 0 lider do movimento eugénico na Gra-Bretanha, como também fora eleito presidente da Federacao Intemacional das Sociedades Eugénicas, em 1921, Em 1926, com a Sociedade para a Educagdo Eugénica transformada fem herdeira da Sociedade de Eugenia, fundada em 1907, escreveu Leonard Darwin, em seu The Need of eugenic reform, longo tratado para o melhoramento da raga: Se a raga esta se deteriorando por causa da ele- vada taxa de multiplicagao dos tipos mal-adapta- dos, e, como é certo, esforgos adicionais estado sendo feitos para diminuir a taxa de mortalidade desses tipos inferiores, entdo 0 ritmo de deterio- ragao racial esté provavelmente sendo acelerado, (..) para a redugao da multiplicagao dos mal- adaptados (...) apenas a continéncia [sexual] & contracepgao poderiam ser indicados. (...) Se a crianga do futuro tem o direito de crescer em um ambiente sauddével, isto implica que o Estado tem © dever de evitar a procriacéo daqueles que nao podem garantir essas condi¢ées para seus fi- thos.(...) Todos os pais que tém recebido assis- téncia social deveriam ser advertidos para ndo mais se reproduzir; @ no caso desse aviso nao ser atendido toda a ajuda deveria ser suspensa Acrescente-se que seria benéfico para a raga se todas as familias vivendo de forma nao-civili- Eugenia. zada, e aumentando em ntimero apesar de to- das as adverténcias, fossem separadas até que 0 pai consentisse em ser esterilizado. (..) Se fosse certo que nenhuma dessas reformas po- deria ser introduzida (..) nossa civilzaeao estaria destinada a desaparecer vagarosamente, (...) um desastroso efeito para 0 nosso desejo de promo- ver 0 progresso nacional, (Darwin, 1926. p. 388- 80, grifo nosso) ‘A “soparagao” das familias desobedientes para com as adverténcias de continéncia sexual 6 pregada de forma bastante ambigua. Nao existe explicacao de- talhada sobre a maneira de realizar essa “separaca: No entanto, pode-se perceber a existéncia de clara concepeao @ respeito da promiscuidade como uma das caracteristicas patentes dos tipos “mal-adapta- dos", dai invocar-se a esterilizagao compulséria como meio eficiente para deter a procriagao. Além disso, a assisténcia social deveria ser muito mais restrita, cau- 8a pela qual, aliés, Leonard Darwin ja se notabilzara A simples separacao fisica do casal nao resolve- tia 0 problema, mesmo porque o membro alonjado po- deria simplesmente regressar e reunit-se @ familia, Mas, 0 mais importante, isso no alteraria o problema da alegada “promiscuidade". © homem seria promis- ‘cuo em outro lugar e a mulher com outro homem, Por- tanto, “separagao", para o arguto Leonard Darwin, sig- nificava a transferéncia para um lugar do qual nao se pudesse sair, “até que 0 pai consentisse em ser es- teriizado”, e onde nao houvesse possibilidade de ati- vidades promiscuas, pelo menos com intuito procria~ tivo. Nao ¢ dificil imaginar um campo com alas mas- culina e feminina, cercado com arame tarpado. A quarda das criancas provavelmente passaria para o Estado, como ainda hoje € regra no Reino Unido, quando os pais nao podem sustentar os filhos. Pouca diivida resta sobre 0 sustento de tais pessoas “sepa- radas’. Se 0 Estado thes provesse a subsisténcia, ele estaria, na verdade, recompensando a lascividade; ‘com toda certeza as familias “separadas” deveriam ser forgadas a trabalhar a fim de custear seu sustento @ sublimar seus instintos sexuais. Assim, a “separacao da familia’ 6 um eufemismo darwiniano de segunda geracao para “confinamento da familia de tipo inferior’, num campo de trabalhos forgados, com separagdo dos casais e da propria fa- milia, uma vez que a guarda das criangas passa para © Estado. © passaporie de saida desse inferno é a esteriizagdio. Na década seguinte boa parte da Euro- pa passaria por semelhante pesadelo. ‘A luta de Leonard Darwin objetivava converter 0 programa “cientiico” eugénico em politicas publicas eugénicas, que transformassem a teoria “cientifica” em pratica social, a fim de ‘promover 0 progresso nacio- ral” 8 Note-se 0 apelo nacionalista do periodo do paradoxo socal- feugénico, em contraste com as propostas de melnoramento {da raga “humana” (\e., de todo planeta) dos periodos ante 43 A aplicagao da eugenia de forma ampla e macig¢a viria a ocorrer na Alemanha. Embora a referéncia ao nazismo seja imediata, deve-se ter em conta que nem © anti-semitismo nem a pregagao eugénica tiveram i cio com Hitler © ano de 1925 presenciou, além da reedigao de Hereditary genius, a edicao do Mein Kampf, de Adolf Hitler. Em 9 de novembro de 1923, Hitler procurara reeditar em Munique a ‘Marcha sobre Roma”, que guindara Mussolini ao poder um ano antes. Essa ten- tativa, desastrada, ceifara a vida de dezesseis mem- bros do Partido Operario Alemao Nacional-Socialista, nna Bavaria, @ condenara Hitler a cinco anos de prisdo. Nos nove meses de efetivo confinamento ele gestou @ obra que haveria de entusiasmar as massas ger- manicas, trazendo de volta algumas das profecias anunciadas por Spencer, Galton, Wallace, 0 Darwin @, sobretudo, Haeckel @ as Ligas Monistas. Hitler iniciava sua obra com uma autobiogratia, na qual declarava ter nascido com a missfio de unificar os estados germénicos, sob a justificativa de que “os homens de um mesmo sangue devem pertencer a um mesmo Reich’. E sintomatico, nesse periodo, a preo- Cupagao dos propagandistas eugénicos em fazer coin- Cidir os termos "raga e “nagao’, porquanto o progres- so de um implicaria a fortificagao do outro, Os vinte e cinco pontos do programa sintetizados lo Mein Kampf esbocavam um plano de “regeneragao racial’, com uma clara distingao entre os “cidadaos do de sangue alemao, @ os “ndo-cidadaos’ ou s", entre eles os judeus. Os “cidadéos do apenas eles, poderiam ocupar cargos publi- cos, teriam assisténcia social integral, mas seriam compelidos a praticar educagao fisica e esportiva, es- perando com isso resultados benéticos nao s6 na pro- ria geracao, mas também nas goragdes futuras. O Programa objetivava a criagao de uma classe média sadia, em clara oposigéo aos programas marxistas, que previam sua extingao, No capitulo XI da primeira parte, intitulado “Povo e Raga’, Hitler tard uma exposigao clara de suas idéias e, sobretudo, de seu programa eugénico. Co- mega 0 capitulo com uma digressao sobre identidade biolégica: os animais sé se juntam para reprodugao com outros de sua prépria espécie; quando essa re- gra é quebrada, seja pelo cativeiro ou por outro meio artificial, a natureza pune o resultado do “abastarda- mento” condenando toda a prole a esterilidade, ou mesmo & morte precoce. A razao disso seria evidente: Todo cruzamento de dois seres de valor desigual dé como produto um meio-termo entre os valores dos pais* (..) Tal ajuntamento esté em contradi- 40 com a vontade da natureza, que tende a ele- var 0 nivel dos seres"®. Este objetivo nao pode ser atingido pela uniao de individuos de valor di- Ierente, mas s6 pela vitéria completa e definitiva dos que representam o mais alto valor. O papel do mais forte 6 0 de dominar, @ nao de fundir-se com 0 mais fraco, sacrificando assim sua propria 44 grandeza. Sd 0 fraco de nascimento pode achar esta lei cruel. (Hitler, 1983. p.185-6) ‘A mesticagem seria a estratégia para abalar a raga superior a partir de sua esséncia: 0 sangue. Se © sangue de uma raga se mantivesse puro, ela teria forga para enfrentar derrotas e reerguer-se para novas vitérias. A derrota na Primeira Guerra e as desventu- ras econémicas da Republica de Weimar (chamada Por Hitler de “Republica de Versalhes") eram goles profundos, dificeis de assimilar. Aquele jovem, alistado ‘como combatente na Primeira Guerra e que se recu- perava, como simples cabo, dos ferimentos nos olhos provocados por gases venenosos, recebeu a noticia da rendigdo da Alemanha ainda no hospital e jamais se conformou com ela. Igual decepedo teria coma de- mocracia alema, imposta pela Franga por “influéncia dos judeus". A democracia, sistema contrario ao “prin- cipio aristocrético da natureza’, como o definira 0 po- pular Haeckel, demonstrara sua impoténcia diante dos problemas econémicos naqueles anos que se segui- ram a guerra, Desde a época em que presenciou uma sesso do parlamento austriaco, onde as discussées feram verdadeira "badema” e alguns dos deputados sequer falavam alemao, mas uma lingua esiava ou um dialeto, 0 jovem Hitler manifestou sua aversao quele tipo de governo. Para superar essas derrotas, a pureza do sangue tomara-se essencial ‘As causas exclusivas da decadéncia de antigas civilzagées [arianas] so: a mistura de sangue e © [conseatiente} rebaixamento da raga. Esté pro- vado que ndo sao as guerras perdidas que ani- quilam os homens e sim a perda daquela resis- téncia, que s6 0 sangue puro oferece. Tudo 0 que, no Mundo, néo & raga [pura] & joi. (Hitler, 1983. p.192) A hibridizagaio, ou “abastardamento” como ele preferia, causava a degeneracao da raga © das qua- lidades a ela inerentes. O adestramento @ a educacao nao poderiam remediar © mal, forgando o Estado a zelar pela “santidade de uma instituigo (0 matrimé- rio) destinada a criar seres a imagem do Criador, nao monstros intermediatios entre © homem © 0 ma- caco" (Hitler, 1983)" Esse zelo materializar-se-ia de duas formas: por um lado a esterlizapao em massa dos tipos inferiores e, por outro, 0 estimulo a procriagao dos tipos supe- riores. Tao repreensivel quanto ter um filho de tipo in- {erior seria negar ao Estado um filho do tipo superior. s arianos puros arcariam com 0 dever de ter des- cendentes. Segundo Hitler, nao se nasce “cidadéio do Reich", mas descendente de “cidadaos do Reich’. 9 Note-se 0 carater antimendeliano do modelo hereditario ado- tado por Hitler. 10 Note-se também a referéncia A evolugao biolégica, vista como sinénimo de “melhoramento’, ‘progresso’, algo intr secamente bom, 11 Note-se a referéncia & origem simiesa do homem. Cad. Pesq. n.92, fev. 1995 Para tomar-se um deles é necessario passar por um sistema educacional, especialmente projetado para transmitir os valores da superioridade racial, e subme- ter-se & disciplina do servigo militar. Apés esse perio- do, 0 “descendente” receberia um “diploma de cida dao do Reich”, garantindo-the as vantagens sociais correspondentes, No periodo de escolarizacdo e servigo militar, se- ria possivel selecionar os cidadaos superiores, a elite, ‘os quais caberiam as recompensas maiores, como Postos de comando e a possibilidade de procriapao, mesmo no celibato, As praticas eugénicas nao se restringiram, em ab- soluto, a Alemanha nazista. Nos Estados Unidos, es- tado de Indiana, foram implementadas leis de ester lizagao eugénica desde marco de 1907. Dessa data até 0 inicio de 1933, quando o partido de Hitler subiria a0 poder, tinham sido votadas sessenta e cinco leis diferentes de esterlizacao e existiam vinte e seis es tados norte-americanos com leis de esteriizagao re- gulamentadas (Birth Control Review, p.83). ‘A década de 1920 assistiu as iniciativas eugéni- cas ganharem folega e apoio de intelectuais, com 0 total desamparo da ciéncia, notadamente da Genetica ‘As propostas eugénicas, naquela altura, no pos- sulam mais fundamentos cientificos; pelo contrario, baseavam-se nas sensagées comuns, nos aspectos ‘dbvios” da “degeneracao racial’, no logicismo mais rasteiro @ evidente. Como disse Hitler, em seu Mein Kampf, a mais poderosa alavanca das revolugées so: ciais nunca foi 0 conhecimento objetivo de verdades cientificas pelas massas. Foi nisso que ele concentrou seus esforcos. © PROGRAMA EUGENICO NO BRASIL OU A CURVA E SUA SINA ‘Abaixo do equador a eugenia teve dimensao pratica ouco comparavel ao contexto europeu. Por um lado, Pouco se poderia dizer de uma “raga brasileira” a pro: servar ou ser purificada. O pais sempre se caracteri- Zou pela mestigagem, merecendo o epiteto de “cadi- ‘nho racial” (Freire-Maia, 1985). Todavia, apesar da simpatia governamental, sobretudo no periodo do Es: tado Novo (Vilhena, 1993), desde o inicio 0 programa eugénico contou com a desaprovagao da Igreja Ca: tdlica. Com a oposigao frontal ¢ oficializada da Igreja, consubstanciada na promulgagao da enciclica Casti Connubi por Pio XI, em 1930, 0 governo brasileiro fi- cava com o campo de agao bastante limitado, Dessa forma, prosperaram as iniciativas pré-eugénicas de entidades nao-governamentais, atuantes lobbistas jun- to ao Congresso antes de 1930 e mesmo na Cons- tituinte de 1934, © Brasil assistiu a manitestagdes até bem com- Portadas dos defensores do melhoramento racial. Al- guns deles, ao se manterem proximos dos postulados Eugenia, cientificos do mendelismo, relativizaram as medidas preconizadas pelos eugenistas. Com os trabalhos de Ronald Fisher na década de 1930, muitos se conven- cerao da ineficdcia das medidas de esterilizago com- pulscria, uma vez que a maioria dos homozigotos que Se quer evitar se origina de heterozigotos de fendtipo ormal, impossiveis de serem diferenciados dos ho- mozigotos normais. ‘A Sociedade Eugénica de Sao Paulo fora fundada (sintomaticamente)"® no dia 15 de novembro de 1918, sob a égide da discussao para alterar 0 artigo 183-V do Céaigo Civil, 0 qual impecia o matriménio de con- sanguineos até 0 terceiro grau. Mesmo sem chegar 2 qualquer conclusio, a Sociedade aprovou, em julho de 1919, uma mogao sugerindo a suspensao da re- forma dessa lei (Vilhena, 1993) Para 0 presidente da sociedade de eugenia, Dr. Renato Kehl, em artigo publicado na entao influente Revista do Brasil, na sua edigdo de junho de 1919, apenas 0 conhecimento da Genética’® @ de suas leis, Poderia orientar a postura a ser adotada diante da Possibilidade de supressao daquele dispositive legal impeditivo do matriménio entre “irmaos legitimos ou ilegitimos, germanicos ou nao, ¢ colaterais, legitimos ou ilegitimos, até 0 terceiro grau”. Conforme o conhe- cimento “recente” a respeito do processo de formacao de gametas, a divisao reducional eliminava seletiva- mente as partes ruins da cromatina, o material here- ditério. Assim, Os cromossomos da cromatina, ou melhor, os de- terminantes, ou melhor ainda, os biéforos se en- trechocam, lutam entre si, selecionam-se, elimi- nando-se com o gldbulo polar os mais fracos, os inferiores, e persistindo nos pronicleos resultan- tes os mais aptos, os mais fortes. (..) a célula germinal de um individuo tarado contém tantas espécies de bidforos quantos caracteres existiam no individuo'® de onde proveio; portanto tera bid- foros bons @ inferiorizados, que serao eliminados com os glébulos polares; se porém forem em quantidade superior é certo que a expulsao deles nao sendo total, muitos figurarao no prondcleo. Ora, se esse lato se der, tanto no dvulo como no espermatozdide, esté patenteado (sic) a infe- rioridade do produto resultante da combinagao de fais células. Em outros termos, se os pronticleos 120 pardntase se justiica em virude da possivel convergéncia ‘dos argumentos “cienticos” com os de natureza poitica ex pressos pela escolha da data civica da tundagao da soci. ‘dade que tinna como objetivo “a detesa eugénica da nacio: nalldade” 19 € interessante que seja utlizado 0 termo “genética”, cunhado por Bateson em 1907 para designar 0 estudo da heranga ‘mendelana, a partir de uma torminologia we'smaniana, 14A Jel era apicavel até mesmo aos arianos brasileros () 15 Note-se a base pangenética da afimarao. Tudo aquilo que se obsewa no indviduo @ herdado pela prole. Este é um dotatna crucial para compreender o significado de “sanea- mente’ na época 45 fémea e macho sao bons, 0 produto seré étimo @ 0 novo ser deles oriundo serd um tipo forte; se 0s pronicleos contém elementos cromaticos im- pregnados de taras, 0 produto serd por sua vez tarado, @ 0 ser resultante, um inferiorizado. (Kohl, 1919. p.189) Deve-se notar como 0 processo de reprodugdo — no qual o Dr. Kehl @ os eugenistas de seu tempo acreditavam — dependia fundamentalmente das con- digdes organicas do sujeito. Um individuo debiltado, doente © anémico nao poderia produzir bidforos fortes @ saudaveis. O prontcleo resultante da “luta entre os biotoros", um processo defendido sem sucesso por Weismann ha mais de vinte anos naquela altura, s6 poderia ser realmente bom se fosse formado em am- biente propicio. Assim, podemos compreender 0 sig- nificado @ a repercussao pretendidos com as agdes de saneamento, que haveriam de methorar os indivi duos do momento @ seus filhos no futuro, pela for- magao de biétoros mais fortes @ perteitos, sem as ta- ras estampadas na prole pela miséria, doenga @ sub- nutigao. Essa era a forma de compatibilizar as recen- tes descobertas microscépicas da escola alema com aquela premissa basica da eugenia, desde os tempos da primeira edicao de Hereditary genius: a repercus- so das condigses do ambiente no patriménio here ditério dos individuos" Embora nao se reconhecesse uma “raga brasilel- ra a preservar, com certeza havia uma imagem do que se queria evitar, ou evitar perpetuar, de um con- junto de taras a ser extirpado da identidade brasileira, a fim de remover obstaculos ao desenvolvimento na- cional. A busca dessa imagem nos conduz de volta a fundagao da Sociedade Eugénica de Sao Paulo, em 1918, e ao Dr. Renato Ferraz Kehl. Como primeiro ato, a Sociedade promoveu, junto com a Liga Pré-sa- neamento do Brasil, a publicagao de um livro, prefa- ciado pelo proprio Dr. Kehl, sobre os problemas do povo brasileiro. Seu autor ganhara fama com a recen- te edicao de seu Urupés, livro polémico, no qual des- crevia 0 peril do brasileiro tipico © o batizava com 0 nome de Jeca Tatu. Assim, surgiu Problema vital, es- crito por ninguém menos que Monteiro Lobato, figura de destaque na meméria cultural brasileira. ‘Além de ter-se consagrado como escritor, espe- cialmente de livros infantis, @ como incansével bata- thador pelas causas nacionais, buscando caminhos para o desenvolvimento do Brasil, como a instalagao da Companhia Siderirgica Nacional, Monteiro Lobato {oi um dos primeiros a propor e a realizar prospecgdo de petréleo no pais. "Ago @ Petrdleo’ — 0 binémio exponencial do desenvolvimento norte-americano — hhaveria de conduzir nosso pais ao mesmo futuro do itmao do norte. Com seu caracteristico impeto, enfren tou a ditadura de Vargas, chegando a ficar preso por algum tempo, @ apoiou as campanhas contra os na- Zistas. Seria, de certa forma, bastante surpreendente que Lobato, escritor querido @ com uma imagem liga- da as tendéncias politicas nacionalistas de esquerda, 46 pudesse servir de referencial para qualquer estudo so- bre eugenia no Brasil”. Cabe lembrar que a ligago entre eugenia e “di- reita” advém da falsa associagao de toda e qualquer proposta de melhoramento racial com o nazismo. Como mostrou Diane Paul (1984), movimentos impor- tantes de esquerda adotavam programas eugénicos como plataforma politica. Comunistas notérios, como J.B. S. Haldane e Herman Muller, @ socialistas, es- pecialmente os ligados a Fabian Society'®, como o grande novelista George Bernard Shaw, 0 casal de ativistas sindicals e reconhecidos intelectuais Sidney James @ Beatrice Webb, 0 escritor Herbert George Wells (autor de Guerra dos mundos), e mesmo Julian Huxley, com sua monumental obra teGrica e destaca- da atuagao politica, foram defensores de programas eugénicos. Como veremos, existem evidéncias significativas de que Monteiro Lobato acreditava na eficacia e na propriedade das politicas eugénicas para 0 progresso nacional, inseridas no Ambito das agdes de sanea- mento. & essa crenga nao ficou limitada aos seus pri- meiros escritos como cronista social. E provavel que ‘a campanha pelo saneamento, inclusive racial, fizesse parte do amplo programa politico de oposi¢ao, com o qual a burguesia industrial em formacao pretendia ga- har influéncia e destaque maiores do que vinha con- seguindo até aquele momento. O projeto incluia a di- minuigao do analfabetismo e a consequente amplia- ‘cdo de um eleitorado” viciado pelos bardes da terra No entanto, 0 estudo sistemético da influéncia das idéias eugénicas na obra desse esoritor extraordinario, de personalidade forte © apaixonante, sera tarefa para, © futuro, Aqui, a tarefa a realizar consiste em perce- 16 Schwarcz (1993), contrariamente, afima que o “darwinismo social” (ou “leoria das ragas") acreditava que ‘nao se trans- mitiam caracteres adquidos, nem mesmo por um processo de evolugao coca (p.58), Como vimos, essa era a promissa basiea da progacdo eugénica, cua reedicao dependara sam- pro da tentatva de compatbilzar a idéia de tansmissao he- Fecitéria das caractoristicas adquiridas com os mais recentes, ‘achados biolégices, como vernos nesse excmplo de descr ‘p40 do comportamento do material hereditario durante a 17 0 padre baiano Sales Brasil aponta ‘claras evidéncias” de {que a Heratura infant de Monteiro Lobato induz as criangas ‘20 comunism, como por exemplo quando Dona Benta re~ ‘comenda que Padrinho lela um lvro de Darwin (Viagens de lum naturalista 20 redor do mundo). Segundo o padre, a alu sto a Roberto (sic) Darwin seria uma pregac3o materialist, ante-sala da conversdo eo comunismo (Sales Brasil, 1957). 18 Sociedade fundada em 1887 que deve seu nome ao general romano Fabius Maximus cujo apelido era Cuntactor ‘aquele {que posterga’). Fabius 6 um dos maiores herdis romanos da Segunda guerra puinica, tendo postergado a batalha final con tea Anibal até que as condig6es Ine fossem favoraveis. A so: ciedade, formada por miltantes socialstas, pregava reformas sociais graduais. 49.0 direto de voto acs analfabetos tha sido rotiado sob 0 pretexto de quo a alfabetizagao formatia um eleitorado mais fesclarecido @ de parfl mais progressista — esporava a opo- sigdo, Cad, Pesq. n.92, fev, 1995 ber, pelos seus escritos, 0 que o Brasil pensava do brasileiro tipico, quem era aquele sujeito a eugenizar. Lobato sera para nés, portanto, uma antena capaz de captar os sentimentos de uma grande coletividade, © convite de Renato Kehl a Lobato para publicar Problema vital ocorria no momento em que seu livto, Urupés, ganhava as paginas dos jomnais. Mesmo pa- recendo ser impiedoso com aquele caboclo, “que vota No _governo", Monteiro Lobato tragou sua genealogia @ descreveu seu temperament, sintetizando o senti- mento que permeava vasto estrato da sociedade na- ional, Para ele, 0 verdadeiro avd do caboclo brasi- leiro foi “um dos quatrocentos degredados trazidos ao Brasil por Tomé de Souza’. Durante sua histéria, 0 Pais vira seu povo reagir com absoluta indoléncia aos. mais profundos acontecimentos sociopoliticos. Jeca Tatu, essa figura que ocuparia por décadas © trono de heréi-espelho nacional, antes de ceder seu lugar ao folgadao Zé Carioca, é um simples piraquara do Paraiba. Seu maior lema 6 a lei do menor esforco, sua religidéo 6 a cachaga, sua meta de vida é um em- prego publico, para nao ter que trabalhar. Essas idéias tinham chamado a atengao néo s6 do Dr. Kehl, mas de todo 0 pais. O sucesso do livro doveu-se, em grande parte, & apresentagdo desse personagem que, embora ficticio, tinha sua reteréncia incontestavel na realidade. A proposta do Dr. Kehi, secretério da delegagao paulsta na Liga pré-Higiene © presidente da Sociedade Eugénica de Sao Paulo, era de juntar artigos ja publicados por Lobato no jor” nal O Estado de S. Paulo naquele mesmo ano e dar- les a forma de coletanea, Assim, nasceu Problema vital, ainda em 1918. Deve-se levar em conta que aquele ano estava fervilhando com os relatorios de viagem de Belisatio Pena e Arthur Neiva, que tinham visto um pais des- conhecido, repleto de doentes, do qual os periddicos controlados pelo governo jamais haviam dado noticia, Urupés era uma pega com pretensdes literdrias; Pro- blema vital era um libelo oposicionista, uma coleténea de artigos ja conhecidos, deniincia da inciria gover- amental para com a sauide do povo. Como Problema vital sucedeu a Urupés, alguns foram levados a pensar que Monteiro Lobato tivesse comegado a escrevé-lo ao ver as reagées provocadas pelo primeiro livro. Tal versdo nao encontra respaldo hem mesmo na cronologia dos fatos. A diferenca en- ‘re as datas de publicagao dos dois livros é muito pe- guena e, mesmo assim, sabe-se que Problema vital reunia apenas artigos jé publicados, alguns deles até mesmo antes que Urupés viesse a lume. A tnica chance de uma *mudanga de posigdo” seria mediante modificagdes nos originais dos artigos. No entanto, a consulta aos manuscritos de Problema vital deposita- dos no Museu Monteiro Lobato, em Sao Paulo, reve- lou que as modificagdes introduzidas pelo autor séo apenas de ordem linguistica, principalmente de estilo, © conceito de saneamento de Lobato, compartilhado Eugenia or sanitaristas e eugenistas de seu tempo, 6 0 mes- mo nos dois livros (Bizzo, 1994a). No pretacio de Problema vital, o Dr. Kehl chama- va a atencao para os governantes, indiferentes aos problemas sanitarios do pais, escondendo o estado mérbido da grande maioria da populacdo, largada a propria sorte. Dizia que Lobato tinha tido a coragem de mostrar ao Brasil 0 perfil de sua gente, divulgando (© que cientistas como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Belisério Pena e Artur Neiva haviam encontrado pelo interior do Brasil. Em conclusdo, exaltava o “avigora- mento da raga e portanto, 0 progresso do Brasil ‘como metas das duas associagdes que tomavam a iniciativa da publicagéo daquele volume. Esse prefacio foi suprimido nas Obras Completas de Monteiro Lo- bato, da Editora Brasiliense (1961), Nesse livro Lobato procura justificar o Jeca, por- tador de tantas enfermidades. Entretanto, o termo “sa- eamento’, na época de Lobato na sua esfera in. telectual, titha significado amplo, englobando uma sé- Tie de agdes cujas repercussdes viriam a curto e a longo prazo. As concepgées expressas por Lobato em Problema vital mostram um certo pessimismo com re- lagao ao ambiente no qual 0 caboclo vive, visto como uma das areas quentes do planeta, onde proliferam Parasitas de todo tipo, empesteando a populagao. E Lobato se pergunta por que os trépicos produziram as mais esplendorosas manifestac6es biolégicas, en- quanto 0 homem constituia excecao” No livro ele lembra que os maiores primatas ha- bitam as regides quentes, o maior marsupial é aus- traliano, 0 maior crocodilo 6 do rio Nilo, 0 gavial de nove metros de comprimento é indiano, a girafa ¢ alfri- cana, 0s rinocerontes e elefantes vivem nas areas quentes da Africa e Asia, As cobras mostram 0 mes- ‘mo vigor dos efeitos do calor, como a sucuri @ a ana- conda; a diversidade das aves nos trépicos € exube- rante, ‘acompanhada por todo tipo de invertebrados; nos vegetais, Lobato percebe a mesma tendéncia. & © paradoxo do homem? A resposta vird ao final do aprtub: © homem, com civilzar-se, afastou-se da nature- za. Desrespeitou-a, infringiu-ihe as leis. O resul- tado foi 0 enfraquecimento. O uso do vestuério quebrou a resisténcia da epiderme. O habito da casa paralisou 0 desenvolvimento da resisténcia organica as agressées do ar livre e atrofiou a jé criada no longo estagio de vida selvagen*". (..) [a vida social anulou) a forga dos processos se- Ietivos; os fracos defendidos pela lei, amparados e conservados artificialmente; 0 forte impedido de vencer @ eliminar 0 fraco; a revogaco, em suma, da suprema lei da biologia, langou 0 Homo sa- 20 0 “constiuia excagao" signiticava um certo juigamento entre ‘0s europeus © americanas e 08 poves dos trépicos, como © brasileiro, 21 Note-se que ha uma distingdo, de fundo biol6gico, impiicta, entre a constiuigdo organica dos “selvagens" @, por contra posira0, dos “civlizados” 47 piens no despenhadeiro da degenerescéncia fisi ca. Biologicamente, © homem é um animal em plena decadéncia Por forga dese enfraquecimento organico ele sé pode prosperar nas regides temperadas ou frias, onde @ vida circunvolvente é pouco intensa gra- (628 & ago refreante do inverno, (..). (As grandes possibilidades dos paises quentes*, Fica evidente a influéncia direta e imediata dos efeitos do ambiente sobre a constituigo hereditaria do Homem. Ao mudar seus habitos, o Homem entra- queceu-se, perdeu resisténcias imunolégicas que as geragdes seguintes nao haveriam de recuperar. Como vemos, para Lobato, a possibilidade da modificagao do patriménio hereditario em fungao de influéncias do ambiente, em 1918, supera em muito 0 admitido por Galton, em 1892 A aco do ambiente, ao enfraquecer o individuo, teria repercussdes para além dele, atingindo sua pro: le, que nasceria debilitada, sem condigdes de reagir as agressées sofridas. Os doentes ficavam feios e a feidra 6, em certo sentido, irremedidvel. Isso explica a importancia que Lobato e os médicos de sua época atribuiam ao saneamento, que teria efeito imediato, também a longo prazo, implicando novas levas de ci- dadiios com marcas de nascenga distintas da fraque- za, da feitira, da indoléncia. Assim, podemos ler em Problema vital (Lobato, 1961) O pai dessa pobre criatura {um opilado) jd foi um bichado, como foi 0 avo e 0 bisav6. Deles rece- beu uma vitalidade menor, uma tonicidade orga- nica decaida, um indice fraco de defesa natural, E por sua vez transmitiré ao filho a ma heranga acrescida funestamente da sua contribuigao pes- soal de degenerescéncia, consecutiva a agao do verme em seu organismo. Isto explica por que e como dos Femées Dias Paes Leme de outrora, terriveis varées enfibrados de ago, ressurtiu uma geracao avelhentada, ane- ‘miada, feia e incapaz (Iguape) Lobato enfrentava o problema da “decadéncia bio- légica do homem”, contando com o saneamento @ hi- glenizagao das condigdes de vida da populagdo. Afi- nal, nao havia outra escapatéria, mesmo porque, dizia ele, com a guerra, os excedentes populacionais ha- viam sido dizimados e, agora, 0 pais nao mais pode ria contar com aquele influxo de europeus de outras épocas. Monteiro Lobato publica O Presidente negro, om 1926, ano impar de uma década muito significativa para as discussdes das questdes racials e para a eu- genia. Trata-se de ficgao passada no ano de 2228, quando 0s norte-americanos elegeram seu primeiro presidente negro. O pais gozava de extraordinario de- senvolvimento, porquanto nao existiam mais preguigo- 508, doentes @ vadios. A preguiga fora erradicada com eficiéncia, monitorada em modernos programas de avaliagao por resultados. A doenga tinha sido entren- tada pela assisténcia médica e social. Finalmente, a 48 vadiagem fora abolida por intermédio da ciéncia e de suas recomendagdes reprodutivas: as praticas eugé- niicas®. O enredo narra que os negros, mais proliicos, acabam por suplantar, em numero, os brancos, ele- gendo um presidente negro. Mais espertos e inteligen- tes, 08 brancos reverterao 0 quadro mediante uma s rie de medidas destinadas a branquear 0 negro e "de- sencarapinhar-ine” 0 cabelo. O governo oferece aos negros a possibilidade de alisar 0 cabelo em postos pblicos pela aplicagao de “raios mega", uma inven- go recente. Formam-se filas imensas e todos os ne- gros acortem desesperadamente aos postos de “des- pixainizagao”, sem saber de seus efeitos esterilizantes Sobre os homens. Nove meses depois, o pais viu as cifras de natalidade dos negros despencarem vertig- nosamente. O presidente negro recém-cleito aparece morto e, lentamente, 2 prosperidade volta a reinar na América do Norte. O futuro dos negros estava selado para sempre Durante a vida, Lobato manteve-se tao préximo das idéias eugénicas quanto de seu maior propagan- dista no pais, o Dr. Kehl. No periodo de vitalidade da Revista do Brasil, de propriedade de Lobato, Renato Kehi expée suas idéias sem réplicas, como vimos ha pouco, sobre a possivel revogagao do artigo 183 do Cédigo Civil e outros assuntos. Em 1938, em plena maturidade, a0 prefaciar Bio-Perspectivas, dicionatio filossfico que 0 Dr. Kehi pretendia ser um verdadeiro testamento intelectual, Lobato destacava um de seus trechos, a fim de mostrar “a solidez de pensamento de Renato Kehi Como se sabe, durante os tltimos anos as esco- rias humanas se t8m acumulado em desrespeito 4s leis naturais. Nao tem havido desbastamento suficiente ou eliminagao seletiva em regra. Os in- capazes, os doentes @ os anormais de varias or- dens acumulam-se de modo assombroso, nas pri- des, nas penitencidrias, nos manicémios, nos bairros da miséria. (Lobato, 1961. p.80) Em sua opiniao, este trecho, “e muitas outras vi- sualizagses do rigorosa base cientifica fazem da obra de Renato Kehl um acontecimento em nossa vida mental". Sua nica queixa consistia no fato de o livro nao conter “uma pagina sobre a fungao do frio no de- senvolvimento da ciéncia e da atitude cientifica’, pois "a ciéncia s6 germina no recesso silencioso dos ga- binetes e laboratérios — instituigdes nitidamente pe- culiares dos climas trios”. O calor nos coloca na rua 22 Nao deixa de ser notével a fato de Lobato se refer A apa gaa biologica de certas espécies (@ no de seus feitos) © fa comparar, nao a aparicao bioldgica do homem (no que nao haveria difarenca, uma vez que 05 primelios hominideos apa- receram no calor aicano), mas & distlbuigao geopoltica da fiqueza em seu tempo, Tivesse sido um cronista egipcio do tempo dos farads, talvez ivesse registrado em hierogifos sua parplexidade canto da miséria material © infolectual das re ‘ges fas do planeta, 23 Nao doixa de ser engracado 0 falo de Lobato, com seu ca: racterisico tom nico © debochado, dizer que a eugania t ‘nha acabado com todos os tarados, os daficentes, todo tipo de idiotas, © os graméticas! Cad, Pesq. n.92, fev. 1995 e “a rua é literdria’, razao pela qual abundam os es- critores e so t4o poucos os cientistas (Lobato, 1961 p81) A retribuigao de favores entre Lobato e o amigo Kehl nao se deu apenas com prefacics. Poucos anos depois do livro publicado pelos auspicios de Kehl de sua sociedade eugénica, a editora de Monteiro Lo- bato, que levava seu nome, publicava A Cura da feal- dade, longo tratado que dispendia quinze capitulos descrevendo 0 homem ‘normal’, antes das prescri- goes eugénicas que acabariam com toda feitira Muitas das respostas pata as perguntas dirigidas ao limite da potencialidade biolégica brasileira se achavam escondidas na escola, aquela instituicao eli tista cujo acesso estava limitado a poucos. Seria o Jeca Tatu educavel? Aqui reapareceriam, com toda sua forga, as repercussdes educacionais das idéias, de Francis Galton. Seria justamente no espaco da es- cola que a propaganda dos principios eugénicos ga- ‘nharia, talvez, sua maior dimensao no Brasil A EUGENIA E A EDUCACAO BRASILEIRA OU CURVA, TE SINTO No campo educacional a eugenia adquiria dilatado es ago, sobretudo nos manuals de formacao de profes- sores. Ja em 1929, Octévio Domingues publicara A Hereditariedade em face da Educacao, na Biblioteca de Educagao (v. VI) da Editora Melhoramentos, con: jugando sua experiéncia catedratica na Escola de Agricultura "Luiz de Queiroz” com a experiéncia pra tica de methoramento animal. Incluindo referéncia aos trabalhos de Roquete-Pinto, como nos Ensaios de Anthropologia brasiliana, Domingues reconhecia que: Uma conclusao (..) que também podemos tirar desse conhecimento tedrico freterindo-se ao men- delismo] 6 a seguinte: nao se pode falar no Brasil de raga brasileira. [tentar defini-la seria] dar prova de desconhecer os mais rudimentares proceitos da genética (mendelianal. (Domingues, c.1935, P.52-3) Como tudo indica, 0 tom histérico da_pregagao eugénica no contexto europeu na década de 20 nao chegou a se repetir no Brasil, ou seja, o paradoxo so- cial-eugénico néo chegou a se reproduzir entre nés. Aqui, como podemos ver na obra citada, 0 reconhe- cimento do mendelismo determinava o abandono das teses galtonianas originais. Para Domingues, isso nao significava a inoperancia da eugenia no pais. Pelo contrario, ela teria fungao justificada cientificamento, de selegao dos atributos desejaveis dos diferentes ti Pos humanos da populagdo, constituindo uma “fltra- gem fatal da selegav natural e da selecao social’. Ai- nal, a cultura brasileira tinha sido engrandecida com @ obra de mestigos da estatura de Castro Alves, Gon- galves Dias, Machado de Assis e Carlos Gomes, 0 que impedia qualquer paralelo imediato com as con- clusées de Galton sobre o valor relative das ragas hu: manas. Lima Barreto era a excegdo que confirmava Eugenia, a regia: escritor de talento, mas mais aticcionado & garrafa do que & pena No entanto, a tropicalizagao da eugenia nao a afastava tanto da versio original temperada. Para Do- mingues, mesmo sendo importante, a educagao per- manecia limitada: ‘Nao sera com a educagao dos delinguentes, dos imbecis, dos tarados mentais, enfim, que faremos com que desaparecam, da Terra, todas essas tendéncias mas e maléticas. Isso porque os efel- tos da educagao so grandes, mas indcuos (...) @ efémeros (..) porque eles ndo so transmitem & role, ndo se inscrevem no patriménio hereditério (.) Para que eles (0s efeitos benéficos] novamen- te aparegam, tem a sociedade de educar (..) 0s prdprios descendentes daqueles individuos, cujos defeitos mentais ela corigiu, (re-]educando-os. E um trabalho de Sisifo, concordemos. (Domingues, ©.1995. p.124) Domingues divergia dos eugenistas puro-sangue, a0 ‘iscordar da tese que a educacao traria reflexos no patriménio hereditario das populagdes. Atendo-se 0s principios mendelianos expostos em seu ivro, procurava na mitologia gtega a explicagao da tarefa dos educadores, ¢ nao mais em Galton suas teorias pré-mendalianas. Ao final do livro, insiste nos benefi- cios oferecidos pela eugenia combinada & educacao, dizendo ser, contudo, infrutifera qualquer iniciativa que olvidasse os imperatives mendelianos Uma vez estabelocida a inviolabilidade da heran- ¢a do individuo pelos efeitos do ambiente, restava dis- Cutir os caminhos teéricos da eugenia, a saber: sele- ‘G80 rigorosa das “boas horancas existentes na raga” ou entdo “cruzamento de linhagens diferentes, mas dotadas de atributos desejaveis, que se devem juntar num 6 biotipo methorado". No entanto, no caso do Homem, isso era impossivel por causa da livre esco- lha dos cénjuges, restando eugenia promover ‘a multiplicagao das boas castas, das boas herancas" e aificutar ou impossibiltar “a reprodugao dos tipos dis- Génicos” (Domingues, ¢.1935. p.137). Isso, além de implicar a inocuidade’do combate ao alcoolismo, pois seria concentrar-se no efeito (loxicomania) e nao na causa ("ma heranga’), 0 levava a’ profetizar que O alcoolismo $6 desaparecerd se desaparecerem 08 tarados mentais, os psicopatas, em geral. (Do- mingues, 0.1935, p.139) As sugestées para as medidas eugénicas seriam, 2 principio, a proibigao dos que manifestassem um mal hereditério qualquer, fosse dominante ou recessi- vo (desde que manifesto, ou seja, em homozigose). 24.0 pirelacio de Lobato fol inexplicavelmente arrancado de seu ‘exemplar pessoal de Bio-Perspectivas, que agora compée 0 acervo do Museu Monteiro Lobato. 25 Schwarcz (1993) arola o vio em sua bibiograia como “sem eaitor 26 No caso de Machado de Assis o exempo 6 complexo. Do- rmingues diz que ele era epléptico e tina receio de transmit 2 caracteistica aos files, razao pela qual se impusera uma “infecundidade esponténea’ (Domingues, ¢.1935. p.143) 49 Em seguida, tomar-se-iam outras medidas “com muita habilidade e cautela” para impedir a mutiplicagao dos tipos portadores de males hereditérios em cardter re- cessive, ou soja, dos hoterozigotos. A educacéo as- sumia novo papel naquele contexto, pois: © que ndo se puder fazer, em Eugenia, impondo, far-se-d convencendo. E quem vai convencer é © educador. (Domingues, 6.1935. p.143, grifo no original) De fato, 0 papel dos professores excedia sua fun- ¢0 estritamente instrucional. Na realidade da época, presente até hoje em muitos lugares do pais, a pro- fessora primaria era 0 Unico sinal do Estado junto aos cidadaos. As funcdes educacionais somavam-se as de assisténcia social, satide, higiene, puericultura, , agora, eugenizacao. © assunto passou a ser obrigatério nos cursos de magistério, junto & disciplina Biologia Educacional, e, novamente, a referéncia bibliografica sera de autoria de um catedratico da Universidade de Sao Paulo. 0 professor Almeida Jinior publicou em 1939 Biologia educacional (profusamente reeditado até a década de 60), com um indice bastante revelador dos objetivos do livro. A primeira parte dedicava-se ao estudo da Evolugao, seguida pela Genética, passando a Fisiolo- Gia, com estudo detalhado da inteligéncia, sua “heran- ga" e “caracterizacao racial", e, por fim, Eugenia e Eu- tecnia. O autor, que instruia as futuras professora era médico especialista em ‘paternidade e filiagao grandes credenciais para a época. Ainda nao foi avaliada convenientemente a in- fluénoia que a perspectiva eugénica trouxe a educa- ¢éo brasileira e aos seus resultados histéricos. Dificil- mente encontraremos protessora primria formada en- tre as décadas de 1930 e 1960 que nao tenha sido influenciada pelo discurso eugnico, ainda que de for- ma inconsciente. Jargdes comuns ainda hoje, como 08 rétulos de aluno “forte” e * pido” e “lento” “estrela’ @ “lanterna’, talvez sejam resquicios herda- dos daquele tempo. ‘A julgar pelas cifras de crescimento demografico registradas desde aquela época, o trabalho de “con- vvencimento pela educacao” parece nao ter tido suces- 50 em nosso pals. Sinais evidentes revelam 0 malogro no 86 da pregagao cugénica em si, mas da educa- 40 como um todo. No entanto, estudos tém demonstrado que mes- mo 0 malogro do ensino traz resultados interessantes para a perspectiva eugénica. O ensino da evolugao tem contribuigao muito importante nao s6 para a for- magao cientifica (Good et ali, 1992), mas também para a definicao do perfil ideolégico do estudante (Bi- 220, 1994). Varios trabalhos em todo o mundo tem mostrado que os jovens estudantes, apés passarem por um periodo de estudo regular na escola secun- daria, interpretam os conceitos biolégicos fundamen. tais nas teorias evolucionistas de forma pouco apro- ptiada (Wood-Robinson, 1994). A adaptagao biolégica, condigdo central para a sobrevivéncia de uma esp cie, € tida como um simples ajuste do individuo ao meio que 0 rodeia. A evolugao biolégica, processo de 50 mudanga na freqdéncia dos genes presentes numa populagao, 6 entendida como aperfeigoamento rumo a um padrao predeterminado, Em outras palavras, nao se trata apenas de dei- xar de municiar o aluno com elementos que the per- mitam enfrentar com discernimento o debate da desi- gualdade racial, mas, até pelo contrario, encaminha-lo ‘am diregdo ao ja estabelecido, Ao estudar evolugao © aluno naturaliza suas concepgdes de ordem e pro- gresso, entendendo-as como atributos universais de tudo que pode se modificar na natureza e, por ana- logia, na sociedade. O fracasso no ensino de concei- tos biolégicos centrais para a compreensao da diver- sidade biolégica — @ humana — parece substituido pelo sucesso em inculcar os valores da maxima ins- crita na nossa bandeira nacional CLONAGEM DE EMBRIOES: A EUGENIA ESTA DE VOLTA? OU CURVA-TE A SINA A recente noticia da clonagem de embrides humanos vem simplesmente adicionar alguns elementos de in- certeza diante de um quadro que nao superou — e sobretudo, ndo dissecou — as propostas da eugenia, Hoje pode-se, concretamente, replicar individuos e, ‘num futuro préximo, essa possibilidade passara a ser quase ilimitada, Ser possivel povoar uma ilha, um pais ou um planeta com irmdos gémeos idénticos. De qual extremidade da curva provirao os clones? Num estranho acaso, estuda-se a replicagao de ‘embrides humanos e a0 mesmo tempo desenvolvem- se técnicas de engenharia genética para modificd-los, © Projeto Genoma®? tem avancado a passos rapidos no sentido de mapear todo o material genético huma- no, estabelecendo a sequéncia exata das bases ni- trogenadas que o compdem. Muita controvérsia tem sido gerada a respeito, desde 0 langamento do projeto (ver, por exemplo, Davis, 1990), mas ele caminha ine- xoravelmente na diregao planejada e, em poucos anos, teremos um mapa completo do DNA humano. Para alguns de seus defensores — ¢ financiado: res — significa a possibilidade de saber-se com exa- tiddo quais serao as caracteristicas que um novo ser humano herdara. Hoje, a maioria das técnicas de ana- lise genética fetal permitem determinar apenas ano- malias decorentes da alteragao da arquitetura cro- mossémica @ alguns disturbios de origem génica que produzem alteragdes enziméticas notdveis. Os resul- tados do Projeto Genoma nos farao conhecer nao apenas estas alteragdes com maior detalhe, mas an- tecipar todas as caracteristicas biologicas do embriao, A cor dos olhas da crianga poderé ser conhecida pou- cas horas apés a fecundagao, ou entéo escolhida num banco de embrides, para impiante uterino, 27 0 Projeto Genoma, iniciado em outubro de 1990, tom por objetivo conhecer em detahe a estrutura molocular do ma- terial gnetico humano, Nos seus 23 pares de cromossomos, fo Homom possui cerca de 100 mil diferentes genes. Cad, Pesq. 0.92, fev. 1995 No entanto, a maior parte das criticas a0 projeto 6 enderecada aquilo que talvez pudesse ser chamado de delirio reducionista. Em primeito lugar, receia-se a descoberta de genes que cocifiquem a tendéncia ideolégica do cidadao, ou a determinacao de seu Ql, por exemplo. Em segundo lugar, existe a possibilidade de serem construidos embrides a partir de selecao at- va dos genes. O paralelismo das pesquisas sobre a formula do homem (Projato Genoma) @ de como re- plicacta (clonagem de embrides) traz, sem divida, ole- mentos de preocupagao. A implantagao de tais em- brides humanos no utero de vacas ou porcos possi- biltaria uma alta capacidade de replicagao de indivi duos. Em outras palavras, 0 delirio reducionista pro- mete acabar com muitas das caracteristicas da plura lidade humana, e coloca em questao a propria con- cepcao de humanidade. Como sugeriu Paul Rabinow (1991), 0 Projeto Genoma faz emergir 0 que talvez pudesse ser denominado de racionalidade pés-mo- derma. © delirio reducionista promete muitas coisas, al- gumas das quais parecem pouco factiveis. Se, com certeza, dentre todas as caracteristicas humanas ape- nas uma parte pode ser atribuida @ heranca, entao achar que as caracteristicas psiquicas, ideolégicas ou. sociais possam estar encorradas numa tira de DNA, 6, em certo sentido, uma aproximagao infantil do pro- biema (Lewontin et ali, 1984; Tauber e Sarkar, 1992), Contudo, os futuros consumidores de embrides terdo a sua disposicao nas prateleiras das clinicas de fertlizagdo dois tipos de produtos. De um lado, pode- Fo escolher as caracteristicas genéticas que gosta- riam que estivessem presentes no embriao, comegan- do pelo sexo, cor de pele, estatura etc. Por outro lado, poderao optar polas caracteristicas genaticas que gos- lariam de ver ausentes no embriao, 0 que poderia in cluir todas as doengas de fundo genético conhecidas. Neste fim de século, vemos 0 referencial da ou- genia deslocar-se da repugnante violéncia racial na- zista para o atraente avango tecnolégico propiciado pela ciéncia, incentivado pelo furor dos lancamentos editoriais que mais convém ao momento. Poderemos condenar as praticas eugénicas ultramoleculares da mesma forma @ intensidade como as praticas macros- sociais do nazismo 0 foram? Enquanto se discute a definigéo seméntica de raga, as fraudes cientificas de ontem, os pressupostos ideolégicos de best-sellers de hoje, ou a natureza po litica da critica a eles dirigida, caberia iluminar 0 futuro com a experiéncia do passado. Talvez assim pudés semos evitar a reedigao de tragédias, que agora soa- iam como prosaicas comédias. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ADAMS, M. B. The Wolloom science. Eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. Oxford: Oxlord University Pross, 1989, ALMEIDA JR., 8. 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