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150 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE do presente e do pasado é fecunda em todos os dominios: em parte alguma ela o 6 mais do que na filosofia. Decer- to, temos algo novo para fazer e talvez, tenha chegado 0 momento de dar-se plenamente conta disso; mas, por se tratar de algo novo, nao precisaré necessariamente ser revolucionario. Estudemos antes os antigos, impregne- mo-nos de seu espitito e procuremos fazer, na medida de nossas forcas, aquilo que eles prdprios fariam caso es- tivessem entre nés, Iniciados na nossa ciéncia (nao digo apenas na nossa matematica e na nossa fisica, que talvez nao mudassem radicalmente seu modo de pensar, mas sobretudo na nossa biologia e na nossa psicologia), che- gariam a resultados muito diferentes daqueles que obti- veram. E isso que me impressiona mais particularmente no que diz respeito ao problema que me propus a tratar diante de voods, o da mudanga. Escolhi-o porque o tomo por capital e porque con- sidero que, caso estivéssemos convencidos da realidade da mudanca e nos esforcdssemos para resgaté-la, tudo se simplificaria. Dificuldades filos6ficas, que sao julgadas in- transponiveis, desapareceriam. Nao apenas a filosofia ga- nharia com isso, mas nossa vida de todos os dias — que- ro dizer, a impressio que as coisas deixam em nés ¢ a reagdo de nossa inteligéncia, de nossa sensibilidade e de nossa vontade sobre as coisas ~ talvez fosse com isso transformada e mesmo transfigurada.1E que, normalmen- te, bem que olhamos a mudanga, mas nao a percebemos. Falamos da mudanga, mas no pensamos nela. Dizemos que a mudanga existe, que tudo muda, que a mudanca é a propria lei das coisas: sim, dizemo-lo e repetimo-lo; mas temos af apenas palavras, e raciocinamos e filosofamos como se a mudanga nao existisse. Para pensar a mudan- sa e para vé-la, ha todo um véu de prejuizos que cabe A PERCEPCAO DA MUDANCA 151 afastar, alguns artificiais, criados pela especulacdo filos6- fica, outros naturais ao senso comum. Acredito que aca- batemos por nos pér de acordo a esse respeito ¢ que constituiremos entao uma filosofia na qual todos colabo- rato, acerca da qual todos conseguirao entender-se. E por isso que eu gostaria de fixar dois ou trés pontos acer- ca dos quais o entendimento me parece j ter sido obti do; ele ird estender-se pouco a pouco ao resto. Nossa primeira conferéncia versaré portanto menos sobre a pr6- pria mudanga do que sobre as caracteristicas gerais de ‘uma filosofia que se apegaria a intuigdo da mudanga. Eis, para comecar, um ponto acerca do qual todo mundo concordat. Se os sentidos e a consciéncia tives sem um alcance ilimitado, se, na dupla direcao da maté ria e do espirito, a faculdade de perceber fosse indefinida, nao precisarfamos conceber nem tampouco raciocinar, ,Conceber é um paliativo quando nao é dado perceber, e ‘0 raciocinio é feito para colmatar os vazios da percepcao ou para estender seu alcance., Nao nego a utilidade das idéias abstratas e gerais - como tampouco contesto 0 va- lor do papel-moeda. Mas assim como © papel-moeda nao 6 mais que uma promessa de ouro, assim também uma concepgao 86 vale pelas percepgies possiveis que repre- senta. Nao se trata apenas, é claro, da percepgao de uma coisa, ou de uma qualidade, ou de um estado. Podemos: conceber uma ordem, uma harmonia, e, mais geralmen- te, uma verdade, que se torna entdo uma realidade., Digo que todo mundo esta de acordo a esse respeito. Todo mundo péde constatar, com efeito, que as concepgies mais engenhosamente conjugadas e os raciocinios mais cientificamente esteados desabam como castelos de car- tas no dia em que um fato - um tinico fato realmente percebido— vem chocar-se contra essas concepgdes e es- 152 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE ses raciocinios, Aliés, néo h4 um Gnico metafisico, um Ainico tedlogo que nao esteja pronto a afirmar que um ser perfeito é aquele que conhece todas as coisas intuitiva- mente, sem ter de passar pelo raciocinio, a abstracdo e a generalizacdo. Portanto, nenhuma dificuldade acerca do primeiro ponto . Nem tampouco acerca do segundo, que apresento agora,A insuficiéncia de nossas faculdades de percepcao ~ insuficiéncia constatada por nossas faculdades de con- cepgaio e de raciocinio ~ foi o que deu origem a filosofia. Ahist6ria das doutrinas vem atesté-lo. As concepgies dos mais antigos pensadores da Grécia eram, decerto, muito vizinhas da percepgio, uma vez que é pelas transforma- ges de um elemento sensivel, como a égua, 0 ar ou 0 fogo, que elas completavam a sensago imediata. Mas, assim que as filosofias da escola de Eléia, criticando a idéia de transformacio, mostraram ou acreditaram mostrar a impossibilidade de se manter to proximo dos dados dos sentidos, a filosofia embrenhou-se na via pela qual veio caminhando desde entao, aquela que conduzia a um mun- do “supra-sensivel”: por meio de puras “idéias”, dora- vante, cabia explicar as coisas. fi verdade que, para os fi- ldsofos antigos, o mundo inteligivel estava situado fora e acima daquele que nossos sentidos e nossa consciéncia percebem: nossas faculdades de percepcao s6 nos mos- travam sombras projetadas no tempo e no espaco pelas Idéias imutaveis e eternas.|Para os modernos, pelo con- trério, essas esséncias s4o constitutivas das préprias coi- sas sensiveis; so verdadeiras substancias, das quais os fenémenos nao sio mais que a pelicula superficial. Mas todos, antigos e modemos, concordam em ver na filosofia uma substituicao do percepto pelo conceito. Todos ape- Jam, da insuficiéncia de nossos sentidos e de nossa cons- A PERCEPCAO DA MUDANCA 153 ciéncia, a faculdades do espitito que j4 nao so mais per- ceptivas, quero dizer, as fungdes de abstracio, de gene- ralizagdo e de raciocinio. Acerca do segundo ponto, conseguiremos entao nos por de acordo. Passo, entdo, para o terceiro ponto, o qual, creio eu, também nao levantaré discussao. Se tal é realmente o método filosdfico, no hé, nao pode haver numa filnsafia como hA uma ciéneia; haverd sempre, pelo contrério, tantas filosofias diferentes quan- tos pensadores originais houver. Como poderia ser de ou- tro modo? Por abstrata que seja uma concepedo, é sem- pte numa percepeio que ela tem seu ponto de partida. A inteligéncia combina e separa; ela arranja, desarranja, coordena; ela nao cria. £-Ihe preciso uma matétia, e essa matéria s6 Ihe pode vir dos sentidos ou da consciéncia. Uma filosofia que constréi ou completa a realidade com puras idéias, portanto, nao fara mais que substituir ou acrescentar, ao conjunto de nossas percepgées concretas, tal ou tal dentre elas, elaborada, adelgada, subtilizada, convertida dese modo em idéia abstrata e geral. Mas, na escolha dessa percepcao privilegiada, haverd sempre algo de arbitrério, pois a ciéncia positiva tomou para si Ludu que é incontestavelmente comum a coisas diferentes, a guantidade, e 86 resta entio a filosofia 0 dominio da qua- lidade, no qual tudo é heterogéneo a tudo, e no qual uma parte s6 representard o todo em virtude de um decreto contestével, senao arbitrdrio.\A esse decreto ser sempre possivel opor outros. E muitas filosofias diferentes surgi- 10, armadas de conceitos diferentes. Lutarao indefini- damente entre si. Eis entio a questo que se poe e que tomo por essen- cial. Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagonistas e que, no ter- 154 (OPENSAMENTO EO MOVENTE reno da dialética pura, nao ha sistema ao qual ndo se pos- sa opor outro, iremos nds permanecer nesse terreno ou serd que nao deveriamos antes (sem renunciar, nem é preciso dizé-lo, ao exercicio das faculdades de concep¢ao e de raciocinio) voltar A percepgao, conseguir dela que se dilate e se estenda? Eu dizia que 6 a insuficiéncia da per- cepgao natural que levou os fildsofos a completar a percep- go pela concepgao ~ esta devendo colmatar os inter- valos entre os dados dos sentidos ou da consciéncia e, assim fazendo, unificar e sistematizar nosso conheci- mento das coisas. Mas 0 exame das doutrinas mostra- nos que a faculdade de conceber, a medida que progride nesse trabalho de integracio, est reduzida a eliminar do real um grande nimero de diferencas qualitativas, a apa- gar em parte nossas percepcdes, a empobrecer nossa vi- so conereta do universo. E mesmo pelo fato de ser leva- da, de bom ou mau grado, a assim proceder que toda fi- losofia suscita filosofias antagonistas, cada uma das quais reergue algo daquilo que ela deixou cair. 0 método vai portanto de encontro ao objetivo: ele devia, em teoria, estender e completar a percepgio; é obrigado, de fato, a pedir a um sem-fim de percepgdes que se apaguem para que tal ou tal dentre elas possa tornar-se representativa das outras. - Mas suponham que, ao invés de querermos nos elevar acima de nossa percepcao das coisas, nela nos afundassemos para cavé-la e alargé-la.,Suponham que nela inserissemos nossa vontade e que essa vontade, di- latando-se, dilatasse nossa visdo das coisas. Obteriamos desta vez uma filosofia na qual nao se sacrificaria nada dos dados dos sentidos e da consciéncia: nenhuma qua- lidade, nenhum aspecto do real se substituiria ao resto sob o pretexto de explicd-lo. Mas, sobretudo, teriamos uma filosofia & qual nao seria possivel opor outras, pois, ‘A PERCEPCAO DA MUDANCA 155 nada teria deixado fora de si que outras pudessem reco- Iher: teria tomado tudo. Teria tomado tudo 0 que é dado, mesmo mais que aquilo que é dado, pois os sentidos e a consciéncia, instados por ela a um esforco excepcional, ter-lhe-iam entregue mais do que fornecem natural- mente. A multiplicidade dos sistemas que lutam entre si, armados de conceitos diferentes, se sucederia a unidade de uma doutrina capaz de reconciliar todos os pensado- Tes em uma mesma percepgao — percepgao que iria alids se alargando, gracas ao esforgo combinado dos filésofos em uma diregio comum.| Dirdo que esse alargamento é impossivel. Como pe- dir aos olhos do corpo ou aos do espitito que vejam mais do que aquilo que véem? A atengao pode tornar mais pre- ciso, iluminar, intensificar: ela nao faz surgir, no campo da percepcao, aquilo que ali n@o se encontrava de inicio. Eis a objegao. ~ Ela é refutada, cremos nés, pela experién- cia. Com efeito, hé séculos que surgem homens cuja fun- Gao é justamente a de ver e de nos fazer ver 0 que nao percebemos naturalmente, Sao os artistas. O que visa a arte, a nao ser nos mostrar, na nature- za eno espitito, fora de nés e em nds, coisas que nao im- pressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciéncia? O poeta e o romancista que exprimem um estado de alma'decerto nao a criam pega por pega; nao 08 compreenderiamos caso nio observassemos em nés, até certo ponto, aquilo que dizem de outrem. A medida que nos falam, aparecem-nos matizes de emocio que podiam estar representados em nés ha muito tempo, mas que permaneciam invisiveis: assim como a imagem foto- gréfica que ainda nao foi mergulhada no banho no qual ird ser revelada. O poeta é esse revelador. Mas em parte alguma a fungio do artista se mostra tao claramente

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