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Co-EDIcho Fundacio Calouste Gulbenkian E-mail: info@gulbenkian pt Imprensa da Universidade de Coimbra E-mail: imprensa@ue pt Vendas online: herp//iveatiadatn rensa ue pt Coonpenacho EprromAL Imprensa da Universidade de Coimbra Concecdo aRarica Anténio Barzos INPOGRAPIA DA CAPA Carlos Costa Simdes & Linhares PRE-TORMATAGAO, Catarina Argueiro EXECUGAG GRAFICA NSG, Novas Solugdes Grficas, S.A 1sBN 978-989-26-0828.0 978.989.26.0829.7 por btp://dx dol org/10.14195/978-989-26-0829-7 Durosixo Le6at $66589/15 © NovEMnRo 2014, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, (OBRAS DE MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA. ESTUDOS SOBRE A GRECIA ANTIGA ARTIGOS FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA ENIGMAS EM VOLTA DO MITO' Para os Gregos, a palavra yi8og designava, desde os Poemas Homéricos, uma forma de discurso. Daf passaré ao significado de «narrativay, real ou ficticia, e, neste tiltimo sentido, comegaré aos poucos a opor-se a ASy0«, que se aplicava & histéria verfdica. Um dos primetros esbogos desta distingdo pode ouvir-se na Lt (le Olfmpica de Pindaro (28-25), quando o poeta, acumulando uma série de gnomai, prepara a nova versio que vai apresentar da vida de Pélops: Muitos prodfgios h4, e muitas vezes as histérias dos mortais excedem a realidade (&Aa®ij Adyov). Desiludem-nos as fabulas (10801) buriladas com mentiras de matriz variegado. um século depois, a distingao aparece claramente estabelecida em mais do que um passo de Plato. Escolhamos este exemplo do Gérgias 523 a Escuta entdo, disse ele, um Adyog muito belo, que terds na conta de 1000«, segundo julgo, e eu, na de Adyos; pois & como coisa verdadeira que te farei a narrativa que me proponhe contar. ‘A nogao de que os mitos eram narrativas que nao correspondiam a realidade jé fora expressa, alids, pelos Sofistas que, no entanto, admitiam que neles se pudesse encontrar um nivel de significagdo mais profundo. Esboca-se deste modo uma teoria que ainda hoje mantém vitalidade: a teoria alegorista. Pode mesmo dizer-se que a interpretagio alegérica dos mitos é a que prevalece na recepcdo que vieram a ter na Idade Média, no Renascimento e mesmo até ao séc. XVIII, ndo obstante ter surgido, desde o s6c. Ill a.C, uma outra linha de interpretacao, a evemerista, que Publicado em Actas do Symposium Classcum {Brasarense, Braga, 2000, 13-26 s ESTUDOS SOME A GECHA aNTtCA via nestas histérias tradicionais os vestigios de um passado histérico, centrado em figuras reais de outras eras —e que tem, igualmente os seus continuadores. Precisamente a partir do séc. XVIII surgem novos modos de considerar est fendmeno, entre os quais tém um lugar pioneiro os trabalhos de Christian Gotlob Heyne, que diferencia o mito da poesia, da retérica, da alegoria, como uma ma- nifestacdo auténoma, correspondente a um estdio inicial do género humano; € os de Herder e do seu cfrculo do Romantismo alemo, que véem nele um objecto de investigagao cientifica, A partir da primeira metade do séc. XIX, Carl Otfried Miiller publica os seus Prolegomena 2u einer wissenschaflichen Mythologie (Gattingen 1825), que abre o caminho & nogao, depois propugnada por muitos outros grandes nomes, de que existiria uma ciéncia da Mitologia, Porém ao historiar a complexa evolucdo deste género de estudos, aquele que é geralmente considerado 0 maior especialista da actualidade nessa érea, Walter Burkert, declarou ja: «ich glaube nicht, dass wir Uber diese Wissenschaft verfigen» («Nao creio que se disponha dessa ciéneian). Efectivamente, 0 estudo dos mitos tem sido reivindicado por distintas 4reas do saber, nao raro em conflito umas com as outras, © sem que se tenha ating do uma teorizacao e um método que definam as fronteiras de uma ciéncia, De entre essas dreas do saber, mencionaremos algumas, como a orientalistica ¢ a germanistica (em ligagdo com a histéria comparada das religides), a etnologia, a sociologia, a antropologia, a arqueologia, a lingu{stica (em relagio com o mé- todo estruturalista), a psicologia, a flosofia do conhecimento, Grandes fildsofos tentaram elucidar a questo, como Kant e Hegel, Cassirer e Heidegger’, e, mais recentemente, Paul Ricoeur. Quase todas as especialidades mencionadas tém dado o seu contributo e, em ‘muitas, as vantagens que permanecem superam os erros a que induziram. De uma € de outros apontaremos apenas alguns exemplos. Para isso, voltemos ao séc. XIX, a fim de recordar o impacto produzido pela publicagio dos contos recolhides pelos irmaos Grimm (1812-1815), e mais ainda pela redescoberta da epopeia medieval dos Nibelungen, em que viriam a inspirar- se muitos poetas ¢, sobretudo, a famosa tetralogia operdtica de Wagner. 0 acontecimento marcante foi a edi¢2o, por Max Miller, do poema indiano do Rig- Veda. F.todos estes factos tém de situar-se na época em que, como todos sabem, Bopp havia encontrado afinidades suficientes entre a quase totalidade das linguas europeias e 0 sAnscrito para se tornar possivel postular a existéncia de um per- dido idioma origindrio, 0 indo-europeu. Neste contexto, compreende-se que as 7 sGriechische Mythologie und de Geistesgschichte der Modernes, in: Entretiens Hand 26 (Gendve 973) 159-207 [daqui em diane citado s6 como «Griechische Mythologies] A citagao & da p 159 » ‘Sabre a famoso debate destes dos pensadores ets Davos, vide Miguel Baptista Pereira, «0 re sresso do mito no diflogo entre E,Cassrer eM. Heldeggers, Revista Flbsfce de Coimbra 27 (1998) 368, ENIOMAS #84 VoLTA bo stro 9 investigades de Max Milller o levassem a escrever uma Mitologia Comparada (1856) e que, de hipétese em hipétese, ele acabasse por criar uma «Mitologia do Sol», origem, por sua vez, de trabalhos de varios seguidores, de tal modo que, como resumiu Burkert, «na segunda metade do séc. XIX, a Mitologia ficou reduzida & Meteorologian*(jé se tinha individualizado, por exemplo, uma mitologia da lua), ou, como antes dele ironizara L. R. Farnell, se tornou «uma conversa superiormente figurada sobre o tempo atmosférico»*. Convém lembrar que é também do final do séc. XIX e comecos do seguinte a publicacdo do monumental estudo de J. G. Frazer, The Golden Bough, cujo ponto de partida fora uma investigacao sobre o célebre ramo de ouro que Eneias tem de colher, no canto VI da Eneida (136-148), como condigao para poder descer aos infernos, e acabou por se dilatar em doze volumes recheados de informagées vin- das de todo o lado, incluindo de povos africanos. Esta entrada da antropologia no campo de estudos que nos ocupa esté na origem da célebre Escola de Cambridge, com Robertson Smith e Jane Harrison, A. B. Cook, F. M. Cornford, a que depois se Juntou o oxoniense Gilbert Murray. Estava constituida a teoria do ritual, que sus. tentava que os mitos eram narrativas tradicionais ligadas a ritos, correspondendo aqueles a parte falada do ritual, e estes a execugao do mito. Posta nestes termos, pode dizer-se que tal doutrina caducou, nomeadamente, no que diz. respeito a «divindade do anon, o éviavrds Saiywy que dava lugar &s ce- lebracdes. Os especialistas actuais tratam respectivamente esta parte da doutrina por «complexo do Ano Novo» (tal como falam também de um «complexo de inicia~ Gao», a que tudo se reduzia)’,¢ apontam exemplos de mitos a que nao corresponde nenhum ritual vice-versa’, F, no entanto, algo se péde aproveitar desta teoria: a presenga, em varias tragédias, do sacrificio ritual. O mérito desta revelagao vai, mais uma ver, para Walter Burkert, que em dois artigos, um publicado em 1966 e outro em 1985, mostrou os vestigios desse acto nos trés grandes dramaturgos gregos, sem deixar de reconhecer o lugar tinico da tragédia dtica como forma de arte, em relagdo aos seus provaveis comecos: «A transformacdo num alto nivel de literatura, adaptagao do mito hersico, permanece, sem ckivida, um feito {mpar (..) E contudo, a esséncia do sacrificio ainda percorre a tragédia, mesmo na sua maturidade>*. Dos vérios exemplos escolhidos, como o do sacrificio e morte de Héracles nas Traguinias © Glechische Mythologies, 167. * citado por Burkert, diem, 169 * £g.H.S. Versnel in: Lowell Edmunds, ed. Approaches to Greek Myth (Baltimore 1990) 58 > Veja-se, entre outros, GS. Kirk, Myth, les Meaning end Function in Ancient and Other Cultares (Cambridge 1970) 8-51 [daqul em diante citado s6 como Myeh] * Greek Tragedy and Steril Ritual Grek, Roman and Byzenine Studies (1960) 87-123;¢ per ritual bei Sophokles, Pragmatik - Symbol - Theaters, Das Atsprachliche Unterricht 18,2 (1983) 5-20 » eGreek Tragedy and Sacrificial Rituals, 115-116 10 ESTUDOS SOME A GECHA aNTtCA de S6focles, o que mais impressiona pela argiicia revelada no estabelecimento desta relagdo é 0 do grande monélogo de Medeia, quando, no meio das hesitacdes em que se debate a protagonista antes de matar os filhos, exclama (1053-1055)": A quem ndo agrada assistir aos meus sacrificios, € consigo. Recorde-se que no éxodo da tragédia de Euripides, Medeia anuncia, qual deus ex machina, que sepultard os filhos por suas maos no templo de Hera Acraia, em Corinto, e nessa cidade instituiré uma festa sagrada em honra deles (1378-1383). Voltemos de novo as diversas orientacdes que surgiram no decurso do séc. XIX. Uma é a comparacdo com os mitos de diferentes povos além do grego. Falémos 44, a este propésito, dos poemas da india antiga. Estava ainda para chegar 0 co- nnhecimento dos chamados mitos orientais, entendendo por tal designacao os da Mesopotamia e do Egipto, dataveis do terceiro milénio a. C.,a que vieram juntar-se os da Siria (Ugarit, hoje Ras-Shamra) e da Anatélia (Hattusa, hoje Boghaz-K6i), Saliente-se, a propésito da primeira destas regides, a surpresa causada pela pu blicagao de S. 1. Hooke, Myth and Ritual (livro que, logo no titulo, evidencia a sua filiago nos prinefpios da Escola de Cambridge), publicagao essa ocorrida em 1933, Tratava-se da epopeia babilénia de Enuma Flis, que tinha de ser recitada na festa de ‘Ano Novo, e num lugar fixo. Fste poema, que poder datar-se da primeira metade do séc. XVIII a.C, contém uma teogonia, cujas semelhancas — e também diferencas —em relacdo a de Hesfodo tém sido objecto de acalorada discussdo. Outros textos semelhantes surgiram dos arquivos hititas de Hattusa, 0 Poema de Kumarbie a Cando de Ulikummi situados pelos orientalistas entre 1400 a 1200 a. C., ¢ provavelmente precedidos de verses hurriticas, que ascenderiam a meados do segundo milénio a. C. Mais recentemente, a Histéria Fentcia de Sanchuniathon, conhecida através da versio de Filon, na época romana, viu confirmada a sua antiguidade pelo achado de novos fragmentos na antiga Ugarit. 0 assunto encontra-se certamente longe de estar esgotado. E até mesmo o recente livro de M. L. West significativamente intitulado The East Face of Helicon (Oxford 1997), destinado a convencer o campo oposto pela apresentagao dos muitos textos orientais relevantes, tem defrontado © cepticismo dos helenistas” Bide, 17-1, ‘Veja sea recensto de Stephen Halliwell, Greece & Rome 45, 2 (1998) 235, que termina com mal disfarada ironla: «after the substance ofthis Book has been sifted, and some ofits historical claims tested by specialists, we stil need a more explicitly reasoned account of the relationship between the east and west faces of Helicon, Afterall, even West concedes thatthe Muses seem to have Been A purely Greek creation.» ‘No preficio sua monumental edigdo comenteda da Teogonta de Hesfodo (Oxford 1968), West ana- sara o que aquela data se saba dos modelos orientais Da numerasa bbliografia sobre este assunto, vojase, em especial, H. Eros, wOrientalisches und Griechisches in Hesiod Theogonics, Piologus 108 Observe-se ainda que o poema de Hesiodo nao era o tinico relato da criagao do mundo que os Gregos conheciam. Jé hd muito que se entrevira outro na parédia contida nas Aves de Aristéfanes (685-703)" . Mas 0 achado do papiro de Derveni, em 1962, veio confirmar a existéncia de uma teogonia érfica”. Dentro deste ambito, hé um exemplo curioso, tanto mais que se relaciona com Héracles, o mais popular dos heréis gregos. Trata-se de um texto sumério-acddio sobre Ninurta e Akakku, datdvel dos sécs. XXII-KXI a, C., mas publicado sé em 1983. Ninurta é um ser divino, dotado de grande valentia, que vence monstros ¢ executa doze trabalhos com animais tem{veis. £ seu pai Enlil, senhor das tem- pestades e deus supremo. {As coincidéncias, até aqui, sdo flagrantes, mesmo tendo presente, quanto aos trabalhos de Héracles, que o ntimero de doze teria figurado pela primeira vez num poema do Ciclo fpico, de Pisandro de Rodes, talvez de 600 a. mas foi certamente 8 sua representacdo no friso interior do Templo de Zeus em Olimpia (456 a. C.) que thes fixou o niimero. De facto, a0 descrever as eélebres métopas, Pausdinias comeca por dizer: «Esto também em Olimpia os trabalhos de Héracles na sua maior partey (5.10.9). Ao referir-se a estes novos textos sumério-acddios, Burkert nao deixa de notar que, além das semelhancas acima apontadas, também hd muitas diferengas. Num ponto importante se aproximam, porém: ambos sio heréis culturais, conquanto a esfera de acco de Ninurta seja ensinar a explorar minérios" Regressemos mais uma vez. ao séc, XIX, pois ainda ndo estdo esgotadas as referéncias as muitas teorias do mito que os seus iltimos anos viram surgir. Ffectivamente, mesmo cingindo-nos s6 as principais, hé duas que ndo podemos omitir — ade Nietzsche e a de Freud. A primeira, proclamando, na sua discutida e discutivel Geburt der Tragodie (1872), o antagonismo entre espirito apolineo e es: pirito dionisfaco, doutrina essa que Wilamowitz logo neutralizou nos dominios da Filologia Cléssica"*, mas que continua a ser frequentemente considerada a iltima (Gos) 2-2. Kink, Myo 116-155 A Lesky,Griechlcher Mythos und Vrderer Oren Gesammele Schr ten (Bern 1966) 379-400, * omals recente comentirio desta obra, ode Nam Dunbar, ed, Aristophanes. Birds (Oxford 1995) 437-438, considera que Hesfodo fol de qualquer modo, o principal modelo do comedisgrafo, ® Descoberto em 1962 num tml em Derveni preiosamente guardado no Museu de Tessalé ric, fo publicado na Zelschrif flr Papyrologie und Epigraphik 47 (2982) 1-12 ediscutio, antes e depois disso, por numerosos especialists, entre os quais Walter Burkert, «Orgheus und die Vorsokratiker», “Anite und Abendland 14 (2968) 92-14. Veja-se também a curiorse ouseda interpretagdo de Glenn W, Most, «the fire next time: cosmology, allegories, and salvation in the Derveni Papyrus, Journal of Helene Sties 17 (1987) 117-193, " «Oriental and Greck Mythology: The Meeting of Parallels in: Jan Brommer ed, Interpretations of Greek Mythlogy (London 1987) 10-4, » «Ein genalesIrrsums (Uns erro genial), coms se 18 no sub-titula do livre de M. Vogel, Apel nisch und Dionsisch (Regensburg 1966) 2 ESTUDOS SOME A GECHA aNTtCA palavra da ciéncia noutras areas do saber. Atrds desse vieram ainda 0 mito de Zaratustra, do Super-Homem e do Eterno Retorno. A Psicandlise de Freud, dada a conhecer em Die Traumdeutung (1900) ganhou notoriedade mesmo entre leigos, em parte devido ao exemplo escolhido para do- cumentar 0 modo como as pulsdes refreadas podem exprimir-se através do sonho, Esse exemplo provém dos versos 980-983 do Rei fdipo de S6focles, em que Jocasta tenta dissipar as apreensdes do Rei de Tebas quantto ao ordculo que anunciava que ele havia de cometer incesto, dizendo-Ihe que muitos homens tinham jé imagi nado em sonhos a unio com suas maes. Refira-se de passagem que, conforme jé observaram diversos autores, Edipo, tendo sido criado pela Rainha de Corinto e no tendo conhecido nunca, até & idade adulta, os seus verdadeiros pais, de modo algum poderia ter sofrido do complexo que tomou o seu nome", Tornaremos a este ito. Mas, jd que estamos na familia dos Labdacidas, observemos que os modernos opositores da psicanélise apontam agora jocosamente ao préprio Freud um novo complexo dessa proveniéncia, 0 de Laio, uma vez que ele sempre temera o que veio a suceder, ou seja, que Jung, o mais brilhante dos seus discfpulos, destronasse as suas teorias... Com efeito, Jung abjurou do pan-sexualismo das interpretacdes de Freud e evolucionou no sentido de pressupor um inconsciente colectivo onde vra-mie, da crianga divina, do sol, e outros ainda. A verdade porém, como objectou G. S. Kirk, é que, embora se formavam arquétipos, como o do velho sabio, se tenha afirmado repetidamente que esses s{mbolos sio frequentes, «jamais se apresentaram provas e estatisticas convincentes ou se tentou sequer fazé-lo»”. Passando adiante nomes importantes, nao poderd deixar de referir-se 0 de contempordneos, como Mircea Eliade, cujos livros principais tém sido divulgados em muitas Iinguas. A doutrina de Fliade reconduz tudo ao mito das origens e do eterno retorno, nao obstante haver iniimeros mitos irredutiveis a tal simplificagao, Com este autor estamos jé na segunda metade do séc. XX, época que, como se sabe, é invadida pelo estruturalismo, vindo das novas orientagées do célebre Cours de Linguistique Générale de F, de Saussure (1915) e, depois, de Jakobson e outros. £ neste modelo lingufstico que se baseiam os trabalhos do antropélogo Claude Lévi- -Strauss. Em «The Structural Study of Myth» (1955), trés anos depois reimpresso no seu livro Anthropologie Structurale, faz a aplicagao desse mesmo modelo & mitologia, exemplificando-o com a mais discutida das hist6rias, a de Fdipo, precisamente aquela de que faldmos h pouco noutro contexto — embora depois se voltasse de preferéncia para as de outros povos, nomeadamente, dos indios sul-americanos. Para esta corrente, o mito é essencialmente um produto da linguagem, logo, um meio de comunicacdo, que sé atinge significado na relacao entre si dos diversos 1 este propésite veja-te, entre outros, JP. Vernant, «Dedipe sans Complexe» in: Mythe et ‘Tragic en Grice Ancienne (Paris 1973) 15-98 yeh 25, ENIOMAS #84 VoLTA bo stro 1 elementos que o compdem —a que chama mitemas —e que, por isso mesmo, ndo tém sentido independente, quando desligados do sistema. Ou seja, o mito tem de ser considerado em todas as suas versGes, e s6 a perspectiva sincrénica é valida, pelo que deixa de ser relevante a to procurada distingdo entre versio auténtica € versio primitiva. Daqui resulta que passa a haver, utilizando as palavras de Vitor Jabouille, «dois nfveis de leitura (..): 0 nfvel narrativo manifesto e o nivel mais profundo, que s6 se pode alcancar através da referenciagao dos elementos constitutivos da narrativa miticay*. Como vimos, 0 primeiro exemplo escolhido pelo antropdlogo francés tinha sido 0 mito de Edipo, cuja apresentaso é feita numa grelha disposta para leitura vertical e leitura horizontal. A primeira coluna assim obtida engloba o que o autor chama arelagdes de parentesco sobre-avaliadas» e agrupa os mitemas «Cadmo procura a sua irma Europa, raptada por Zeus», «Edipo desposa Jocasta, sua mae» € «Antigona enterra Polinices, seu irmao». A segunda coluna, esclarece o autor, «traduz a mesma relacao, mas afectada por um sinal inverso: relacbes de parentesco sub-estimadas ou desvalorizadas»: os Espartanos exterminam-se mutuamente; Fdipo mata seu pai, Laio; Ftéocles mata o seu irmao, Polinices. A terceira agrupa a destruigao de monstros: Cadmo mata o dragio; Edipo imola a Esfinge. A quarta diz respeito a trés figuras que tém dificuldade em andar direito: Lébdaco (pai de 0x0; Laio (pai de fdipo) = canhoto; Fdips mitemas estdo, porém, afectados por um ponto de interrogacao. De facto, ndo sé 16 inchado, Estes tr€s tiltimos partem da noco, sempre contestavel, de que se trataria de nomes falantes, como assentam em etimologias incertas. Bastaria esta circunstancia para nos pér de sobreaviso contra o esquema, a que os seus opositores chamam bricolage. Aligs, da fragilidade deste modo de ordenar o famoso mito tinha consciéncia o proprio Lévi-Strauss, que precedeu a sua apresentacao destas cautelosas observacées «Suponhamos arbitrariamente que tal disposicao esteja representada no seguinte quadro (entendendo-se, mais uma vez, que no se trata de o impor, nem mesmo de o sugerir, aos especialistas da mitologia classica, que certamente quereriam modificé-lo, se ndo mesmo rejeité-lo)»®, Na verdade, foi isso mesmo que aconteceu, quer por parte de fildsofos, como Paul Ricoeur, que atacou a doutrina nos seus fundamentos, acusando-a de ser um sistema fechado sobre si préprio, «sem referéncia a realidade nem a psicologia € 8 sociologia dos locutores» e de eliminar «a pretensao de o mito dizer alguma coisa, que, como visio do mundo, pode ser verdadeira ou falsa»*, quer por parte i iba dos Mites. 2. e. (Lisboa 1994) 84 » Anthropologie Struturale 257.0 quadro encontrs-se na pigina anterior a essa Anthropologie structurale 236 eMito. A IntorprotacdoFiloséfica in: Paul Ricoeur et ai, Grécae Mito (trad, port: Lisboa 1988) ‘As citagBes sio de pp. 12 14 dessa versio. “4 ESTUDOS SOME A GECHA aNTtCA dos classicistas. Efectivamente, dois dos maiores helenistas da actualidade, que se tém ocupado do mito e da religido grega, e que jé varias vezes citémos no decurso destas consideragées, G. S. Kirk e Walter Burkert, opuseram-se também a esta nova metodologia, o primeiro nas Sather Classical Lectures de 1970, editadas sob o titulo de Myth. ts Meaning and Function in Ancient and Other Cultures, ¢ 0 segundo em numerosas obras, especialmente na série de conferéncias daquela mesma série da Universidade de Berkeley, proferidas sete anos mais tarde com a designagao de Structure and History in Greek Mythology and Ritual. Tste titimo livro demonstra mais uma vez que a dimensio histérica nao pode ser exclufda da interpretagao dos mitos, como pretende o estruturalismo, Escolhe- remos um exemplo que lé se encontra, relativo a uma das mais famosas aventuras de Ulisses, a do Ciclope Polifemo. Geralmente vista como um conto popular, com nnumerosfssimas verses em varios povos (em 1904 jé Oskar Hackman tinha reunido € publicado cento e vinte e cinco, muitas das quais seguramente independentes da Odisseia, ¢ que iam de Espanha até ao Céucaso), a sua incluso no véoros do Rei de ftaca tem dado lugar a muitas anélises que a situam no esquema geral do Regresso do Heréi. Um dos estudos mais notveis sobre o episédio ¢ sem diivida 0 de D. L, Page, que forma o primeiro capitulo do seu livro The Homeric Odyssey". Ai o conhecido helenista discute, em termos de construgao da narrativa, a escolha da arma que Ulisses utiliza para cegar o Ciclope e assim permitir a sua fuga ea dos companheiros sobreviventes no dia seguinte: nao um objecto metélico, mas 0 bastdo do préprio Polifemo, aquecido no fogo até ao rubro, Ora, no livro ha pouco referido, Burkert encontra para essa substituigao uma engenhosa ¢ convincente explicagao histérica: a escolha de uma peca de madeira era um substrato do tem- po em que os metais nao estavam ainda em uso, logo, um indicio de uma fase da Ienda originada no paleolitico*. Referimo-nos a Lévi-Strauss como uma das mais influentes figuras na apli- cagdo do estruturalismo aos mitos, método que depois ele veio a exemplificar predominantemente nos dos amerindios, conforme jé referimos. Outros, porém se voltaram para os mitos gregos, designadamente J.P. Vernant e M. Détienne, dois dos membros mais destacados da chamada Escola de Paris, que tem conhecido um grande éxito, Precisamente porque sao muito divulgadas as suas obras, nao vamos demorar-nos na respectiva apreciago. Gostariamos apenas de apontar um exemplo do primeiro destes autores, publicado a primeira vez em 1960, e que contém uma anilise estrutural do mito das Cinco Idades de Hesfodo, Trabathas e Dias 109-201 Oxford 1955, Muitos outros autores estudaram também esta aventura, entre os quas G5. kirk, myth 162-171, qu viunela um exemplo de confrontacao entre natura e culture, Structure end History in Grek Mythology and Ritual 38, % sLemythe hésiodique des races. Esai d'analyse struturales, Revue de istoie des Religions (2960) 2154 -aythe t Pens chez es Grecs (Paris 1968) 19-4 rao miro 6 Neste mito, conhecido através de numerosas versées, a histdria da humani- dade é vista como um processo de degeneracdo continua, em quatro épocas su- cessivas, cada uma das quais simbolizada por um metal ou liga metélica de valor decrescente: ouro, prata, bronze, ferro. Nao assim em Hesfodo, que entre as duas altimas intercala a idade dos heréis, aumentando assim 0 niimero para cinco. Ora, na sua andlise, Vernant supde a existéncia de ainda mais uma, nao obstante 6 texto grego usar um numeral ordinal cada ver que introduz a descri¢ao das caracteristicas das «ragas dos homens dotados de vor, que os imortais criaram», conforme se Ié logo nos primeiros versos. Sem entrar nos pormenores da inter- pretacdo do autor francés, diremos apenas que esta modificacao arbitraria divide em duas idades a do ferro, a fim de completar trés pares de opostos: aqueles que se submetem a justica (Dike) e os que cometem desvarios, devido a sua insoléncia (Hybris). Também ndo vamos recordar a polémica suscitada por esta distorgo do texto para ilustrar uma teoria, Mostraremos apenas como a reintroducao da pers- pectiva histérica na andlise de um mito pode abrir melhores perspectivas na sua interpretacao. f 0 caso do artigo publicado trés anos antes por T. G. Rosenmeyer na revista Hermes, Sustenta este helenista que o poeta tinha a nogao de que antes dele tinham existido homens superiores, os que lutaram em Tebas e Tréia — ou seja, aqueles que hoje situamos na época micénica —, uma «raga divina de herdis, chamados semi-deuses, a geracdo anterior & nossa na terra sem limites» (159-160). Por isso interrompe a linha de decadéncia que havia seguido até entdo e hes atribui um destino iltimo — habitar as IIhas dos Bem-Aventurados — que quase os equipara aos homens da Idade do Ouro. Tao-pouco nos esquegamos de que eles tinham sido precedidos por uma raga que para tudo usava o bronze, «em bronze trabalhavam, pois nao havia o negro ferro» (151). Trata-se, como entende esse autor, de reminiscéncias histéricas sem diivida reveladoras, ¢ que como tal devem ser tomadas. Alids, jd um discipulo de Aristételes, Dicearco, acreditava na fundamentacio histérica deste texto™. Depois desta pequena volta pelas teorias acerca do mito, em que muitas tiveram de ser omitidas, designadamente as de alguns fildsofos (como Schelling, com a sua interpretacao tautegorista) ea do trifuncionalismo de Dumézil, poder perguntar- -se se, com 0 contributo de tantas ciéncias, de que faldmos no comego, estaremos em condigdes de definir esta manifestagao do espfrito humano. Poder-se-4 ter como um dado adquirido a eliminacao da ideia de uma men talidade primitiva, o que, como escreveu Burkert", foi afinal o contributo mais % elesiod and iistoriography,lermes 85 (1957) 257-2, Fr 49 Wohl. Outros autores procuram discernir aqui ateoria do devi cel retorno, que verdadeiramentes6 viria a ser formlada pelos Nlésofosestéicas, em tendam vé-la jf em Herachito alguns pre eGriechische Mythologie, 284. 16 ESTUDOS SOME A GECHA aNTtCA vilido da psicandlise. Pelo contrdrio, tem-se verificado que, sob as mais variadas formas, 0 mito existe em todas as épocas. Nao esquecamos porém que nao podem colocar-se no mesmo plano os mitos sé conhecidos pela transmissao oral — e que continuam a ser recolhidos na actualidade junto de povos que desconhecem a escrita —e os que chegaram até nds através de uma depurada tradigao literéria, como & 0 caso dos de origem grega, ‘A delimitagao do conceito de mito é ainda dificultada pela proximidade de outras narrativas tradicionais afins, como o conto popular, que Kirk procurou distinguir, estabelecendo que este nao diz respeito a problemas profundos, vale s6 pelo seu interesse narrativo e geralmente as suas figuras nao tém sequer nomes” Pelo contrério, o mito deve ter um significado especial e intelectual em relagao A sociedade e é um fenémeno multidimensional”. Dessa mesma caracteristica deriva o facto de tantas doutrinas discordantes terem quase todas deixado algum contributo vilido. Dessa variedade de opinides e da necessidade de as discutir € confrontar dao ideia os numerosos congressos que se tém realizado nos iltimos tempos, bem como o habito de publicar colecténeas de trabalhos em que se abor- dam os varios aspectos que comporta e se exemplificam as diversas metodologias hoje utilizadas, como a que organizou Jan Bremmer em 1987 ou Lowell Edmunds em 1990", Todos estes factos comprovam o fascinio que este tipo de narrativas continua a exercer sobre os estudiosos. f que, como escreveu Walter Burkert, «um mito éil6gico, inveros{mil ou imposstvel, talvez imoral, e, de qualquer modo, falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e digno, quando no mesmo sagrado»". Sao essas caracterfsticas contraditérias que mantém 0 gosto por este produto da mente humana em todas as épocas. Os mitos contém e verbalizam um sem-niimero de experiéncias em situagdes-limite e tentam, em sucessivas aproximacées, explicar 0 mundo ¢ as relacdes com ele e dos humanos entre si. E, sobretudo, conservam sempre a atraccao do enigma. 7 hyhs » CE.W. Burkert, «Oriental and Greek Mythology it. 10-11 Respectivamente, Interpretations of Creek Mythology (London 1987) Approaches to Greek. Myth (Galkimore 1990) % aktythos und Mytologi» in: Propylin. Geschichte der Literatur (Berlin 198:) I 11-35 [a etagao 6 da tradugo portuguesa Mita e Mtslogia (Lisboa 2991) 13).

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