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Capieulo 1.2 QUEM ERAM OS “NEGROS DO PALMAR’?* Silvia Hunold Lara 1Lé pelo inicio da década de 1980, em um dos seminatios vespertinos do Pro- ‘grama de Pés-Graduagio da Unicamp, discutiamos as pesquisasrecentes sobre ‘ahistéria da escravidio no Brasil. Creio que Sidney Chalhoub estava apresen- tando seu erabalho ~ talver jf tivesse publicado Visées da liberdade ~, mas a ‘conversa havia se generalizado e Robert Slenes fez um comentario que nos rmarcou a todos: “Voeés falam dos escravos como sujeicos de suas ages, mas no se preocupam com o modo como eles pensavam ¢ agiam; estranhamente, tata os escravos como se els fossem noruegueses” Brincando com sua pré- pria ascendéncia, ele também alertou que nao adiantava simplesmente dizer {que 0s cativos eram “africanos", pois havia muitas Africas no Brasil escravista. ‘Sem divida, grande parce do investimento historiogréfic feito nas iltimas décadas foi dedicada a conhecer a experiéncia eserava, em suas mais diversas dimens6es. Os estudos avangaram tanto nessa érea que, hoje em dia, é praticamente impossivel erarar de qualquer aspecto da histria da escravidéo no Brasil sem levar em conta os grupos de procedéncia dos cativos ¢ 0 modo ‘como tradigbes, valores e priticas trazidos da Africa foram (ou no) incorpo- rados &experitncia do cativeiro em terras americanas. Cada vex mais, as dife- rengas entre os desterrados pelo tréfico cos nascidos no Brasil, centre 0s recém- -chegados e aqueles que estavam nas senzalas havia mais tempo ~ assim como apresenga de outras hierarquias no interior da comunidade escrava ~ constituem clementos importantes para as andlises. Do mesmo modo, as ralzes que tantos "Gr parguia cont como fiancaento de ma bos de Prod em Pessiss do CNP fe utd rojo Teco “Talndos ho Bl esas, io palin (ulos VT 0X) ‘pind poe apes de gt e207 sub de 212 7 ESCRAVIDAO CULTURA AFRO-BRASTLEIRA homens e mulheres tinham no continente afticano ¢ 0 modo como elas se f- zeram presentes nas Américas ¢ foram repassadas a scus filhos e netos estio ‘mais e mais no centro das investigagbes ede muitos debates entre os escudiosos. ‘As pesquisas eos textos de Robert Slenes foram ¢ sio pecas fundamentais Andeson, 996 SCRAVIDAO # CULTURA AFRO-BRASILEIRA | (QUEM HRAM 05 "NEGROS Do PALMAR"? tradig6es bantus pudessem estar presentes em topénimos,riulos ¢ outros as- ppectos culturas, a inspiragio do kilomsbo Imbangala teria predominado, por sercapazde unir gente de diferentes origens éenicas para fins de sobrevivéncia material cenfrentamentos militares. Todavia, considerando a composisio he- terogénea da populagio de Palmares ¢ os tragos sincréticos na religido e em aspectos do cotidiano (como no vestustio) especialmente a partir da segunda metade do século XVI, seu artigo reforcou a tese de uma cultura fortemente “crioulizada” (ou afro-brasileira) em Palmares. Esse foi também o ponto de vista defendido pelas pesquisas de Pedro P, Funari, Charles Orser Jinior e Score Joseph Allen, que, baseados em estudos arqueolégicos, defenderam a tese da cxisténcia de uma populagio multiétnica em Palmares.” Enquanto a historiografia brasileira continuou a enfatizar a crioulizagio ou a reinvengio das virias "faces aficanas” em Palmares, ou a conectar sua hist6- rad saga da resisténcia escrava em perspectiva nacional, hemisttrca ou alantica,® o debate acerca das origens afticanas de Palmares foi retomado por John K. ‘Thornton, em 2008, em novos termos.** Segundo Thornton, a preponderincia significativa de africanos oriundos de Angola na populagio escrava em Pernambuco a partir do final do século XVI ofereceu a Palmares uma base demogrifica culeural rlativamente homo- igénea. A “onda angolana’ que levou as costas da América milhares de escravos saidos de Luanda atingiu Pernambuco com intensidade, fazendo com que a populacio africana dessa regio fosseconstituida por mais de 90% de escravos centro-africanos ~ 0 que lhes conferia predominincia significativa, mesmo hravendo afticanos de outras nagées, indigenas e avéeuropeus entre os habitan- tes de Palmares. Poucos deles seriam Imbangala, gente temida entre os habi- tantes dos reinos Mbundo e Kongo, por seus costumes terrives, como 0 cani- balismo, o roubo de provisées e de eriangas, a devastasio de recursos naturais « especialmente, pelo papel que desempenhavam na escravizagio de pessoas nessa regiso. Porisso, ele recusa a ideia de qualquer inspiragéo Imbangala c, revisitando a tese de Kent acerca de um reino africano, conclui tratar-se de um estado centralizado, Esse estado teria se formado por volta de 1630-1640, esistido as 2 Fac 1996; Alle, 1998 Ore Fane 201 “© parauma sine de ina perspec, ver Gomes, 205. CE smb Miles, 2011, epecalmente wes. 4 ome, 208 [SCRAVIDAO F-CULTURA AFRO-BRASITEIRA campanhas do final da década de 1670 e, depois, até 08 anos 1650, era um “es tado sélido completo, que comandava a atividades de dezenas ou mais acam- pamentos [..] que chegow a desafiar a autoridade portuguesa no Nordeste do Brasil © poder ea autoridade estavam concentrados nas maos de uma oli- sgarquia que tinha capacidade de organizar a populagso e mobiliz-la para a guerra; aviahierarquiae,a partic dos anos 1670, uma dinasta real bascada em lasos consanguineos (biolégicos ou eletivos) presidia provavelmente uma diseribuigdo desigual do trabalho e da riqueza. Sélido cestivel, esse estado foi capaz de sobreviver & tomada do poder por Zumbi por volta de 1680 c, cspecialmente,& sua morte em 1695, até desaparecer por volta de 1705 (ainda «gue liderancas posteriores de mocambos na regio continuassem a reivindicar ‘titulo de “senhores de Palmares”). Os titulos e outros coseumes descritos na documentagio sugerem, segundo ‘Thornton, ter havido empréstimos de modelos centro-africanos. Diferente- mente, porém, dos estados do Ndongo e do Kongo, hierarquizados cestratifi- cados, a organizagio politica de Palmares teria se inspirado nos exércitos centro-aficanos. Vindos de uma regido que vivia em guerra quase permanente, ‘muitos dos habitants de Palmares dever tersido soldados em algum momento de suas vidas. Do mesmo modo que do outro lado do Atlantico, a solidariedade ‘eaidentidadeforjadas nos combates pela liberdade somavam-selideranga de ‘membros ecravizados das elites de diversos estados centro-africanos. A neces- sidade de defesa, a alianga entre grupos vizinhos ¢ 0 desenvolvimento de uma classe de escravos produtores de riqueza a servigo de uma realeza em expansio deram, entio, origem a instivuigbes estatais que seguiam tradigbes dos estados angolanos. Mas, ao mesmo tempo, tratava-se de “uma formagio politica de um tipo novo, que possuia referéncias no modelo angolano eno qual os dirigentes angolanos poderiam talver ter gozado de um estatuto mais elevado, mas que nio era idéntico a nenhum dos stados angolanos de que tivesse surgido’” Em um segundo artigo, mais recente, Thornton retomou seu argumento, reforcando a importincia da invaséo holandesa para a formagio de Palmares. ‘Além da predominincia populacional proporcionada pela “onda angolana’,a

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