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Linguagem & Ensino, Vol. 8, No. 2, 2005 (181-196) O lingiifsta aplicado: de um aplicador de saberes a um ativista politico (The applied linguist: from knowledge applier to political activist) Maria Cristina DAMIANOVIC Faculdades Oswaldo Cruz Pontificia Universidade Catélica de Sio Paulo ABSTRACT: This article aims at, firstly, outlining a historical view of Applied Linguistics since the 40s. After this, important events for the evolution and the deepening of the studies in the Applied Linguistics area will be presented. Finally, the need for the applied linguist to be a political agent will be discussed. RESUMO: Este artigo objetiva, inicialmente, tragar um panorama histérico da Lingiitstica Aplicada desde a década de 40. A seguir, eventos marcantes para a evolugdo e aprofundamento dos estudos da Lingiiistica Aplicada serGo destacados. Finalmente, serd discutida a necessidade do lingiiista aplicado envolver-se como um ativista politico. KEY-WORDS: Applied Linguistics, language, applied linguist; political agent. OLINGUISTAAPLICADO PALAVRAS-CHAVE: Lingiitstica Aplicada, linguagem, lingiiista aplicado, ativista politico. INTRODUGAO O objetivo deste artigo é, inicialmente, levantar alguns aspectos tedricos sobre a histéria da Lingiifstica Aplicada, doravante, LA, nas décadas de 70, 80 e 90. Neste periodo hist6rico ser4 destacada a ampliag&o da drea de interesse dos estudos dos lingiiistas aplicados. A seguir, serd apresentado 0 papel dos movimentos de apropriagao sucessiva e variada da LA tanto da Lingiifstica, quanto de outras dreas. Finalmente, a expansao das fronteiras da LA seré salientada com um foco na constru¢ao da identidade do lingiiista aplicado como um ati- vista politico. ALA EUM POUCO DA SUA HISTORIA Nesta secdo serao discutidas as caracterfsticas da LA nas décadas de 70, 80 e 90. Ao longo desse perfodo serio destacados as associagGes, as publicagSes e a ampliacéo da rea de interesse dos estudos dos lingiiistas aplicados. O termo LA surge, em 1940. Poucos anos depois, em 1946, de acordo com Bohn e Vandresen (1988), a LA jé figurava no elenco de disciplinas da Universidade de Michigan. Em 1948, ha a fundagao e publicagéo do primeiro nimero do Journal of Language Learning: A Journal of Applied Linguistics respons4vel pela divulgagao de pesquisas na drea de LA. 182, Linguagem & Ensino, Pelotas, v.8,n. 2, p. 181-196, jul /dez. 2005 MARIA CRISTINA DAMIANOVIC De acordo com Grabe (2002). na década de 50 ha dois marcos relacionados aos estudos da LA: em 1956, a abertura da Escola de Lingitistica Aplicada na Universidade de Edin- burgo e, em 1959, a criacao do Centro de Lingiifstica Aplica- da nos Estados Unidos. Nessa época, o lingiiista aplicado poderia ser chamado de aplicador de saberes, pois segundo Grabe (2002), 0 termo LA comumente refletia insights de lingiiistas com abordagens estruturais e funcionais que poderiam ser diretamente aplicados ao ensino de uma segunda lingua e da lingua materna. A influén- cia do paradigma estrutural que privilegiava o sincrénico sobre 0 diacr6nico, as relagGes estruturais internas sobre as externas, e adotava uma dicotomia entre o individuo e a sociedade afetou a LA nesse momento histérico. Em grande parte do século XX, 0 predominio dessas distinges, principalmente, no modo de pensar a linguageme a aquisigao de lfngua, resultou no desvinculamento dos estudos do lingiiista aplicado das questées historicas, sociais, culturais ou politicas, pois, segundo Grabe (2002), a dicotomizagao entre 0 individuo com o que o cerca deixou de reconhecer que as re- lag6es de poder eram advindas tanto da cultura, quanto da for- ma de ensino-aprendizagem, por exemplo. Essa viséo da LA deixava de lado a concepgao de linguagem na qual a lingua é um sistema de significagéio de idéias que desempenha um papel central no modo como o homem concebe o mundo ¢ a si mesmo. Procurando ampliar seus estudos, os lingilistas aplicados uniram-se na década de 60 para estabelecer novos pélos de estudo da LA. Em 1964, houve a fundag&o da Associagdo Internacional de Lingiitstica Aplicada (AILA). Em 1966, da Associagdo Britanica de Lingiiistica Aplicada (BAAL) e em 1967, do TESOL Quartely. No Brasil, nesse periodo, ocorreu, no dia primeiro de margo de 1966, a primeira institucio- Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n.2, p. 181-196, jul./dez.2005 183 OLINGUISTAAPLICADO nalizacao da Lingiifstica Aplicada com o estabelecimento do Centro de Lingiiistica Aplicada Ydsigi, em S40 Paulo, por recomendagio do Programa Interamericano de Lingiifstica y Ensenanza de Idiomas. Nessa época, o termo LA continuava aser associado a aplicag4o dos insights dos lingiiistas ao ensino de linguas e a assuntos praticos sobre linguas. No entanto, nesse mesmo periodo, o lingiiista aplicado envolveu-se em assuntos relacionados & avaliagio, as politicas educacionais e a um novo campo da aquisi¢ao de uma segunda lingua, que focalizava mais a aprendizagem do que 0 ensino. Péde-se observar o aparecimento do interesse da LA por es- tudos a respeito do ensino de segunda lingua e uma expansaio para outros campos do uso da lingua. Mais adiante, em 1970, hé a chegada formal da LA em solo brasileiro. B fundado no Brasil, na PUC-SP, o primeiro programa de Pés-Graduagio stricto-sensu em Lingiiistica Apli- cada. Em 1971, 0 Programa de Estudos Pés-Graduados em Lingiiistica Aplicada ao Ensino de Linguas (LAEL) € reconhecido como centro de exceléncia pelo CNPq, e em 1973, o mesmo é credenciado pelo Conselho Federal de Educ 0. Nesse momento histérico, Rojo (1999), Kleiman (1991, 1992, 1998) e Celani (1998, 1992) ressaltam que a LA ainda estava numa situa¢do de dependéncia da Lingiiistica pelo fato de que os lingiiistas propriamente aplicados terem sido precedi- dos historicamente por lingiiistas com uma vocagdo para as aplicagoes, que utilizavam seus saberes, suas descobertas, sua formagiio, seus resultados em praticas e contextos sociais, pre- dominantemente, em questées praticas de ensino. Segundo as autoras acima citadas, a LA era, portanto, entendida como uma aplicagao de sucessivas teorias ao estudo de contextos de uso, um mero consumo e aplicagao dos estudos lingiifsticos ao ensino/aprendizagem de linguas estrangeiras e 184 Linguagem & Ensino, Pelotas, v.8,n. 2, p. 181-196, jul /dez. 2005 MARIA CRISTINA DAMIANOVIC materna, ocupando uma posigao subserviente, sem foro préprio para o desenvolvimento de pesquisa e de teoriza¢do. Para Rojo (1999), nessa época, o lingiiista aplicado parecia impassivel as suas sdlidas crengas nos principios bdsicos do positivismo e do estruturalismo, que acarretam uma f€ persistente em uma visdo de linguagem a-politica e a- histérica; em uma divisao clara entre 0 sujeito e 0 objeto e, portanto, na nogdo de objetividade; no pensamento e na experiéncia como sendo anteriores 4 linguagem; no desenvolvimento de modelos e de métodos fiéis aos principios do cientista ¢ na testagem subseqiiente da validade de tais modelos por meios estatfsticos; na crenga do processo cumulativo como um resultado do acréscimo gradual do conhecimento novo; ¢ na aplicabilidade universal do principio da racionalidade e da verdade. Na década de 80, entretanto, as fronteiras da LA come- Garam a se expandir. Essa expansdo foi registrada pelos exten- Sivos trabalhos publicados ao longo dos dez primeiros anos do Journal of Applied Linguistics ¢ do Annual Review of Applied Linguistics (ARAL), fundado em 1980. Segundo Grabe (2002), 0 foco central da LA nesse periodo estava relacio- nado a acessar questdes e problemas de linguagem a medida em que eles ocorriam no mundo real. As definigées de LA nessa época enfatizavam tanto a variedade de assuntos abordados, quanto os tipos de fontes disciplinares usados para trabalhar os problemas de linguagem. Com esse foco de pesquisa, o lingiiista aplicado ampliou seus estudos para além das fronteiras do ensino e aprendizagem de linguas e passou a englobar questées de politica e planejamento educacional; uso da linguagem em contextos profissionais; tra- dugao; lexicografia; multilingualismo; linguagem e tecnologia; e corpus lingiifstico. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n.2, p. 181-196, jul/dez.2005 185 OLINGUISTAAPLICADO Nessa €poca, no Brasil, Kleiman (1992) ressalta que as teses e artigos que focalizavam a andlise da linguagem, seja esta nas redacées dos alunos, ou na linguagem utilizada nos li- vros didaticos, passaram a investigar 0 processo de produgao da linguagem. Segundo a autora, do exame do produto (i.e.,a redacdo), passou-se para a investigaco do processo (interlin- guas e graméticas intermedidrias em LE; emergéncia de pro- cessos de construgao da escrita em lingua materna). Bnesse contexto que a importagao das teorias deslocou- se da ciéncia-mae — a Lingiiistica — para outras dreas das Ciéncias Humanas. A LA passou a querer ser interdisciplinar. A Psicologia (em geral Cognitiva) e a Psicolingiifstica (do Pro- cessamento; da Aquisigao) passaram a fornecer as bases antes buscadas exclusivamente na Lingiifstica. Campos tao diversos como a Sociologia, a Antropologia, a Etnografia, a Sociolingiifstica, a Estética e a Estilistica, a Teoria da Literatura, também passaram a ser invocados. Neste procedimento de empréstimos a LA é vista, conforme Celani (1998) explica,como articuladora de multiplos dominios do saber, em didlogo constante com varios campos do conhecimento que tém preocupagio com a linguagem. Rojo (1999) ressalta que os feitos epistemolégicos desses movimentos de apropria¢d4o sucessiva e variada de outras dreas foram visiveis. Se por um lado, os diversos fundamentos — psicolégicos, psicolingtifsticos , sociolégicos e lingiifsticos — ado- tados pelos pesquisadores no campo nas tiltimas décadas torna- ram possivel falar de sucessivas nogGes de sujeito (biolégico, psicoldgico, social, histérico) subjacentes as investigagdes. Por outro lado, a nogio de historicidade (do objeto, do sujeito) nao pode ser colocada senao recentemente, quando da emergéncia de pesquisas de fundamento discursivo e sécio-histérico. Com essa preocupagiio discursiva e sécio-histérica em 186 Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n. 2, p. 181-196, jul /dez. 2005 MARIA CRISTINA DAMIANOVIC mente, o lingilista aplicado iniciou a década de 90 que ser dis- cutida na préxima se¢4o. O LINGUISTA APLICADO E SEUS PASSOS PARA O NOVO MILENIO Ap6s um Jevantamento histérico a partir da década de 40, esta segdo objetiva tragar um perfil das preocupagées do lingilista aplicado no final do século passado. Serd destacada aimportancia do lingiiista aplicado ter iniciado o aprofundamento dos estudos com bases culturais e ideolégicas do trabalho do ser humano e de sua vida. No Brasil, vinte anos apés a criagao do LAEL, a Asso- ciagdo de Lingiifstica Aplicada do Brasil (ALAB) foi formal- mente criada em 1990. De acordo com Rojo (1999), na década de 90, a diversificagio de enfoques, temas, objetos decorrente de teorias, descrigGes e metodologias, contribuiu para se colocar a discussao da identidade da 4rea de LA como um todo e para se aprofundar as discussdes sobre o seu cardter inter e/ou transdisciplinar. O foco das pesquisas do lingiiista aplicado passou a ser a presenga de problemas com relevancia social suficiente para exigir respostas teéricas que trouxessem beneficios sociais a seus participantes. Como ressalta Pennycook (1998, p.23- 25), tornou-se importante compreender 0 sujeito como miltiplo, contraditério e construido dentro dos diferentes discursos. Os lingilistas aplicados passaram a ter a necessidade de olhar as relagdes de poder na formagio do sujeito na linguagem e por meio dela. Esse estudo das relagdes de poder fez-se necesséria, pois de acordo com Fairclough (1989), 0 estudo critico da lin- Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n.2, p. 181-196, jul/dez.2005 187 OLINGUISTAAPLICADO guagem pode revelar os processos pelos quais a linguagem funciona para manter e/ou mudar as relagdes de poder na socie- dade. Foi preciso corrigir a difundida minimizagao da importan- cia da linguagem na produgao, manutengao e mudanga das telagées sociais de poder. O lingiiista aplicado pode auxiliar 0 ser humano a conscientizar-se sobre o modo como a linguagem. contribui para o dominio de algumas pessoas sobre as outras. Analisando o modo como o poder e a ideologia estio inscritos no discurso, pode-se chegar 4 conscientizagao critica do discurso que se preocupa com a maneira como a lingua re- flete e constréi a desigualdade social. Como ressaltam Simon e Dippo (1986), o olhar critico sobre a linguagem, possibilita que seja enxergado de quem so os interesses contemplados pelos trabalhos produzidos. Essa conscientizagao é o primeiro passo em diregdo 4 emancipagao. Qualquer producio de conhecimento gerada pelo lingiiis- ta aplicado deve, portanto, responsabilizar-se por um projeto Ppolitico-pedag6gico que busque transformar uma sociedade de- sigualmente estruturada. Segundo Pennycook (1998, p.24), essas desigualdades sociais ficaram latentes na década de 90, que foi marcada pela presenga de iniqiiidades construfdas a partir das diferencas de género, raga, etnia, classe, idade, prefe- réncia sexual e outras distin¢des que conduziram as desigualda- des opressoras. Phillipsone & Skutnabb-Kangas (1986) lembram que dentro de um mundo marcado pela prosperidade compartilhada de forma desigual , pelo desperdicio, pela injustiga, pela fome e pela doenga, o papel dos lingtiistas aplicados precisou ser 0 de investigar as vias pelas quais seus trabalhos favoreciam as formas cada vez mais sofisticadas de coergio fisica, social e, acima de tudo, ideol6gica. Para compreender tais diferengas, © lingiiista aplicado precisou considerar as bases culturais e 188 Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n. 2, p. 181-196, jul /dez. 2005 MARIA CRISTINA DAMIANOVIC ideoldgicas do trabalho do ser humano e de sua vida, numa tentativa de compreender como essas bases podiam perpetuar ou transformar as grandes diferengas. As sociedades so desigualmente estruturadas e so do- minadas por culturas e ideologias hegem6nicas que limitam as oportunidades do ser humano refletir sobre o mundo e, conse- qiientemente, sobre as possibilidades de mudar esse mundo. Assim, a LA passou a examinar a base ideolégica do conheci- mento produzido. Um dos maiores problemas na LA, nesse momento hist6rico foi superar a escassez de ” explorar o card- ter politico da educagéo” (Pennycook, 1998, p.25). Moita Lopes (1996) sintetiza esse momento histérico explicando que a LA passou a ser uma drea de investigagio aplicada, mediadora, centrada na resolugao de problemas de uso da linguagem, que tinha um foco na linguagem de natureza processual, e que colaborava com o avango do conhecimento te6rico, pois as pesquisas em LA além de operarem com conhe- cimento advindo de varias disciplinas também formulavam seus préprios modelos teéricos, colaborando nao somente no seu campo de agio, como também em outras dreas de pesquisa. Segundo esse autor, a LA englobou dreas de pesquisa que se centraram primordialmente na resolugao de problemas de uso da linguagem pelos participantes do discurso no contexto social. Além disso, a LA focalizava a linguagem do ponto de vista dos procedimentos de interpretagao e produgao lingiifstica que definiam o ato da interagao lingiiistica escrita e oral. Dentro dessa perspectiva, Grabe (2002) descreve a ex- pansao do campo do lingiiista aplicado e a maior especific iO de seu papel como um agente que passou a se preocupar com problemas que trouxeram para seu dominio questGes sobre aqui- sigdo de segunda lingua, alfabetizagao, direitos de minoriaem relagio ao seu uso da lingua materna, e formagiio de professores. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n.2, p. 181-196, jul/dez.2005 189 OLINGUISTAAPLICADO Além disso, nos tltimos anos da década de 90, pdde-se ver, segundo Grabe (2002), que as pesquisas da LA sobre ensi- no-aprendizagem de linguas e educagio de professores come- garam a enfatizar as nogGes de conscientizagao lingiifstica; a forma da aprendizagem de linguas; a aprendizagem a partir de interagGes dialdgicas; os padrées para a interacdo professor- aluno; a aprendizagem baseada no contexto e 0 professor como pesquisador através da pesquisa-agio. Passou-se a ter um foco em discussdes sobre o papel de estudos criticos, termo que abrange conscientiza¢io critica, andlise do discurso critica, pedagogia critica, direitos dos alunos e praticas de avaliagao critica. Os estudos passaram a salientar como a linguagem age como um mecanismo bloqueador para aqueles que nao estado cientes das expectativas e regras do discurso apropriado. Houve, igualmente, maior interesse na andlise descritiva da linguagem em contextos reais e no estudo do multilingualismo e das interagGes na escola, na comunidade , em contextos profis- sionais e em assuntos politicos no nivel regional ¢ nacional. Apés adquirir uma postura que buscava produzir beneff- cios sociais com sua pesquisa, o lingiiista aplicado busca novos horizontes que serao explicados na préxima se¢gao. OS PRIMEIROS ANOS DO NOVO MILENIO: O LINGUISTA APLICADO VISTO COMO UM PEDAGOGO CRITICO No final da década de 90, de acordo com Celani (1998), aLA possuia uma autonomia organizacional na qual 0 lingiiista aplicado procurava uma redefini¢g&éo sempre nova, a partir de uma interpretagao multidisciplinar, para cada conjunto de pro- 190 Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n. 2, p. 181-196, jul /dez. 2005

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