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PERIGO A VISTA “Uma andlise ponderada de um conceito politico intlamavel” The Guardian “Um chamado pod leroso para as democ 0 do fascismo” Tacias resistirem 4 insidiosa A curiosidade quanto ao termo fas cismo & um fendmeno sem proce Mas por qué? Jason Stanley, pro Diversidade de Yale estidiasg de propeganda “élebres.exemplos de movimentos alt mac nalistas ~ da Itélia da década de 1920 a¢ experiéncias de Mianm Hungria, Polénia ¢ Estados Unidos de hoje — pare mosira “atacteristicas fundamentais do fascisitio, Mesclande magi ilmen= flossficas, soctologicas © de teria critica da ‘Monstra que paises democrdticas podem, Pad 8 fascistas ~ e que tal tipo de discurse € pisneipi utilizado como instrumento para se chegar 20 poder Um estudo visceral, fscinanteeatualiscimo, qu Estados democriticos e ideias liherais esto sen seduzidos pelo canto da sereia da lideranea autoriaeh dentes no mundo contemporaneo, fessor de flosofia da U Politica, revisita aqui ¢ APOLITICA po “NOS” £ “ELES» SERGE JASON STANLEY — 3* EDICAO SUMARIO Introdugao.... 9. Sodoma e Gomorra. 10. Arbeit macht frei. Eptlogo.. Agradecimentos Notas... - sme 189 Indice remissivo 198 INTRODUCAO ‘Tendo crescido com pais que deixaram a Europa como refu- giados, fui criado com historias da nagéo heroica que ajudou a derrotar os exércitos de Hitler e inaugurar uma era inédita de democracia liberal no Ocidente. Jé proximo do final da vida, gravemente doente com mal de Parkinson, meu pai insistiu em visitar as praias da Normandia. Apoiado nos ombros da esposa, minha madrasta, ele realizou 0 antigo sonho de ca minhar onde tantos jovens americanos valentes perderam a vida na guerra contra o fascismo, No entanto, embora minha familia comemorasse e honrasse esse legaido americano, meus pais também sabiam que 0 heroismo americano e as ideias americanas de liberdade nunca foram uma coisa sé, (@aaEEmPledohertsmy aMETANEEE 1 20s los, incluindo 0 primeiro vo solo a cruzar 0 Atlantico, ea celebracdo da nova tecnologia. Lindbergh apostou sua fama €.a posigao de heréi num papel de destaque no movimento America First [Estados Unidos em primeiro lugar], que se opunha a entrada dos Estados Unidos na guerra contra a nu Alemanha nazista. EEBIIGS9, num ensaio intitulado “Aviation, Geography, and Race” [Aviagio, geografia e raga], publicado no periédico mais americano que existia, o Reader’s Digest, TASER SHH a PSPATORIESER os Unidos. algo parecido, com 0 nazismo: Chegoua hora de deixarmos de lado nossas conten- das e construirmos nossos baluartes brancos mais ‘uma vez, Essa alianga com ragas de fora nao signifi- cam nada além de morte para nés, Agora ¢ a nossa ver de proteger nossa heranca dos mong6is, persas ‘¢ mouros, antes que sejamos engolidos por um mar estrangeiro sem limites.! ano de 1939 também foi o ano em que meu pai, Man- fred, com seis anos na época, escapou da Alemanha nazista, deixando 0 aeroporto de Tempelhof, em Berlim, em julho, com sua mie, Ilse, depois de passarem meses na clandes nidade, Ele chegou a Nova York no dia 3 de agosto de 1939, passando de navio pela Estatua de Liberdade em direcdo ao porto, Temos um album de familia das décadas de 1920 1930. Na tiltima pagina, ha seis fotos diferentes da Estétua da Liberdade tornando-se gradativamente visivel. Omovimento America Firstera a faceta piiblica do sen- timento pr6-fascista dos Estados Unidos naquela época.” Nas décadas de 1920 e 1930, muitos americanos tinham a mesma visio de Lindbergh contra a imigragao, sobretudo de nao curoptus. Alltel da Tmnigragao de 1924 fesiringia a imigragao 0 pais, eseu principal objetivo era dificultar a imigracao tanto We nao brancos quanto dejadeus Em 1939, os Estados Unidos permitiram que pouquissimos refugiados atravessassem suas fronteiras, e é um milagre que meu pai estivesse entre eles. 12. Como FUNCIONA 0 FASCISMO Em 2016, Donald Trump ressuscitou o “America First” como um de seiis slogans, desde sua primeira semana no cargo seu governo tem proibidosimplacavelmente:aximighgao, in- luindo de refugiados, principalmente de paises arabes. Trump também prometeu deportar os milhoes de trabalhadores nao brancos, provenientes da América Central eda América do Sul, que estavam ilegais nos Estados Unidos e, ainda, dar um fim a legislagao que protege da deportagao os filhos trazidos com les, Em setembro de 2017, 0 governo Trump estabeleceu um limite de 45 mil no ntimero de refugiados que poderiam entrar nos Estados Unidos em 2018 —0 menor nimero desde que os presidentes comegaram a estabelecer esses limites. Se Trump lembrou Lindbergh especificamente com 0 “America First”, 0 resto de sua campanha também ansiava por um ponto vago na histéria: “Make America Great Again” [Fazer dos Estados um grande pafs novamente]. Mas quando, exatamente, aos olhos da campanha de ‘Trump, os Estados Unidos foram um pais grande? Durante o século XIX, quando pats escravizava sua populagao negra? Na vigéncia das leis Jim Crow, quando os negros americanos do Sul eram impedidos de votar? Uma dica sobrea década que mais chamouatencao para acampanha de Trump surgiu numa entrevista da Hollywood Report, em 18 de novembro de 2018, com Steve Bannon, 0 principal estrategista do entio presidente eleito, em que cle observa que a eta que est por chegar “serd tao emocionante quanto a década de 1930. Ou seja, a era em que os Estados Unidos tinham a maior simpatia pelo fascismo. Nos tiltimos anos, 4iv@Os paises UetOdGS Os Cans COTTE - do foram acometidos por uma espécie de nacionalismo de Ivtgopugso 13 extremadireita, A lista inctui Réssia, Hungria, Polénia, India, Turquia e Estados Unidos. A tarefa de generalizar em torno de tal fendmeno é sempre problemética, jé que o contexto de cada pais é sempre tinico, Mas essa generalizagao é necesséria no momento atual, Eseolhio rétulo “fascismo” para qualquer tipo de ultranacionalismo (étnico, religioso, cultural), no qual a nagio é representada na figura de um lider autoritario que faayemjsewjnome. Como Donald Trump declarou em seu discurso na Convengao Naciorial Republicana em julho de 2016, “eu sou sua voz’ Meu interesse neste livro esté na politica fascista, so- bretudo nas taticas fascistas como mecanismo para alcangar poder, Quando aqueles que empregam essas taticas chegam a0 poder, os Fegimes que eles praticam sao, em grande parte, determinados por condigdes histéricas especificas. O que aconteceu na Alemanha foi diferente do que aconteceu na Its- lia, A politica fascista nao conduz necessariamenteaum estado explicitamente fascista, mas € perigosa de qualquer maneira. ‘A politica fascista inclui muitas estratégias diferentes: 0 pasado mitico, propaganda, amti-intelectualismo, irrealidacle, hierarquia, vitimizagao, lei e ordem, ansicdade sexual, apelos a nogao de patria e desarticulagio da unio e do bem-estar piiblieg Embora a defesa de certos elementos seja legitima e, as veres, justificada, hd mOMientOS na historia em que esses cle= ‘mentos se reanem num tico partido ou movimento politico, e-essesimomentos'sioyperigosos» Nos Estados Unidos de hoje, 08 politicos republicanos utilizam essas estratégias com cada vez ais frequéncia, Sua crescente tendénciaa se envolver nesse tipo de politica deve obrigar os conservadores honestos a refletir. (Os perigos da politica fascista vem da maneira especifica como ela desumanizaysegmentossdaspopulagio. Ao excluir esses grupos, limita a capacidade de empatia entre outros 14 Como FUNCIONA O FascISMO cidadaos, levando a justificagao do tratamento desumano, da repressao da liberdade, da prisao em massa e da expulsio, até, em casos extremos, 0 exterminio generalizado. Genocidios € campanhas de limpeza étnica sao geral- mente precedidos pelos tipos de taticas politicas descritas neste livro. Nos casos da Alemanha nazista, de Ruanda e da Mian- mar de hoje, as vitimas de limpeza étnica foram submetidas a ataques tetoricos cruéis por lideres e pela imprensa por meses owanos antes de o regime se tornar genocida, Com esses pre- cedentes, deveria preocupar a todos os americanos que, como candidato e como presidente, Donald Trump tenha insultado, publica e explicitamente, grupos de imigrantes. ‘A politica fascista pode desumanizar grupos minori- _ térios mesmo quando nao ha o surgimento de um Estado explicitamentesfascista.’ Em alguns aspectos, Mianmar est emtransigd0 para-tma democracia. Mas cinco anos de brutal ret6rica dirigida a populago mugulmana rohingya resultaram, no entanto, num dos piores casos de limpeza étnica desde a Segunda Guerra Mundial. Osintoma mais marcante da politica fascista €a divisio. Desti- na-se adividir uma populacio em {i68" 68les. Muitos tipos de movimentos politicos envolvem tal diviséo, Por exemplo, a politica comunista utiliza como armaas divisbes de classe. Para fazer uma descri¢ao da politica fascista & necessirio descreverl ‘maneira muito especifica pela qual a politica fascista disting “nos” de “cles”, apelando para distingoes étnicas, religiosas (6GIFEEais, © usando essa divisio para moldar a ideofogis ¢, em diltima andlise, a politica. (aOR HICeAnisHO Ma POC fascista trabalha para criar ou solidificar essa distingdo. Iymopugio 15 Os politicos fascistas justificam suas ideias a0 aniquilar ‘um senso comum de hist6ria, criando um pasado mitico para respaldar sua visio do presente. Fles reescrevem a compreen- so geral da populagio sobre a realidade distorcendo a Lingua- ‘gem da idealizacio por meio da FOBAgAHEs ¢ promovendo o anti-intelectualismo, atacando universidades e sistemas edu- G@aionsis que poderiamycontestarsuasideias. Depois de um tempo, com essas técnicas, a politica fascista acaba por criar ‘um estadovderirrealidade, em que 8 teorias' da conspiragao ‘eas noticias falsas tomam o lugar do debate fundamentado. ‘A medida que a compreens4o comum da realidade se desintegra, a politica fascista abre espago para que crengas peFigesase falsasteriemuraizes, Em primeiro lugar, a ideologia fascista procura naturalizar a diferenga de grupo, dando assim a.aparéncia de respaldo cientifico e natural a uma hierarquia de valor humano. Quando classificagées e divisoes sociais se solidificam, o medo substitui a compreensio entre os grupos. Qualquer progresso para um grupo minoritério estimula seatimentos de vitimizagao na populagao dominante. Politica @lkieda ordemtem apelojde massay lancando “nds” como cidadaos legitimos e “eles”, em contraste, como criminosos sem lei, cujo comportamento representa uma ameaca existen- cial a mas lade da nagao, AlMibiedadelsexualtainbeme algo tfpico da politica fascista, pois a hierarquia patriarcal é ameagada pela crescente igualdade de genero. ‘A medida que o medo em relagdo a “eles” cresce, “nés” passamos a representar tudo 0 que virtuoso. “Nés” vivemos norcentro rural, onde os valores puros eas tradigoes da nagao ainda existem milagrosamente, apesar daameaga de cosmopo- litismo das cidades da nagao, ao lado das hordas de minorias que vivem ali, encorajadas pela tolerdncia liberal. “Nos” somos trabalhadores e conquistamos nosso primeiro lugar com luta 16 Como FUNCIONA 0 FAScISMO € mérito. “Eles” s40 preguigosos, sobrevivem dos bens que produzimos, explorando a generasidade de nossos sistemas de bem-estar social ou empregando instituig6es corruptas, como sindicatos, para separar os cidadaos honestos ¢ trabalhadores de seus salarios. “Nés” somos produtores; “eles” sao parasitas, ‘Muitos individuos nao estdo familiarizados com a es trutura ideolégica do fascismo, na qual cada mecanismo da politica fascista tende a se basear em outros. Eles nao reconhe- cem a interconexio dos slogans politicos que s30 solicitadlos a repetir (ESGREVIESTEIINED na esperanca de forneceraos-cidadaes as ferramentas fundamentais para reconhecer a diferenca entre as téticas legitimas da politica democrética liberal, de umn lado, eas taticas desteais da politica fascista, de outro. Em sua propria historia, os Estados Unidos podem encontrar uum legado do melhor da democracia liberal, assim como as. raizes do pensamento fascista (na verdade,(TERIOUMSpIRE do pelas leis da Confederagao e pelas leis Jim Crow). Apos os horrores da Segunda Guerra Mundial, que obrigow multiddes de refugiados a fugir de regimes fascislas, a Deelamaga0 Uni versal dos Direitos Humanos, de 1948) afirmou a dignidade de cada ser humano, AURGSgaO)eMIdoea0 MOIMocument® foram lideradas pela ex-primeira-dama Fleanor Roosevelt e, depois da guerra, representava os ideais dos Estados Unidos tanto quanto os dasnovas Nagées Unidas, Foi uma declaraga0 ousada, uma iteragao e expansio poderosa da compreensio democritica liberal sobre a individualidade de modo aabarcar literalmente toda a comunidade mundiel, Ela vinculava todas as nagées ¢ culturas a urn ORS FORISSO COT GE ValOHZAP a igualdade de todas as pessoas, e isso estava de acordo com Iwrropucso 17 enfrentan- doa devastacao do colonialismo, genocidio, racismo, guerra global e, sim, fascismo. Depois da guerra, o Artigo 14 foi par- ticularmente pungente, afirmando solenemente o dircito de todas as pessoas a pedir asilo politico. Embora a declaragaio tentasse impedir a repeticao do sofrimento vivido durante a Segunda Guerra Mundial, reconhecia que certas categorias de pessoas poderiam, mais uma vez, ter de fugir dos paises sob ‘caja bandeira viviam. 0 fascismo hoje pode nao ter exatamente a mesma apa- réncia que tinha na década de (930) mas os refugiados estéo rnovamente na estrada em todos os lugares. Em diversos paises, seu drama reforga a propaganda fascista de que a nagdo esté sitiada, de que os estrangeiros so uma ameaga € um perigo j 0 PASSADO MiTICO 10 que os antissemitas baseiam seu “ponto de vista”. £ em nome da tradigio, do longo passado histérico e dos lagos de sangue com Pascal e Descartes que os judeus sto informados de que nunca pertencerdo a este lugar. Frantz Fanon, Pele negra, mdscaras brancas (1952) s ‘natural comesar este livro onde a riavelmente foi tragicamente destruido. Dependendo de como a nagio é definida, o pasado mitico pode ser religiosamente puro, racialmente puro, culturalmente puro ou todos os itens aci- ma. Mas hé uma estrutura comum a todas as mitificagoes fascistas. Em todos os passados miticos fascistas, uma versdo_ extrema da familia patriarcal reina soberana, mesmo que hé 19 poucas geracdes, Recuando mais no temp passaGO ICD eialuimtePOETBIOriakdAMAGA, com guerras de conquista Jideradas por genierais|patriotas, com exércitos repletos de guerreiros leais, seus compatriotas, fisicamente aptos e cujas esposas ficavam em casa cuidando da préxima geracao. (Mp presente, esses mitos se tornam a base da identidade da nagao submetida a politica fascista, Na retérica de nacionalistas extremos, esse passado glorioso foi perdido pela humilhacao provocada pelo globa- lismo, pelo cosmopolitismo liberal epelo respeito por “valores universais”, como a igualdade. Esses valores, supostamente, enfraqueceram a nacao diante de desafios reais e ameaadores para sua existéncia, Esses mitos geralmente se baseiam em fantasias de uma ‘aniformidade-pregressa inexistemtey que sobrevive nas tradi- (g0es das pequenas cidades e dos campos, os quais permanecem relativamente isentos da decadéncia liberal dos grandes centros urbanos. Issa uniformidade—linguistica, eligiosa, geogréfica ou étnica — pode ser perfeitamente comum em alguns movi- ‘mentos nacionalistas, mas os mitos fascistas diferenciam-se com a criagdo de uma hist6ria nacional gloriosa, em que os membros da nacao escolhida governavam devido a conquistas e realizagées em prol do desenvolvimento da civilizagao. Por exemplo, na imaginagao fascista, 0 passado invariavelmente envolve papéis de genero tradicionais e patriarcais. © pasado mitico fascista tem uma estrutura particular, que sustenta sua ideologia autoritdria e hierérquica. O fato de que as so- Gedades do passado raramente eram tao patriarcais, ou tio gloriosas, quanto a ideologia fascista as faz imaginar ndo vem ‘#0 caso, Essa hist6ria imaginaria fornece provas para apoiar a imposicao de hierarquia no presente; e dita como a sociedade contemporanea deve ser ¢ agit. 20 Como FUNCIONA 0 FAscIsMO ‘Num discurso de 1922 no Congresso Fascista em Né- poles, Benito Mussolini declarou: Nis criamos o nosso mitof{O HHO} iia aap i- ‘xo, Nao 6 necessirio que cle seja uma realidade... Nos- so mito éanagio, nosso mito é a grandeza da nagdo! E a esse mito, essa grandeza, que queremos transformar numa realidade total, subordinamos tudo.! ‘Aqui, Mussolini deixa claro que o passado mitico fas- cista ¢ FiBHOOMMMMEREDBNEED. A funcao do pasado mitico, na politica fascista, é apraveitanajemoego da nostalgia para principios centrais da ideologia fascista: autoritarismo, hiv- rarquia, pureza e luta ‘Goma criagao de um passado mitico, a politica fascista ria um vinculo entrea nostalgia ea realizagao dos ideais fascis tas. Os fascistas alemaes também compreenderam claramente esse ponto sobre o uso estratégico de um pasado mitol6gico. principal idedlogo nazista, Alfred Rosenberg, editor do proeminente jornal nazista Volkischer Beobachter, escreve em. 1924: “A comprteensio ¢ o respeito por nosso proprio pasado, mitologico enossa propria hist6ria serdo a primeira condicao para ancorar mais firmemente a préxima geracio no solo da patria original da Europa”.* QlpaseadOinnitied faseistalexste para ajudar a mudar 0 presente. A familia patriarcal € um ideal que os politicos fascistas pre- tendem criar na sociedade~ ou recuperar, como afirmam. familia patriarcal €fepresentada sempre’omo umapartecens GAIUS HACIGORS da nacdo, diminuida, mesmo recentemente, Opassano winicn 21 pelo advento do liberalismo e do cosmopolitismo. Mas por que 0 patriarcado é tio central, do ponto de vista estratégico, para a politica fascista? Numa sociedade fascista, 0 lider da nacdo € andlogo a0 paida familia patriarcal tradicional. GlMAGHe0 Ppailainiagao) sua forca e poder sto a fonte de sua autoridade legal, assim como a forga ¢ 0 poder do pai da familia no patriarcado supostamente séo a fonte de sua suprema autoridade moral sobre seus filhos e esposa,(@JHaen proved hagady asin Como) na familia tradicional o pai ¢ 0 provedor. A autoridade do pai patriarcal deriva de sua forga, ¢a forca € 0 principal valor @iifGFIEAFION)A 0 apresentar o passado da nagdo como um pas- sado com uma estrutura familiar patriarcal, a politica fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritéria hierérquica onganizadora central, que encontra sua mais pura represen- taco nessas normas. (Gregor|strassenera o chefe da propaganda nacional- -socialista nazista do Reich na década de 1920, antes que 0 cargo fosse assumido por Joseph Goebbels. De acordo com Strasser, “para um homem, 0 servigo militar é a forma mais profunda e valiosa de participacao ~ para a mulher, € a ma- temnidade!”® Paula Siber, chefe em exercicio da Associagao de Mulheres Alemas, num documento de 1933 criado para refletir a politica oficial do Estado dos nacionais-socialistas para as mulheres, declara que “s¢knlnen Sigiifica Seranaey significa afirmar com toda a forga consciente da alma 0 va~ Jor de ser mae ¢ torné-lo uma lei vital... a mais alta vocagao da mulher nacional-socialista nao é somente ter filhos, mas conscientemente com {@taljdevogao ayseuspapel € dever ‘como mie de criar filhos para seu povo”.' Richard Grunber- ger, historiador britanico do nacional-socialismo, resume “o cerne do pensamento naista sobre a questao das mulheres” 22 CoNO FUNCIONA 0 FASCISMO como “um dogma de desigualdade entre os sexos tio imutavel quantoaquele entreasrragas’,* historiadora Charu Gupta, em seu artigo de 1991, “Politics of Gender: Women in Nazi Germany” [A politica de género: Mulheres na Alemanha na- zista], chega a argumentar que “a opressio das mulheres na ‘Alemanha nazista, na verdade, representa o caso mais extremo de antifeminismo do século XX” § sses ideais de papéis de genero estdo definindo os movimen- {Os/politicos Mais uMA\VEZPEm 2015, o partido de direita da Polonia, 0 Partido da Lei e da Justiga (em polonés, Prawo i Sprawiedliwosé, abreviado como PiS), ganhou uma maioria absoluta nas eleigées legislativas da Polénia, tornando-se 0 partido dominante do pais. © PiS, em sua atual encarnacio, tem em seu centro um chamado para retomnar as tradicbes sociais cristas conservadoras da Polonia rural. A maioria de seus politicos abomina abertamente a homossexualidade, £ anti-imigracdo, e a Unio Europeia condenou suas medidas mais antidemocréticas, como a criagio de leis que permitem 08 ministros do governo (que so membros do partido) 0 controle total da midia estatal, concedendo-lhes o poder de demitir e contratar os chefes de radiodifusio das estagoes de idio e televisdo da Polonia, Mas internacionalmente é mais, conhecido por seu extremismo na politica de género. O aborto jd estava proibido na Poldnia, com excegSes apenas para danos severos ¢ irreversiveis ao feto, sérios riscos para a mae, ou nos casos de estupro ou incesto, O novo projeto de lei proposto pelo PiS teria eliminado 0 estupro e o incesto como excegdes A ptoibi¢ao do aborto, com encarceramento como penalidade para mulheres que buscam o procedimento. O projeto de lei O passapo atrico 23 no foi aprovado somente por causa de protestos e manifes- tagdes de mulheres nas ruas das cidades da Polénia. inclusive nos Estados Unidos, . GRUFWAMGRAGIMER chamado de é um conhecidk 4 Em Ty in, maio deQOIZ le publicow EM BHEGD no The Daily Stormer intitulado “Just What Are Traditional Gender Roles?” [ais |. Nele, afirma que as Eporisso que os judeus estavam tao interessados em, atacar essas ideias, porque a passagem patrilinear da propriedade era inatamente ofensiva i sua cultura, A Europa s6 tem essa nogao absurda de mulheres como entidades independentes por causa da subversio organizada por agentes do judaismo? Segundo Weey, ecoando o nazismo do século XX, 0s papéis de género patriarcais so centrais para a historia euro- pela, Nosescritos de Weev, 0 passado niio somente respalda os papéis tradicionais de género, mas separa grupos que suposta- mente aderem a esses papéis € aqueles que nao. Da Alemanha “hazista a historia mais recente, essa distincao punitiva pode 1 a0 ponto de genocidio.. 10s anos anteriores ao genocidio ruandés de 1994. Em 1990, 0 jornal pré-poder hutu, Kangura, publicou os Dez. est eh hell dc _ Mandamentos Hutus. Os trés primeiros relacionavam-se com género. O primeiro declarava traidor qualquer um que se casasse com uma mulher tutsi, manchando, assim, a pura - linhagem hutu. O terceito preconizava que as mulheres hutus assegurassem que seus maridos, irmios efllhos nao se casassem com mulheres tutsis. © segundo mandamento é: 2. Todo hutu deve saber que nossas filhas hutus so mais adequadas e escrupulosas em seu papel de mu- Iher, esposa e mae de familia. Nao sio elas bonitas, boas secretérias e mais honestas? Na ideologia do poder hutu, @]EiUIHReS\Hwnas |e rregadas da sagrada item somente como esposas ¢ mies, encar responsabilidade quae Essa busca pela pureza étnica foi uma justificativa basica para matar os _tutsis no genocidio de 1994. Evidentemente, a linguagem de género e as referéncias aos papéis e valor especial das mulheres descambam, muitas vezes, para 0 discurso politico, sem pensar muito em suas implicagbes, Nas eleigdes americanas de 2016, um video mos- _ trou o candidato republicano a presidéncia, Donald Trump, _ fazendo graves comentarios depreciativos sobre as mulheres. Mitt Romney, candidato presidencial do Partido Republica- ho em 2012, disse que as observacoes de Trump “rebaixam Tossas esposas e filhas”, Paul Ryan, o presidente republicano da Camara dos Representantes, disse: “As mulheres devem ser defendidas e reverenciadas, nao objetificadas”. Essas duas observagoes revelam uma ideologia patriarcal subjacente que € tipica de grande parte da politica do Partido Republicano dos EUA. Esses politicos poderiam simplesmente ter dado vor Adescricao mais direta dos fatos, que é que os comentarios de Psat E a ‘Trump rebaixam metade de nossos concidadaos. Em ver. dis- so, a observacio de Romney, em linguagem que evoca aquela usada nos Dez Mandamentos Hutus, descreve as mulheres exclusivamente em termos de papéis tradicionalmente subor- dinados nas familias, como “esposas e filhas”, nem mesmo como irmas. A caracterizagdo de Paul Ryan das mulheres como objetos de “reveréncia”, em ver de merecedoras do mesmo respeito, objetifica as mulheres na mesma frase que censura quem as objetifica, primet ro-ministro hingaro, Viktor Orban, foi eleito para o cargo em 2010. Ele supervisionou a demolicdo das instituig6es liberais daquele pais a servico da criagao do que Orban descreve abertamente como um Estado nao liberal, Em abril de 2011, Orbén supervisionou a introdugao da Lei Fundamental da Hungria, a nova constituigao da Hungria. O objetivo da Lei Fundamental é declarado logo no inicio, na Declaragao Nacio- nal, que comeca elogiando a fundagao do Estado hiingaro por Santo Est8vao, que “ha mil anos fez do nosso pais uma parte da Europa crista”. A Declaragao Nacional htingara continua expressando orgulho pelo fato de que “nosso povo defendeu a Europa ao longo dos séculos em uma série de lutas” (supos- tamente contrao Império Otomano muculmano). Reconhece “o papel do cristianismo na preservagio da nacionalidade” e compromete-se a “promover e salvaguardar nossa heranga”. ‘A Declaragao Nacional hiingara termina prometendo cumprir uma “permanente necessidade de renovacao espiritual einte- “ectual” ¢ oferecer um caminho para que as novas geragoes do pais possam “fazer da Hungria um grande pais novamente”. ‘A primeira série de artigos da Lei Fundamental, “A Fun- dacao”,é classificada por letras, O Artigo L declara na integra: 26 Como FUNCIONA © FASCISMO @ A Hungria protegeré a instituicdo do casamento como a uniéo de um homem e uma mulher estabelecida por deciséo voluntéria, ¢ a familia como a base da sobrevi- véncia da nagao. Os laos familiares devem basear-se no casamento e/ou na relagao entre pais efilhos, (2) AHungria deve incentivar 0 compromisso de ter filhos. (3) A protesdo das familias sera regulada por um ato car- dinal. A segunda série de artigos, “Liberdade ¢ Responsabi- lidade”, ¢ classificada por algarismos romanos. O Artigo II proibe o aborto, cuja protesao em relagio ao liberalismo deve ser consagrada na lei fundamental do ae: la tudo o que eles significam, to para homens quanto para a capacidade do grupo dominante de proteger sua pureza e status da invasdo _estrangeira. ‘caso da Hungria. Num passado glorioso, membros da co- __ tnunidade nacional ou étnica escolhida ocuparam seu lugar de diteito no topo estabelecendo a pauta cultural eeconémica para todos. Isso é estrategicamente vital. Podemos pensar politica fascist como uma polite de hierargua por Opassapo merico. 27 exemplo, nos Estados Unidos, a supremacia branca exige e pressup6e uma hierarquia perpétua), e para concretizar essa hierarquia, podemos pensar no deslocamento da realidade pelo poder, Se alguém consegue convencer uma populagao de que ela é legitimamente excepcional, que foi destinada, pornatureza ou destino divino,a governar outras populagées, «essa populagao jé foi convencida de uma mentira monstruosa. ‘O movimento nacional-socialista surgiu do movimento Volkisch [de “folclore”, “popular”] alemio, cujos defensores buscavam um retorno as tradigGes de um mitico passado medieval alemao. Embora Adolf Hitler estivesse mais obce- cado com certa visio da Grécia antiga como modelo para seu Reich, Iideres nazistas como Alfred Rosenberg ¢ Heinrich Himmler, este um dos membros mais poderosos do regime, eram fervorosos admiradores e promotores do pensamento vélkisch. Bernard Mees escreve em ‘The Science of the Swastika [A ciéncia da suéstica), sua histéria de 2008 sobre a conexto entre os antigos estudos alemaes ¢ o nacional-socialismo: osescritores votkisch logo descobriram que a imagem dos antigos alemaes poderia servir para fins praticos, co glorioso passado germinico poderia ser empregado como justificativa para os objetivos imperialistas do presente. O desejo de Hitler de dominar a Europa continental foi explicado nos periédicos nazistas no final da década de 1930 como mera realizacéo do destino germanico, repetindo as migragées pré- -hist6ricas arianas e depois germanicas em todo 0 continente durante a antiguidade tardia! ERRRERTEEAVENRLs por Rosenberg, Himmler outros Iideres nazistas inspiraramgdesdeventao, apolitical 28 COMO FUNCIONA.O FASCISMO ‘@ESEMBULOSPAhes. Segundo os adeptos do movimento Hindutva na India, os hindus eram a populagao autéctone da India, vivendo de acordo com os costumes patriarcais e com estritas préticas sexuais puritanas até a chegada dos muculma- nos e, posteriormente, dos cristaos, que introduziram valores ocidentais decadentes. Climovimiento Minddiivaabricou ume ‘versio de um passado mitico indiano com uma nagio purade (kiftd4S, para suplementar dramaticamente o que é considera do pelos estudiosos como a histéria real da India. QUBaEtIgo nacionalista-dominantedasindia, o Bharatiya Janata Party “(BIP), adotou a ideologia Hindutyaycomo seu credo oficial e conquisiou 0 poder no pais usando uma retérica emocio- nal que pedia um retorno a esse passado ficticio, patriarcal, duramente conservador, étnica e religiosamente puro. OID € descendente do braco politico-institucional do Rashtriya Swayamsevak Sanghe(RSS), um partido nacionalista hindu de extrema direita que defendia a supressdo de minorias nio hindus. Nathuram Godse, o homem que assassinou Gandhi, era membro do RSS, assim como o atual primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. O RSS foi explicitamente influen- " Giado pelos movimentos politicos fascistas europeus, e seus principais politicos viviam elogiando Hitler e Mussolini no final das décadas de 1930 ¢ 1940, 0 objetivo estratégico dessas construgdes hierarquicas da his- toria € deslocara verdade, ea invengao de um passado glorioso inclui oapagamento de realidades inconvenientes. !nguanto a Politica fascistaf@hiehiaaO PassadolMlunca é 0 passado real que (fetichizado, Essas list@Hiasiinventaeas)também @inintiem u extinguem completamente os pecados passados da nagao. Opassapo strico 29 ‘UBIpARSaAOMS UMA aes. No inicio de 2018, o parlamento Os politicos fascistas costumam apresentar a historia real de uum pais em termos conspiratérios, como uma narrativa for= jada por elites liberais e cosmopolitas para vitimizar 0 povo da verdadeira “nagdo”. Nos Estados Unidos, os monumentos confederados surgiram bem depois do fim da Guerra Civil como parte de uma historia mitificada de um heroico pasado do Sul, no qual os horrores da escravidao eram abrandados. (O presidente Trump denunciow o esforso de ligar esse passado mitificado a escravidao como uma tentativa de vitimizar 03 americanos brancos por celebrarem sua “heranga”. Apagar o passado real legitima a visio de uma naca0 do passado etnicamente pura ¢ virtuosa. Parte da limpeza étnica da populagao rohingya em Mianmar é apagar todo € qualquer vestigio de sua existéncia fisica e historica. De acordo com U Kyaw San Hla, um membro do ministério de seguranea do estado de Rakhine, a patria tradicional dos rohingyas: “Nao existe um grupo étnico chamado rohingya. 1o noticias falsas” ” SEO TEAUOHONSBUCULFOIEDOIZ do Alto Comissariado das Nages Unidas para os Direitos Huma- nos, agfORSASMeSEgUIaEAe Mianmar tém trabalhado para “ aff@Gar fisicamente (odds ossinaisde marcos memiPayeis na geografia da paisagem.c.da.memoria rohingya, de modo. que, tum retorno a suas terras revelaria apenas um terreno desola do e irreconhecivel”. © que efiifaiites aS 2012) Unita BROSpeR Comunidade multictnica-csmultirxeligiosacm certas reas do estadode Rakhine, em Mianmar, foftotalmente alterada para apagar qualquer traco de uma populacéo muculmana, A politica fascista repudia qualquer momento sombrio polonés aprovou uma lei que condena a insinuagio de que a Poldnia tenha responsabilidade em relacao a qualquer das atrocidades cometidas em seu solo durante a ocupagio nazista 30 Como FUNCIOWA 0 RASCISMO do pats, inclusive os bem documentados pogroms da época. De acordo com a Rédio Polonia, “o artigo 55, cléusula 1, do projeto de lei declara que ‘quem acusar, publicamente ¢ contra os fatos, a nacdo polonesa, ou o Fstado polones, de ser responsivel ou ctimplice dos crimes nazistas cometidos pelo Terceiro Reich alemio [...] ou outros crimes contra a paz ea humanidade, ou crimes de guerra, ou de outra forma diminuir _rosseiramente seus verdadeiros perpetradores, estaré sujeitoa ‘uma multa ou pena de prisio de até trés anos”, O artigo 301 do codigo penal da Turquia protbe “insultara condigio de turco”, inclusive mencionar 0 genocidio arménio durante a Primeira Guerra Mundial. Fssa{f@hitativas ae egRIaEO BpawaMentO dO ‘passado de uma nagao sio caracteristicas de regimes fascistas. O Le Front National é 0 partido de extrema direita da ‘ Franca € o primeiro partido neofascista da Europa Ocidental -alcangaruum sucesso cleitoral sighificativo. Seu lider original, Jean-Marie Le Pen, foi condenado por negacio do Holocausto. sucessor de Le Pen como lider do Le Front National é sua filha, Marine Le Pen, que terminou em segundo lugar nas elcicdes presidenciais francesas enf{@OI7. O papel da policia francesa em capturarjudeus franceses para envid-los a campos de concentragao nazistas sob 0 governo de Vichy esta bem documentado, Mas durante a campanha eleitoral de 2017, Marine Le Pen negou a cumplicidade francesa na captura de ‘um grupo particularmente grande de judeus franceses, em que ‘reze mil pessoas foram reunidas na pista de cidlismo Vélodro- ‘me d’Hiver e enviadas para campos de concentragao nazistas. _ Numa entrevista de televisao em abril de 2017, ela disse: “Eu ‘do acho que a Franga tenha sido responsivel pelo Vel’ Hiv... Bu acho que, de um modo geral, se houver responsaveis, si0 aqueles que estavam no poder na época. Nao a Franca”. Ela _ Acrescentou que a cultura liberal dominante havia “ensinado Opassapo samico 31 aos nossos filhos que eles tém todos os motivos para criticar [o pais] ea ver somente, talvez, os aspectos mais obscuros da nossa histéria, Entéo, quero que eles se sintam orgulhosos novamente de serem franceses”. SGAIGHBAM, onde as leis proibem negagdes puilicas, semelhantes do Holocausto, Slpabtids Melextrenalgireiea Alternativ fiir Deutschland ({DJfehocou 0 grande puiblico alemio nas eleictves d@20U7BOr se tOFGE teRCEiFO RIRIOE BAS éd@S MS parlamentMlemao! Durante a campanha eleitoral, em setembro de 2017, um dos lideres do partido, Alexander Gau- land, fez um discurso dizendo que “nenhum outro povo foi apresentado com um passado falso tdo explicitamente quanto os alemes". Galulaiid pedal qué!" |passado fosse devo vido a0 povo da Aiemanha “, referindo-se a um passado em que os alemdes eram livres para “orgulhar-se das realizagoes de nossos s@ldados nas duas guerras mundiais”. Assim como os politi- cos do Partido Republicano dos EUA procuram aproveitar 0 ressentimento branco (e os votos) denunciando cuidadosa erudigao historica sobre a brutalidade da escravidio como uma forma de “vitimizar” os brancos americanos, especial- mente do Sul, © Af) procura angariar votos reapresentando a detalhada historia do passado nazista da Alemanha como uma forma de vitimizagio do povo alemao. Num discurso no infcio daquele ano em Dresden, um dos lideres do AfD, Bjérn Hécke, falou fervorosamente sobre a necessidade de “uma cultura de meméria que nos ponha em contato, acima de tudo, com as grandes conquistas de nossos ancestrais”.” As observagies de Hacke sobre “uma cultura de me- méria” s40 um eco perturbador daquelas do criador do mito a Alemanha nazista. Em 1936, o proprio Heinrich Himmler falou da mesma forma a respeito de favorecer realizagoes: 32 Como FuNciona o rascismo. Um povo vive feliz no presentee no futuro, desde que reconheca seu passado ea grandeza de seus ancestrais [..] Queremos deixar claro para os nossos homens € para 0 povo alemao que nao temos um pasado de apenas mil anos, aproximadamente, que nao éramos um povo barbaro sem cultura prdpria e que precisava adquiri-la de outros. Queremos que nosso povo se sinta novamente orgulhoso da nossa histéria.!" Quando nao inventa simplesmente um passado para utilizar como arma a emogao da nostalgia, a politica fascists procede a uma escolha seletiva do passado, evitando qualquer coisa que diminua a adulagio irretletida da gloria da nago. Para debater honestamente o que nosso pais deve fazer, que politicas deve adotar, precisamos de uma base comum de realidade, inclusive sobre nosso proprio passado, A historia em uma democracia liberal deve ser fiel & norma da verdade, produzindo uma visio precisa do pasado, em ver de uma hhistorialfomecida por'razbes\politicas. A politica fascista, ao contrério, geralmente contém uma demanda para mitificar o pasado, criando uma versio do patriménio nacional que & ‘uma arma para ganhos politicos. Se 0 individuo nao esté preocupado com politicos que buscam intencionalmente apagar qualquer meméria hist6rica dolorosa, vale a pena conhecer |i @iatiraaapSICOlOgia SOBA ‘ffiemGtia Coletiva) Em seu artigo de 2013, “Motivated to ‘For- get’: The Effects of In-Group Wrongdoing on Memory and Collective Guilt” (Motivado a “esquecer”: Os efeitos de atos danosos intragrupais na meméria e na culpa coletival, Katie Opassapo minico 33 Rotella e Jennifer Richeson apresentaram aos participantes americanos hist6rias sobre “o tratamento violento e opressivo dos ndios americanos”, enquadradas de duas maneiras: “Espe~ cificamente, os perpetradores da violéncia foram descritos ou como americanos primitivos (em grupo), ou como europeus que se estabeleceram no que se tornou a América (condigao tina do ru)” © estado mostrava que as pessoas so mais) eS $20 Cal Quando os participantes americanos foram apresentados aos agentes da violéncia como americanos (em vez de europeus), eles tiveram uma memoria significati- vamente pior para eventos histéricos negativos, e “o que os participantes recordaram foi expressado mais negligentemente quando os perpetradores eram membros do 4 Ja existe uma forte tendéncia embutida no: ‘e minimizar os atos problemiticos cometidos por um membro do préprio grupo. no passado. a politicos que exortam 1ss0 ica educacional oficial sé poe lenha numa fogueira ja estabelecida, Lideres fascistas apelam a historia para substituir 0 ver- dadeiro registro histérico por uma gloriosa substituigao mitica jue, em suas especificidades, pode servir a fins politicos ¢ 20 SED. 0 pric -ministro htingaro, Viktor Orbén, baseou-se na experiéncia da Hungria de combater a ocupagao do Império Otomano 34 Como FUNCIONA 0 FascIsMo nos séculos XVI e XVII para colocar o pais no hist6rico papel de defensor da Europa crista a fim de embasar a restrigao aos refugiados de hoje."* Naturalmente, durante esse tempo, a ‘Hungria era a fronteira entre um império liderado por mu- gulmanos e outro liderado por cristaos; mas a religiio nao desempenhou um papel tao importante nesses conflitos. (O Império Otomano, por exemplo, nao exigiu a conversio de seus stiditos cristaos.) A histéria mitica que Orban conta tem plausibilidade suficiente para reduzir a natureza complexa do passado e seal seus objetivos. ‘thilificadapaalbrangquear@ReRAMA|EHo: utilizada para ~ justificar a recusa em conceder direitos de voto a cidadaos negros americanos até um século apés o fim da escravidao. A nartativa central na justificativa da recusa do Sul em conceder 6 Voto aos negros é uma histéria falsa do perfodo conhecido como Reconstrugao, imediatamente apés o fim da Guerra Ci- vil, em 1865, quando os negros do Sul tiveram permissio para Volar. Naquela época, os negros americanos eram maioria em alguns estados do Sul, como a Carolina do Sul, e por cerca de ~_ doze anos seus representantes tiveram voz poderosa em muitas __ legislaturas estaduais, chegando a ocupar posicées no Congres- ~ 80 dos BUA. A reconstrucio terminou quando os brancos do Sul promulgaram leis que tinham o efeito prético de proibir ___ 98cidadaos negros de votar. Os sulistas brancos propagaram _ O mito de que isso era necessério porque os cidadaos negros | ___#am incapazes de se autogovernar; nas historias divulgadas __BA€poca, a Reconstrucio foi representada como uma época de ___Cotrupcao politica sem paralelos, com a estabilidade restaurada _ apenas quando os brancos tiveram novamente poder total __ Aobra-prima de 1935 de WEB. Du Bois, Black Re- construction [Reconstrugio negra), é uma refutagio decisiva © passapo mtrico 35 da entao histria oficial da era da Reconstrugao, Como mos- tra Du Bois, os brancos do Sul, com 0 conluio das elites do Norte, puseram fim a era da Reconstrucio devido ao medo disseminado entre as classes abastadas de que cidadaos ne {gros recém-emancipados se unissem aos brancos pobres para desenvolver um movimento trabalhista poderoso a fim de desafiar os interesses do capital. Du Bois mostra como a era da Reconstrugao foi um tempo de governanga justa, quando 0s legisladores negros nao apenas ndo governavam por inte esse propfio, mas se esforcavam para acomodar os medos de seus concidadaos brancos. Na época, Black Reconstruction foi totalmente ignorado pelos historiadores brancos; mas na década de 1960, a hist6ria que Du Bois conta ali se tormou amplamente reconhecida como fato. Foi por raz6es politicas que historiadores académicos promoveram conscientemente uma falsa histria da Recons- trugdo, Eles usavam sua disciplina nao para buscar a verdade, mas para tratar das feridas psiquicas dos americanos brancos decorrentes da Guerra Civil. Ao fornecer uma visdo recontor- tante da historia que encobria as gritantes diferencas morais entre 0s estados, 0s historiadores justificavam a remogio das protecoes minimas de cidadania para cidadaos negros nos antigos estacios pré-escraviddo. O tltimo capitulo de Black Reconstruction € intitulado “A propaganda da histéria”, Nele, Du Bois denuncia duramente a pritica de apelar aos ideais da erudigao histérica, da verdade e da objetividade. Fazer isso, declara Du Bois, é minar a disciplina da hist6ria. Historia- dores que apresentam uma falsa narrativa para obter ganhos politicos sob os preciosas ideais da verdade e da objetividade, segundo Du Bois, so culpados de transformar a histéria em propaganda, 36. CoMo FUNCIONA o FAscIsMO PROPAGANDA = dificil promover uma politica que prejudicaré um grande grupo de pessoas diretamente. O papel da propaganda ‘== politica ¢ ocultar os objetivos claramente problematicos de politicos ou de movimentos politicos, mascarando-os com ideais amplamente aceitos. Uma perigosa e desestabili- zadora guerra pelo poder torna-se uma guerra cujo objetivo €.a estabilidade, ou. uma guerra cujo objetivo é a liberdade, historiadora de Harvard Elizabeth Hinton aborda essa tética em seu livro From the War on Poverty to the War on Crime: The Making of Mass In- carceration in America [Da guerra contra a pobreza a guerra contra o crime: A realizacao do encarceramento em massa na 37 América], usando anotagGes do didrio do chefe de gabinete de Nixon, H.R. Haldeman: “Lemos de encarar o fato de que todo o problema resume-se aos negros”, disse Nixon, segundo Haldeman, numa nota de abril de 1969. “O segredo 6 divisar um sistema que reconhega isso, embora sem parecer fazé-lo”, De uma maneira direta e sistemética, NiRGHIFCCORHEEED uc ‘a politica de controle do crime poderia efetivamente ocultar a intengao racista por trés dos programas domésticos de sia administragdo.’ A retérica de Nixon de “lei e ordem” que se seguiu: a essa conversa {6Husada paMOCUl Ewa PAULA pONHGD Facista, totalmente explicita dentro dos muros da Casa Branca, ‘Movimentos fascistas t8m “drenado pantanos™ por geracoes. Divulgar falsas acusagées de corrupedo enquanto se envolve emi"? praticas corruptas ¢ tipico da politica fascista, ¢ as campanhas. anticorrupgao estao frequentemente no centro dos movimen= ‘to$ politicos fascistas, Politicos fascistas geralmente condenam a corrupgao no Estado que querem assumir, 0 que é bizarro, ‘uma vez que 0s proprios politicos fascistas sto invariavelmente muito mais corruptos do que aqueles que eles procuram su- plantar ou derrotar. Como o historiador Richard Grunberger escreve em seu livro The 12-Year Reich [O Reich de 12 anos} Fra uma situacdo paradoxal. Tendo incutido na consciéncia coletiva que democracia ¢ corrupgio * A expresso inglesa “to drain a swamp” teve origem no processo de drenagem de pantanos americanos para combater 0 mosquito da maléria, mas hoje ¢ utilizada principalmente na politica para se referir ao exterminio de algo danoso, como corrupgio ou malver- sagao de dinheiro piblico. (N.E.) 38 CoMO FUNCIONA 0 FASCISMO eram sinénimos, os nazistas comecaram a construir um sistema governamental ao lado do qual os ¢s- cindalos do regime de Weimar pareciam pequenas manchas no corpo politico. A corrupgiio era, de fato, o principio organizador central do Terceiro Reich, e, no entanto, muitos cidadaos nao apenas ignoravam, esse fato como, na verdade, consideravam os homens do novo regime como austeramente dedicados & probidade moral.’ ‘Corrupcao, para o politico fascista, consiste na corrupgao da ‘Pureza, endo da lei, Oficialmente, as dentincias de corrupcao do politico fascista soam como uma denincia de corrupgao ‘@olifica, Mas essa conversa pretende evocar a corrupgao=no -S€ntido da usurpagao da ordem tradicional, Foram acusagbes fabricadas de corrupgao que levaram a@ifinyda)Reconstracao, Como W.E.B. Du Bois escreve em Black Reconstruction owentrodaacusagao decormpea |...) era, na yerdade, que os pobres estavam governando e taxando @s ticos”” F, ao descrever a principal reivindicagao retorica por tras da privagao de direitos dos cidadaos negros, Du Bois escreve: Sul, finalmente, de maneira quase undnime, apon- tou para o negro como a principal causa da corrupgio sulista, Eles proferiram e reiteraram essa acusagio até que se tornou histéria: que a causa da desonestida- de durante a reconstragio foi o fato de que quatro milhdes de trabalhadores negros sem direitos, apés 250 anos de explorago, receberam o direito legal de PRopacanDs 39 ter alguma voz em seu préprio governo, nos tipos de bens que eles produziriam e no tipo de trabalho que fariam, ¢ na distribuigao da riqueza por eles criada Para muitos americanos brancos, 0 presidente Obama deve ter sido corrupto, porque sua propria ocupagao na Casa Branca era uma espécie de corrupeao da ordem tradicional. Quando as mulheres aleancam posiges de poder politico geralmente reservadas para os homens, ou quando mugulma- nos, negros, judeus, homossexuais ou “cosmopolitas” lucram ow até compartilham dos bens pablicos de uma democracia, como assisténcia a satide, isso & percebido como corrupsio.? Os politicos fascistas sabem que seus partidérios fardo vista grossa & sua prdpria e verdadeira corrupgao, ja que, em seu ‘caso, trata-se apenas de membros da nagao escolhida pegando © que é deles por direito. Mascarar ajcorrupgao sob o disfarce de anticorrupsao € uma estratégia marcante da propaganda fascista, Vladislav Surkov foi, basicamente, ministro da propaganda de Via mir Putin por muitos anos, Em seu livro Nothing Is True and — Everything Is Possible: The Surreal Heart of the New Russia [Nada é verdadeiro e tudo é possivel: O cerne surreal da nova Réssia], o jornalista Peter Pomerantsev descreve o “sistema politico em miniatura” de Surkov como reiérica democrética e intengao nao democratica® ‘A intengdo nao democratica por trés da propaganda fascistré fndamental. Os Estados fascistas concentrahi-seem desarticular 0 Bstado de direito, com o objetivo desubstitui-lo pelos ditames de governantes individuais ou chefes de partido. E padrao na politica fascista que as duras criticas a um poder judiciario independente ocorram na forma de acusagGes de parcialidade, um tipo de corrupcao, criticas que, entao, so 40 Como FUNCIONA 0 FAscIsMo usadas para @ibstitminjuizessindepenadites por aqueles que empregardo cinicamente a lei como um meio de proteger 0s interessessdopartidomopoders recente e rpida transicao de certos Estados democraticos aparentemente bem-sucedidos, como a Hungria ea Poldnia, para governos nao democraticos tornou particularmente notavel essa tatica de enfraquecer 0 poder judiciério independente, ja que ambos os pafses introdu- ziram leis para substituir juizes independentes por partidérios logo apés os regimes antidemocriticos tomarem 0 poder. Oficialmente, a justificativa era que as praticas anteriores de neutralidade judicial eram uma mascara para 0 preconceito contra o partido governante.” Emmmomesdeserradicatsascor rupgio ¢ a suposta parcialidade. os politicos fascistas atscam ¢ diminuem as instituigdes que, de outro modo, poderiam cercear seu poder. Assim como a politica fascista ataca o Estado de direito em nome do combate a corrupgao, ela também pretende proteger aliberdade eas liberdades individuais. Mas essas liberdades de- pendem da opressao de alguns grupos. Em 5 de julho de 1852, © abolicionista e orador norte-americano Frederick Douglass proferiu um discurso de 4 de julho em homenagem ao Dia da Independéncia daquele ano, Douglass comeca suas obser- vagbes reconhecendo que o dia celebra a liberdade politica: Isto, para 0 propésito desta celebrago, € 0 4 de ju- Iho. E 0 aniversdirio da sua independéncia nacional e da sua liberdade politica. Isso, para vocés, é 0 que a Pascoa era para o povo emancipado de Deus.* Proracanda 41 Douglass passa a primeira parte de seu discurso lou- vando 0 compromisso dos pais fundadores com a causa da liberdade ¢ elogiando o dia como uma celebracao do ideal de liberdade, Mas entao, voltando ao momento presente, Dou- glass, que fora escravo, indaga: Arrastar um homem em grilhdes para o grande templo iluminado da liberdade e convocé-lo para se juntar a voces em alegres hinos era uma zombaria desumana e uma ironia sacrilega. Vocés pretendem zombar de mim, cidadios, pedindo-me para falar hoje? Nese famoso discurso, intitulado “What to the Slave is the Fourth of July?” [O que representa o 4 de julho para © escravol 's americanos do século XIX, incluindo aqueles que viviam no Sul, consideravam sua terra um farol de liberdade. Como isso é possivel, perguntou Douglass, quando cla foi construida pelo trabalho de africanos escravizados e de uma populagio nativa cujos direitos & terra, e muitas vezes 08 direitos a vida, foram completamente ignorados? A reté- rica da liberdade foi eficaz nessa situagio por causa de uma crenga generalizada de que a populagio nativa, bem como a populagao escrava importada da Africa, nao eram recipientes adequados para os bens da liberdade. Fis uma ideologia fascista classica, com uma hierarquia de valor entre as racas. eas 0s outros esto — o trabalho para voce, voce é livre para fazer 0 que quiser, pelo menos superfi- 42 COMO FUNCIONA 0 FascIsMo cialmente. A liberdade envolvida na vida de lazer do plantador do Sul estava intimamente ligada a doutrina da superiorid racial branca, S@B SSIS COndigoes estratanais propria HOO eam Encontramos Se ‘em boa parte da retdrica dos “direitos dos estados”, uma expressio utilizada para defender da intervencao federal a liberdade dos estados norte-americanos no Sul. Mas a intervengéo federal mais associada ao apelo pelos “direitos dos estados” é a elimina- io da escravidao e, posteriormente, o surgimento das leis de Jim Crow, que restringem o direito de voto para os cidadaos promisso com a liberdade, como por exemplo a liberdade inerente que ha no direito de voto, tende a terminar com essa vitoria, Em Mein Kampf, apés criticar a democracia parlamen- tar, Hitler elogia “a verdadeira democracia germAnica”, com livre escolha do lider, junto com a obrigagao deste de assumir inteira responsabilidade por tudo o que faz e faz com que seja feito”. O que Hitler descreve aqui é0 governo absoluto de um der, apés uma votagio democratica inicial. Nao hé, na des- ctigdo de Hitler do que ele chama de “verdadeira democracia germanica”, qualquer indicio de que o lider deva se submeter a uma clei¢ao subsequente. (Hitler, aqui, também se inspira no pasado mitico, quando os reis medievais alemaes eram eleitos para sempre.) Qualquer que seja esse sistema, ele néo € reconhecidamente uma democracia. No uso feito pela Confederagao do conceito de liberdade para defender a pratica da escravidao, no apelo dos estados do Propacanpa 43 Sul por “direitos dos estados” para defender a escravidao ena apresentacio de Hitler do governo ditatorial como democracia, ideais liberais democriticos séo usados como uma méscara para minara simesmos. Em cada um podemos encontrar ar- gumentos ilusdrios de que o objetivo antiliberal é, na verdade, ‘uma realizacdo do ideal liberal. No caso da Confederago e do Sul dos EUA de Jim Crow, o argumento era que os “direitos dos estados”, uma manifestagao do ideal liberal de autodeter- minagio, permitiam a pritica da subordinagio racial j4 que essa era uma escolha feita por cada estado, Hitler argument que “a verdadeira democracia germanica”, ou seja, a ditadura exercida por um Gnico individuo, é uma democracia genuina porque somente em tal sistema existe a legitima responsabili- dade individual pelas decisoes politicas, f que o poder de tomar esas decisGes esté vinculado a uma tinica pessoa, ¢ jé que a responsabilidade individual é uma nogao liberal por exceléncia. No livro 8 de A repiiblica de @latip, Sécrates argumenta que as pessoas ndo sao naturalmente levadas ao autogoverno, mas buscam um lider forte para seguir. A democracia, ao permitir aliberdade de expressio, abre espaco para que um demagogo explore a necessidade que o povo tem de um homem fortes © homem forte usaré essa liberdade para se aproveitar dos gessentimentos © medos das pessoas) Uma vez que o homem forte toma o poder, ele acaba com a democracia,@UBSEB (Gin POHLAAIPM suma, olivro 8 de A republica afirma “que a democracia é um sistema autodestrutivo, cujos ideais Jevam a sua prépria morte, Os fascistas sempre estiveram familiarizados com essa receita de usar as liberdades da democracia contra cla mesma. 44 Como FUNCIONA 0 FASCISMO O ministro da propaganda nazist {JOSE pHIGOEUBERIUER! x01 certa ver: “Essa sera sempre uma das melhores piadas da de- mocracia, que ela deu a seus inimigos mortais os meios pelos uais foi destruida’. Hoje nao ¢ diferente do passado. Mais uma ver, cncontramos os inimigos da democracia liberal em- ‘ pregandolessaestratégia, levando a liberdade de expressdo aos seus limites e, por fim, utilizando-a para subverter o discurso dos outros. Desiree Fairooz éuma ex-biblioteciria eativista que este- ve presente na audigneia de confirmagio do procurador-geral americano Jeff Sessions. Sessions é um ex-senador do Alaba- ma cuja nomeagio para a bancada federal foi rejeitada pelo Senado dos EUA em 1986 por acusagies de ultradireitismo, sobretudo racismo (como senador, Sessions ficou conhecido por disseminar o panico sobre a imigracao). Quando o senador Richard Shelby, do Alabama, declarou que Sessions tinha um “histérico bem-documentado de tratar todos os americanos igualmente sob a lei”, Fairooz.riu. Fla foi imediatamente presa eacusada de conduta desordeira, O Departamento de Justia, liderado por Sessions, apresentow acusagdes conta ela, Depois que um juiz indeferiu as acusagSes no verdo de 2017, alegan- do que 0 riso € permitido em discursos, 0 Departamento de Justiga de Sessions decidiu, em setembro de 2017, continuar a fazer acusacdes contra elass6 em novembro daquele ano é que © Departamento de Justica abandonou a intengao de julgar Fairooz por rir Si SSSsiGnsypractirad Or ReralMOSEUARIAD pode ser considerado um defensor da liberdade de expressio. No entanto, no mesmo més em que seu Departamento de Justiga estava novamente tentando incriminar um cidadéo americano por rir, Sessions proferiu um discurso na Faculdade de Direito de Georgetown criticando os campi universitarios por nao cumprirem 0 compromisso de liberdade de expresso Propacanpa 45 devido & suposicdo de que a academia desencoraja vores de direita. Ele pediu um “novo compromisso nacional em prol da liberdade de expressio eda Primeira Emenda” (na semana que Sessions fer esse discurso, os noticisrios s6 falavam do apelo do presidente Trump para que os donos das equipes da Liga Nacional de Futebol Americano demitissem os jogadores que se ajoelhassem durante o hino nacional para protestar contra © racismo, um exercicio dos direitos da Primeira Emenda, se € que alguma vez houve algum direito) As manifestagdes pro-Trump de Port- land, no estado de Oregon, sto chamadas de “Trump Free Speech Rallies” [ManifestacGes pela liberdade de expressio de Trump]. Em maio de 2017, a cidade foi palco de um ato terrorista nacionalista particularmente brutal. Jeremy Joseph Christian, nacionalista de extrema direita de 35 anos de idade, teria esfaqueado trés pessoas que tentaram intervir quando ele berrava insultos antimugulmanos para duas jovens. Duas das vitimas do esfaqueamento morreram. Ao entrar no tribunal para ser julgado, Christian gritou: Liberdade de expressto ou morte, Portland! Nao existe lugar seguro. Isto éa América. Ssierostato = Mas o tipo de debate em que um grita insultos para o outro, sem falar nos casos que envolvem violéncia fisica e posterior dentincia ao 45 Como FUXCIONA 0 FASCISM protesto como um ataque ao discurso, nio é 0 tipo relevante de discurso publico que os direitos de liberdade de expresso devem proteger. O tipo de discurso que Jeremy Joseph Chris- tian desejava promover destréi.a possibilidade de um discurso publico, em vez de propiciar meios para tal. E comum observar, e com raza ts ofacema clevs @EHOT menos comum notar, entretanto, que o fascismo realiza essa clevacio indiretamente, isto é, com propaganda, “The Rhetoric of Hitler’s “Battle” (A ret6rica da “batalha” de Hitler] € um ensaio de 1939 do teérico literdrio americano Kenneth Burke. Nele, Burke descreve como Hitler, em Mein Kampf, descreve repetidamente sua luta para abragar os ideais nacional-socialistas como a percepgaio de que a vida é uma ba- talha pelo poder entre grupos na qual a razao e a objetividade nao tém papel; sua percepgao € sua rejeigao ao Luminismo, impulsionado pela razao, Burke escreve: “Aqueles que atacam 0 hitlerismo como um culto 20 irracional devem emendar suas declarag6es no seguinte sentido: irracional é, de fato, mas realizado sob o slogan da “Razio”. Os fascistas rejeitam os ideais do Tluminismo, embora declarem que sao forcados a fazé-lo por um forte confronto coma realidade, pela lei natural. Como observa Burke, Hitler descreve sua transigao a um “antissemita fandtico” como “uma uta de ‘razao’ e ‘realidade’ contra seu ‘coragio”. O fascista afirma ter sido guiado pela razio cientifica a visio de que a vida é uma luta impiedosa por dominio, luta em que a propria forca que supostamente o levoua tal visdo~o ideal iluminista da razao universal — deve ser abandonada, o de que os humanos so animais Webelaelatt idee ihe we ANTI-INTELECTUALISMO politica fascista procura minar 0 discurso pablico ata- A cando desvalorizando a educagao, a especializacio © ga linguagem. E impossivel haver um debate inteligente sem uma educagio que dé acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especializacao quando se esgota 0 proprio conhecimento e sem uma linguagem rica 0 suficiente para descrever com preciso a realidade. (QGaH@S|a/eaGeagaOya especializago eas distingGes linguisticas sio solapadas, restam somente poder e identidade tribal. Tsso nao significa que nao haja um papel para as uni- versidades na politica fascista. N@RACOIOga fase) RABpER as um ponto de vista legitimo: o da nacao dominante. As escolas, apresentam aos alunos a cultura dominante e seu passado mftico. A educagio, portanto, representa uma grave ameaca 0 fascismo ou se torna um pilar de apoio para a nacido miti- ca, Nao €de se espantar, ent@o, que os protestos e confrontos 48, culturais nos campi universitarios representem um verdadeiro campo de batalha politico ¢ recebam atengio nacional. Ha muita coisa em jogo. ‘Nos tiltimos cinquenta anos, pelo menos, as universidades tém, sido 0 epicentro de protestos contra a injustica e 0 excesso de Butoridade) Considere, por exemplo, o papel tinico das univer- sidades no movimento antiguerra da década de 1960. Onde o discurso é um direito, os propagandistas ndo podem atacar a dissidéncia de frente. Em ver disso, 3 pRCSa REPRESS como algo violento e opressivo (um protesto, portanto, vira “badema”). Em 2015, o movimento Black Lives Matter [As vidas negras sio importantes) nos Estados Unidos, protestando contra abrutalidade policial ea desigualdade racial, se espalhou para os campi universitarios. Como o Black Lives Matter comegou em Ferguson, no estado do Missouri, nfo é de sesurpreender que o primeiro campus em que ele atuou tenha sido a Universidade do Missouri, Concerned Student 1950 [Aluno preocupado 1950] foi o nome do movimento estudantil do Missouri, evocando © ano em que a Universidade do Missouri foi dessegregada. Entre seus objetivos estava 0 de abordar os incidentes de abuso racial que os estudantes negros enfrentavam com frequéncia, assim como rever as curriculos que representavam a cultura e -civilizagao como 0 produto apenas dos homens brancos. A fdia fgnorou essis motivacoes ¢, apresentando Os estudanites ‘negros como uma muitidao enfurecida, usou a situagao como uma oportunidade para iomentar © 6dio contra os supostos excessos politicos liberais da universidade. ‘A politica fascista busca solapar a credibilidade das ins- tituigdes que abrigam vozes independentes de dissensdo até AnriiNTELECTUALISMO 49 que clas possam ser substitufdas pela midia e por universidades que rejeitam essas vozes. Um método tipico é nivelar as acu- Ses de hipocrisia. No momento, uma campanha de direita contemporinea est acusando as universidades de hipocrisia quanto a questo da liberdade de expressao. As universidades, dizem eles, afirmam valorizar a liberdade de expressio acima de tudo, mas abafam quaisquer vozes que nao se inclinem para a esquerda, permitindo protestos contra essas vozes no campus. Mais recentemente, criticos dos movimentos de justiga social do campus descobriram um método eficaz de se transformarem nas vitimas do protesto. Eles alegam que os ‘manifestantes pretendem negar-Ihes sua propria liberdade de expresso, Essas acusagbes chegam a sala de aula, David Horowitz, € um ativista de extrema direita que tem como alvo as uni- versidades ¢ a industria cinematografica desde a década de 1980, Em 2006, Horowitz publicou um livro, The Professors [0s professores}, apresentando os “101 professores mais perigosos da América” (que €0 subtitulo do livro), uma lista de professores esquerdistas e liberais, muitos dos quais eram defensores dos direitos palestinos. Fm 2009, ele publicou outro livro, One-Party Classroom [Sala de aula totalitéria), com uma lista dos “150 cursos mais perigosos da América”. Horowitz criou intimeras organizacoes para promover suas ideias. Na década de 1990, Horowitz criou a Individual Rights Foundation, que, de acordo coma conservadora Young, America’s Foundation, “liderou a batalha contra os cédigos de linguagem nos campi universitarios”. Em 1992, fundou o tabloide mensal Heterodoxy, que, segundo o Southern Poverty Law Center, “tinha como alvo estudantes universitirios que Horowitz via como doutrinados pela esquerda entrincheirada na academia americana”. Horowitz também é responsével 50 Como FUNCIONA 0 FascISMO pela campanha Students for Academic Freedom [Alunos em prol da liberdade académica), que, ao ser langada, em 2003, foi chamada de Campaign for Fairness and Inclusion in Higher Education [Campanha pela justica ¢ incluso no ensino superior]. O objetivo da Students for Academic Freedom é promover a contratagio de professores com visdes de mundo conservadoras, uma iniciativa divulgada como um meio de promover a “diversidade intelectual e a liberdade académica nas faculdades e universidades americanas”, de acordo com a Young America’s Foundation. Nas iltimas décadas, Horo- witz era uma figura marginal na extrema direita americana. Mais recentemente, suas titicas e objetivos, e até mesmo sua ret6rica, se popularizaram, entrando na corrente dominante, onde 0s ataques ao “politicamente correto” nos campi so agora comuns. a © adjunto do procurador-geral do Departamento de Justiga dos EUA, Jesse Panuccio, iniciou uum discurso na Northwestern University em 26 de janeiro de 2018, declarando a liberdade de expresso no campus como “um t6pico de vital importancia, que, como vocés devem saber, 0 procurador-geral dos Estados Unidos, Jeff Sessions, transformou em prioridade para o Departamento de Justiga, uma prioridade porque, em nossa opiniao, muitos campi em todo o pais estao deixando de proteger e promover a liberdade de ae como ut longoataque ao “politamentecoreo" Néo por acaso que a ret6rica da administragao Trump, em particular seus ataques ao “politicamente correto” e seu uso da retérica da liberdade de expressio, se sobreponha aos pontos de dis- cussdo de algumas instituigdes bem financiadas que surgiram ANTE-INTELECTUALISMO 51 para atacar e deslegitimar universidades como bastides do liberalismo. @xistempligagoesventre. )principalyorganizario. de Horowitz, 0 David Horowitz Freedom Center (DHEC), ea administragao de Trump, especialmente com sens mem- brosna extrema direita, De acordo com uma investigagao do Washington Post publicada em junho de 2017(@)DHE@item BUILT REHTESPOUGIEGS-vj0 objetivo tem sido desestabitizan, a politica de Washington, inclinando-a para a extrema direita, incluindo o procurador-geral Jeff Sessions, o conselheiro sénior Stephen Miller e Stephen Bannon? Segundo 0 artigo, em 14 de dezembro de 2016, “Horowitz expressou felicidade pela vit6ria de ‘Trump e disse que os republicanos finalmente acordaram para sua abordagem politica”, denunciando os esquerdistas como inimigos da liberdade de expressio. Horowitz, conta com pelo menos onze membros da administracto Tramp come apoiadores do DHEC, incluin- do o vice-presidente Mike Pence, Sessions, Bannon e Miller, que Horowitz legitimamente descreve como “uma espécie de pupilo meu” (0 artigo documenta 0 longo apoio de Ho- rowitz 4 carreira de Miller). ODHEC esteve profundamente envolvido nas carreiras de altos funcionérios administrativos de Trump por muitos anos e, de acordo com a investigacao do Post, hd muito tempo que serve como uma espécie de local de encontro informal para os membros do governe que so da extrema direita. Os ataques de liberdade de expresséo de Horowitz as universidades carecem de legitimidade, Dadas as protegées + formais da liberdade académica, as universidades dos Esta- dos Unidos abrigam o territ6rio de expressio mais livre de qualquer local de trabalho@@ERiUS@is(aeNeaBaKe|pENEaSS nos Estados Unidos, a liberdade de expressao ¢ uma fantasia, Os trabalhadores sao frequentemente submetidos a acordos 52 Como FUNCIONA 0 FASCIEMO de confidencialidade, o que os proibe de falar sobre diversos assuntos. Na maioria dos locais de trabalho, os funcionérios podem ser demitidos por discursos politicos nas midias sociais. Atacar os tinicos locais de trabalho num pais que oferecem, proteses genuinas de liberdade de expresso usando 0 ideal da liberdade de expressio € outro exemplo da familiar natureza orwelliana da propaganda politica. Em janeiro de 2017, Rick Brattin, representante do estado do Missouri, emendou um projeto de lei que ele havia apresen- tado anteriormente a legislatura estadual para proibir a con- tratacio permanente de professores em todas as universidades piiblicas do Missouri, Depois de chamé-la de “antiamericana” em entrevista a0 The Chronicle of Higher Education, Brattin acrescentou: “Algo esti errado, algo se quebrou. Um professor encarregado de educar nossos filhos deveria se concentrar em fazer com que cles construam um futuro melhor, mas, em vex disso, eles se envolvem em assuntos politicos nos quais {ado deveriam estar envolyidos) Como tém estabilidade, eles se sentem autorizados a essa conduta. Mas isso est errado”? Quando perguntaram a Brattin se ele estava preocupado com © fato de que o fim da contratagdo permanente prejudicaria a liberdade académica e levaria os professores a perder seus empregos por razoes politicas, ele respondeu perguntando em, que outras profissdes as pessoas tém essa liberdade e por que mundo académico deveria ser um caso especial. O trabalho que os pesquisadores produzem pode ter implicagées politi- cas, dependendo do campo. Ataques da direita deixam claro 0 desejo dessa mesma direita de @GiEROIaE iilias GenveStRAESO Aaceitaveis. No clissico estilo da propaganda demagégica, atatica deatacar instituigées que defendem a razao puiblica eo debate aberto ocorre sob o manto desses mesmos ideai ANT-INTELECTUALISMO 53 Dentro das universidades, os politicos fascistas visam professo- res que consideram demasiadamente politizados, geralmente demasiado marxistas, ¢ @CHUNGIMreastinteirasdeyestudo, Quando movimentos fascistas esto em curso em estados democriticos liberais, certas disciplinas académicas recebem ASLGUE) Os SMAOSIEEBED, por exemplo, sio criticados por movimentos nacionalistas de extrema direita em todo 0 mundo, Os professores dessas éreas sdo acusados de desres- peitarem as tradigdes da nagio. Sempre que o fascismo ameaca, seus representantes e facilitadores denunciam as universidades ¢escolas como fontes de “doutrinacao marxista”, o bicho-papao classico da politica iascista. Usada normalmente sem qualquer conexao com Marx ‘Ou com 0 MIaERISIIO) a expresso é empregada na politica fas- cista como uma @iiaiieina Geldifaimanaligualdad®) Ff, por isso que as universidades que buscam dar algum espago intelectual as perspectivas marginalizadas, ainda que pequeno, estao sujeitas 4 dentincia de focos de “marxismo”. O fascismo con- siste na perspectiva dominante, ¢, assim, GRAB MOMENOS fascistas, hd um forte apoio no sentido de que se denunciem disciplinas que ensinam perspectivas diferentes das dominan- tes, como estudos de género ou, nos Estados Unidos, estudos afro-americanos ou estudos do Oriente Médio. A perspectiva dominante ¢ eiuitasvezesdeturpada, sendo 4presentada como averdade, a “historia real”, e qualquer tentativa de permitir “um espago para perspectivasalternativas €ridicularizada como “marxismo cultural”. ‘Aoposicio fascista aosestGOsUe Bene, cm particular, WWelnlde sua ideologia patriareal)O nacional-socialismo tinha ‘como alvo movimentos feministas ¢ 0 feminismo em geral. 54 COMO FUNCIONA 0 FAscIsMo Para os nazistas, 0 feminismo era uma conspiragio judaica para destruir a fertilidade entre as mulheres arianas. Charu Gupta resume bem a atitude nazista em relagao aos movi- mentos feministas: [Os nazistas] acreditavam que 0 movimento das mulheres fazia parte de uma conspiragio judaica internacional para subverter a familia alema e, as- sim, destruir a raga alema. O movimento, alegavam, encorajava as mulheres a afirmar sua independéncia econdmica ¢ a negligenciar sua tarefa de produzir filhos. Difundia as doutrinas femininas de pacifismo, democracia e “materialismo”, Ao incentivar a con- tracepeao ¢ 0 aborto para diminuir o indice de nata- lidade, atacava a prépria existéncia do povo alemio Nos ataques fascistas as universidades, as universidades desempenham 0 papel da “conspirasao judaica” vista pelos nazistas por trés do movimento das mulheres. ASHER des subvertem a masculinidade e minama familia tradicional, apoiando estudos de genero, ‘Na Réssia, Viadimi Pubiaipartiu para a ofensiva sobre essa questdo, reorientandoas universidades para funcionarem como armas ideol6gicas dirigidas contra os supostos excessos ocidentais do feminismo. Em seu livro de 2017, The Future 1s History: How Totalitarianism Reclaimed Russia (O futuro € historia: como o totalitarismo recuperou a Rtissia), a jor- nalista Masha Gessen conta como o programa universitario antifeminista e antigay da Réssia emergiu de uma conferéncia de 1997 em Praga, chamada Congreso Mundial das Familias, organizada por Allan Carlson, um historiador americano do “ultraconservador Hillsdale College, em Michigan”. epee leat eae tet A conferéncia teve um grande niimero de comparecentes. Gessen escreve: “Inspirados pelo enorme comparecimento, 0s organizadores transformaram o Congreso Mundial das Familias numa organizagao permanente dedicada a luta con- tra os direitos dos homossexuais, contra 0 direito ao aborto e contra estudos de género”. Como um exemplo de politicas inspiradas na conferén- cia, 0 governo russo persegui a Universidade Europeia de Sao Petersburgo por suas inclinagées iberais, Durante anos as autoridades russas tentaram feché-a e finalmente consegui- ram em 2016, quando sua licenga como instituicao de ensino. foi suspensa, De acordo com a universidade, “as inspeges foram instigadas por uma queixa oficial de Vitaly Milonov”, membro do parlamento russo do Partido Réssia Unida, de Viadimir Putin, responsdvel por algumas leis antigays extre- mas da Russia. Milonoy expressou preocupacao como ensino. de estudos de género na universidade. “Pessoalmenie, acho nojento. So estudos falsos, e pode ser ilegal”, disse Milonov a Christian Science Monitor Na Huungria ¢ na Polonia, os es tudos de genero também tém sido um ponto de controvérsia politica, atraindo a ira de lideres politicos que procuram pintar as universidades como bastides da doutrinagao liberal. Como Andrea Peté relataem seu estudo “Report from the Trenches: Debate Around Teaching Gender Studies in Hungary” (Rela- t6rio das trincheiras: Debate em torno do ensino de estudos de género na Hungria], o subsecretério do Ministério Huingaro de Recursos Humanos, Bence Rétvari, comparou os estudos de género ao marxismo-leninismo (novamente, o bicho-papao de “a dos we ne fascistas) 56 Como FUNCIONA 0 FASCISMO Junto com o governador republicano, Pat McCrory, eles foram atrés da ilustre instituigio Universidade da Carolina do Norte. Um __ recém-nomeado Conselho de Regentes da universidac RA a TR oO governador McCrory disse numa entrevista que as universi- ades publicas nao deveriam ministrar cursos de “estudos de sgénero ou suafle” (0 suafle é uma lingua africana falada por 140 milhoes de pessoas como primeira ou segunda lingua). McCrory acrescentou: “Se vocé quiser fazer estudos de género, tudo bem, vé para uma escola particular e faca”. Alguns argumentardo que uma universidade deve ter representantes de todas as posigdes e que mudangas como as efetuadas na Carolina do Norte apenas abrem espago para perspectivas opostas. Esses argumentos baseiam-se no fato 3). Qualquer um que tenha ensinado filosofia sabe que muitas vezes ¢ titi confrontar defesas convincentes de posigbes opostas, eas universidades inquestionavelmente se beneficiam, de proponentes de posigdes inteligentes e sofisticadas a0 longo do espectro politico, No entanto, o principio geral nestes casos no €, apés reflexio, particularmente plausivel. Ninguém acha que a liberdade de investigago exija a inclusio, nas faculdades universitarias, de pesquisadores que busquem demonstrar que a Terra é plana. Tal posigao é in- frutifera, conforme determinamos por meio de investigagéo cientifica conclusiva. Mesmo 0 mais convicto defensor da liberdade de expresso nfo afirma que devemos gastar preciosos recursos universitérios nessa questo. Adicionar ANTINTELECTUALISMO 57 alguém que diz. que a Terra é plana impediria a investigagio objetiva. Da mesma forma, posso rejeitar a ideologia do Estado Islimiico de maneira segura e justificada sem ter de confrontar seus defensores na sala de aula ou na sala dos professores. Nao preciso ter um colega que defendea visio de que o povo judeu é geneticamente predisposto ganancia para, justificadamente, rejeitar esse absurdo antissemita, Nem é remotamente plausi- vel que a inclusio dessas vozes ao corpo docente da faculdade fosse ajudar a argumentar contra essas ideologias toxicas. O mais provavel 6 que isso prejudicasse o debate inteligente, evando a falhas de comunicagao e discusses aos gritos. A politica fascista, no entanto, abre espago para o estudo G65 mites como um fato, Ne ideologia fascista, «afungaiondo, sistema educacional é glorificar o passado mitico, elevandoas conquistas dos membros da nagao ¢ obscurecendo as perspec tivas e as histérias daqueles que Ihe sdo estranhos, Num pro- ‘cesso as vezes chamado tendenciosamente de “descolonizacao” do curriculo, as perspectivas historicamente negligenciadas. ‘40 incorporadas, garantindo, assim, que os alunos tenham uma visio completa dos atores da historia. Na luta contra o fascismo, ajustar 0 curriculo dessa maneiza.nao émera questo de fazer 0 queé“politicamente correto™ Representarasvores de todos aqueles cuja existéncia moldou ¢ formou o mundo, ‘em que vivemos proporciona um meio essencial de protecio contra 0 mito fascista. Na ideologia fascista, 0 objetivo da educacio geral nas escolase » uftiversidades €incutirorgulho do passado mitico, A educacio fascista exalta disciplinas académicas que reforgam as normas hierérquicas ea tradicao nacional. Para os fascistas, as escolas 58 Como FUNCIONA 0 FAscIs§o ~ ¢ universidades existem para doutrinar o orgulho nacional ‘ou racial, transmitindo, por exemplo (onde o nacionalismo é racializado), as gloriosas conquistas da raga dominante. O governador McCrory nao parou com a sugestio de que alguns cursos deveriam ser removidos do curriculo pi- blico. Ele também pediu a universidade que se concentrasse mais no tipo de educag4o baseada em habilidades, de que os empregadores supostamente precisam, em detrimento de as- suntos como sociologia, que ajuda os estudantes a se tornarem melhores cidaddos democriticos. Ele foi apoiado pelo Pope Center for Higher Education Policy, administrado e fundado por Art Pope, riquissimo e poderoso doador republicano da Carolina do Norte, que instou com sucesso a Universidade da Carolina do Nortea aumentar suas mensalidades (GOMOROBS teconhece incisivamente, essa medida afastaré mais estudantes is ciéncias humanas € sociais, aproximando-os dos cursos “superiores que Ihes dardo “habilidades de neg6cios”. Ao mesmo tempo em que denigre;temas(detensiionguel permititiamumamaior compzeensio da diversidade cultural ‘humanayPope Center for Higher Education Policy (agora conhecido como The James G. Martin Center for Academic ~_ Renewal) incentiva 0. ensino de um curriculo de “Grandes ___ livros”, que enfatiza as realizagdes culturais dos europeus Drancos.” As prioridades aqui fazem sentido quando se per- cebe que nos sistemas antidemocraticos a fungao da educacao €pisduzincidadaosobedicntes estruturalmenteobrigados’™ entrar na forca de trabalho sem poder de barganha, e ideo- - logicamente treinados para pensar que o grupo dominante representa as maiores forcas civilizat6rias da historia, Figuras conservadoras d@ipejamrenormes quantiasmo projeto eprom movenos objetivos dedireitanareducagao, Por exemplo, em 2017, a Charles Koch Foundation, apenas uma das fundacoes ANTE-INTELECTUALISMO 59 conservadoras dos Estados Unidos fundada por oligarcas de — dircita, gastou 100 milhées de délares para apoiar projetos amplamente dedicados a ideologia conservadora em cerca de 350 faculdades e universidades, segundo algumas fontes,* Na ideologia fascista, os produtos da vida intelectual que cla sustenta ~ cultura, civilizagao e arte - so somente produgées de membros da nagio escolhida. Quando as uni versidades restringem as disciplinas obrigat6rias aos critérios culturais europeus, partilhada necessaria numa democracia liberal saudavel. Aqueles > que se beneficiam das desigualdades sio frequentemente sobte- G@mregados por.certas.ilusoesique 0s impeciem de réconhece®) a eontingéncia de seus privilésios) Quando as desigualdades se iptensificam, essas ilusbes tendem a entrar em metdstase. Que ditador, rei ou imperador nao suspeitou ter sido escolhido pelos deuses para a sua funga0? Que poder colonial nao alimentow ilusdes de superioridade étnica, ov a superioridade de sua reli sido, cultura e modo de vida, superioridade que supostamente 82 Como FuNctona 0 FascisMo justifica suas expansdes e conquistas imperiais? No Sul norte- - -americano de antes da Guerra Civil, os brancos acreditavam. | queaescraviddo era uma grande ddiva para aqueles que eram escravizados. O duro tratamento dispensado pelos senhores de engenho sulistas as pessoas escravizadas que tentavam fugir ou se rebelar se devia em grande parte a convicgéo de que tal comportamento revelava falta de gratidao. A extrema desigualdade econémica € t6xica para a __ democracia liberal porque gera ilusdes que mascaram a reali- -_ dade, minando a possibilidade de deliberagao conjunta para ‘(resolver as divisdes da sociedade. Aqueles que se beneficiam de grandes desigualdades tendem a acreditar que conquistaram ‘seu privilégio, uma ilusio que os impede de ver a realidade © omo ela & Mesmo aqueles que comprovadamente nao se - -beneficiam das hierarquias podem ser levados a acreditar ue sims dai o uso do racismo para enredar cidadaos brancos pobres nos Estados Unidos, apoiando cortes de impostos para brancos extravagantemente ricos que por acaso tém a mesma cor de pele que eles. Igualdade liberal significa que aqueles com diferentes niveis de poder e riqueza so considerados como tendo o mesmo valor. A igualdade liberal é, por definicéo, destinada a “ser compativel com a desigualdade econdmica. [, no entanto, quando a desigualdade econdmica é suficientemente extrema, 0s mitos que sao necessarios para sustenté-la também amea- sam a igualdade liberal, Os mitos que surgem sob condigdes de dramitica desigualdade material legitimam o ato de ignorar o arbitro ‘comum apropriado para fins de discurso pablico — ou seja, 0 mundo. Para destruir completamente a realidade, a politica fascista sub stitui.oideal liberal de igualdade-pelo seu» oposto; hierarquia. Taaeatinane 83 HIERARQUIA Os destinos dos seres humanos nao sio iguais. Os homens sao différentes! por Seu) estado de) sauce) suariquezaystatussocialresquertais9 mais simples observa¢ao mostra que, quando existem contrastes acentuados entre o destino ou a situagdo de duas pessoas, seja quanto a satide, a situacdo econémica, social ou outra qualque@(GGUCERUCSERCORG. sifaagaolimaislfavoravel) por mais patente que seja a origem puramente “casual” da diferenca, GB necessidade incessante de considerar como “legiti- m0” 0 coniraste que o privilegic, a situagao propria como “merecida”, € a do outro como resultado de alguma “culpa” dele. Max Weber, Economia e sociedade (1967) tem sido em geral de expansao, abrangendo gradualmente pessoas de todas as racas, religides e géneros, para citar alguns exemplos. Isso também é verdade na filosofia politica, Influenciados, por exemplo, por tedricos da deficiéncia, os fildsofos expandiram a nogao de dignidade humana para in- __ cluir aqueles que nao podem, na maioria das circunstancias, empregar sua capacidade de julgamento politico. NOJSEEHIO XxTjaeitiaioriaydos pensadores liberais adotow umygeneroso reconhecimento do status eda dignidade humana universal .a fim de abarcar a capacidade de sentir 0 sofrimento fisico, sentir ‘ano goes eexpressaridentidadee empatia le diversas maneiras, Deacordo com a ideologia fascista, erm contrapartida, a natureza impoe hierarquias de poder e dominancia que con- trariam categoricamente a igualdade de ‘respeito pressuposta peia teoria democratica liberal. A bierarquia ¢ uma especie de ilusao em massa, pron- tamente explorada pels politica fascista. Uma vertente im- ou da cidadania liberal — de igualdade perante alei— 4 _ __ Portante da psteologia'socialyaliesFiajelalDOminanicia SOC, langadaiporyim Sidanius ¢ Felicia Pratto, estuda essas ilusoes sob o nome deSfiitOSdAegitiMagAD.’ Os trechos de abertura de uum levantamento bibliogratfico feito em 2006 dos tiltimos quinze anos da Teoria da Dominancia Social incluem a se- guinte afirmagao: Independentemente da forma de governo de uma sociedade, do contetido de seu sistema de crenca fundamental ou da complexidade de suas disposiges sociais ¢ econdmicas, as sociedades humanas tendem a se organizar como hierarquias sociais baseadas em grupos em que pelo menos um grupo goza de maior status social e poder do que outros grupos.? ‘Hierarquia 85 A ideologia fascista, entdo, aproveita A@@BdeneM nana. de organizar a sociedade hierarquicamente, ¢ 0s politi¢os. fascistas tepresentam os mitos que-legitimam. suas-hier quias como fatos imutiveis, Sua justificativa principal p: ierarquia €a propria naturezayP ara o fascista(@)pHneipio day igualdadetsumamegapaoualleimatural, que estabelece certas tradicoes, das mais poderosas, sobre outrassiNEU Nata SES postamente coloca homens sre em nagio escolhida do fascista acima de outros grupos. ‘Anatureza 6 repetidamente invocada na escrita fascista,_ Em 21 de margo deG6iy Alkander Hl Stephens, vice-pre- sidente da Confederacao, proferiu: um discurso que passou ser conhecido como “Cornerstone Speech”, ou Discurso da Pedra Angular @N@G)@S\pinelpios|dellibaraade eigualda consagrados na Constituigao dos EUA sto denunciados coma! violagdes das leis da natureza: Nosso novo governo é fundado exatamente na ideia oposta [a ideia de igualdade|; seus alicerces estio postos, sua pedra angular repousa sobre a grande verdade de que o negro nao € igual ao brancos que a subordinagao da escravicao a raga superior é@ con- digdo natural e normal.’ © Discurso da Pedra Angular evidencia a logica carac- teristicamente fascista de quegossprineipiossdemocriticos liberais estado em conflito com a natureza e devem, portanto;’ sefabandonados; Recordo-me de uma ver.ter ouvido um cavalheiro de um dos estados do Norte, de grande poder e habili- dade, anunciar na Camara dos Representantes, com 86 Como FUNCIONA 0 FASCISMO imponéncia, que nés do Sul serfamos obrigados, no final, a ceder nesse assunto de escravidio; que era tao impossivel combater um principio na politica quanto na fisica ou na mecinica. Que o principio acabaria por prevalecer. Que ns, mantendo a escravidao como ela existe aqui, estavamos Iutando contra um principio, uitiprineipiolfanelaim endo nA AaTe, prificipi6 da igualdade dos homens. A resposta que dei a ele foi que, com base em suas préprias razdes, deveriamos ter sucesso no final, e que ele e seus asso- ciados, nessa cruzada contra nossas instituigdes, aca- bariam fracassando. A verdade anunciava que era tio impossivel combater um principio na politica quanto na fisica ¢ na mecanica, admiti, mas disse-the que cera ele e aqueles que agiam com ele que estavam em guerra contra um principio. EIS ESVamenEanES igualar coisas que 0 Criador fez desiguais. A Confederacao, declara Stephens, € “fundada sobre principios em estrita conformidade” com as leis da natureza, que so “a verdadeira ‘pedra angular’ de nosso novo edificio”. Stephens denuncia aqueles que negavam a desigualdade da inferioridade racial como “fanaticos” que rejeitam “os prin- ipios cternos da verdade GANCOnfedetagio) como REI Ge “Hitler, foi construfda para defender “o princ{pio aristocratico da natureza”, o principio da hierarquia racial. Na universidade, hd vozes poderosas que clamam or um “discurso racional” sobre diferengas genéticas entre racas em aspectos como inteligéncia ou propensio a violencia, ¢ nelas encontramos um claro eco da condenacao feita por Stephens aos abolicionistas, chamando-os de “fandticos” irracionais por sua firme crenga na igualdade racial, Em seu Hierarquia 87 artigo de marco de 2018 para o The Guardian, “The Unwel- come Revival of Race Science” (@jressurgimentosindeseiado ras como o Gighitista politico (Chasles Se Har @relSt@ven Pinker. De acordo com Evans, em 2005, Pinker comegoua popularizar a visio de que “os judeus asquenazes sto particularmente inteligentes por natureza”, uma visio que_ Evans descreve como “o rosto sorridente da ciéncia racial”; a alegacdo de que os judeus asquenazes sao particularmente inteligentes por natureza convida o leitor a tirar conclusdes sobre outros grupos e sua “inteligéncia inata”. Numa matéria_ de 2007 para o site The age, Pinker denuncia que 0 “politi« camente correto” impediv que os pesquisadores estudassem ““(deias perigosas”, entre clas: “As mulheres, de modo geraly tém um perfil de aptiddes e emogoes diferente dos homens?” “Qs judeus asquenazes, de modo geral, so mais inteligentes que 0s gentios porque seus ancestrais foram selecionados pela perspicécia necessaria em empréstimos de dinheiro?”, e: “O homensafro-americanos, de modo geral, tém nfveis mais altos de testosterona do que os homens brancos?” Aspreocupagio. comesse tipo de escrita € que ela apresenta aqueles que buscam uma fonte natural para a desigualdade como coraj cadores da verdade, motivados pela razao a rejeitar 0 p deigualdadeteiropelojoragan. Fssa pesquisa provou ser, melhor das hipoteses, suspeita. E, no entanto, a busca pela fonte natural da desigualdade apontada por Stephens come ‘endo um fato de alguma forma continua, semelhante abuse pelo Santo Graal. Os fascistas argumentam que hierarquias naturaisid valor existem de fato e que sua existéncia destaz a obrig de consideraras pessoas iguais. Vé-se uma avaliacao desse ti 88. CoMo FUNCIONA 0 FascisMo nas palavras de muitos partidérios brancos de Donald Trump nas eleigdes presidenciais de 2016, que viviam falando de seu desprezo pelos beneficidrios supostamente “nao merecedores” da generosidade do governo dos EUA na forma de cuidados de satide, referindo se, geralmente, a seus concidadaos negros. Em sua corrida para a presidéncia, Trump explorou a longa historia de se classificar os americanos numa hierarquia de valor por raga, os “merecedores” versus os “nao merecedores”. Quando pressionados por jornalistas a justificar a distingao entre GISHBCEdBTES Wiha Merecedores, 05 americanos que __usam esse vocabulario conseguem explicaradiferencaemster, msde trabalhadores” versus'‘preguigosos”, nao de distincao racial, Mas sso dificilmente juslifica a divisio dos concidadaos em tais categorias. RiEiGiFOPNOS EStIAGS|URIGOSORACISIAD -muitas vezes assumiu a forma de associar a negritude com a @Breghiga, Bssa linguagem sempre foi um cédigo para. divisio _porhierarquia racial. Em segundo lugar, revel OHSAS NODES jente merecedores dos bens bisicos da sociedade. ___Alguns argumentariam pela existéncia de diferengas ~ inerentes entre grupos de pessoas em termos de inteligéncia ¢ _ autocontrole, e ainda afirmam valorizar dignidade igual para _ todos. No entanto, a hist6ria nos dé exemplos contundentes da ificuldade de acredlitar em diferengas sistemsticas de grupos _ Seu ensaio de 1920, “Of the Ruling of Men” [Do dominio dos ~ homens}, W.E.B. Du Bois escreve sobre o fracasso em dar as _ thulheres voz igual nas decisoes da politica: Hirnarquia 89 |...) as mulheres foram excluidas da democracia smoderna;por.causa-dapersistente teoriada-sujeicio feminina e porque se argumentou que seus maridos, ‘ou-outros-homens-olhayam-por-seus-interesses. ‘Agora, manifestamente, ammatoris COs mardos, pais ¢ irmaos, na medida em que sabem como ou per- cebem as necessidades das mulheres, cuidaré delas [..] Basta ver as relagGes insatisfat6rias dos sexos em todo 0 mundo eo problema das criangas para perceber quio desesperadamente precisamos dessa sabedoria exclufda* Tais exemplos sugerem a difieuldateydesmranter tica de igual valor quando existe uma crenga em diferengi sgenéticas de grupos em termos de habilidades cognitivas capacidade decontrolanasprépriasagiessINinguém ¢forsadoy por um confronto com a realidade, a acreditar nesse tipo diferenga hierarquica entre, por exemplo, generos, ou pos raciais ou étnicos, Nao hé evidencia conclusiva para hierarquias, apesar de séculos de tentativas de estabelects ppor decreto religioso ou investigacio cientifca. Aqueles que Jutam arduamente por hierarquias raciais de inteligéncia 0 capacidade de autocontrole, embora neguem qualquer inte: resse em consequéncias morais ou politicas iliberais, tender ase equivocar. < Estabelecer hierarquias de valor é, naturalmente, um meio obter e reter poder - uma espécie de poder que a democra liberal tentaldeslegitimaryNesse ponto, hi criticas aos ide: liberais tanto da esquerda tradicional quanto da direita 90 Como FUNCIONA 0 FascisMo _ tradicional. GritieasJeSqHErRISES do lib ralismo.aponiam seat suposto fracasso em explicar as desigualdades estruturais __ ebist6ricas, na medida em que a prética do liberalismo nao incinisolugSesparainjustipas passadas. Criticos esquerdistas do liberalismo também argumentam que os ideais liberais de igualdade ¢ liberdade podem ser usados para consolidar 0 poder dos grupos dominantes. Por exemplo, pode-se argu- mentar que as formas de remediar injustigas estruturais en- raizadas ~ digamos, programas de aco afirmativa - violam 05 ideais liberais de tratamento igual as pessoas. Criticas 20 - liberalismo da direita tém um teor diferente. QSTGHEIGSR@e __ direita advertem que a igualdade liberal pode ser usada por grupos marginalizados como uma arma para substituir o status " privilegiado de grupos dominantes e suas tradicdes, ‘Tantoa critica de esquerda quanto ade direita ao libera- __fismo concentram-se no fato de que os ideais iberais ignoram _ asdiferengas de poder, Os critics esquerdistas argumentam ¢, ao fazé-10, 05 ideais liberais consolidam as desigualdades preexistentes. Os criticos direitistas argumentam que, ao ig- | Morar as diferencas de poder, o liberalismo torna os grupos - dominantes suscetiveis a ter seu status privilegiado subver- _ tido pelo “compartilhamento de poder” forgado e, portanto; oe Encontramos esta segunda critica ao liberalismo eof pressa explicilamente nos escritos de Hitler, bem como em =O protocotos dos sAbios de Sido. Osprotocolos, lembre-se, é uma falsificacao escrita como tim manual de instrug6es pelos “sibios de Sido”, supostamente | lideres entre os judeus, a outros judeus, para conquistar e do- minar o mundo em nome do povo judeu. Comega instruindo _ Sleitor a “infectar 0 oponente com a ideia de liberdade, 0 _ 48sim chamado liberalismo”. Segundo Os protocols, o libe- alismo enfraquece o “adversério” (aqui, o cristo), fazendo ‘Hirrarquia 91 A liberdade politica 6 uma ideia, mas nao um fato. Oindividuo deve saber aplicar essa ideia sempre que for necessirio, como isca de ideia que atrai as massas a seu partido com 0 propésito de esmagar outro em posicao de autoridade, Essa tarefa ¢ facilitada se 0 adversirio tiver sido infectado com a ideia de liber- dade, O CHAMADO LIBERALISMO, e, por causa de uma ideia, estiver disposto a ceder parte de seu poder. E precisamente aqui que nossa teoria triunfas as rédeas frouxas do governo sio imediatamente, pela lei da vida, apanhadase reunidas por uma nova mao, porque o poder cego da nacao nao tem como existir, ‘um dia sequer, sem orientagao, e a nova autoridade simplesmente ocupa o lugar da velha autoridade j4 enfraquecida pelo liberalism. Na afirmagao “A liberdade politica é uma ideia, mas nao um fato”, os supostos autores de OX BROWSEBIASBcoam o tema do Discurso da Pedra Angular, de Stephens — de: ee ee inne sdnnetecoe isseminagao do mito da “liberdade politica” ou “liberalismo” aos membros dos grupos dominantes. Ao aceitar 0 mito da “liberdade politica”, aqueles que esto no poder concederao igual status aos que no 0 possuem. Mas como “2 lei da vida”, isto é, a natureza, 92 Como FUNCIONA 0 PASCISMO exige que um grupo governe, quando os judeus receberem parte do poder dos cristaos dominantes, eles poderio, entio, tomar todo 0 poder. — —_— Odisseu ere fe ser interpretado de for ma variada— por judeus, por homossexuais, por mugulmanos, por nao brancos, por feministas etc. Qualquer um que espalhe adoutrina da igualdade liberal ou é um ingénuo, “infectado pela idea da liberdade”, ou um inimigo da nagio, que disse- _ mina os ideais do liberalismo com objetivos desonestos e, na verdade, iliberais. (O projeto fascista combina a ansiedade sobre a perda de _ status por parte dos membros da verdadeira “nagio” com 0 medo do reconhecimento igualitério para grupos minoritérios odiados. Para a Ku Klux Klan do século XX, os judeus eram frequentemente vistos como a forga por tras da igualdade racial negra: os judeus procuravam promover a igualdade negra fim de diluir o sangue branco puro e minar nacionalismo ético __atistéo branco. Como o idedlogo navista Alfred Rosenberg es- creveu num comentario de 1923 sobre Os protocolos dos sdbios de Sigo, “todo mundo sabe que os judeus de todos os tipos fingem lutar pela liberdade e pela paz dia ap6s dia; seus discur- $08 transbordam humanitarismo e amor a humanidade, desde ue os interesses judaicos sejam promovidos”.* Na ideologia nazista, os judeus agem com as mesmas visoes hierdrquicas da natureza dos nazistas, mas usam 03 princ{pios universais da democracia liberal como fachada para promové-la, Faz parte da politica fascista classica, como vimos, apresentar 0s, __ verdadeiros defensores da democracia liberal como defensores _ de seus ideais somente para enfraquect-los, Hinrangua 93, populagio é facilmente levada.a um sentimento de humilhacéo ‘membros do grupo dominante, o que leva estes a entr : nacional que pode ser mobilizado pela politica fascsta para ‘Yolumariamente seu poder, No caso da igualdade das me 4 servira varios propésitos. Durante o final do século XIX ¢ Theres, a aceitaciondos.ideais liberais leva. a.destrnicio, da __ inicio do século XX, lmpério Otomano sofieu um tremendo virtuosa sociedade patriarcal, que €a base do mito fascista. O- colapso, perdendo mais ce | milhao de quilometros quadcados movimento America First, de Lindbergh, repudiava os ideais _ deterritério na Africaena Europa, incluindo a Libia, Albania, liberais, considerando que eles provocavam a poluicao do. _ Macedonia, Bosnia, Herzegovina e Creta.O sutanato otoma- “sangue puro” da nacéo branca via imigragio. No caso di _ no foi derrubado em 1908, em 1913 0 impéio foi omado Rissia contempordnea e grande parte da direita crista dos _ _ por ultranacionalista extremistas que pregavam a visio de EUA, a democracia liberal leva & legitimagio da imigracdo um passaco mitico turco de pureza étnica, que foi ameagado 4 suposta introdugdo do estupro em massa pelos imigrante pela presenga de minorias nao turcas, nao mugulmanas (a mitologia aqui é particularmente extrema, pois o bergo da eA aceitacdo da homossexualidade junto com seu supost ig eoldcists eget" _ Turquia moderna no Império Otomano foi BizAncio, um dos Pees impérios cristdos mais poderosos e duradouros do mundo). les foram capazes de explorar a sensagio de humilhagio ¢ fessentimento e perda de territ6rio para provocar, na segunda -década do século XX, um dos crimes mais horriveis da hist6ria: ‘o massacre da populagio crista arménia da Turquia. __Em “Why Trump Now? It's the Empire, Stupid” [Por que Trump agora? E 0 império, idiota], um artigo de junho ie 2016 publicado no periddico The Nation, o historiador | da NYU Greg Grandin argumenta que a politica de Donald “Trump ¢ eficaz no contexto da campanha de 2016 porque _ chega num momento de declinio para o império americano, | Bstamos testemunhando o ocaso da era apés o fim da Guerra na qual os Estados Unidos reinaram soberanos no mun- _ do como a tinica superpoténcia remanescente. No ar tigo, ele __ firma que umimpério dé origem, entre seus cidadaos, a tum feconfortante mito de superioridadey ocultando, assim, os ios problemas sociais e estruturais que, de outro modo, rariamjaidificuldadespoliticas. Com seu fim, os cidadaos _de-um império outrora poderoso precisam encarar o fato de liberdade, espalhando suas ideias como “infeccoes” para’ A hierarquia beneficia a politica fascista também de out rmaneira: aqueles que estdo acostumados com seus beneficios podem ser facilmente levados a ver a igualdade liberal co ‘uma fonte de vitimizagio. Aqueles que se beneficiam da rarquia adotardo um mito sobre sua prépria superioridade que ocultard fatos basicos sobre a realidade social 42K : confiarao de pedidos de tolerancia e inclusdo feitos por li mais, alegendo que esses pedidos so méscaras para a tor de podePaSOUtSSEAUPES. A politica fascista se alimenta t sensagio de vitimizacao ¢ ressentimento causada pela perd do status hierérquico. Impérids em declinio s46 particularmente 2 politica fascista por causa desse sentimento de perda. propria natureza do império criar uma hierarquias 0s imy legitimam seus empreendimentos coloniais por uri i siersuaypropriayexcepcionaliciades Ao longo do declinio; # 94 Como FUNCIONA © RASCISMO Horaroua 95, part as eleigdes presidenciais ~ “a valvula de seguranga do impéria fechou, bloqueada pela guerra catastrdfica no Iraque, somada A crise financeira de 2008 [...] Como Obama chegou ao poder nas ruinas do neoliberalismo ¢ do neoconservadorismo, império nio era mais capaz de dilui as paixdes, satisfazer 05 interesses e unir as divisoes”. Quando a hierarquia imperial entraem colapso.ea reali= dade social é exposta, 0 sentimento hierérquico na metrépole tende a surgir como um mecanismo para preservar a familia € reconfortante ilusdo de superioridade. A politica fascista prospera a partir do sentimento de perda e da vitimizagao resultante da luta cada vez mais ténue e dificil para defendet ce tum senso de superiridade cultura, mica, religiosa, de genezo ou nacional. SS Sige ieee ete 6 VITIMIZACAO I: politica fascista, as nodes diametralmente opostas de igualdade ¢ discriminagao misturam-se uma com a outra, A Lei dos Direitos Civis de 1866 transformou 05 recém-emancipados afro-americanos do Sul em cidadaos americanos e protegeu seus direitos civis. Foi aprovada pelo _ Senado e pela Camara em 14 de marco de 1866. Mais tarde aquele més, 0 presidente Andrew Johnson vetou a Lei dos Di- reitos Civis, alegando que “esta lei estabelece, para a seguranga das racas de cor, salvaguardas que vio infinitamente além de qualquer uma que o governo geral jé tenha providenciado - para a raga branca”. Como observa W.E.B. Du Bois, Johnson considerava salvaguardas minimas que representavam 0 inicio de um caminho na diregio da futura igualdade negra como “discriminagao contra a raca branca”.* i ro (MOSKEANCUEMTAAHGS, A desigualdade econdmica entre ameri- canos negros e brancos esté mais ou menos no ponto em que _ estava durante a ReconstrusiojpaRaeaGaemiislazes-queuma ‘familia bran€a comum acumula, a femilia negra media tem apenas cinco délares; e, no entanto, como Jennifer Richeson, Michael Kraus e Julian Rucker mostraram em seu artigo “Ame rican Misperceive Racial Economic Equality” [Os americanos percebem errado a igualdade econdmica racial], de 2017, os cidadaos americanos brancos ignoram amplamente esse fato, acreditando quea desigualdade racial se reduziu drasticamens fe* Quarenta e cifie6\poricento dos partidériosido presidente Donald Trump acteditam que os brancos so 0 grupo racial ‘mais discriminado nos Fstados Unidos; cinquenta e quatro por cento dos partidarios de Trump acreditam que 0s cristios si0.0 _sfupo religioso mais perseguido nos Estados Unidos. Hit uma diferenca crucial, ¢ aro, entre sentimentos de ressentimento. © opressio e genuina desigualdade e discriminacao. Ha uma longa hist6ria de pesquisas de psicologia soc sobre 0 fato de que a crescente representacao de membros de ‘grupos tradicionalmente minoritarios é yivenciada por grupos dominantes como uma ameaga em varios seniidds.’ Mais re centemente, um conjunto ctescente de evidéncias da psicologia social respalda o fendmeno dos sentimentos de vitimizagéo de> grupos dominantes frente a perspectiva de terem que dividits igualmente o poder com-membros.de-gruposaminoritarios. Recentemente, grande atencao tem sido dada nos Estados. Unidos ao fato de que, por volta de 2050, os Estados Unidos 8 tornardo um pais “majoritariamente minoritério”, 0 que significa que os brancos nao serdo mais a maioria dos ame- ricanos, Valendo-se dessas noticias, alguns psiedlogos socials testaram 0 que acontece quando os americanos brancos sa informados disso, 98 Como FUNCIONA 0 FascisMo 2 Num estudo de 2014, as psicélogas Maureen Craig e Jennifer Richeson descobriram que o simples fato de ressaltar a iminente transformagao nacional para um pais “majorita- riamente minoritério” aumentou significativamente 0 apoio dos americanos brancos sem afiliacio politica as politicas de direita* Por exemplo, ler sobre uma iminente mudanga racial no pats, de uma maioria branca para a maioria nao branca, fez com que 0s americanos brancos se mostrassem menos inclinadosa apoiar ages afirmativas, mais inclinadosa apoiar restrigoes a imigracao ¢, talvez,surpreendentemente, mais pro- pensos.a apoiar politicas conservadoras “racialmente neutras”, como aumentar os gastos com defesa. Sintetizando a pesquisa num artigo de revisdo a ser publicado, Maureen Craig, Julian . Rucker ¢ Jennifer Richeson escrevem: “Este crescenteconjunto de pesquisa encontra evidéncias claras de que os americanos brancos (isto é a maioria racial atual) vivenciam a iminente mudanga para um pais ‘majoritariamente minoritério’ como uma ameaga ao seu status dominante (social, econdmico, politico e cultural)” *fissesentimento deamenca podeserma- nobrado politicamente para servir de apoio aos movimentos Edircita, Rssardialéticg estdlonge de scr exclusivados Bstades Unidos; é; antes, uma caracteristica geral da psicologia de Stupo. A expioracio do sentimento de vitimizagao de grupos dominantes frente & perspectiva de ter que dividir cidadania epoder com sminoritarios é um elemento universal da Politica fascista internacional contemporanea. Diante da discriminagao, grupos historicamente oprimidos SSorganizardm em movimentos que proclamavam OiGUlbo RoWsuashicentidadesaREAEAGSS. Na Europa Ocidental, 0 Poe Ete ee nacionalismo judaico do movimento sionista surgiu como ‘uma resposta ao antissemitismo t6xico. Nos Estados Unidos, © nacionalismo negro surgiu como uma resposta ao racismo t6xico. Em suas origens, esses movimentos nacionalistas fo. ram respostasdopsessio. Asilutastanticolonialistasoconetn Geralmente sob « bandeifa do nacionalismos por exemplo, Mahatma Gandhi empregou 0 nacionalismo indiano como uma ferramenta contra o dominio britinico. ESSGIHpO de nacionalismo = o nacionalismo que surge da opréssio ~ 80 de origem fascist. Essas formas de nacionalismo, em suas formagées originais, sio movimentos nacionalistas orientados para a igualdade, 8 No colonialismo, a nagto imperial apresenta-se comig portadora de ideals tniversais. Por exemplo, 0s colonialistas britanicos no Quénia apresentaram o cristianismo como o ideal universal € as muitas religides tribais locais como primitivas. e selvagens. Em parte uma resposta a essa opressai religiosa, a revolta dos mau-mau contra a Gra-Bretanha valorizou @ tradicional religiao gikuyu—os rebeldes mau-mau fizeram um juramento a Ngai, o deus gikuyu. Alltita Colonialista mateiall usou ideais religiosos nacionalistas para combater o colonia fismo. Mas o objetivo da iniciativa mau-mau nao era lutar pela superioridade das tradicbes religiosas gikuyu em relagio. as tradigdes religiosas britanicas. O objetivo deles era, ante’ lutar pelaigualdade das tradigoes gikuyu contraa demonizacao- britanica, queas consideravam formas de selvageria primitiva, Para tanto, era necessédrio elevar essas tradigdes, considerd-l .sacrossantas ¢ especiais, no como um meio de repudiar © — valor das tradigGes britanicas, mas como meio de enfatizar ‘uma exigencia de igual respeito EG pOMEHACOHALEHO, portanto, nao é, em nenhum sentido, contririo a igualdades verdade, apesar de parecer 0 oposto, a igualdade é seu objet 100 Como FuNciowa 0 Fascasmo O caso é semelhante ao movimento Black Lives Matter Enos Estados Unidos hoje, SBUSetratores Tentainapresentar o - @3logan como a afirmagao nacionalista iliberai de que somente asevidas negtas:siosimportantes» Mas o slogan cificilmente pretende ser um reptidio a0 Valor das vidas brancas nos Es- tados Unidos. Em vez disso (GGA ESANEBTR Gite, nos Estados Unidos, as vidas brancas passaram a importar mais do quejoutrasyidas. O objetivo do lema Black Lives Matter é cha- ‘mar a atengao para uma falha no respeito igualitario. Emmseu context, significa que “as vidas negras também importam’”. No cerne do fascismo esté a lealdade & tribo, a identidade ‘étnica, & religiao, a tradigao ou, em uma palavra, a nagéio. Mas, em acentuado contraste com umasversiiondomacionalismo ‘que tem a igualdade como meta, o nacionalismo fascista ¢ |, iam repiidio ao ideal democratico liberal; € 6 nacionalismo a - éServigo da dominagao, com o objetivo de preservar, manter “ou conquistar uma posigao no topo de uma hierarquia de ‘poder e status. ‘A diferenga entre o nacionalismo motivado pela opressio eo ‘sRCIGHTALiSTHG (Cin pol GalMORAINAEAOTECARA quando se reflete “sobre suas respectivas relacoes eomanioga0 GElgUaldae. Mas ~ essa diferenga pode ser invisivel por dentro, Seja a anguistia que acompanha a perda de status privilegiado semelhante ou ndo ao sentimento de opressao que acompanha a genuina margi- nalizagao, ainda assim € angiistia. Se eu cresci num pais em que minhas festas religiosas eram feriados nacionais, sentiria como marginalizagio que meus filhos crescessem num pais mais igualitario, em que seus feriados e tradig6es religiosas sio apenas um de muitos. Se eu cresci numa sociedade em Vermatzagho 101 que todos os personagens dos filmes que vejo e os programas de televisdo a que assisto se pareciam comigo, sentiria coma marginalizacao ter um protagonista ocasional que néo se pa recesse. Eu comegaria a sentir que minha cultura nao é mai “para mim”, Se cresci vendo homens como heréis e mulheres como objetos passivos que os adoram, sentiria como opr que meu direito de primogenitura fosse roubado por ter qu considerar as mulheres como iguais no local de trabalho 61 no campo de batalha (AGBHREIRIG injustardesE sempre trard sofrimento aqueles que se beneticiaram de't 4njustigasEsse\Sofrimento setasinevitayelmente vivens por alguns como opressi0, A propaganda fascista normalmente apresenta hinos pi gentes diante do sentimento de angistia que acompanba perda do status dominanteskissesentimentolde perday que AUIROPEManiptlado na politics faseise, transformado-em yitimizacao e ressentimento e explorado para justificar for de opressao passaclas, atuais ou novas, Para um homem branco da classe trabalhadora que nao é mais empregado por razéies econdmicas estruturai pedir-Ihe que “verifique seu privilégio”™ pode aumentar a probabilidade de que ele enxergue condigées igualitérias programa da supremacia branca. A politica fascista zom! dessas sinceras exigéncias liberais, A investigagao sobre a de= ‘Sigualdade estrutural exige uma reflexao publica coletiva sob as fortes evidencias que revelam de que forma a raca eo status baseado no género deram aos homens brancos e, em menor * “Check your privilege” no original. (N.E.) 102 Como FUNCIONA o FASCISMO "grav, 3s mulheres brancas graus de iberdade nunca totalmente disponiveis aos cidadaos negros. “Verifique seu privilégio” 6 um chamado para que os brancos reconhegam a realidade social isolada de que gozam diariamente. No entanto, a frase € jogada de volta a esfera ptiblica como hipocrisia por parte das elites liberais, porque a propaganda nacionalista branea ndo detecta racismo contra os cidadaos negros na América de 2017, mas muito contra os brancos. ‘A politica fascista encobre a desigualdade estrutural, ‘fentando inverter, deturpar e subverter o longo e dificil esforco ‘para enfrenté-la, A acao alirmativa, em sua melhor forma, foi -oncebida para reconhecer e lidar com a desigualdade estru- ral. Mas ao apresentar falsamente a ago afirmativa como _, dissociada do mérito individual, alguns de seus detratores dis- torcem a imagem dos defensores da acao afirmativa, dizendo ‘que eles perseguem seu proprio “nacionalismo” com base em aca ou género, em detzimento dos americanos brancos traba- Ihadores, independentemente de evidéncias. Avexperieneiaide perder uma dignidade outrora inquestionavel eestabelecida—a dignidade que advém de ser branco, nao negro ~é facilmente “capturada por uma linguagem de vitimizagdo branea, ‘© Men’s Rights Activist Movement (MRA) [Movimento Ativista dos Direitos dos Homens] nos Estados Unidos na década de 1990 cristalizou a vivencia da perda de privilégio como vitimizagao. Em seu livro de 2013, Angry White Men: American Masculinity at the End of an Era (Homens brancos raivosos: A masculinidade americana no fim de uma era), 0 socidlogo Michael Kimmel, de Stony Brook, escreve: Quando os homens brancos sio descritos como os . opressores, os brancos comuns de classe média nao a costumam sentir todo aquele poder indo para eles Virmazacko 103. (...] Para os MRAs, as verdadeiras vitimas da socie- dade americana séo homens, e, entao, eles construt- ram organizagoes em torno da ansiedade e da raiva dos homens em relacao ao feminismo, grupos como © Coalition for Free Men [Coalizao para Homens Livres], 0 National Congress for Men (Congresso Nacional para Homens}, 0 Men Achieving Liberty and Equality (MALE) [Homens que Alcangam Liber- dade e Igualdade] e 0 Men’s Rights Inc, (MR, Inc.) [Direitos dos Homens]. Esses grupos proclamam. seu compromisso com a igualdade e com o fim do sexismo~e foi por isso que se viram obrigadosa lutar contra 0 feminismo.* Kimmel observa “uma caracteristica curiosa nessas no vas legides de homens brancos raivosos: embora os homens brancos ainda tenham a maior parte do poder ¢ do controle _ do mundo, esses homens brancos em particular se sentem vitimas”, Ele relaciona esse sentimento de vitimiizagao & pe petuagao de um mitico passado patriarcal: 104 Essas ideias também refletem um anseio um tanto nostilgico pelo mundo pasado, quando os homens acreditavam que poderiam simplesmente tomar seu lugar na elite da nagao trabalhando duro e se esforcando. Infelizmente, tal mundo nunca existiuy as elites econémicas sempre conseguiram se repro- duzir apesar dos ideais de uma meritocracia. Mas, isso nao impediu os homens de acreditarem nisso. E osonho americano. E quando os homens fracassem, so humilhados, sem ter para onde dirigir sua raiva’ Como Functions 0 rascisMo __ ‘Adivulgagao de um passado hier’rquico mitico funciona para -_criar expectativas irracionais. Quando essas expectativas ndo © sdo satisfeitas, o que se sente € vitimizagao.* Aqueles que empregam €éticas fascistaeaproveilimiue- liberadamente essa emogao, produzindo um sentimento de itimizagao ¢ ressentimento na populacio, direcionando-o a | um grupo que nao é responsavel por ele e prometendo aliviar Se {Sentimiento|contalpENiGAO|AESSEIGFUPOFim seu livro Down Girl, Kate Manne ilustra isso fazendo uma distingao entre o patriarcado ea misoginia((Pathiareadoydeaeordo CORD ~ Manne, ¢ a ideologia hierarquica que engendra as expectativas irracionais de alto status. A misoginia é 0 que enfrentam as ~ mulheres, que so culpadas quando as expectativas patriarcais josaoGumpridas. A légica cla politica fascista tem um modelo +incisivo na légica da misoginia de Manne. O Breitbart News é um poderoso meio de comunicaca0 _ @OMe=americanowerextremalireita, repleto de propaganda anti-imigragao, apresentando refugiados como ameacas & ~ satide puiblica, ameacas a civilizasao e ameacas lei ea ordem. Em tais meios de comunicagao, encontramos uma expresso dara da maneira com que o sentimento de vitimizacao das maiorias dominantes pode ser utilizado como arma para po- tencial ganho politico. O Breitbart publicou dezenas de artigos com manchetes relacionadlas a refugiados somalis nos Estados Unidos, incluindo alguns com titulos como “296 refugiados _ diagnosticados com tuberculose ativa em Minnesota, dez vezes _ mais que em qualquer outro estado” e “Somalis: Os menos __educados dos refugiados chegam aos EUA no ano fiscal de 2017”. © Breitbart era apenas uma parte de uma onda de jum video com trés milhées de visualizagées desde que foi postado em abril de 2015, Ann Corcoran, do grupo anti-imigracao de Virimizacko 105 extrema direita Refugee Resettlement Watch fala deuinipl de “colonizacao muculmana” dos Estados Unidos, auxil por organizagées internacionais como as Nagées Uni agéncias federais como o Departamento de Estado dos EUA “grupos cristaos e judaicos designados para semeé-los em t © pais”. Bsses canais espalham um senso de paranoia's existéncia, entre nds, de uma “quinta-coluna” de grup. rais” usando 0 vocabulétio dos direitos humanos para n qSuadigGesidamaGio.)Mas, ao fazé-lo, eles no s6 minam: ideais liberais, mas também sugerem que seus alvos devem, submetidos a um intenso escrutinio ou punicao apenas base no fato de que o grupo dominante se sente temerosc Entender a dinamica do poder numa sociedade é crucia avaliaras alegagbes de vitimizagao/0 nacionalismo ori ara a igualdade pode rapidamente tornar-se opressivo, se restarmos atengdo suficiente as mudangas de poder. sentimentos nacionalistas problemsticos surgem de hist6 perfeitamente genuinas de opressio. Os sérvios foram in tionavelmente oprimidos no passado. E nao € preciso volt Batalha de Kosovo em 1389, da qual os sérvios extraem mut raivae sentimentos de identidade nacional, para enfrentar opressao; basta a Segunda Guerra Mundial, quando os sér¥ foram assassinados em massa em campos de concentragao, sérvios contemporaneos vém de familias capazes de abs sum legado de perseguigao. Nacionalistas sérvios usaram pano de fundo para justificar a perseguicdo de populayd mugulmanas locais menos poderosas e mais marginalizad Fm 1986, a Academia Sérvia de Artes e Ciéncias publi¢ um memorando geralmente considerado como tendo servi 106 Como muNCIONA 0 FAscIsMo base para os principios do nacionalismo sérvio toxico que “jevou a tanto derremamento de sangue na ex-Tugoslévia. documento serve como um guia wtil para a ligagdo entre “itimizacéo e sentimento nacionalista opressivo. Na época, © amaioria dos moradores da provincia de Kosovo — de etnia nesa ~ solicitava maior autonomia, Os autores do docu- = mento descrevem o tratamento albanés em relacdo as etnias sérvias em Kosovo como um “genocidio fisico, politico, legal ‘ccultural da populagio sérvia”. Fles declaram: “Nenhuma ira nacdo iugoslava teve sua integridade cultural e espiritual 10 brutalmente esmagada quanto a nagdo sérvia. Nenhuma “outra heranga literdria e artistica foi to saqueada e devastada quanto a heranga sérvia”, Eles filam de uma “permanente _discriminagao econémica” contraa Sérviaede uma “sujeso = seconémica” inflexivel. Eles declaram que a “politica punitiva sm relagao a essa reptiblica nao perdeu forga com o passar do po. Pelo contrério, encorajada por seu proprio sucesso, ymou-se cada vez mais poderosa, ao ponto do genocidio”. © documento usa uma narrativa dramaticamente exagerada = da vitimizacao sérvia para solicitar um novo compromisso n relagao & defesa dos sérvios, assim como da historia e da “ultura da Sérvia. Slobodan MiloSevié foi presidente da Sérvia de 1989 a _ 1997. Em 28 de junho de 1989, Milosevié fez. um discurso para = uma vasta multidao reunida no campo de batalha da Batalha de Kosovo, na celebragdo de seus seiscentos anos, Milosevié “atribuiu a derrota sérvia nas maos dos otomanos na Batalha > de Kosovo, bem como “o destino que a Sérvia teve de enfren- far durante seis séculos”, a falta de unidade sérvia ~ isto 6, Um fracasso do espirito nacionalista sérvio. No discurso de Milosevié, ele disse que 0 fracasso dos sérvios em termos de ‘gulho nacionalista levou, ao longo dos séculos, a “humilha- Virmazagao 107 40” e “agonia” que vao além do custo do reinado fasci terror, durante o qual centenas de milhar mortos, Segundo Milosevié, a inica maneira de acabar con, jomalismoyestémovcermencionfascismo, O lider fascista séculos de horror era abragar a unidade nacional — em ours um sentimento de vitimizagao coletiva para criar palavras, um programa nacionalista sérvio, ANGE ynogao de identidade de grupo que € por stia natureza, timizacao sérvia levou-o a vit6ria polftica, Justificow tani sto ao ethos cosmopolita e ao ittdividualisiits dal GERnOGEY- uitiaiSérie-de guerras brutais, thcluindo a de Kosovo, apd “dali. A identidade do grupo pode se basear em diversos quais Milosevié foi acusado de genocidio e crimes cor Jementos~na cor da pele, na religido, na tradigao, ma origem, humanidade pelo Tribunal Penal Internacional, por coy ica. Mas € sempre contrastado com um “outro”, contra das agdes realizadas contra a populagao albanesa de Ko iil a nagdo se define. O nacionalismo fascista cria um ‘Nao hi diivida de que os sérvios foram, no passado, oprintide es “eles” perigoso, consra o qual devemos nos proteger, as vezes, Por diversas forcas. Pouco importava que muitos dos grupe -gombater, controlar, a fim de restaurar a dignidade do grupo. que Milosevié visava néo fossem realmente responsaveis ~— @nmagdeoutubrode2017. 0 primeiro-ministro hin- qualquer opressio dos sérvios (AlRistOria Feciite da Sena 10,Miktor, Orbén, fez um discurso no International Con- influéncia de nacionalistas demagégicos mostra como un “sultation on Christian Persecution (Conselho Internacional historia de opresséo passada pode ser manipulada na politica? bre Perseguigao Crista] em Budapeste. Fle comega falando fascista para a mobilizagao militar contra inimigos fantastn da perseguicdo “indubitavelmente injusta” aos cristios na A vitimizagio é uma emogio avassaladora que tam Europa, por ele classificada como “discriminatéria” e “do- ‘oculta.a contradicio entréMOvimentos Hacionalistas mov Jorosa”. Depois de exaltar o papel tradicional da Hungria pela igualdade e movimentos nacionalistas movidos pels do- © como defensora da Europa cristi, ele declaragHOje Retin ato MiNAGAGYQuando grupos no poder usam a mascara do nac ue o cristianismo é a religiao mais perseguida do mundo”, nalismo dos oprimidlos, ou da opressio genufna no passado, | 6 que, segundo ele, coloca em risco 0 “futuro do modo de ata promover sua prépria hegemonia, cles a estdo usando "vida europeu e de nossa identidade”. De acordo com ele, “o solapar a igualdade, Quando a direita israelense usa a inques- maior perigo que nés [europeus] enfrentamos hoje em dia € tiondvel historia da opressao judaica para afirmar 0 dominio o silencio indiferente e apético de uma Europa que nega suas, judaico sobre terras e vidas palestinas, ela esta recorrendo a0 rafzes cristis”. Alimanifestagaoydessavindlife rénical potencial- sentimento de vitimizacéo para obscurecer a contradicao en “mente catastréfica as raizes eristas da Europa se d na forma ‘tre uma luta por direitos iguais e uma luta por dominagao. A

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