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ABSTRACT

Strnctural Heterogeneity and Class Consciousness:


The Theoretical and Methodoiogical Dilemma

This article focuses on the problems pre- and potential links between "marginais" and
sented by Marxían-inspired models of politicai an- "workers" in the light of the specific circum-
stances historically rerorded in Brazil, where the
alysis in passing from the more abstract theoretic~
boundaries that separate the "active" and "reser-
A COMIDA, A FAMfLIA E A
ai levei to the empiricai study. As for the "dcpen-
dent capitalist" countries, whose structural hete- ve" portions of the wÇJrking class are extreme1y CONSTRUÇÃO DO G~NERO FEMININO
rogeneity is generally acknowledged, even greater elastic. The author hypothesizes that the tenden-
problems exist, since it is difficult to reeognize cy to super~xploit the labor force is expressed in Klaas Woortmann
the "fundamental classes" within the complex a dual proccss: segmentation of labor relations in
network of existing relations of production. Con- production tcrms and unification in reproduction Uma Leitura da Comida lia, de homens e de mulheres, tanto para o
currently, a polemical discussion springs up terms whose costs must be bome by both the
"active" and "reserve" sectors. The link in tcrms
antropólogo que realiza uma leitura cons-
around the concept of "marginal masses" and the
of reproduction has politicai overtones having to Alimentos sa-o necessários para a re- ciente dos hábitos de comer, como para os
nature of their insertion into the structure of de-
pendent ca:pitalist classes. The studies eonducted do with arcas that receive little attention in clas- produção dos indivíduos e, portanto, dos próprios membros do grupo familiar e
identify "marginal workers" in contrast to those sical politicai analyses (labor unions and politicai membros de uma família. São igualmente através deste, da sociedade que realizam
engaged in capitalist relations of production (the parties) and that merit investigation: the family necessários para que se restaurem as ener- uma prática inconsciente de um habitus ali-
proletariat) and tend to mark the sarne eontrast space and the dwelling piares neighborhoods
gias gastas no trabalho, e, por isso, comer é mentar1.
regarding their politicai eonduct. or shantytowns where the working poor are
With these considerations in mind, the concentrated. preciso para que se reproduza a força de
Qualquer cultura discrimina, dentro
author explores another theoreticalV\!in:existing trabalho da família. Porém, a comida é
do universo de alimentos possíveis em cada
mais que apenas alimento.
ecossistema, o que se deve e o que n:ro se
Em qualquer sociedade, os alimentos
deve comer para cada tipo de pessoa e pa-
são na:o apenas comidos, mas também pen-
RÉSUMÊ ra cada estágio do seu ciclo de vida ou esta-
sados. Em outras palavras, a comida possui
do do seu organismo. De fato, como vere-
Heterogeneité Structurelle et Conscience de Classe: um significado simbólico - ela "fala" de al-
mos em algum detalhe, a comida, no Brasil,
Le Dilemme Théorique-Méthodologique go mais que nutrientes. A família, por seu
é sempre pensada com relação ao corpo, e a
lado, não se reproduz apenas no plano bio-
partir desta relaçlfo percebida constroem-se
Cet article met en évidence les difficultés (prolétariat). Elles tendent à en déduire une op· lógico, nem reproduz apenas sua força de
présentées par Ies mooeles d'analyse politique position semblable en ce qui concerne leur com- relações sociais representadas.
trabalho. Sendo ela uma construção ideoló-
d'inspiration marxiste quand ii s'agit de passer portement politique. Proibições alimentares são tão elo-
gica, ela se reproduz no plano simbólico, e
du niveau théorique plus abstrait au niwau des A partir de ces considérations, l'auteur se
études empiriques. En ce qui concerne les pays propose d'exploiter une autre veine théorique: uma das dimensões dessa reproduçlio pode qüentes quanto prescrições alimentares. Na
"Capitalistes dépeodants" dont tout le monde Les articulatíons réelles et possibles entre "mar- ser apreendida pelo modo de comer. Final- medida em que diferentes grupos ou cate-
s'accorde à reconnaitre l'hétél'Oilinéité structure1- ginaux" et "ouvriers" face à la spécificité d'une mente, a família- e o parentesco de forma gorias nacionais, étnicas ou regionais ele-
le, les difficultés augmentent encore plusface à la situation historiquement ~rifiée au Brésil; L'ex- mais geral - supõe homens e mulheres e, gem diferencialmente o que se pode ou não
difficulté même d"y recormaitre, au sein du ré- treme élasticité de la frontiere entre "actiw" et comer, ou discriminam entre o que é comi-
como veremos, o gênero é também cons-
seau complexe de production qu'ils présentent, "reserve" chez la classe travailleuse. L'articula-
tion au niV\!au de la reproduction a des contours truído, no plano das representações, atra- do "por nós" e o que é comido pelos "ou-
les "classes fondamentales". On wit surgir en pa-
ralh?le une discussion tout aussi polémique sur la politiques qui apparaissent dans les espaces non vés da percepção da comida. Com isso que- tros", os hábitos alimentares alimentam
notion de "masses ~es" et sur la nature de privilégiés des analyses politiques classiques (syn- remos dizer que a comida "fala" da famf- identidades e etnocentrismos.
leur insertion dans la structure.de dllsses du capi- dicats et partis politiques) et qui doivent faire
talisme dépendant. Le1i études matilies opposent l'objet de redlerches: !'espace família! et les lieux
par définition les "'travailleurs marginaux" à ceux d'habitation, quartiers ou bidonvilles, ou se eon- A DQção de habitus, como cultura internalísada sob forma de disposições permanentes a infor-
~~
qui vivent des relations capitalistes de production centrent les pauvres qui travaiUent. mar uma prática, e como cultura "histórica" e naturalizada. é desenvolvida por P. Bourdieu,Le
Sens Pratíque, Paris, Minuit, 1980.

dados -Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 29, nl? 1, 1986, pp. 103 a 130.

102 l03
O como se come, tanto quanto o que nial (ainda que ambos sejam ritualizados), Os hábitos de comer nos petmite en- nicaçfo uns com os outros, COiftO que for-
se come, é também carregado de significa- ou entre o comer em casa e o comer em tender diferentes dimensoes da cultma. e mando uma rede de significados. A Cómida
do. Em Bali, como mostra Geertz, deve-se público. O caráter simbólico-ritual do co- neste trabalho me limitarei à família en~ i uma "coisa" que, para além de sua mate-
comer em isolamento: mer se expressa claramente no hábito de quanto construçllO simbólica. O que me in- rialidade, fala da família. do corpo e de re-
convidar pessoas para jantar em nossa casa, teressa aqui é menos chegar a conclusftes lações sociais. Nlicleos de representaçoes
"A repulsa balínesa contra qualquer com· no "jantar fora" em determinadas ocasiões, que levantar sugestões a partir da idéia de seriam, por exemplo, em nossa própria cul-
portamento visto como animal não pode ou no "almoço do domingo". Nessas e em que a cultura é um texto, idéia essa formu- bml. categorias tais conto ITrlbalho, fmnr1ilt,
deixar de ser superenfatizada. É por isso outras ocasiões análogas, há algo mais em lada por Geertz em seu famoso ensaio so- temJ (em gn.Ípos camponeses), mãe e tantas
que não se permite aos bebês engatinha- jogo que necessidades nutricionais. Não bre a briga de galos:
rem ( ...) Não apenas defecar, mas até co-
outras que nucleiam conjuntos de represen-
convidamos pessoas para jantar em nossa tações, os quais, em sua comunicação den-
mer, é visto como uma atividade desagra·
casa a fun de alimentá-las enquanto corpos "0 que coloca a briga de galos à parte no tro da rede de representações, se articulam
dável, quase obscena, que deve ser feita
biológicos4, mas para "alimentar" e repro- curso ordinário da vida, que a eigUe do rei·
apressadamente e em particular, devido às e compõem a totalidade que é a cultura. É
no dos assuntos práticos cotidianos e a cer-
suas associações com a animalidade" 2 • duzir relações sociais, isto é, para reprodu· em tomo de tais núcleos que a cultura
ca com uma aura de importância maior,
zir o corpo social, o que supõe que seja· não é, como poderia pensar a sociologia . constrói os textos que o antropólogo deve
Em várias culturas islâmicas deve-se mos, em troca, convidados a comer na casa funcionalista, o fato de ela reforçar a dis· ler. Tentarei sugerir aqui, mais do que de-
comer com as mãos, e mais especificamen- do nosso convidado anterior. O que está criminação do 'status' (. ..) mas o fato de monstrar, que quando se fala sobre comida
te com a mão direita 3 • Comer e defecar, di- ela fornecer um comentário metassocial
em jogo é o princípio da reciprocidade e se fala sobre trabalho, sobre terra, sobre fa-
sobre todo o tema de distribuir os seres
reita e esquerda sa:o oposições que expres- da comensalidade. A presença da comida é, humanos em categorias hieráiquicas fixas e mília. Comida é uma categoria nucleante e
sam as noções de pureza e impureza. Esta é contudo, central, reconstruindo-se necessi- depois organizar a maior parte da existên- hábitos alimentares silo textos. Quando se
uma das razões pelas quais a puniçíio im- dades biológicas em necessidades sociais. cia coletiva em tomo dessa distribuiçio. classificam alimentos, classiftcam-se pes-
posta a criminosos - a amputaçíio da mão O conteúdo da refeiçfo é igualmente Sua função, se assim podemos chamá-la, . soas, notadamente os gêneros homem e
direita - é tão severa, pois o punido é obri- é interpretativa; é uma leitura balinesa da
sugestivo pois, à exceçfo de vegetarianos e mulher, pois, se o alimento é percebido em
experiência balinesa, uma estória sobre
gado a comer com a mesma mão (a "sinis- macrobióticos 5 , o componente central é eles que eles contam a si mesmos"'. sua r~lação com o corpo invidual, este é
tra'' dos romanos) com que limpa o trasei- quase sempre um alimento de origem ani- uma metáfora do corpo social.
ro, condenado assim a uma contínua po- mal, notadamente nas refeições cerimoniais A briga de galos é um texto cultural,
luiçlio. e/ou públicas. O cardápio de um restauran- "A cultura de um povo é um conjunto de
um meio de "dizer alguma coisa sobre al-
Nossa própria cultura pensa o comer textos (.. _) que o •ntropólogo tenta let
te - pizzarias à parte - divide-se sempre go", e a cultura, entendida como totalidade por sobre os ombros daqueles a quem eles
de forma distinta. Entre nós, poluição seria entre "carnes", "frutos do mar" e "aves", de representações de uma coletividade, é ·pertencerq".'
comer com as mãos, e seguramos o garfo sendo os vegetais apenas "acompanhamen- uma reunião de textos. Cabe ao antropólo-
com a mão esquerda. Para nós, a refeição é tos" ou anexos desprestigiados, para clien- go interpretar tais textos - que podem ser Tentarei, pois, "ler" os hábitos de co-
um ato social e n!lo privado. A rigor, como tes debilitados de corpo ou de bolso. Con- inclusive contraditórios -, tornando cons- mida e verificar o que esta leitura nos diz
veremos adiante, só é refeição o ato de co- forme veremos nessa análise, a comida por ciente e sistemático aquilo que a cultura sobre a família, no suposto de que esses há-
mer em grupo, e há diferenças significativas excelência é a carne, e nfo apenas devido a diz de si mesma à sua coletividade social. bitos constituem "ações significativas" que
entre o comer cotidiano e-o comer cerímo- seu preço. Dito de outra forma, a cultura é uma lin- se integram num discurso (social), como o
guagem,' um sistema de comunicação, e isto . sugere Cardoso de Oliveira8 • Todavia, esta-
em um duplo sentido: um sistema de men- remos nos afastando do Geertz da briga de
C. Geertz. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 286.
sagens ditas por algumas "coisas" sobre ou- galos em um detalhe: não iremos tratar de
O simbolismo da mão direita é comum a muitas culturas, em associação com as categorias de
tras "coisas", e um sistema onde diferentes. algo que as coloca "à parte no curso ordi-
pureza/poluição, tão bem analisadas por Mary Douglas,Purity and Danger, Londres, Routledge
& Kcgan Paul, !966.
núc/eos de representações estão em comu- nário da vida"; trataremos, pelo contrário,
Em várias partes do BI'llsil, não é de bom tom que o convidado coma muito, pois pareceria "es-
fomeado", depondo contra sua própria famtlia. C. Geertz,A lnterpretaçoõ da Cultura... , op. cit., p. 316.
Trata-se, sem dúvida, de uma exceção que confirma a regra, pois ambas as categorias são defmi· Idem, p. 321.
tivamente "esquisitas", e os últimos representam claramente uma "contracultura" que fala por
uma linguagem invertida, sob uma máscara dietética, numa inversão simbólica onde não só se R. Cardoso de Oliveira, "Leitura e Cultura de uma Perspectiva Antropológica", in Trabalhos de
substitui o animal pelo vegetal, mas também um ocidente negado por um oriente mitológico. Ciências Sociais, Série Antropologia, n. 43, UnB,l984.

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de algo que faz parte do centro mesmo da própria família se transforme em decorrên- Temos, aqui, uma clara homologia "nós" e suficientemente próximas para nllo
vida cotidiana, mas que nem por isso deixa cia de tais processos e condições; no entan- entre a "série alimentar" e a "série matri- serem estranhas afinal, ambos os extre-
de ser uma ação significativa. to, me limitarei aqui aos modos de comer. monial", e desde já uma aproximação entre mos impediriam a reciprocidade.
enquanto discurso e à reprodução ideológi- comida e família. Temos um contínuo, de A comida é ainda, além de um crité·
A Comida e o Pai de Fam rlia ca de um modelo de organização familiar. um pólo doméstico, simbolizado pela caça, rio para a classificação da natureza, um cri·
Alimentos, como já disse, se organi- domínio indiscutível da cultura e do "nós", tério para a separação do homem da natu-
Hábitos alimentares dependem, por zam através de classificações. A partir de a outro, selvagem e hostil, antinômico ao reza, pois o homem na:o pode ser comido.
certo, das possibilidades e condições de uma dicotomia inicial que opõe o não-co· primeiro, domínio indiscutível da natureza. Como indica Leach 13 , o homem nem é per-
acesso a alimentos, o que deriva, em boa mestível ao comestível, subdivide-se esta Os animais dos dois pólos extremos na:o são cebido como ser da natureza nem se con-
medida. da posição ocupada no processo de última categoria em "comido por nós" e comestíveis. Cães e gatos somos, simbolica- funde com o que é artificial, como a má·
produção. Mas, conforme sugerimos, comi- "comido por outros". "Comido por nós", mente, nós mesmos, e nio comemos a nós quina - produto desse mesmo homem que
da é uma categoriá de representações e, por sua vez, se subdivide em comido sem mesmos. E também não comemos as feras não se confunde com seu criador. Dentro
através dela, como mostrou por exemplo restrições e comido com restrições, e se or- que comem 'os homens; nio se toma como do universo, os camponeses estudados por
Brandão9 , antigos agregados de fazendas ganiza numa hierarquia de alimentos comi- alimento aqueles animais para os quais o Brandão 14 reservam em sua ideologia um
goíanas, tornados trabalhadores assalaria- dos segundo uma hierarquia de pessoas. homem é alimento12 • Come-se "normal- lugar marcadamente específico para o ho-
dos, expressam a própria transformação das mente" os animais que se situam na faixa mem, e a sua posiçlo na classificação do to-
relações de produção e a passagem de um Há animais que não se come em hipó- intermediária, fora da casa - animais do- do existente é fortemente marcada por
trabalho familiar solidário, que sob a dire- tese alguma: slo aqueles carregados de uma mesticados, mais que domésticos e fora princípios religiosos.
çlo do pai, assegurava a fartura, para um extrema ambigüidade, mesmo que possam do mundo selvagem animais silvestres, Há, todavia, uma diferença funda-
assalariamento individual que apenas possi- servir de alimento segundo critérios "obje- mas n:ro feras - e que se assemelham entre mental entre o homem-espécie e o homem-
bilita a precisão dentro do reinado da am- tivos". É o caso da moréia no Pará, por se si: galinhas e perdizes; patos de quintal e gênero. Se os sistemas (ideo)lógico-classifi-
bição. Ademais, e mais proximamente ao assemelhar à cobra, que ali pertence à cate- patos silvestres; bois e búfalos; cabras e vea- catórios separam o homem..espécie da natu-
tema deste trabalho, as práticas alimentares goria "inseto", ou do boto, na mesma re- dos etc. Indivíduos específicos podem ser reza, o discurso alimento-corpo humano
que se expressam na distribuição da comida gião, mamífero que vive como peixe e que, removidos de um domínio a outro adota- devolve a mulher para o domínio da natu-
dentro da família, se dependem daquelas além disso, pode se transformar em gente. dos, por assim dizer - e tornados, entll:o, reza, como demonstraremos mais adiante, e
condições de acesso, definem também hie- É o caso ainda do cão e do gato, que mto mcomíveis, como é o conhecido caso da assim separam o homem-gênero da mulher-
rarquias e reproduzem simbolicamente a fa- são comidos "porque não se come" 10 , Este "galinha de estimaçio". Transportado de gênero. Podemos ainda especular, a propó-
mflia. Não nego, em absoluto, que a repro- último exemplo nos lembra o conhecido um domínio cultural a outro, o indivíduo sito da homologia entre hábitos alimentares
duçio da famüia dependa de processos so- modelo elaborado por Leach 11 , do qual po- específico é reclassificado, de forma análo- e hábitos matrimoniais, sobre a relação me-
ciais e de conilições materiais, ou que a demos derivar o que se segue. ·ga ao que ocorre nas classificações de pa- tafórica entre o ato de comer e o intercurso
rentesco (o "irmlo de criaçlo"). sexual. Come-se a comida feita na casa - e
Mundo Mundo Homologamente, a reproduçlo matri- ela, em princípio, deve ser feita na casa,
Casa Quintal-Fazenda Silvestre Selvagem monial da famflia se faz fora da casa. Nio pois esta última sem a comida .não tem sen-
Animais de estimação Animais domesticados Animais de caça Feras há casamento dentro da casa (família) e tido -, mas na:o se "come" quem é feito na
nlo há casamento com estranhos extremos casa. Significativa é também a relação entre
CULTURA NATUREZA - notadamente em grupos camponeses -, comida e mulher: se o homem (espécie)
mai com categorias intermediárias, sufi- nio deve ser comido, a mulher é "comida"
Família Parentes Vizinhos Estranhos cientemente afastadas para nio serem pelo homem, e é mesmo pefcebida como

Partes específicas de feras podem ser ingeridas em contextos rituais ou como medicamento,
C. R. Brandão, Hábitos de Comida em Mossâmedes, UnB, mimeo, t976. afrodisíaco etc. Aqui, porém, se está no contexto da magia, que pode ser a inwrsão do coti-
10
H. Maués & M.A.M. Maués, Hábitos e Ideologias Alimentares numa Comunidade de Pescadores, diano.
UnB,mimeo,l976. li
E. l..eac:h, ..Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal Abuse" ... ,op.
11
E. Leach, "Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal Abuse", in W. dt.,p.209.
A. Lessa & E. z. Vogt,Reader i11 Comparative Religion, Nova York, Harper & Row, 1972. 14
C. R. Brandlo, Hábitos de Comida em Mossimedes •.., op. cit.

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O segundo significado de comida que comida do trabalho que simboliza uma mo-
sendo a ..comida.. do homem. enquanto o na cozinha, domínio feminino, toma-se co-
isolamos aqui é o de alimento/arte, aquele ralidade camponesa, e a lavoura, na terra de
inverso nunca se verifica na ideoJosia de pa- mida. Tais relações sl'o novamente sipifi-
que tem "sustança" 19 . Comida, nesse con- trabalho, representa a interaçio adequada
péis sexuáis tradicionais. cativa: o mantimento (natureza) é produto
texto, opõe-se a mistura e a besteira, tal com a natureza que pelo trabalho do pai
Hábitos e classificaç&:s alimentares do roçado {cultura, quando é oposto ao
como observou Melo Marin entre trabalha- se toma a "morada da vida'\ na expresslo
também fmnam. como foi dito. identida- Jfllllo ), do trabalho do homem; quando é
dores urbanos20 • Comida constitui então a captada por Herediá22 . Sobre o objeto de
des sociais. No Brasil, este é o caso de uma "queimado" expressílo comum no Nor-
base da alimentação, e por isso é funda- trabalho (terra) se realiza o sujeito traba-
identidade operária, de uma identidade de destel8, isto é, quando de cru passa a cozi-
mental para o pobre assegurar a produção lhador (pai) pela produção do mantimento.
pobre, ou de nortista, 'como o mostraram ~, processo• que se realiza na casa, dom i-
ou a compra da comida. O feijão é o com- Além de simbolizar uma troca equilibrada
Velbo15 e zatuaru•, principalmente no sen- mo da cultura, mas no espaço desta que
ponente central dessa categoria; num senti- com a natureza23 , o roçado representa tam-
tido mais restrito da categoria comida. Mar- corresponde à mulher (natureza), toma-se
do mais restrito, que se atualiza em mo- bém uma troca equilibrada en~e os ho-
cam também o tempo. Havíamos nos refe- comida (cultura). Então, o homem-cultura
mentos de carência, a comida se limita ao mens - o parentesco e a reciprocidade. O
rido a camponeses proletarizados que produz o mantimento-natu reza, e a mulher-
feijão, o alimento forte mais accessível ao mantimento resulta de e circula por circui-
opOem um tempo de farhml a um tempo natureza produz a comida-cultura.
pobre, transformando-se o resto em mistu- tos de reciprocidade; nesta medida, é o re-
de precisão, um tempo de comida forte (e Em Sergipe pudemos observar que o
ra ou mesmo em besteira. sultado de uma ética camponesa.
de homens fortes) a um tempo de comida mantimento é estocado no espaço masculi-
Dentro desse mesmo contexto, a co- A comida da cidade, adquirida pela
fraca (e de homens fracos)17 • Operários ur- qp da casa, no espaço do pai, a sala, sempre
mida ainda se classifica conforme originada compr111, expressa o rompimento do equilí-
banos marcam a diferença entre um tempo localizada no extremo oposto da cozinha,
do roçado ou da fazenda, e da cidade. Na brio. Em Goiás, como observou Brand1fo24,
de trabalho e um tempo de nlo-trabalhc lugar da comida. A mediaçã'o entre o cru e
maioria dos grupos rurais - e mesmo em al- a compra da comida marca o ponto extre-
(lazer) pelo modo de comer, opondo a se- o cozido é feita pela mulher. A comida é
guns urbanos -, privilegia-se a comida de mo de enfraquecimento da sociedade por
mana ao domingo. feita pela mulh~r que, em outro plano, é
roçado/fazenda, ainda que a que provém da efeito da "ambiça:o" que eliminou o agrega·
O que é, porém, com.idR? O termo também "comida... Temos então outra sé-
mata possa, em alguns contextos, ser consi- do tradicional. Parece desenhar-se um con-
tem vários significados no Brasil, ma rete- rie de homologias simbólicas:
derada a mais forte 21 • A comida do roçado traste entre "do lugar" e "de fora", que é
mos aqui apenas dois. Comida opoe-se a
é a comida do trabalho, e por isso é forte; também o contraste entre "do trabalho" e
mantimento, ao mesmo tempo que deriva MULHER
HOMEM a comida da cidade é comida comprada, e "comprado" 25 • O acesso do alimento ex-
dele. Mantimento é aquilo que, pelo pro- Roçado Casa por isso é fraca. Esses termos traduzem pressa a contradição entre o equilíbrio, a
cesso culinário, se transforma em comida. Cozinha
Sala uma percepção moral da vida, e no centro autonomia e o trabalho "moral", de um
De certa forma, slo categorias que expres- Cru Cozido dessa moralidade está a honra do pai. É a lado, e a dependência e a exploração "imo-
sam a mesma ..coisa" em momentos dife- Mantimento Comida
rentes - antes e depois da transfonnação
culinária - e de ângulos distintos pela Em alguns casos, a expressão mantimento pode significar o alimento forte, base da dieta, em es·
mediação do homem e pela mediação da V ale notar que nesta série de oposi- tado natural.
mulher. Notadamente em grupos campo- ções nlo se trata apenas de homem e mu- M. C. Melo Marin, "Alternativas de Trabalho e Estratégias de Consumo de Operários numa
neses. o mantimento é o produto do roça- lher em geral, mas de pai de família e rníie Grande Cidade Regional", in I. S. Leite Lopes et alii, Mudança Socíol no Nordeste, Rio de Ja-
de famflia, como categorias paradigmáticas. neiro, Paz e Terra, 1979.
do, domínio masculino; ao ser "queimado"
É o caso de camponeses caboclos da Amazônia. Cf. T. Lins e Silva, Os Cumpiras Foram Embo-
21

ra, Museu Nacional, mimeo, t 976. Observe~ que; em muitas situações, a existência da mata
1$
O. G. Velho, Relatório do Programa. de Pesquisas sobre Hábitos Alimentares em Grupos Sociais significa a reprodução do roçado. A mata de certa forma "alimenta" o roçado com terra forte e
de Baixa Renda, Museu Nacional, mimeo, 1917. possibilita a reprodução da produção familiar e do pai de famflío, que encarna o roçado.
A. Zaluar, .. As Mulheres e a Divido do Consumo Doméstico", in M. S. K. Almeida et alii, Col- B. Heredia,A Morada da Vida, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
cha de Retalhos, São Paulo, Brasiliense, 1982. 23
Há que distinguir aqui uma percepção camponesa-tradicional, de uma relação moral com a terra,
Homens fracos, neste· contexto, sig:nifaea não apenas uma debilitação do corpo mas também de outra percepção, que chamaríamos "utilitária", de produtores "modernos".
uma situação de subordinação, de enftaquecimento social, com o rompimento de padrões de re- 14
C. R. Brandão, Hábitos de Comida em Mossâmedes ... ,op. cit.
ciprocidade e a perda de um CtJpital social. Ver P. Bourdieu,Le Sens Pratique.•. , op. cit. A traje-
Devemos lembrar aqui a relação entre lavoura e trabalho. Em grupos camponeses só a lavoura é
lS

tória da comida reflete a passagem de uma ordem monrl para uma ordem econômictJ, tema esse
trabalho, e esta é uma categoria moral. Adiantemos também a estreita relação entre trabalho e
a ser desenvolvido em outro trabalho. pai de famflío.
A. Garcia Jr., Terra de Trttbalho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.

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ral" do outro lado (o comércio) 26 • Se o pai pessoa pode almoçar uma comida de fava tares 29 , as refeições são preparadas pela rante o dia, as refeições devendo repor as
de famflia continua trabalhando, agora co- que ele passa o resto do dia forte. Já o fei- mãe de família. Na divisão de trabalho fa- energias gastas no trabalho (. . .) O almoço
jão, quando chega três horas já tá se doen- aparece então como a principal refeição do
mo "alugado", seu trabalho não se materia- miliar o domínio culinário é feminino. É
dia, nele se concentrando os principais ali-
liza mais no mantimento produzido pela fa· do [de f orne )" 28 no âmbito da refeição que a mãe exerce sua mentos consumidos pela família, os que
mília que ele governa. Para continuar pai A categoria forte associa-se à catego- autoridade e controle, determinando, den- são considerados os mais importantes(. .. )
ele tem de se deixar explorar. ria sadio. A comida forte, ou simplesmente tro das possibilidades geradas pelo trabalho O almoço é o lugar da 'comida' e daí sua
Note-se aqui ainda que, se a comida do pai, o que irá compor a refeição e como principalidade no conjunto das refei-
comida, é aquela adequada ao indivíduo sa- ções" .3o
é o que vem do roçado, a mistura vem do dio (e não adequada ao doeqte). Idealmen- esta será distribuída entre os membros da
quintal. Se atentarmos para a hierarquia te, uma pessoa sadia deve comer comida família. Mas, qual será, realmente, o grau
Também entre os caboclos da região
dos alimentos, onde a comida ocupa a posi- forte para continuar sadia, para ter resistên- de determinação da mãe?
de Santarém, no Pará, é o almoço que cons-
ção superior e a mistura a inferior, teremos cia para o trabalho, para reproduzir a "for- Ainda que se coma três vezes ao dia
titui a refeição. Compõe-se, sempre que
posta no prato a hierarquia entre os domí- ça para trabalhar". No entanto, não são to- café da manha, almoço e jantar com
possível, de carne de caça ou de um peixe
nios do pai e da mãe e, ao mesmo tempo, a dos os que podem comer comida forte; esta grande freqüência, e notadamente em gru-
de maior tamanho. É importante ter em
relação entre o trabalho e o não-trabalho. pode, de fato, "ofender". O que se coloca pos rurais, só o almoço é percebido como
vista que para este grupo social são a caça e
Só os alimentos fortes são, então, co- aqui é uma relação percebida entre comida refeição, o que se explica pela relação entre
o peixe que constituem a comida, isto é, o
mida. O principal indicador da "fortidão" e organismo. Para os velhos e doentes o que o alimento e o trabalho, relação esta que
alimentoforte. Ainda que provenientes da
do alimento é dado pela sensaçíio de sacie- é adequado é a comida fraca (ou não-comi- "constrói" ideologicamente o pai de fam(-
mata ou do rio -isto é, da natureza-, sua
dade que propicia. f: o que mostra Brandão da). Crianças e mulheres, se bem devam co- lia. O café da manhã e o jantar são conside-
importância deriva das exigências do traba-
com relação a camponeses goianos: mer comida forte, não necessitam tanto de- rados de pequena importância, o primeiro
lho no roçado. Por isso, durante os perío-
la como os homens adultos. Crianças pe- porque foi precedido de um período de so-
dos do ciclo agrícola em que o roçado exi-
"A comida forte é também a comida 'pesa- quenas e mulheres menstruadas não devem no e o segundo porque será seguido de ou-
da' ( ... ) Porque ela 'pesa' no estômago, ge pouca ou nenhuma utilização de força
comer comida forte. tro período de sono. Nao somente é o sono
'tem volume' ( ...) e mantém a pessoa ali· de trabalho, a comida forte pode ser subs-
um período de n:Io-trabalho, mas é visto
mentada durante muitas horas. As maiores A relação entre comida e saúde arti- tituída, no almoço, por outro alimento de
qualidades da comida forte (. .. )são a atri- também como um equivalente de alimenta-
cula-se com a categoria trabalho, visto que menor "sustança". Essas observações, de
buição da resistência para o trabalho e ção, visto que restaura a força. Numa situa-
a doença é percebida como um estado do Uns e Silva31 , confirmam que a refeição é
contra a fome (. .. ) Homem forte é o ho- ção de carência, essa percepção assume um
mem sadio e resistente para o trabalho. A organismo que não permite o trabalho, e determinada pelo trabalho. Quanto à "jan-
caráter ideológico, na medida em que ra-
comida forte é a que 'tem sustança', cujos este é percebido como uma atividade que ta", essa é uma refeição esporádica no coti·
cionaliza a frugalidade do desjejum e do
efeitos são reconhecidos de dois mÓdos:a) propicia a comida, mas ao mesmo tempo diano desse grupo, como mostra a mesma
na sua capacidade de manter o trabalhador jantar e concentra a comida no almoço, fa-
exige a comida, pois o próprio trabalho autora.
alimentado por mais tempo ( ... ) b) no seu zendo deste a refeição; em situações de ca-
causa a doença, debilitando o corpo. A re· Já se viu que o almoço tem seu lugar
poder de produzir e de conservar mais rência, a comida não pode estar presente
energia para a atividade braçal"". lação comida-trabalho-saúde determina, na hierarquia das refeições e sua composi-
nas três ocasiões em que se come.
ainda, o que é definido como refeição. ção na hierarquia dos alimentos determina-
O que define a refeição, isto é, apre-
É o que mostra também Costa Mar- Em todos os grupos sociais sobre os sença da comida, é o trabalho. O almoço dos pelo trabalho. Mas não são todos na fa-
der para camponeses maranhenses: "(. .. )a quais existem estudos de práticas alimen- justamente medeia entre dois períodos de mília que trabalham. No plano ideológico
quem trabalha é o pai - e é isto que o tor-
trabalho.
na pai de famf/ia -, enquanto os outros
26
O comerciante é percebido como alguém que não trabalha, mas fica rico recebendo dinheiro de "Parece existir uma relação entre o peso
"ajudam". É portanto em função do pai
quem trabalha e permanece pobre. O caráter não-moral do comércio fica claro na expressão de que se organiza a alimentação da família.
dos alimentos e a atividade das pessoas du-
um nosso informante, "sitiante" sergípano, que nos-dizia que "não se neguceia com parente; no
negócio sempre um tem que ganhar e o outro tem que perder". Na ideologia daquele grupo, o
comércio é a negação dá reciprocidade em que se funde a ética camponesa, e cujo núcleo central H K. Woortmann. Hábitos e Ideologia Alimentares de Grupos Sociais de Baixa Renda, Relatório
é o parentesco. Final, UnB, 1978.
27
C. R. Brandão, Hábitos de Comida em Mossâmedes ... , op. cít.
30 M. c. Melo Marin, '"Alternativas de Trabalho e Estratégias de O:msumo de Operários numa
Grande Cidade Regional" ... , op. cit., p. 257.
M. H. F. Costa Marcier, Padrões Alimentares de um Grupo Camponês numa Situação de Expro-
priação no Estado do Maranhão, Museu Nacional, mimeo, 1976. " T. Lins e Silva, Os Curupiras foram Embora ... , op. cit.

110
111
Em outras palavras, a organizaçio alimen- não era intencional, nem tinham os pais
tar reflete a organização social da família. consciência do fato. E mesmo que o ti~s­ Lins e Silva, em seu estudo sobre os "(... ) o roçado determina o quanto, o
O almoço é o lugar da comida em fimçiio sem, nada poderia Miguel fazer a respeito. caboclos do Pará, mostra que é em tomo â quando e o onde comer. Homens de idade
Se ele era obrigado a um trabalho mais pe- cat~goria comida e em funçl'o da relaça:o adulta são sempre os primeiros a receber o
do lugar do pai na faml1ia. sado e mais prolongado, incorria em maio- petcebida entre o trabalho e o corpo que se alimento., assim como em maior quantida-
Mas, se o almoço é o lugar da comi- res gastos c:alóricos e tinha de oonsumir de. Ein casos de situação de escassez ( .•.)
da, como se faz a distribuiç'lio desta? Come- mais alimel\tos. Se reduzissem seu oonsu-
decide quem come e o que no grupo do-
apenas aqueles membros da unidade fami-
mo alimentar a íun de deixar mais para as méstico: liar que estiverem participando destas ati-
cemos por uma situação-limite analisada
porGross. crianças, seria obrigado, por sua própria fi- vidades recebem comido.""
"Sio as necessidades do roçado em termos
siologia, a trabalhar menos, e assim a ga-
Analisando os efeitos da introdução nhar menos ( ..•) Em conseqüência, os fi-
de utilização de força de trabalho que
do sisai no sertão nordestino, Gross mostra orientam a distribuição da comida na uni- Vejamos ainda o que foi observado
lhos de Miguel, assim como muitas outras
como a passagem de uma lavoura de ali- crianças de famílias de trabalhadores de si-
dade familiar ( ... ) o baixo nível de desen- com relação a operários de Belo Horizonte:
volvimento das forças produtivas (... ) de-
mentos, orientada para as necessidades da sal, são menos desenvolvidos que crianças
termina que o trabalho humano seja a "As mulheres do grupo em estudo, quando
família, para uma produção voltada para o da mesma idade, adequadamente alimenta-
principal fonte de energia disponível ( ...) inquiridas a respeito da alimentação do ho-
das ( ...) Desde a introdução' do sisai, o
mercado trouxe consigo uma série de con- grupo eoonômico superior revelou uma
esta atividade realizada no roçado pressu-
mem e da mulher, foram unânimes em
seqüências deletérias do ponto de vista do põe uma grande capacidade de energia hu- afirmar que aquele precisa comer melhor
marcante melhoria em seu padião alimen-
mana, de capacidade muscular. Estão pois
estado nutricional daquele grupo de peque- tar ( ...)enquanto o grupo inferior re~lou e que come mais que aquela; a justificativa
reservadas ao homem adulto as principais dada se refere ao trabalho de um e de ou-
nos lavradores. Tendo convertido suas ro- um declínio( ...) As estatísticas mostraram
tarefas no roçado." 34
que ( ...) a maioria sofreu um prejuízo tro, sendo o trabalho masculino considera-
ças em plantações de sisai, viram-se priva-
nutricional". 32 do mais pesado e requerendo mais esforço
dos de seus alimentos essenciais e, com a Observa-se, por isso, uma divisão de físico, enquanto o trabalho da mulher é le-
perda da terra, crescentemente proletariza- trabalho entre homens adultos, de um la- ve, não exigindo que ela fique exposta aos
dos. De um lado, passaram a realizar toda a A situação analisada por Gross é limi- do, e mulheres e crianças de outro, que rigores do tempo, como o homem fica no
subsistência no mercado. De outro, passa- te, pois ali a reproduçã'o do pai de família sol ou na chuva. " 3 '
corresponde à oposíçã'o (e complementari-
ram a perceber uma remuneração inferior enquanto força de trabalho impõe uma es- dade) entre casa e roçado.
aos custos de uma alimentaçllo adequada. poliaçllo alimentar dos fllhos. Vejamos, Portanto, pode-se observar uma re-
Os grupos domésticos passaram a viver num contudo, outras situações. "A essa dupla divisão de trabalho ( ... )cor- corrência, em situações de pobreza, de um
regime de déficit calórico crônico, e esse responde a distribuição dos alimentos ( ...) padrão de distribuição de alimentos que,
O trabalho, para poder se realizar, no interior da unidade familiar. Sio as ne- no plano ideológico, privilegia o pai de fa-
déficit alcançava notadamente as crianças, exige saúde. A doença, como vimos, é um cessidades de reprodução do roçado que
e tanto mais quanto mais jovem eram. To- mília. Se entre camponeses o roçado é o
estado que não permite o trabalho. Mas determinam o comer e o não comer em si·
mando uma família como exemplo, Gross tuações limite, assim como a quantidade produto do trabalho da família, é todavia
com grande recorrência a doença é percebi·
mostra como os adultos notadamente o de comida pertinente a cada membro da o pai que o encarna. O trabalho no roçado
da como resultante do trabalho, na medida
pai - satisfaziam suas necessidades calóri- família segundo sua capacidade de traba- é percebido como sendo o trabalho do pai,
em que este desgasta o corpo e não é com- lho."35
cas, indispensáveis à reprodução de sua for-. ao qual os outros - mulher e íllhos - "aju-
pensado pela comida. Por isso, quando ob-
ça de trabalho, privando as crianças de uma dam"38. Tudo parece indicar um p~drllo de
servamos um roçado camponês, tal como Se é ao homem adulto que cabe su-
alimentação adequada: desvio de alimentos para o pai.
no grupo por nós estudado em Sergipe, po- prir a família de comida, por outro lado o Mas nã'o é apenas em situação de ca-
demos ver como os produtos que resultarão trabalho no roçado exige a existência dessa
"O déficit calórico na família de Miguel es- rência que se registra um privilegiamento
em comida ocupam uma posição central no mesma comida. Por isso,
tava, então, sendo compensado privando- do pai. Já vimos que é a: presença do pai de
se sistematicamente as crianças dependen- cálculo do espaço e do tempo envolvido na
tes das calorias de que necessitavam. Isto produçlfo. 33 34
T. Lins e Silva, Os Curupiras Foram Embora ... , op. cit., p. 41.
3$
ldem,p.42 .
D. Gross, "The Great Sisai Scheme",Natural Hit>tory, março, 1971. •• Idem, lbidem.
33
A observação dos roçados nos sítios de Sergipe indica também uma clara rela~ão entre o que é 37
M. G. Tavares, Um Estudo do Processo de Mudança de Hábitos Alimentares em Belo Horizonte,
cultivado {e como se faz o consorciamento) e o estágio do ciclo de desenvolvunento do grupo UnB, mimeo, 1976, p. 33.
doméstico ou o estado do organismo de cada membro da fanu1ia. A presença de crianças .pe- 38
quenas ou de velhos, ou de doentes, determinará o cultivo de certos alimentos. Cabe ao paz de Mesmo trabalhadores assalariados são pensados como apenas "ajudando". É o caso dos "aluga-
[amtlia estabelecer essa relação. dos" em Sergipe, referidos como "trabalhadorzinhos". O uso do diminutivo é significativo, poi,s
só o pai é trabalhador.

112
113
família que define a refeição, onde tem lu- Mas, dentro daquele espaço se desen- A refeição feita no local de trabalho, lia, podem inverter a relação
entre o almo-
gar a comida. A refeiça:o não é apenas um volve um tempo, e se o primeiro reúne, o seja ou não "feita na hora", é uma refeiçllo ço e o jantar, transformando este
último na
ato de comer mas também um ato ritual, segundo separa. Trata-se do tempo de ser pública, pois todos podem ver o que cada refeição. É o que ocorre quando o chefe da
um rito social que reproduz simbolicamente servido é sempre o pai que é servido pri- um está comendo. Tal refeição é um discur- família é um operário urbano sujeito
a ho-
a hierarquia da famüia. Este aspecto ritual meiro, seguindo-se os filhos adultos. A mãe so sobre a família e, principalmente, sobre rários de trabalhos rígidos e impossibilitado
se revela pela própria oposição entre a prá- e as crianças só se sentam à mesa quando o o chefe da família. O conteúdo da refeiçlfo de almoçar em casa.
tica de comer na ausência e na presença do pai terminou de comer, e se alimentam é tido como um indicador da situação eco- Entre operários de Belo Horizonte o
pai; extrema informalidade num pólo, com o que restou. Comer os re~tos nfo sig- nômica de seu consumidor - em geral, o jantar tende a ter seu horário definido pelo
quando "cada um vai pegando da panela; nifica, evidentemente, alimentar-se mal, pai de família. Por isso, é envergonhante regresso do chefe à casa. Como foi observa-
quem chega primeiro come primeiro", e o mas significa seguramente a afirmaçlo de que um operário qualificado seja obrigado do por Tavares, há uma significativa dife-
formalismo da refeição, presidida pelo pai, um padrão hierárquico, onde cada um é a exibir uma marmita ou um prato no qual rença entre o almoço e o jantar, particular-
no pólo oposto. "colocado no seu lugar". Assim, a cada re- faltam certos itens de prestígio. Há, por is- mente no que concerne ao sentido ritual
As observações de Garcia Jr. 39 entre feição a família alimenta nllo apenas seus so, uma clara diferença de atitude no que deste último:
camponeses de Pernambuco e as minhas en- corpos, mas também as representações. Co- concerne à falta de carne, por exemplo, na
tre camponeses de Sergipe indicam uma di- mo ritual, a refeição "faz a cabeça". refeição feita em casa, entre quatro paredes "O almoço (... )não se realiza na mesa das
mensão espacial e temporal muito sugesti- e sem testemunhas, e naquela feita em pú- refeições (. ..) mas cada pessoa da casa reti-
A refeição tem um sentido simbólico blico, mas que espelha a casa. ra o prato diretamente da panela e se re-
va. Na casa camponesa, se a sala (domínio
em outros aspectos ainda. Certos compo- costa em algum canto, que pode ser inclu·
do homem) e a cozinha (domínio da mu-
nentes são mais do que comida, em especial "Daí haver um certo cuidado com o pre- sive o quintal (...)O almoço não constitui,
lher) se localizam em posições polares assim, um momento de encontro dos
a carne, e particularmente naquelas refei- paro da marmita. Ainda que seu conteúdo
opostas (frente e fundos), a sala de almoço membros da unidade doméstica. Cada um
ções feitas em público. seja basicamente o mesmo do jantar na fa-
se localiza em posição intermediária - no ml1ia, reserva~e para a marmita o melhor que está em casa come a hora que dá von-
mesmo plano do quarto de casal40 . É nesse Vários estudos destacam o significa- pedaço de carne ou uma quantidade maior tade, no local que lhe parecer melhor( ...)
espaço intermediário que se dá o encontro do da marmita e da refeição quente. Regis- de verduras e legumes. São exatamente es- ~no jantar que os membros da casa· se reú-
ses elementos que (... ) colocados por cima nem, sendo seu horário deftnido pelo re-
homem-mulher, quando o pai está presen· tra-se, em geral, uma aversão à comida fría,
na marmita, falam de sua qualidade e indi- gresso do pai de familia (... ) a comida na
te. Tal encontro ocorre de dia, na sala de que "faz mal à saúde" e, mais do que ofen- janta é sempre mais elaborada, isto é, qual-
cam se o operário passa 'bem' ou 'mal'." 42
almoço, e à noite, no quarto do casal. Os der a saúde, ofende a dignidade, como o in- quer melhoramento ou adicionamento que
dois espaços são os da reprodução da famí- dica a expressão depreciativa "bóia fria". puder ser féito o será na janta' e não no al-
A carne é o príncipal elemento para moço, uma wz que é esta a refeição que o
lia -- alimentar e sexual ~, colocados no Se a marmita em si já é "rebaixante", fria o
ser colocado "por cima" e seu significado chefe da família faz em casa." 43
mesmo plano dentro do espaço total da ca- é ainda mais. A esse propósito observa-se
simbólico resulta ·evidente nos discursos
sa que, em seu conjunto, se opõe ao domí- entre os trabalhadores estudados por Souto
dos operáríos, ainda que a base da alimen- Os dados de Souto de Oliveira para o
nio público. Se é na casa que se come, e se de Oliveira41 um significativo "jogo de es-
tação seja o feijão-com-arroz. O conteúdo Rio de Janeiro revelam outra dimensão do
a casa ganha sentido pela comida, é num tigmas" onde a identidade estigmatizada de
da marmita, da refeição pública mas feita privilegiamento do jantar, ao invés do al-
espaço específico da casa que se dá a refei- favelado é manipulada como um contra-es-
em casa, fala não só da situação da família, moço. Também ali o horário das refeições é
ção. E, estando a sala de almoço (dia) colo- tigma, quando se valoriza a residência pró-
mas, e principalmente, da qualidade do pai determinado pelo trabalho, que exige, fre-
cada no mesmo plano do quarto do casal xima à fábríca e a possibilidade de comer
de família. qüentemente, a ausência do pai do almoço
(noite), temos novamente colocada a rela- um almoço feito na hora, trazido pela mu-
Se o almoço é o lugar da comida, só familiar.
ção entre comer e "comer". lher ou pelo filho.
o é na presença do pai. A ideologia familiar
pode contrariar a ciência popular da ali- "(..•) para a maior parte dos operários, o
consumo de alimentos vem associado tam-
mentação. As próprias condições de traba- bém ao espaço doméstico, vinculando-se,
A. Garcia Jr., Terra- de Trabalho ...• op. cit. lho, associadflS ao status do chefe da famí- desta fonna, ao nlfo trabalho e marcando
40
Sobre o espaço simbólico da casa camponesa, ver, para Pernambuco, A. Garcia Jr., Terra de Tra-
balho .... op. cit., e para Sergipe, K. Woortmann, "Casa e Famtlia Operária", in Anuário Antro-
po/ógico/80, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1982.
Idem, p, 326.

L Souto de Oliveira. Hábitos e Padrões Alimentares de um Grupo Operário do Rio de Janeiro, M. G. Tavares, Um Éstudo do Processo de Mudança de Hábitos Alimentares em Belo Horizon-
te •.. , op. cit., p. 32.
Museu Nacional, mimeo. 1976.

114 115
um tempo de famflia. Em termos gerais es- No almoço de domingo come-se na:o cata quanto ao papel feminino de contro- jão. É com o dinheiro do pai que se com-
te seria o caso do jantar durante a semana apenas mais, mas também me~hor. Esse lar o consumo, economizando na compra
e não desperdiçando na produção do ali·
pram os alimentos, ficando as demais des-
e, principalmente, do 'almoço de domin·
"melhor" associa-se ao caráter ntual dessa mento dentro de casa( ...) pesas por conta de outros membros da fa·
go': de fato o convívio mais prolongado
com a fmntlia e a perspectiva do descanso refeição, ainda que não se explique por ela O que é comida dentro de ca~~:~, tennôme· mília. A centralidade da comida associa-se
e do lazer, que às vezes se fundem numa explica-se, "mais bem", pelo fato de que tro do papel masculino bem desempenha· à centralidade do pai; ainda que se trate de
única e mesma representação, tendem a o operário não pode comer "melhor" todos do? Na verdade limita-se ao que eles cha· um drama, é ele que continua trazendo pa·
aparecer com freqiiência e espontanemnen- os dias, e é isto, associado ao significado mmn as compras e que consiste nos vários ra casa "o de comer". ,
te no discurso dos operários, quando se re- quilos de feijão ( ..•) de arroz ( ••.) dos pa-
simbólico do domingo como um tempo de cotes de macarrio ( ... )Estas compras sio Em grupos camponeses, tanto a ven·
ferem a tais refeições:•••
nilo-trabalho, que torna esse almoço, inver· em geral feitas pelo chefe da fmnilia e ca· da dos produtos como a cofnpra de outros
são do cotidiano, um momento ritual45 • O be à mulher, então, economizar para que é normalmente feita na feira, pelo pai. Em
É por isso que o jantar constitui a re·
comer "mais" associa-se ao descanso que, durem -até o próximo pagamento. Se o di- determinadas circunstâncias, todavia, é pre-
feição principal, ou mesmo a refeiçã? dest~ nheiro do chefe não dá para as compras,
na opiniâ'o dos informantes de Souto de ciso comprar na venda. Mas, como mostra
grupo, marcada pela presença do par e del~­ então a mulher ou algum filho 'ajuda' o
Oliveira, permite uma refeíçiio mais "pesa· Garcia Jr.49 , comprar "fiado" na venda
mitando, como observa a autora, a frontel· chefe, sinal de que este não consegue SUS·
da", numa interessante transformação da tentar a fmnilia, o que o diminui ante 01 (sempre vista em oposiçlo à feira) é negati-
ra entre o trabalho e o descanso. É o jantar
relação entre refeição e trabalho. O ~oço seus olhos. Bom marido é aquele, portan- vo, pois significa subordinaçto e ter de ad·
então o lugar da comida. Seu caráter ritual,
de domingo inclui sempre uma carne me- to, que gosta de trabalhar, isto é, prolonga quirir produtos de qualidade inferior. Tra·
associado à presença do pai, exprime-se suas horas de trabalho de modo a poder ar·
lhor" - que pode, às vezes, ser um churras· ta-se, portanto, de uma ameaça ao status
também por ser este sempre o primeiro a car sozinho com essa despesa.''""'
co -ou um assado, ao invés do cozido. As- do pai enquanto chefe. Por isso, a compra
ser servido, seguido dos filhos por ordem
sim o almoço de domingo distingue-se pela "itado" é sempre realizada por um filho.
de idade. Quanto ao almoço, é preparado ' As observações de Zaluar são coeren-
presença do "mais" e do "melhor " ; to da-
geralmente de véspera, utilizand~-se os ~es­ tes com o que já foi dito, assim como com
via, fundamentalmente, distingue-se pela "{ ...)estas compras para o abastecimento
tas do jantar -no plano simbóhco, a leitu- outras dimensões da ideologia familiar por da casa são feitas sob controle do pai que
presença do pai de famflia.
ra é a mesma que a que se pode fazer da di- mim estudadas48 • Silo coerentes também mandil o filho fazê-las. Da mesma forma, o
Zaluru-46, ao analisar o papel da dona
mensão temporal referida para o almoço com o que se segue. dono da wndll só atenderá a um filho
de casa. na organizaçlo do consumo domés- quando é para por,. COittll <>~ ..mnilia, se
camponês. , Em determinados momentos do ciclo
tico ressalta a centralidade da comida nes- este tem autorizaçio do pai Jl&ra fazê·
O almoço de domingo, para os opera- de vida do grupo doméstico, o pai pode lo."'se
sa ;rganizaçlo e seu significado na defini-
rios do Rio de Janeiro, como presumível- não ser mais o chefe da família. num senti-
ção tanto do papel masculino como do fe·
mente em outros grupos análogos, é toda· do objetivo. Sua contribuição ao orçamen-
minino. Desenvolve-se entio um pequeno dra·
via a refeição ritual por excelência. Se du· to doméstico pode nlo mais ser a única ou ma. A venda é o oposto da feira, e o pai es-
rante a semana o almoço é uma "nilo-refei- "A importância fundmnental da comidll a principal. Mas o uso de SUil contribuição é
nesta hierarquia de consumo fica clara nas tá para esta como o filho está para aquela.
ção", aos domingos inverte-se sua posi~ã?, simbólico de SUil che['lll, ainda que esta seja
af'mnações ouvidas constantemente de que Deste drama participam o pai, o fill!p e o
assim como o domingo é o inverso do d1a agora uma ficção. Nessa situação, pode-se
'o dinheiro tem que dar para a comida', ou vendeiro. O pai n'lfDillll o filho comprar; o
de semana" um dia de lazer, em oposi· que 'a comida não pode faltar', armnações observar que ..a primeira feira é a do mari- vendeiro só "ita" mediante autorizaçlo do
ção aos "dias úteis" da ideologia burguesa; essas que se referem tanto ao papel mas- do", ou que "a primeira feira é a do feijão", pai, simbolicamente resgatado pór este "ri-
de certa forma, um "nllo dia" culino de botar a comida para dentro de o que significa que no planejamento da des- to de inversiot;.
pesa familiar feito pela mãe. o primeiro di- Referi-me, poueo abás, aos dados de
nheiro a ser gasto é o do pai, e que este di- Zaluar para trabalhadores de um conjunto
•• ' · d 0 Rio de Janei-
J. Souto de Oliveira, Hábitos e Padrões Alimentares de um Grupo Operano nheiro é gasto com comida, no sentido res- habitacional proletúio do Rio de Janeiro,
. p. 328 ·
ro ... , op. c1t., . d trito do termo, aqui representado pelo fei- e ressaltei a convergência dos mesmos com
Não estou querendo aqui minimizar os aspectos simbólico~ da refeição ddom~i:d~ :n~~d:
45
47
domingo, é bom notar, é comum também aos estratos mms abastados ~ soet; , 't almente Idem, p. 170. Os grifos são meus.
. · "o a de "almoçar fora" - e aqui talvez a nuie de famflia seJa a 1gura n u
assumrr a •· rm . ," 'al" mesmo naqueles gru·
•• K. Woortmann, "A Fmnilia Tlltbalhadora", ilr Ciêncilu Sociais Hoje 1984, S6o Paulo, Cortez
privilegiada ou de "reunir a fmnfiia". O almoço de dommgo e -~spe~; al O que se deseja aqui Editora/Anpocs, 1984.
pos que podem comer bem todos os dias •. o_ que re~~ta seu cara er n u · 49
é apenas enfatizar a especificidade da condiçao operana. . A. Garcia Jr.,A Temt de Tnlbtzlho...• op. cit.

•• A. Zaluar, "As Mulheres e a Direção do Consumo Doméstico" ... ,op. cit.


•• ldem~p. 140.

116 J17
as demais evidências aqui apresentadas. Pll- "O princípio seguido na distribuição dos
alimentos, feita pela mãe, segundo o qual como dizia Geertz, é preciso ler "por cima cascos ("sapatos"). Assim, o porco é consi-
ra aquele grupo, comida também é aquilo
recebe mais comida quem come mais, fa- dos ombros" 57 • derado frio e a carne de gado, quente. Os
que "sustenta", que "enche a barriga", e a
vorece os que já 'aprenderam' a gostar dos No início desta seçlo do presente tra- hábitos de vida do animal talvez sejam ou-
ausência da comida é percebida como fo- alimentos por eles valorizados, deixando balho disse que pela comida o homem-espé- tro fator: o porco habita a lama e seu cor-
me. Igualmente, a carne é a comida mais de lado as dificuldades infantis de aceitar
cie se separa da natureza, pois ele não deve po "recebe muita frialdade", exatamente o
forte. um alimento de que nfo gostam." 54
ser comido. E disse também que no discur- oposto do boi, que vive exposto ao sol e pi-
Contudo, Zaluar afmna que suas ob-
so alimentar separa-se o homem-gênero da sa o chio quente e seco. A ostra semambi
servações contradizem outros estudos num E diz ainda a autora:
mulher-gênero, devolvendo-se esta última vive na lama, que é fria, enquanto a ostra
ponto central para a nossa análise:
à natureza. É o que veremos a seguir. Até comum vive nas pedras, exposta ao sol. É
"O processo de inculcaçilo desses hábitos
alimentares faz-se, portanto, de um modo aqui analisamos o significado do que se de- possível então que o porco e a ostra ser~
"Estas informações negam os dados de ou-
tras pesquisas, segundo as quais haveria nas violento, e que às vezes inclui a violência ve comer, com relação ao homem; vejamos nambi sejam percebidos como escapando à
famllias de trabalhadores urbanos pobres a física ( ...)Não é de surpreender, portanto, agora o .que não se deve comer, com rela- classe geral a que pertencem, e por isso de-
nonna de privilegiar a alimentaçãO dos que os sinais de desnutrição estejam mais ção à mulher. finidos como in".ersos àquela classe. O mes-
seus membros que trabalham, servindo"'s visíveis nas crianças.""
mo ocorre com os peixes quentes: a catego·
primeiro e melhor. Nas ·minhas observa- Proibições Alimentares e a Construção ria peixe é defmida como fria, mas existem
ções nem a ordem nem a quantidade ou E, fmalmente: "(...) a distribuiçlo
qualidade da comida favoreciam os que Social da Mulher alguns peixes que s!o quentes. Se o peixe
feita pelas mães, segundo todas as entrevis-
estivessem trabalhando naquele momen- normal, com carne branca, é frio, o peixe
to.""
tadas, é a de encher mais o prato de quem Existem ainda outras formas de per- anômalo, de carne amarelada e sanguíneo,
~orne mais e encher menos o de quem co-
ceber os alimentos, das quais podemos tam- será, por uma questão de lógica, queníe.
E diz também a autora que: me menos."S6 bém extrair uma leitura que agora nos re- Tais percepções são extremamente
Considerando que naquele grupo as meterá à mulher e à construçlío do gênero variadas, e o alimento que é quente numa
"Não registrei nem um só caso de prefe- crianças sfo obrigadas a comer "a comida feminino dentro da família. região poderá ser frio noutra. Mas, nlo sfo
rência pelo homem que trabalha, exceção que todo mundo come", o que significa ob· Em muitas regiões do Brasil, os ali- essas classificações em si mesmas que nos
feita aos operários de construção civil que viamente a comida destinada aos adultos, mentos são percebidos, por sua "natureza", interessam, e já as analisei em outro traba-
levam marmita para seu trabalho. Apenas não é de surpr,een~r. realmente, que os si- como "quentes" ou "frios", o que nada lho59. O que importa é a universalidade da
neste caso, a comida melhor é· reservada nais de desnutriçlo estejam mais visíveis
para ele, de modo a não en~nlui-lo,Nl tem a ver com sua temperatura, mas com chamada "síndrome quente-frio", que não
frente dos colegas." 52 nas crianças. O que ocorre neste grupo pa- uma "qualidade". De um modo geral não se limita ao Brasil mas abarca também o
rece ser apenas uma outra forma de privi- se explica diretamente o que é quente ou mundo mediterrâneo e a América Latina (e
O segundo trecho, portanto, relativi- legiar o homem adulto, equivalente, em seu frio, a nlío ser pela relação percebida para mesmo, em outras formas, culturas africa-
za o primeiro e confuma o que antes disse- significado, ao registra~o nos demais estu- com o prganismo humano, ou por associa- nas, ao que saibamos).
mos a propósito da refeição pública do Ôhe- dos. De um ladu, é muito possível que, tal ção a outras características. Assim, no Pa- Há um critério geral que defme a
fe da família. No entanto, a autora registra como na famHia de Miguel, estudada por rá, como mostram Maués & Maués 58 , uma qualidade do alimento: sua relaçlo percebi-
que "ao lado de adultos gordos, viviam Gross, l:'..io haja consciência do que real· carne tenderá a ser defmida como fria se o da com o organismo humano. ·Comidas
crianças muito magras, com o corpo cober- mente ocorre. De outro, é preciso ir além animal: a) vive no barro ou se alimenta de quentes são aquelas percebidas como ofen·
to de feridas infecciosas e baixas para a ida- da "exegese nativa". Esta é a "leitura" barro; b) é branco ou tem a carne branca. sivas ao aparelho digestivo, enquanto llJ
de"53. Afirma também que: consciente que fazem de sua prática. Mas, E será quente se o animal tiver a carne ama- frias são as consideradas ofensivas ao apare-
relada ou vermelha, for sanguíneo e possuir lho circulatório. Novión60 analisou em de-

SI A. Zaluar, "As Mulheres e a Direção do Consumo Doméstico" ... ,op. cit., p.l78. 57
Uma tal "leitura" não deve, todavia, ignorar as condições concretas de existência que confor·
52
/dem,p.l77,grifo meu. mam a prática. No caso, a pobreza.
58
S3
ldem,lbidem. H. Maués & M. A. M. Maués, Hábitos e Ideologias Alimentares numa Comunidade de Pescado-
res ... , op. cit.
•• /dem,p.l78,grifomeu .
59
K. Woortrnann, Hábitos e Ideologias Alimentares de Grupos Sociais de Blúxa Rmda ... , op. cit.
/dem,p.l77.
60
Idem, p. 178.
M. I. Novión, Anatomoflsiologia Popular e Ãlimentaçio na Mulher e no àloàtnio Mk-F'llho,
UnB,mimeo, 1976.

U8 119
talhe a relação entre a classificação dos ali- dos" e olhares "gélidos". Ambientes sociais racional. O homem é tido como mais frio e universo. I! ele tambêm que sedia a pessoa.
mentos em quentes e frios e os estados do que devem ser essencialmente dotados de a mulher como mais quente, e o domínio Esse corpo é igualmente percebido como
organismo, mostrando a existência de uma "calor", como o familiar, e outros· que de- sqcial do primeiro é o mundo dos negócios, composto de partes quentes e frias - que
relaçãÓ entre o sistema alimentar e o siste- vem ser "frios". Existem pessoas que "irra- um domínio onde é necessária uma alta do- se integram numa totalidade harmônica -
ma orgânico. Não são apenas as comidas, diam calor humano", enquanto outras sã'o se de racionalidade, enquanto o da mulher e, correlatamente, sanguíneas e sem sanpe;
mas também as doenças e as partes do orga- "frias", assim como existem pessoas "quen- é o lar, onde deve predominar a afetivida- vennelhas e brancas.
tes" e "frias", inclusive no que concerne à de. Nilo é outro o sentido contido nos con- Segundo as observações de Novión; o
nismo que se classificam em quentes e frias.
sexualidade. A própria linguagem científica ceitos parsonianos de papéis "iÍlstrumen- organismó humano é percebido como com·
Também Maués & Maués registram a per-
incorpora categorias simbólicas quando de- tais" e "expressivos". É interessante nótar posto fundamentalmente de duas Partes, a
cepçã'o de doenças que contêm "frialdade"
fme estados de apatia sexual feminina co- que os papéis ocupacionais tradicionalmen- cabeça e o corpo, e dois órga::os fundamen-
e outras que contêm "quentura": de um la-
mo "frigidez". Os homens não são "frios", te defmidos como os mais adequados à mu- tais, o "miolo'' e o coraça:o. O primeiro,
do, os ferimentos sem pus, o reumatismo
lher sio aqueles percebidos como âltamente sem sangue e branco, tem por função "go-
de "frio" e doenças dos rins; de outro, a mas "impotentes". É que as mulheres são
percebidas como seres "quentes" em sua carregados de ''expressividade", ou afetivi- vernar as idéias"; o segundo, vennelho e
"dor d'olhos", a alergia, a diarréia, hemor-
dade, como é o caso da professora primár sanguíneo, tem por funçio "governar o
róidas, ferimentos inflamados. "normalidade", enquanto o homem deve
ria, da enfenneira ou da assistente social61 • corpo". Mas a mulher distingue-se do ho-
Mas, como observa Novión, as oposi- ser "Í>otente", isto é, forte, em contraste
Pode-se opor entfo domínios quentes mem por possuir um órgllo a mais, o útero,
ções entre quente e frio nada indicam em si com a mulher fraca. A representação cien-
a frios, mas a oposiÇão é também comple- vennelho e sanguíneo, cuja funçfo é gover-
mesmas; só fazem sentido quando se incor- tífica da disfunção sexual remete claramen-
mentaridade, pois o universo é um todo em nar a menstruçlo e gerar crianças. Note·se
pora o princípio do equilíbrio dos contrá- te à representação ideológica do gênero.
equilíbrio. Ele é cosmos, portanto, ordem. que o homem possui dois órgãos, simétri-
rios. Os elementos contrários devem exis- Mas, se existem domínios frios e
O corpo humano é parte do universo, cos e opostos, enquanto a mulher possui
tir, no corpo, em interdependência, para quentes, tais domínios devem coexistir,
e uma parte muito especial, pois é nele que três, nUJD,a assimetria e imparidade com
que se efetue o equilíbrio da ordem (saúde) sem contudo se contaminar. O ambiente fa-
"existe" o próprio indivíduo que percebe o predomínio do corpo. Temos então que:
e se evite a desordem (doença). Para tanto, miliar "quente" deve coexistir com o am-
as partes frias do organismo não podem ser biente de trabalho ''frio", pois o primeiro é I
Sanguíneo + Não sanguíneo
invadidas pela "quentura". o domínio da afetividade e o segundo o da ,_ Equilíbno
HOMEM: Branco+ Vennelho
As categorias quente e frio transcen- racionalidade, o primeiro o da mulher e o
Idéia + Corpo
dem o domínio dos alimentos. Poder-se-ia segundo o do homem. Os diferentes atribu-
dizer que sã'o categorias cosmológicas glo- tos nfo devem invadir o ambiente ao qual
Vennelho + Vennelho +Branco
bais, onde se opõem o dia e a noite; o sol e
a lua; o nervoso e o calmo; o racional e o
nã'o pertencem: a racionalidade levaria à
destruição da família, onde deve predomi-
MULHER: Sanguíneo + Sanguíneo + Na:o sanguíneo
Corpo + Corpo + Idéia
1- Deoequillbrlo
emocional; a luz e a escuridão. Todo o uni- nar o amor; de forma equivalente, a afetivi-
verso se classifica em quente ou frio. No dade levaria à destruiçlro dos negócios. No
A percepçio do corpo conduz a uma Mas o corpo humano é percebido
Brasil, plantas sã'o frias ou quentes, como o primeiro domínio deve haver um "coração
diferenciaçlo de gênero, transcendendo a também como uma totalidade indivisível,
sã'o também os solos. Porém, se de um lado quente"; no segundo, uma "cabeça fria"
simples diversidade anatômica e fisiológica. onde cabeça e corpo constituem duas áreas
as categorias se opOem, de outro elas se Mas para que o homem de negócios man-
Mais adiante se tratará dessa distinçll'o e de em equilíbrio recíproco, com o coraçll'o re-
combinam, e é de sua combinação equili- tenha seu equilíbrio é preciso que, ao sair
suas relações com hábitos alimentares. De- gulando o fluxo do sangue e o "miolo" re-
brada que depende a harmonia universal. do escritório "frio", encontre um lar ve-se acrescentar aqui, porém, que a cabeça gulando o fluxo das idéias.·
Em Sergipe, consorciam-se plantas quentes "quente" - do contrário, poderâ substituir (branca, nlo sanguínea) é "fria", enquanto Possuindo um órga:à a mais, o útero,
com outras frias para que o roçado "pros- o lar pelo bar. Por outro lado, para que a o corpo (vennelho, sanguíneo) é "quente". a mulher é percebida como tendo mais san-
pere". Uma dieta equilibrada deve combi- família mantenha seu equilíbrio é necessá· Possuindo a mulher dois órgl'os relaciona- gue que o homem (na:o obstante ser ele
nar comida quente com comida fria. Se o rio que se desenvolva, externamente a ela, dos ao corpo, ela é percebida como mais 1nais "fraco"). As implicações simbólicas
dia é necessário, a noite o é igualmente, e o trabalho "racional" de alguém capaz de "quente", e por isso tendendo para a natu- sã'o claras, codificando a defmiçll'o social da
deles precisamos em doses iguais. usar uma "cabeça fria". Por isso, nas repre· reza e para o desequilíbrio. mulher, tudo fazendo com que a mulher se-
A oposição dos contrários, que é sentações coletivas se opõem e se comple·
também a união dos opostos, atinge ainda a mentam a mulher, essencialmente emocio- 6
' K. Woortmann, "A Mulher em Situação de Classe",AmmCil Llltlna,ano 8,n. 3,jul./set.,l96S.
outros domínios. Existem olhares "cáli- nal e afetiva, e o homem, essencialmente

121
120
ja menos racional que o homem, visto ter O significado simbólico-ideológico é Inversamente, quem tem doença "fria" de- dica ( ...)que se trata de um alimento que
uma "natureza quente": É como se, na mu- claro, opondo o papel "cultural" do ho- ve comer idimentos "quentes" e quem tem 'faz mal', só podendo ser consumido por
lher, o corpo predominasse sobre a cabeça mem (pai) ao papel "natural" da mulher doença "quente" deve comer iumentos alguém em perfeitas condições de saúde. O
(mãe). Do pai vem a razão e da mtte a emo- "frios". contrário acontete com o alimento manso
e a natureza sobre a cultura. O mesmo foi
considerado inofensivo. Existe uma asso:
também observado no Pará por Maués & ção; do primeiro o domínio da vida intelec- O indivíduo sadio pode comer qa:al- ciaçã:o entre reimoso e wnenoso, pois mui;
Maués, confirmando a conclusão de Novión tiva e da última o domínio da vida animal quer tipo de alimento, "quente" ou "frio". tas wzes certos alimentos sfo chamados de
de que, na mulher, o equilíbrio está em instintiva. ll na presença da doença, ou de um organis- wnenosos para indicar que sua reima é ex·
O corpo nos interessa ainda em ou- mo nfo-sadio que as prescriçCSes/proscri· cessiva.''"'
permanente perigo de ruptura, notadamen-
"Reimoso (. .. )tem a wr com a mecânica
te durante o fluxo menstrual e a gravidez. tros sentidos, bastante análogos ao que foi ções alimentares se apresentam. Estando a
que envólw os fluidos corporais de quem
Menstruações e gravidez sio estados dito acima. O organismo é uma totalidade mulher num permanente estado de trânsito venha porventura a comer (alimentos rei-
em que a mulher, em estado de "poluição", em equilíbrio entre "frio" e "quente", entre a saúde e 1l doença, numa permanente mosos).''65
se torna "perigo", para usarmos os conheci- "branco" e ''vermelho". O rompimento oscilaçio entre o "quente" e o "frio", e
dos ter.nos de Douglas62 • O útero desempe- desse equilíbrio se dá quando "o sangue so- num estado em que o domínio do "frio" Se há uma dificuldade em definir a
nha o papel de evitar a contaminaça:o de be à cabeça", ou quando se "esquenta a ca- pode ser invadido pelo "quente", é a ela reima, toma-se todaviá evidente que essa
uma área na:o-sanguínea, branca a cabe- beça", isto é, quando um domínio "frio" que se aplica com mais freqüência o mode- noção exprime uma relação .utre o organis·
ça -, por outra, sanguínea, vermelha- o é invadido pela "queJ_ltura" do outro, ou lo simbólico-ritual das proibições alimenta- -mo e o alimento: o alimento reimoso nlo
corpo -, o que causaria o "reinado de um uma área sem sangue pelo sangue de outra. res e outros cuidados médico-mágicos. Es- pode ser comido por quem esteja com o
caos corporal". O útero evita o desequilí- Sintomaticamente, diz-se de alguém a tas proibições, por seu .Jado, operam como próprio corpo relmoso.
brio fisiológico, mas a mulher é também quem o "sangue subiu à cabeça" que esse uma linguagem simbólica que reafirma a
percebida como potencial causadora de de- alguém "perdeu a cabeça": a razão foi to- posiçfo social do ser feminino. "Uma leitoa, sendo novinha ( .•• ) pode co-
sequilíbrio social, notadamente durante a mada pela emoçfo. Os alimentos sio ainda percebidos mei'; mas se ela já tá ( ... )perto de produ-
menstruaça:o e o "resguardo". A percepção A mulher é vista como particular- em tomo à noção de "reima". De um mo- ção ela já tem reima. Umo mulher às vezes
n6o td podendo comer, se comer ela já é
da mulher biológica gera a representação da mente sujeita ao perigo de tal invado, no- do generalizado, a "reima" nio é definida.
um estrago.""·
mulher social. A neutralização da periculo- tadamente pela "suspensão da regra", Trata-se de uma qualidade que toma o ali- "Reimoso é o que tem reima: um corpo
sidade social da mulher depende de uma quando o sangue menstrual ao invés de mento "ofensivo" para certos estados do reimoso, o sangue reimoso, um alimento
conduta ritual em que se destacam as proi- "de'scer para fora", "sobe para a cabeça". organismo. Assim, por exemplo, o alimento reimoso.""
bições alimentares. As interdições alimentares são formas de reimoso "faz mal para o sangue".
Homens e mulheres também diferem impedir esse desequilíbrio. Há portanto uma relaçlo entre o ali-
com relação :1 seus "sangues" e ao papel de Na presença de uma doença, ou de "A reima 'agita o sangue', 'agita o corpo mento reimoso e o corpo reimoso, e a mu-
cada um no processo reprodutivo. Distin- estados percebidos como equivalentes a da pessoa', 'engrossa o sangue', 'põe a rei- lher tem o corpo reimoso por sua própria
ma (do' corpo) para fora' (Jic)." 13 natureza.
guem-se dois tipos de sangue, o "branco" e doenças, como a menstruação, tem-se co- "A palavra 'reima' não faz parte do voca-
o "vermelho", sendo o primeiro uma trans- mo fundamental o cuidado com a alimen- A mesma relaçlo foi também obser-
bulário do itapuense. Ele usa somente os
formação do segundo. No homem, o san- taçllo, no que se refere às propriedades de termos 'reimoso' e 'manso', que sfo aplica- vada na Paraíba por Melo Mafin63 ..Alimen-
gue "branco" é o líquido seminal, cujo en- "quente" e "frio". E já vimos que as doen- dos para classificar os alimentos. Se se per- tos reimosos, ou "carregados", ~o podem
contro com o sangue ''vermelho" do útero ças sfo também "quentes" ou "frias". An- gunta o que é reimoso, a resposta ( ...) in- ser comidos por crianças, doentes e mulhe-
irá originar um novo ser. Cada um deles se- tes de prosseguir, fixemos logo que a mens- 63
rá responsável pela formação de certas par· truação é como que uma "doença". C. R: Brandfo, Hábitos de Comida em Mossâmedes ... , op. cit., p. 91.
tes desse novo ser: o sangue "branco" mas- Uma pessoa atacada de doença "fria" H. Maués & M. A . .M. Maués, Hábitos e Ideologias Alimentares numa Comunidade de Pescado-
res ... ,op. cit.,pp. 104-105.
culino dará origem às partes brancas e frias, deve abster-se de alimentos "frios"; se ata..
ô$
sobretudo a cabeça e o cérebro; o sangue cada de doença "quente", deve evitar ali- M. I. Novión, Anatomofisiologia Popular e Alimentação na Mulher e no Binômio Mie-Filho ... ,
op. cit.,p. 53.
"vermelho" da mãe dará origem ao corpo, mentos igualmente "quentes". Do contrá-
isto é, à carne, útero e coração. rio, agravar-se-ia o desequilíbrio orgânico. C. R. Brandfo, Hábitos de Comida em Mossâmedes... , op. cit., p. 92.
ldem,p. 93 .
.M. C. Melo Marin, "Alternativas de Trabalho e Eatrat4p de ConiiWIIO de O,a1610t tluifta
62
M. Douglas, Purity and Danger.. .. op. cit. Grande Qdade Regional" ... ,op. cit.

122 123
res, cujos organismos estio sob constante quem o come, isto é, o estado de teima do zada, o que marca 9utro rito de passagem). vos ( ... ) em Itapuá os processos naturais
suspeita. próprio corpo, que se manifesta em certas Até então a criança: é um simples prolonga- peculiares à mulher slo aproveitados pela
Uma série de critérios existem para doenças, para os homens, e na menstruaç(o mento do organismo materno, que con- cultura (ou sociedade) para, através das
definir um alimento como reimoso ou sem e ••resguardo", para a mulher. A análise de tinua a se alimentar do sangue matemo elaborações simbólicas construídas a par-
reima. Um deles é a idade do animal a ser Maués &. Maués revela ainda, num plano tir do dado biológico, exercer sobre ela
(tomado leite) tal como em sua vida intra- (mulher) um controle ( ...)os próprios pro-
tomado alimento: o animal "maduro" tem mais amplo, a relaçfo entre a limin.alidade uterina. O leite materno é o sangue uterino cessos naturais inconttoláwis fornecem os
reima (em oposiçfo a alimentos vegetais, (desordem) do alimento e aquela da pessoa. transformado no seio 72 • Os dois primeiros elementos para que o limb6lico se trans-
que a têm quando verdes). No caso dos ani- anos de vida são então um período Uminal, forme numa área de controle do ~tocial, na
mais, maduro signifiCa ter atividade sexual, "(•••)a decislo a respeito de um dado ali-
devendo a criança ser cercada de cuidados
medida em que ( ... ) contribuem para de·
o que remete à noçllo de impureza. Analo- mento ( •.•) deve lewr em conta o estado terminar a posição social ocupada pela mu-
da pessoa que vai COnsumi-lo ( •••)esses es- rituais, inclusive alimentares, para que se lher."u
gamente, animais castrados nfo têm reima, assegure a "passagem". A liminalidade do
tados incluem a saúde, a doença e um oon-
o que remete à noçl'o de "castidade". Um junto de situações de limiÍialldade ( •••) a resguardo se prolonga pelos dois anos de vi- B com a menarca que o ser feminino
segundo critério é o que opGe domesticado criança nos dois primeiros anos de vida, a da da criança e se estende da mãe para o se toma mulher; é com ela também que se
a nilo-domesticado, sendo os últimos rei- menstruaçi'o, a Jl:a\!idez, o_ puerpério, a filho.
menopausa, o luto, a convalescença, a pur-
instala a ''vergonha" da mulher. Por outro
mosos, ou mais reimosos, que os primeiros; Em muitas culturas, se não em todas,
ga, o xamanismo (.•.) A mulher, parti- lado, a menstruação é percebida como um
aqui o que está em jogo como. ..operador" o ciclo fisiológico da mulher é apreendido
cularmente durante a menstnlaçio, a pavi- perigoso estado de desequilíbrio orgânico e
é o maior ou menor afastamento com rela· dez, o puerpérlo e a menopausa se encon- simbolicamente e tornado critério deftni· periculosidade, e à mulher silo proibidos os
çfo à natureza ou à cultura69 • A ambigüi- tra numa situaçlo liminar ( ...) Tanto a dor de sua posição na sociedade. Trata-se alimentos "quentes" e reimosos. Sendo um
dade é outro critério fundamental, e talvez mulher como o homem durante o luto en-
de "passagens" cercadas de perigos e cuida-
contram-se em situaçfo idêntlca."Y1
período de "des-ordem", nfo apenas silo
o principal. Slo reimosos os animais de di-
dos. Tais cuidados, particularmente as in· proibidos os alimentos reimosos, mas tam-
fícil classíficaçlio, aqueles que, desde um
terdições alimentares, são uma linguagem bém a mistura de alimentos percebidos co-
ponto de vista lógico, pertenceriam a um De um modo geral, tratam-se de esta-
"econômica", como o é toda a linguagem mo pertencentes a domínios distintos ou
"conjunto intersseça:o". sa:o impuros, e as- dos que representam momentos de pas!ltl·
simbólica, pela qual se fala da mulher en- opostos, como por exemplo, a mistura de
sim reimosos, os animais que ocupam posi- gem, onde o fJSiológico 6 captad~ como
quanto ser social. peixe com carne de caça, ou os alimentos
ções intermediárias ou que pertencem si- simbólico e cercado ,de cuidados aproprl<!.-
A mulher, ser liminal, é "perigosa", e provenientes de domínios em si ambíguos,
multaneamente a domínios opostos. A im- dos à situaça:o de lirninalidade.
as concepções relativas a ela silo parte de como os animais cujo habitat é o mangue
pureza, como se sabe, constitui perigo?O. Significativo é que o processo culiná-
um modelo de dominação; mas silo tam- ou a lama. Se a menstruaçlo é um momen-
No contexto da reima, a impureza.se asso- rio pode eliminar a reima. Este processo é
bém interiorizadas pelas próprias mulheres. to liminal e de desequilíbrio, deve-se evitar
cia à liminalidade. Por serem impuros, peri- também uma passagem, da ·natureza para a
É o que mostra Maués para um grupo rural tudo que acentue a liminalidade ou o dese-
gosos e liminais, silo também tabu para cultura, e quem realiza a mediaçlo é a mu-
do Pará: quilíbrio.
quem é igualmente impuro, perigoso e li- lher, ser ambíguo. :B bastante sabido que
Nfo apenas é a mulher menstruada
minai. mediadores simbólicos ou mitológicos silo
"Se verificarmos o discurso das mulheres sujeita a perigos, mas é ela mesma pedgosa,
Estes e outros critérios que aqui dei- seres ambíguos. de Itapuá podemos constatar que a visão por ser "reimosa" e ''venenosa". A mens-
xo de lado podem ser subordinados ao cri- Significativa também é a percepçllo de si mesmas ( ..• ) vem permeada dos ele- truação é vista como anomalia 14 e as proi-
tério mais amplo da normalidade/anormali· do estado da criança, que até os dois anos é mentos que compõem o modelo masculi-
no de sua sociedade, com uma recorrência
bições alimentares destinadas a completar a
dade, isto é, da ordem e da desordem. No percebida como um na:o-ser. Seu estado de
clara às especificidades que têm a wr com "passagem" são também uma af1m1açfo
entanto, não basta definir a reima segundo Iiminalidade só cessa com a locomoça:o bí-
os processos naturais que lhes são exclusi- simbólica da própria "reima" da mulher e
os atributos do alimento em si .. B preciso pede e a fala, quando passa a constituir um
também considerar o estado do corpo de ser humano (contanto que tenha sido bati-
72 M. 1. Novión, Anatomofisíologia Popular e Alimentaçiio na Mulher e no Binômio Mie-Filho ... ,
op. cit.
69 M. Peirano, Proibições Alimentares numa Comunidade de Pescadores, Dissertação de Mestrado,
73
UnB, Pós-Graduação em Antropologia, 1975. M. A. M. Máués, Trabalhadeiras e Camarados: Um Estudo sobre o Status das Mulheres numa Co-
70
munidade de Pescadores, Dissertação de Mestrado, UnB, Pós-Graduação em Antropologia,
M. Douglas,Purity and Danger... , op. cit.
1977,pp.l22-23.
" H. Maués & M. A. M. Maués, Hábitos e Ideologias Alimentares numa Comunidade de Pescado· 74
M. L Novión, Anatomofi&iologia Popular e Alimentação na Mulher e no Binômio Mie-Filho ... ,
res ...,op. cit.,p.113.
op.. cit.

124
125
trínseca. Quando se diz à mulher o que ela dade etc. Por outro lado, sendo um valor
do perigo que representa para a sociedade. "0 'veneno' da mulher é uma espécie de
poder destruidor de que ela fica possuída
nã'o deve comer, se e5$á dizendo o que ela central, a família é também uma categoria
Essa periculosidade expressa-se, por exem· é. Afmàl, tanto os alimentos como a mu- . nucleante, tal como.a comida. Quando esta
(... ) Em ltapuá são sempre relatados casos
pio. pela noÇão de "panema", comum na lher são "comida". fala daquela estabelece-se assim uma cadeia
de mulheres que fiZeram árvores frutK'eras
Amazônia 75 • Por isso, as prescrições/pros- 'secarem' porque foram apanhar seus fru- de significações que,. em sua totalidade, irá
crições alimentares destinam-se não apenas tos nesse estado. Também são referidos ca- O Idioma da Comida constituir a cultura como universo de re-
a proteger a mulher mas também a comuni- sos de mulheres que mataram cobras vene-
nosas só de olharem para elas ( ... )As pes-
presentações e de "conexões de sentido".
dade. Acredito ter mostrado que a comida, Se os modos de comer falam de ou-
soas dizem que 'o veneno da mulher é mais
Com a menopausa, oposto lógico da como núcleo de representações ou catego- tras coisas que niio a comida, qual o idioma
forte que o do bicho'.""
menarca, cessam as restrições alimentares. ria nucleante, gera discursos sobre outros em que se expressam? No que se refere à
Se cada menstrução é uma "passagem" a ci- temas culturais que nfo a própria comida. família o corte que aqui nos interessa-,
clos curtos, a menarca e a menopausa re- Na realidade, ao que parece, não é a As práticas alímentares Silo textos culturais podemos destacar dois aspectos: o da pure-
presentam os momentos extremos de uma mulher em si que é o perigo; ela é a hospe- que podem ser lidos pelo antropólogo e fa- za e o da honra, que se entrelaçam ao falar-
"passagem" a ciclo longo, mas uma "passa- deira de um ser liminal perigoso, o feto. lam, entre outras coisas, da família, do pai se da mulher e do pai de família.
gem" de certa forma invertida, pois pas- ~. durante o resguardo, período de re- e da mulher. Sempre que se come na famí- A linguagem da pureza poderia ser
sa-se de uma indiferenciação inicial para integraçã'o simbólica e de restabelecímento lia - e no plano dos modelos deve-se comer pensada como uma linguagem de hierar-
uma especificidade intermediária, desem- do equilíbrio orgânico, que Silo ímpostas "em famíli11" - produz-se um comentário quia, corno mostra Dumont em seu Homo
bocando finalmente em nova indiferencia- restrições alímentares, sendo proibidos os social sobre essa família enquanto cons- Hierarquicus e como mostra também Mary
ção. Precisamente o oposto do que se ob- alímentos "quentes" e os reímosos. tructo simbólico. Por outro lado, quando Douglas em. sua "Introdução à Edição Pala-
serva comumente em "passagens" rituais, Em resumo, os cuidados alímentares se constrói a refeiçã'o, constrói-se também din", na mesma obra 77 • Para Dumont, hie-
onde se passa de um estado defmido para durante a menstruaçã'o e o puerpério, rela- o gênero feminino. rarquia não se confunde com autoridade ou
outro pela mediação de um "nilo-estado" cionados com a capacidade de "bruxaria" Não foi meu objetivo realizar uma com poder, ainda que possa haver superpo-
líminal intermediário. Antes da menarca a da mulher em estados liminais, visam asse- análise exaustiva da fami1ia ou das repre- siçlo entre ambas. Qual a relaçã'o, no âmbi-
menina é indiferenciada; com o surgim~nto gurar uma "passagem" simbólie4 e· um sentações sobre a mulher. Meu propósito, to da família, entre hierarquia e autori·
da primeira menstruação ela se toma mu- equilíbrio orgânico. Eles revelam a interpe- m\lito mais modesto, foi apenas o de uma dade?
lher e sua ambiguidade e líminalidade são netração de planos cognitivo e simbólico proposta: a de que existem muitos cami- Em trabalho anterior 78 , mostrei que
uma especificidade; após a menopausa ela - na construçiio social da mulher. Se de nhos para se chegar à família e diferentes a etnografia existente sobre a família das ca-
"vira homem" ( expresSII'o comum no Pará, um lado refletem os princípios de uma me- pontos de partida. Em tal proposta está madas trabalhadoras •rbanas e do campesi-
em Goiás e na Bahia) e se toma novamente dicina popular, de uma "etno-ciência", embutida uma questã'o relativa à "ontolo- nato indica que a mulher nfo é objeto pas-
indiferenciada e novamente inofensiva. A constituem igualmente uma linguagem de gia" da família; confundir o constructo cul- sivo mas sujeito ativo, que possui seu domí-
conjugaçllo desses dois ciclos acentuam, no classificaçlo social. Separam-se alímentos tural com o grupo doméstico seria uma re- nio próprio e que, ao longo do ciclo evolu-
plano ideológico, a ambiguidade feminina. de corpos percebidos como iguais: ambos dução empiricista. A família é mais bem tivo do grupq doméstico, o seu prestígio e
A gravidez é o oposto da menstrua- "quentes" e "reimosos". E se o faz para uma categoria. cultural que "existe" no gru- sua ascendência sobre os membros da famí·
ção e nã'o implica em comportamentos ali- poder reaproximar a mulher da sociedade. po doméstico em um plano de sua realida- lia tende~ a c~escer. É ela quem governa o-
mentares especiais. No entanto, sendo todo Os estados normais da mulher Silo de, mas que existe igualmente em outros consumo doméstico e, freqüentemente, or-
o processo de reproduça:o uma "passagem", equiparados aos estados patológicos do ho- domínios, como as representações religio- ganiza e dirige formas de produção domés-
a gravidez envolve perigo. De fato, a mu- mem (menstruaçã'o/doença). Mas se a ano- sas e a ideologia do Estado, por exemplo. tica de mercadorias. Mas é ela também que
lher grávida é considerada "venenosa" no malia no homem é causada por algo a ela Sendo ela uma construção cultural e sendo decide quem come o que, quando e em que
Pará: extrínseca, a anomalia da mulher lhe é in- elà, mais. que um grupo social, um valor quantidade, e ao fazê-lo privilegia material
central de nossa tradição, ela "existe" nos ou símbolicamente o pai de família, "ali-
hábitos de comida, nos padrões de sexuali- . mentando" a honra deste pela distribuição

E. Gaivão, Santos e Vísagens, Coleção Braziliana, n. 284, São Paulo, Cia. Editora Nacional, M. Douglas, "lntroduction to Paladin Edition", in L. Dumont, Homo Híerarchicus, Londres,
1955. Paladin, 1972.
76 M. A. M. Maués, Trabalhadeiras e Camarados: Um Estudo sobre o Status das Mulheres numa Co- 78
K. Woortmann, "A Família Trabalhadora" ... ,op. cit.
munidade de Pescadores ... , op. cit., p. 157.

.127
126
desigual da comida. Nesse processo, a comi- família. No plano das representações, a fa- Pureza e honra, como termos de um tensões. Oscilando entre o indivíduo coleti-
da não apenas repõe a força de trabalho mília e notadamente a família campone- idioma (ou com,o dois idiomas complemen- vo e a coletividade de indivíduos, ela pode-
mas, na construçfo simbólica da honra, re- sa tradicional - estaria construída mais em tares), são categorias que constroem totali- rá estar transita:Qdo riotádamente a famí·
produz o trabalho enquanto categoria mo- tomo da honra que das relaÇôes econômi- dades. Em ou.tro trabalho82 ficou sugerido lia camponesa de um holismo moral para
ral referida ao pai. cas, mesmo sendo uma unidade de produ- o caráter moral da organizaçi'o econômica um individualismo econôrnico. O coletivis-
Se no plano do grupo doméstico a ção. Se na:o encontramos necessariamente da famílía enquanto grupq doméstico e a mo intémo da família toma-se a fonte de
mulher nfo é tão submissa quanto se imagi- uma hierarquia de honra entre famílias, po- natureza holf~t1ca: da família tradicional. sua crise: o que foi um dos traços mais mar-
nava, no plano da família, isto é, das repre- deríamos pensar uma tal hierarquia dentro Como dma DuJnont, "cada homem parti- cantes e duráveis da economia camponesa,
sentações, ela é impura. A partir de seu ser da família, centrada no pai em sua reiação cular em seu lugar deve contribuir para a expressa por uma o~dem moral, toma-se o
biológico se constrói seu ser cultural - rea- com o trabalho. Ao lado dele teríamos a ordem global"83 • O idioma que aqui anali- fator de sua desagregação, como ressalta
firmado pela prática alimentar -,onde ela mulher relacionada ao não-trabalho e, pelo samos é um idioma de hierarquia, isto é, de Tepicht84 • A diferenciaçllo social poderia
é poluída, "perigosa" e inferior. Como menos muito freqüentemente, percebida uma relação entre "encompassante" e ..en- ser também pensada neste plano.
mostra Douglas, o idioma da pureza é usa- como uma ameaça constante à honra fami- compassado". Notadamente no caso da fa- A dinâmica da família afeta a cons-
do quando o orgânico irrompe no social, e liar encarnada no pai. A relaçfO entre famí- mília camponesa: mas também em certos trução do gênero feminino e a reprodução
esse idioma se expressa notadamente com lia, casamento e honra é muito bem estuda- grupos urbano~pare'ce caracterizar-se na do pai dê família. Ou teria razão Douglas,
relação à ingestão de alimentos. Nos diz ela da por Campbell80 em um grupo camponês atividade econô ica, encoberta pelo prin- quando diz na já mencionada "Introdução"
ainda que: grego. Ele nos mostra como a honra nesse cípio da moralid de, uma subsunça:o do in- que tio logo uma liberaça:o é atingida, a
grupo é atributo masculino. Poderíamos divíduo ao todo. Pureza, honra, moralida- hierarquia toma a se impor?
"( ... ) o papel sacerdotal consiste em reali- especular que, no Brasil tradicional, a hon- de, hierarquia, parecem convergir para uma
zar cenmônias que impõem fronteiras em ra da famílía é construída pelo homem e família holística.
tomo aos processos orgânicos( .. .) Ele pro- encarnada pelo pai, e percebida como Essa mesma família nã'o é, contudo,
1/ê o quadro de referência ritual atra'fés do (Recebido pora publicação em novembro de 1984)
qual categorias intelectuais são impostas ameaçada pela mulher, mas ao mesmo tem- estttica, e por isso mesmo é· um foco de
sobre a experiência fisiológica. O ato de po preservada pela mãe, sua guardif. Nlo
comer, o casamento, o parto são alguns ca- deixa de ser interessante observar que, en-
sós em que os processos fisiológicos e so- quanto o homem constrói a honra pelo tra-
ciais precisam ser coordenados.".,. balho, a mulher destrói a honra pelo se-
xo81 -e temos aqui novamente o contras-
No caso aqui analisado, poderia-se di- te entre o homem-cultura e a mulher-natu-
zer que a mulher- notadamente a mãe-, reza.
detentora de um saber pelo qual governa a O problema, contudo, está longe de
saúde da família e organiza o modo de co- ser simples, pois se a mulher enquanto gê-
mer de cada um. é a sacerdotiza de suas nero é representada como impura, a mulher
próprias fronteiras. enquanto mie é como que remetida ao pla-
A família poderia ser pensada ainda no do sagrado, como santa. Devemos entio
como um "grupo de status" centrado na considerar também a relaçao entre duas
honra do pai, honra essa relacionada ao seu coisas distintas: a virtude da esposa-ma:e e a
trabalho, do qual resulta o "de comer" da honra do marido-pai.

M. Douglas, "lntroduction to Paladin Edition" ...,op. cit.,p.l6.


J. K. Campbell, Honour, fàmily and Patro1Ulge: A Study o[ lnstitutions and Moral Va/ues in
a Greek Mountain Community, Oxford, Qaredon Press, 1964.
81
Compare-se as atitudes tradicionais para com o adultério masculino e o feminino. E no caso de •• K. Woortmann, "A Fam11ia Trabalhadora" ... , op. cit,
filhas ou irmãs "desencaminhadas", expressões tais como "manchou o nome da famffia", "su- 83
L. Dumont, Homo Hierarchicus .. . , op. cit., p. 44.
jou a honra do pai". Em casos de sedução ou estupro é necessário "lavar a honra" (com san-
84
gue), o que geralmente compete ao pai ou ao irmão (substituto do pal}. J. Tepicht,Marxisme et Agriculture: Le Paysan Polonais, Paris, Armand Colin, 1973.

128 129
ABSTRACT

Food, Family and the Construction


of the Femínine Gender

The author starts with the assumption that The analysis co!lcentrates on the construc-
a culture - the universe of representations of a tion, at the representational leve!, of the pater-
group, social category or society constitutes a familias and the feminine gender. ln the case of
system of nucleated catégories of meaning, and the first, the relationship between food and
that these categories generate "cultural texts" work is given particular emphasis; in the second,
which may be "read" by the anthropologist. attention is focused on the interrelationship bet-
Food appears to be one such category. A ween a "food theory" and a "theory of the hu-
reading of the notions surrounding food shows man body".
that it "speaks" about the family and women - The author concludes that family is an
among other things in a language that seems ideological construction not to be confused with
to be one of honor and of purity/pollution. The the domestic grouping, and that it can be ap-
classíficatión of food is essentially a classifying of proached from various starting points - food
social beings. being one of these.

RÊSUMÊ

La Nourriture, La Famille et la Construction


du Genre Féminin

L'hypothese de départ de l'auteur est que cation de la nourriture est surtout une classifica·
la culture, en tant qu 'univers de représentations tion de personnes sociales.
d'un groupe, catégorie sociale ou société, se com- Le centre de l'analyse est occupé par la
pose d'un réseau de catégories autQur desquelles construction des représentations de pére de famü-
s'agroupent des significations et que ces catégo- le et du genre féminin. Dans le premier cas, l'au-
ries engendrent des "textes culturels" qui peu- teur privilégie la relation entre nourriture et tra·
vent être. "lus" par l'anthropologue. vail. Dans !e deuxieme cas, il souligne l'articula·
Nourriture semble être I'une de ces catégo- tíon entre une "théorie de la nourriture" et une
ries. La lecture des conceptions concernant la "théorie du corps humain".
nourriture montre que celle-ci, entre autres the- , n conclut que famille est une construction
mes, "parle", de la famille et de la femme en des idéologique qui ne se confond pas avec le groupe
termes qui semblent être ceux de l'honneur et de domestique et à laquelle on peut parvenir de plu·
l'opposition entre pureté et polution. La classifi· sieurs point de départ, parmi eux la nourriture.

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