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CS he We és | A ASCENSAO EVGENY Vv DOS DADOS MOROZOV | E A MORTE A ASCENSAO | DA POLETICA DOS DADOS Vv E E A MORTE HE G NY DA POLITICA , PODEMOS APOSTAR NA TECNOLOGIA E = V_-NO VALE DO stLicro COMO soLUCAO M 0 R 0 PARA OS PROBLEMAS HIS” 0: DA HUMANIDADE? A RESP( DE 8 I G EVGENY MOROZOV £ CLARAMENTE NAO. CRITICO FERRENHO DAS PLATAFORMAS a A DIGITAIS COMO FACEBOOK, UBER T E AIRBNB, © AUTOR QUESTIONA © USO DE DADOS PESSOAIS POR EMPRESAS PRIVADAS, MOSTRANDO EVGENY EVGENY iS 1G '2,25,.B1 TECHTECH TECH... ::. TE MOROZOV MOROZOV A ASCENSAO 5 A ASCENSA DOS DADOS aT DOS DADOS E A MORTE L E A MORTE SCENS DADO MORT POLIT IGE )RO G :CH eke Ties ENY OZOV MOROZOV Morozov é ume das vozes mais necessérias para so pensar o papel da tecnologia hoje, em especial por ser um critico ferrenho da visio de mundo projetada polo Vale do Silicio. Slogans cono “empreendedorismo”, “inova “economia do compartilhanento”, “Big Data”, “inteligéncia artificial” jo dissecados pelo autor de modo a revelar a complexidade e os efeitos negatives que raramente aparecen nos debates. A pergunta que ele faz é: podemos apostar na tecnologia e no Vale do Silicio como penaceia para a resolugéo de problemas histéricos da humanidade? Claramente, 2 resposta 6 ndo. Profundo conhecedor de que: politicas, Morozov desconfia de tudo que reluz no universe tecnolégico, e mostra que, por exemplo, enxerga-lo como um fenémeno objetivo e universal nao 6 nada mais do que subscrever a um tipo de ideologia de marketing. Para entender o real impacto da tecnologia nas nossas vides 6 fundamental entender sua dimensao cultural ¢ suas repercussies econdmicas ¢ sociais. Nesse contexto, 0s textos de Morozov revelam que aquilo que chamamos de nuitas vezes néo & nada mais do que uma forma de dourar a pilula de um novo modo de exercicio de poder, cada vez mais valorizado e menos democratico. PTrr ubu BIG TECH A ASCENSAO DOS DADOS E A MORTE DA POLfTICA EVGENY MOROZOV traducdo CLAUDIO MARCONDES 7 Preficio a esta edigiao 49 Introdugdo: capitalismo tecnolégico e cidadania 27 Por que estamos autorizados a odiar o Vale do Silicio 43. Solucionismo, um conto de fadas 81 Aascensio dos dados ea morte da politica 102 Como cobaias desavisadas 117 Catéstrofe informacional: o custo da hipocrisia 138 Ffeitoscolaterais dosalgoritmos paraa cultura democritica 144 Big Tech: pés-capitalismo 463A mediacio digital de tudo: na intersecio da politica, da tecnologia e das finangas 482 Quem esti por tris das fake news? 188 Fontes dos textos 189 Sobre o autor PREFACIO A ESTA EDICAO ‘Apés duas décadas de utopismo digital, marcadas pela adocao incondicional das tltimas vogas de Palo Alto de Shenzhen, 0 mundo enfim entrou numa era de sobriedade digital. As plata- formas tecnoldgicas globais deixaram de ser vistas como compa- uheiras inofensivas e invisivels, empenhadas em amenizar, ou ‘mesmo eliminar, as arestas da existéncia cotidiana - sempre em nome de um compartilhamento descomplicado e de uma trans- paréncia universal. Agora, tais plataformas so cada vez mais percebidas como um bloco poderoso, com interesses mercantis ocultos, lobistas e projetos de dominacio do mundo. ‘A tecnologia digital da atualidade, ficou evidente, nio é ape- nas ciéncia aplicada, como ainda sustentam as filosofias mais vul- gares da tecnologia. Ela , na verdade, um emaranhado confuso de geopolitica, finanga global, consumismo desenfreado e acele- rada apropriagdo corporativa dos nossos relacionamentos mais intimos. Ao insistir nas queixas contra as praticas despreziveis da Uber ou do Airbnb, ou contra as tendéncias monopolistas da Amazon ou da Alibaba, alguns criticos da tecnologia ~ ha ocupa- io mais absurda do que essa? - adotam uma visio geral invertida: nossa sociedade digital, quaisquer que sejam suas falhas, no éa causa do mundo em que vivemos, e sim consequéncia dele. Nio existiria o Uber sem as décadas de afrouxamento das legislagGes trabalhistas ao redor do mundo (a tal ponto que uma das startups mais valiosas do mundo é representada por um al- goritmo que concilia oferta e demanda, com vinculos empre- gaticios escassos, ¢ ainda menos ativos em seu nome). Do 7 mesmo modo, nao haveria Airbnb sem décadas de politica econémica incentivando os cidadaos a considerar seus iméveis residenciais como ativos ~ como investimentos lucrativos que um dia poderiam compensar a eventual insuficiéncia de insti- tuigdes anteriores, como o Estado do bem-estar social. O Airbnb nao é apenas a extensio dessa légica, mas aquilo que permite a rentabilizagio desse ativo imobilidrio dia apés dia, turista apés turista. Atacar essas duas empresas como se fossem a raiz do pro- blema é dar crédito demais a seus fundadores e, a0 mesmo tempo, ignorar 0 contexto histdrico social ¢ econdmico mais amplo das iltimas décadas ~ desde o final da Guerra Fria até 0 desenrolar da crise financeira de 2008. Esse contexto moldou ‘no s6 nossas politicas, como também, em aspectos ainda invi- siveis para a maioria, nossas tecnologias. Ja é quase um cliché afirmar que “dados sio o petréleo do século xxi". Hd muito acriticar nessa definicao. Para comecar, a forma como produzimos dados ¢ muito diferente daquela como a natureza produz seus recursos. Mas esse chavo, por mais desgastado que esteja, acerta em um ponte, ao levar em conta aescala da transformacio digital que se encontra 4 nossa frente. ‘Nao surpreende o sungimento de um nicho de consultorias digitais e de gurus tecnolégicos, os quais insistem na ideia de que uma sociedade detentora de tantos dados vai acabar solucio- nando todas as contradicdes que o sistema capitalista global nao consegue resolver por conta propria: ao nos proporcionar tra- balhos flexiveis e bem remunerados; ao punir os participantes deletérios do mercado por meio de mecanismos de autocorregio instantaneos; ao introduzir eficiéncia e sustentabilidade onde antes nfo havia ~ e tudo isso gracas a aparatos inteligentes. Todas essas previsées podem ter seu fundo de verdade, 8 mas certamente essa ndo é a tinica ligdo a extrair da com- paragio entre dados e petréleo. Cabe lembrar que a histéria do petréleo no século xx também se caracteriza pela violéncia, por pressdes coxporativas, guerras incessantes e desnecessérias, der- rubada de regimes democriticos na expectativa de assegurar 0 controle de recursos estratégicos, aumento da poluigao e altera- Bes climéticas. Se os dados s20 0 petrdleo do século xxt, quem vai ser o Saddam Hussein deste século? Considerar essa questio nos dias de hoje pode parecer no sé excessivamente sarcastico, como também ridicule. Mas niio precisaria ser assim: deveria ser ébvio que 0 fato de que os dados ~ ¢ os servigos de inteligéncia artificial que eles ajudam a estabelecer ~ vio se constituir em um dos terrenos cruciais dos embates geopoliticos deste século. Até agora, os principais com- petidores sio bem conhecidas - os Estados Unidos e a China, os dois paises com setores tecnoldgicas mais avancados -, mas é bem provavel que outros, como a Riissia e a india, véo buscar um lugar no pelotio de frente, no minimo movidos pelo temor de uma dependéncia excessiva de servigos digitais estrangeiros. E onde fica o Brasil? De um lado, o pais foi um dos primei- rros no mundo a reconhecer a importancia de recuperar a sobe- rania teenolégica. Infelizmente, as iniciativas e as promessas aventadas apés as revelagdes de Edward Snowden mostraram-se insuficientes e quase cairam no esquecimento, em meio &s tur- buléncias que afetaram a politica brasileira nos anos seguintes. De outro lado, o Brasil também foi um dos primeiros pafses do mundo a insistir num enquadramento robusto dos direitos digi tais - o chamado Marco Civil. Neste caso, 0s resultados foram um pouco melhores. A ini- ciativa do Marco Civil, ainda que inconclusa, é uma manobra importante, sobretudo agora que, cada vez mais, as pla- 9 taformas digitais buscam nos atrair para seus impérios digitais acenando com servigos gratuitos ¢ convenientes ~ um paradigma quase antitético ao dos direitos digitais. Idepen- dentemente de estarem sediadas em Seattle ou em Pequim, as plataformas digitais ganham dinheiro com a promessa de con- verter os direitos puiblicos duramente conquistados ~ 0 direito & liberdade de expressio, & seguranga, ao transporte - em servicos cficientes, proporcionados pelo setor privado, mas desprovidos de garantias. Qualquer esforgo, como 0 Marco Civil, que vise reverter esse processo é um passo na diregao certa Oconsenso atual é de que o tinico baluarte contra avanco das empresas globais de tecnologia ¢ a Europa, com uma buro- cracia atuante, uma legislagZo antitruste consolidada ¢ o res- peito universal que nutre pela privacidade. Depois de observar o continente por muitos anos, arrisco-me a discordar dessa visio: estou convencido de que nao se pode enfrentar com éxito 0 de- safio imposto pelas grandes empresas tecnolégicas apenas com intervengGes juridicas, por mais bem concebidas que sejam. ‘O que se requer, por outro lado, ¢ um poderoso ethos de dinamismo empresarial, associado ao firme compromisso de repensar radicalmente o funcionamento da nossa sociedade ~ 0 papel que a tecnologia desempenha nela. Os progressistas radicais ~ entre os quais felizmente me incluo ~ nao podem se dar a0 luxo de serem tecnofébicos. Rejeitar a inteligéncia artificial e outras solugdes que fazem uso intensivo de dados somente porque a Amazon ¢ a Alibaba recorrem a elas para fins execraveis é atarmas nossas mios num momento absolu- tamente crucial ‘A Europa, infelizmente, esté muito velha e agonizante - e dilacerada demais por seus infortinios histéricos ~ para embar- car nesse ambicioso projeto intelectual e politico. Jé o Bra- 10 _ sil tem todos os requisitos para fazé-lo. E uma sociedade jovem, com muito mais abertura para a inovagio, mesmo a de cunho mais radical. Ainda que tenha perdido alguns anos com disputas internas, nao ha motivo para que abandone a batalha. E bem provvel que a luta global pelos dados e pela supre- macia da inteligéncia artificial, mais uma vez, ajude a cristalizar a verdade que muitos tedricos da dependéncia ~ entre os quais vatios brasileiros ~ entenderam hé muito: quem domina a tec- nologia mais avangada também domina o mundo. A tarefa fu- tura da politica progressista, no Brasil e em outras partes, deve serade desenvolver uma estratégia para assegurar esse controle - evidentemente, por meios democriticos. De outro modo, nao vai demorar muito para que empresas como 0 Facebook e a Alphabet recorram a um estratagema final e coloquem em risco a prépria ideia de uma politica democra- tica: vendendo-nos a ideia de liberdade como o servigo digital su- premo ~ que elas nos proporcionariam de bom grado, por uma pequena taxa, & claro. As eleigdes brasileiras de 2018 mostraram o alto custo a ser cobrado de sociedades que, dependentes de plataformas digitais e pouco cientes do poder que elas exercem, relutam em pensar as redes como agentes politicos. O madelo de negécios da Big Tech funciona de tal maneira que deixa de ser relevante se as mensa- gens disseminadas sao verdadeiras ou falsas. Tudo 0 que importa ése elas viralizam (ou seja, se geram niimeros recorde de cliques e curtidas), uma vez que € pela anilise de nossos cliques ¢ cur- tidas, depuradas em retratos sintéticos de nossa personalidade, que essas empresas produzem seus enormes lucros. Verdade ¢ ‘que gera mais visualizagdes. Sob a ética das plataformas digi- tais, as fake news sio apenas as noticias mais lucrativas. Como qualquer eleigo recente pode evidenciar, a 44 infraestrutura da comunicagio politica mudou drama- ticamente. Esforgos feitos no passado para controlar seu uso ~ como leis de financiamento de campanha politica e restricdes do tempo de Tv de cada candidato ~ nao sao mais adequados em uum mundo onde grande parte da comunicagao se da em plata- formas digitais. Caso nao encontremos formas de controlaressa infraestrutura, as democracias se afogardo em um tsunami de demagogia digital; esta, a fonte mais provavel de contetidos vi- rais: 0 édio, infelizmente, vende bem mais que a solidariedade E dificil, portanto, que exista uma tarefa mais urgente do que a de imaginar um mundo altamente tecnoldgico, mas, a0 ‘mesmo tempo, livre da influéncia perniciosa da Big Tech. Uma tarefa intimidadora, que, se deixada de lado, ainda causard mui- tos danos & cultura democritica E.M., 9 de novembro de 2018 INTRODUCAO: CAPITALISMO TECNOLOGICO E CIDADANIA No final da década de 1960, 0 mundo viu surgir um movimento cuja retérica se repetiria, quase literalmente, décadas mais tarde, Um grupo de videoativistas, equipados com cameras por- titeis e entusiasmados com o potencial da Tv a cabo, se propés documentar as injustigas e contestar os poderes constituidos. Chegara finalmente aquele momento revolucionério, no qual 0s cidadaos comuns podiam usar a tecnologia para produzir e transmitir os préprios programas. Quem Ié os artigos daquela época - nos Estados Unidos, muitos deles eram publicados numa revista de contracultura, a Radical Software ~ fica assombrado com a ingenuidade absoluta da crenca entdio demonstrada na forca politica dessas teenologias. Inspirados nas obras de Marshall McLuhan e Buckminster Fuller, esses dvidos intelectuais do video imaginavam que a aldeia glo- bal pés-politica e pés-capitalista estava prestes.a ser alcangada. Ao pesquisar esse periodo, deparei com My Life in Video [Minha vida em video], um ensaio inédito de 1973, escrito por Barry Schwartz, um personagem relativamente secundério da- quele movimento. A critica do utopismo daquele grupo feita por Schwartzera colérica eincisiva. “Se permitirmos que a TV a cabo € 0 video continuem como atividades laissez-faire, movidas 43 pela busca de lucro, ow como pesquisa patrocinada pelo go- vverno’, escreveu, “ela vai acabar se transformando em um Caté- logo Montgomery Ward Mcluhanizado" - numa alusio a um catilogo de compras pelo correio famoso entre os norte-ameri- canos. “E no campo dos embates efetivos [..] que os adeptos da pés-politica sfo letais, convictos de que a tecnologia vai, por si ‘mesma, transcender todas as tentativas de conté-la", lamentava. Contudo, 0 que chamou a minha atengao foi a concluséo inesquecivel desse ensaio, Schwartz menciona um aquério ma- tinho recém-adquirido para abrigar seus peixes tropicais. Ape- sar da opinio de muitos aquaristas, comentou ele, bem mais importante do que as caracteristicas quimicas da égua no tan- que (por exemplo, a temperatura, os niveis de pH, os vestigios de metais etc.), é 0 bem-estar das bactérias invisiveis presentes no aquario, Quando essas bactérias morrem, a morte dos peixes é praticamente inevitavel ~ ainda que continuem a nadar por mais algum tempo -, 0 que causa muita confusio entre os ob- servadores externos, No que se refere ao video e & Tv a cabo, continua Schwartz, a situagao é basicamente a mesma. Tal como utilizados, os meios de comunicasio existentes so dolorosamente inadequados para a comunicagio de sua prépria crise [..J.E, quando oho para 0 mundo do video, noto que pres- tamos atencao demais ao que Nés fazemos e nos preocupamos :muite pouco com o que Eles fazem. Assim como os meus peixes, talvez, no mesmo momenta rm que desfrutamos de sua existén- cia, o fim ji seavizinha. Examinando 0 mundo tecnolégico atual, nfo é dificil chegar a uma conclusao similar: no fundo, estamos diante do nosso 14 proprio aquirio digital, repleto de peixes mortos que, mi- lagrosamente, continuam a nadar. E fazem isso apesar dos cres- centes indicios de que os sonhos utdpicos, que esto por tris da concepgao da internet como uma rede intrinsecamente democra- tizante, solapadora do poder e cosmopolita, ha muito perderam seu apelo universal. A aldeia global jamais se materializou - em vez disso, acabamos em um dominio feudal, nitidamente parti- Ihado entreas empresas de tecnologia eos servigos de inteligéncia. Quio genuina era a promessa de emancipagao implicita nos primérdios da cibercultura? Teria sido possivel outro rumo, se 05 cidadiios assumissem o controle? Ainda nos resta a espe- ranga de retomar a soberania popular na tecnologia? Nao ha como responder a tais questées sen antes admitir a presenca do elefante na sala do servidor: as nossas tecnologias - ¢ as ideologias que elas promovem - sio, em grande medida, norte- -americanas. f bem verdade que as empresas de tecnologia rus- sas e chinesas tém fortalecido cada vez mais a sua musculatura, tanto em casa como no exterior. No hi como negar, porém, que ‘0s governos desses paises se opdem mais ao imperialismo de Wa- shington do que 20 neoliberalismo do Vale do Silicio. O que eles mais temem é 0 uso geopolitico das plataformas estrangeiras de tecnologia contra seus interesses nacionais; masno veem muito problema no modelo basico hipercapitalista de plataforma/mo- nopélio adotado por muitas empresas do Vale do Silicio. 0 caso europeu é bem mais deprimente. Com raras exce- Bes, como o Skype e o Spotify, nfo hé equivalentes regionais do Facebook, do Google ou da Amazon, e a regifio parece ter se conformado com o predominio do Vale do Silicio, ainda que os ‘outros setores da economia europeia, desde os fabricantes de automéveis até as editoras, comecem a mostrar inquieta¢ao com a possibilidade de seus mercados serem engolidos 15 pela empresas norte-americanas de tecnologia. Nesse aspecto, as noticias nao so nada boas: eles ja foram engolidos. O pior, contudo, é 0 fato de que a prépria historia europeia de contracultura informatica ~ que era muito mais politica, co- munitaria e de viés esquerdista - foi inteiramente erradicada da histéria. ‘Tudo o que resta na imaginagao publica mundial é a con~ tracultura tecnolégica dos Estados Unidos ~ com seu indivi- dualismo, consumismo e celebragio de Ayn Rand. Talvez.seja dificil lembrar, hoje, na segunda década do século xx1, mas a cultura dos hackers europeus ja foi muito diversa: a Itlia, a Alemanha e a Holanda - para mencionar apenas alguns paises ~ levaram adiante amplos experimentos com midias descentra- lizadas e independentes. Os hackers europeus tinham muito em comum com as lutas politicas diretas e os movimentos estudantis das décadas de 1960 e 1970; estavam intimamente ligados as movimentos de ocupacio ilegal de edificios vazios, assim como a diversos micleos, muitas vezes também ilegais, de protesto social. Tais movimentos sempre assumiram uma postura de clara oposicao ao Estado e aos militares, o que sem diivida contribuiu para o seu desaparecimento e absor¢io por instituigGes estabelecidas. Nos Estados Unidos, a situagao era exatamente oposta: 0 setor de defesa patrocinou nao sé os primeiros experimentos com 1sp, como também grande parte da tecnocultura subse- quente. Com excegao do Chaos Computer Club na Alemanha ~ que privilegia questiies de vigilancia e privacidade e pouco tem a dizer sobre a economia -, o Vale do Silicio acabou dominando completamente nossa maneira de pensar sobre a tecnologia e a subversio, Atualmente, supde- 1Aficionadose -se que os techies! canalizem a sua dissidén- sists tecnologia eda 46 cia por meio dos aplicativos - uma cortesia _informitica. de generosos investidores de risco. Os Estados Unidos também tiveram sua cota de ataques as instituigdes. No final da década de 1g60 e no inicio da seguinte, a burocracia estatal tornou-se alvo de ataques j que a Guerra do Vietnd era, com frequéncia, considerada o testemunho derradeiro de que tecnocratas frios impiedosos estavam no comando, pais, porém, achou uma resposta engenhosa a esse problema: o capitalismo e as respecti- vvas instituigdes repressivas precisavam ser combatidos tanto no plano individual - por meio do desenvolvimento interno e do crescimento pessoal - como no plano coletivo, com mais capita- lismo, ainda que em sua versio mais simpatica, de escala menor e mais descentralizada. Essa ideologia californiana, com ecos da New Age ~ vamos cultivar e liberar as nossas divindades interiores e comprar com mais critétio! -, por fim encontrou muito apoio na comunidade contracultural americana, pois, na auséncia de um movimento forte dos trabalhadores, trazia a promessa de um modo de vida bem melhor do que o intolervel tédio suburbano do compro- misso fordista do pés-guerra. Duas instituigées - 0 Instituto Esalen e 0 Whole Earth Ca- talog ~ foram especialmente relevantes na promogao desse consenso pré-capitalista. O Instituto Esalen, na Califérnia, tor- nou-se o centro do desenvolvimento espiritual, onde, como re- sultado da aplicagao de técnicas de terapia Gestalt origindtias da Europa, os alunos podiam desenvolver novos potenciais huma- znos que nao s6 0s ajudariam a lidar com quaisquer problemas psiquicos causados pelo capitalismo, como também encontrar um novo sentido existencial em um mundo que desmoronava. O Instituto contava com imimeros misticos eloquentes que podiam explicar e justificar praticamente tudo; 0 viés de 47 culto da atual cultura teenolégica ~ com pilulas de sabe- doria distribuidas em conferéncias TED ¢ em festivais como 0 Burning Man - decorre diretamente do Instituto Esalen. Jao Whole Earth Catalog envergava o manto da luta contra as instituigdes, argumentando que o capitalismo e a crise eco- logica seriam superdveis caso houvesse um capitalismo mais inteligente e humanitario, algo possivel se os consumidores fos- sem mais bem informados. Nesse sentido, o Whole Earth Cata-~ log buscava fortalecer esse consumidor por meio da indicagio de produtos que, de outro modo, passariam despercebidos. O seu criador, Stewart Brand, foi um dos primeiros a usar o termo “hacker” nesse contexto: o “hacker” era alguém capaz de estragar © capitalismo global, o Estado e qualquer outra instituicio que ‘surgisse em seu caminho gracas a tecnologias mais inteligentes apropriadas. Para escapar & opressio, era preciso comprar a emancipa- Gao no préprio mercado - e havia pouca diferenca entre uma opressao das corporacées ou dos eventuais compromissos para com os concidadaos. A burocracia institucional era um alvo particularmente importante, um resquicio das lutas anti-insti- tucionais - visavam hospitais e escolas como estabelecimentos opressores ~ travadas na década de 1970 por pessoas como Ivan Illich, um aliado de Brand. Nesse contexto intelectual mais amplo é que se entende por que Steve Jobs (que, em 2005, reconheceu a influéncia de Brand do Whole Earth Catalog em seu modo de pensar) péde, com tanta facilidade, se apresentar como um heréi da contracultura que enfrentava os poderes estabelecidos. E, de fato, os primeiros usuarios da Apple podiam “hackear” o computador e modificé-lo 4 vontade, pois a empresa se colocava contra os outros fabrican- tes de computadores que nao permitiam alteracées em seus 48 hardwares. Nesse sentido, oato de"hackear” era uma critica ‘moral do capitalismo tecnolégico contemporaneo. Aes poucos, contudo, a alternativa oferecida pela Apple tornou-se o préprio sistema vigente - para virar um “hacker”, bastava comprar os produtos da Apple, que logo se tornaram tdo fechados quanto 0 dos seus primeiros concorrentes. A critica moral evaporara: tra- tava-se de puro marketing aspiracional, um conto de fadas que convenceu a classe média norte-americana de que ela também poderia ser ousada e cool - mas no ambito do mercado. Trés décadas depois, o que se nota é que o Vale do Silicio encampa a mesma retérica da emancipacao por meio do con- sumo, mas de maneira bem mais sinistra, Na década de 1970, Stewart Brand simplesmente selecionava ¢ indicava os produ- tos que apreciava; ele mesmo nio os produzia, Hoje, porém, 0 Vale do Silicio fica feliz em nos fornecer uma multiplicidade de ferramentas para enfrentar o sistema, ferramentas produ- zidas ld mesmo, no Vale do Silicio: a Uber nos oferece servigos de transporte que se contrapdem aa setor existente dos taxis; 0 Airbnb nos ajuda a encontrar acomodagoes ¢ evitar o setor hote- leiro; a Amazon se encarrega de vender livros sem passar pelas livratias; para no mencionar as incontaveis aplicativos que nos vendem vagas de estacionamento, nos arranjam parceiros se- xxuais, fazem reservas para nds em restaurantes, Nio resta quase nenhuma restrigéo social, econdmica ou politica que o Vale do Silicio nao tenha se empenhado em romper. O apelo global desse tipo de retérica somente pode ser entendido se lermos essas tendéncias em contraposi¢ao a ow tuas duas: a primeira é 0 surgimento da desconfianca pés-mo- derma diante de tudo o que seja remotamente consolidado ~ de imediato percebido como corrupto e a servico de interesses es- cusos ~, € segunda, o triunfo da ideologia neoliberal sub- 49 sequente & Guerra Fria que suprimiut com éxito os aspectos no econémicos da nossa existéncia social, fazendo com que a identidade de consumidor sobrepujasse a de cidadio. Os aspectos mais brutais de uma empresa como a Uber nio fariam muito sentido num mundo em que nos preocupissemos cam os nossos concidadaos ~ fossem eles motoristas ou passagel- ros portadores de deficiéncias. Nio é de admirar que estes cons- tituam uma categoria que a Uber prefere ignorar: ao nao incluir centre os requisitos iniciais um treinamento especial para os mo- toristas, de modo que pudessem atender aos portadores de defi- igncias, a empresa péde reduzir 0s custos e oferecer tarifas mais baratas. Porém, num mundo em que escasseiam os vinculos so- ciais eo sentimento de solidaviedade, a Uber, tal como o Walmart na geragao anterior, faz todo o sentido, Ela oferece um servigo mais direto, eficiente - e, o mais importante, mais barato, O que ‘mais pode querer um tipico cidado neoliberal? Seo Vale do Silicio simplesmente se aproveitou da dissolu- «a0 dos lagos de solidariedade na sociedade ou se contribuiu ati- vamente para essa dissolugdo, trata-se de uma questio similar quela sobre a origem do ovo e da galinha. Seja como for, o &xito do Vale do Silicio tornou-se a narrativa preponderante do préprio capitalismo contemporaneo, No entanto, o angumento do Vale do Silicio ja nao se restringe & retérica da rebelio contra os interes- ses consolidados ~ agora ele também faz apelo a mobilidade social que seria proporcionada pelo setor teenolégico as classes inferio- res. A Uber afirma que ajuda os consumidores, que hoje podem pagar menos por seus deslocamentos. O Airbnb alega que ajuda seus usuarios a obter um rendimento adicional e, com isso, a en- frentar as turbuléncias da crise financeira. O Facebook afirma que pretende conectar os pobres da India e do Brasil & internet. A esquerda, que nunea se distinguiu por narrativas 20. empolgantes de unho tecnolégico, nao tem nada parecidoa oferecer. Pior ainda, jamais vai propor algo assim se no reescre- vera histéria da internet - 0 Ambito intelectual do Vale do Silicio - como uma histéria do capitalismo e do imperialismo neoliberai Como conceito, a internet nao ¢ uma foto nitida e em alta resolugio da realidade; ela se parece mais com uma das man- cchas do teste de Rorschach. Assim, dependendo de quem con- templa a imagem, e de qual é sua agenda politica e ideolégica, podem variar muito as ligbes que dali sio extraidas. O problema da “internet”, como conceito regulador no qual basear a critica 20 Vale do Silicio, esta no fato de ela ser ampla e ambigua de- mais ~ incluindo exemplos que levam a conclusdes diametral- mente opostas -, 0 que sempre vai permitir ao Vale do Silicio uma saida facil em termos de negacdo. Portanto, qualquer tica efetiva requer também que se evite o conceito. ‘Mesmo projetos como a Wikipedia estio sujeitos a essa leitura dupla e indeterminavel. Nos Estados Unidos, nos meios universitarios de viés esquerdista, a tendéncia dominante é ver, no éxito da Wikipedia, uma comprovagao de que as pes- soas, apenas com seus recursos, so capazes de produzir bens piiblicos, de modo altruista e fora do Ambito do mercado. Mas a leitura libertéria de direita da Wikipedia ressalta outra ligao: tais projetos auténomos nos mostram que nao ha necessidade de financiar instituigdes que produzem bens piiblicos, como co- nhecimento e cultura, porque alguém ~ a notéria coletividade ~ pode fazer isso melhor e de graga. Essa, de qualquer modo, é a historia por trés da difusio do financiamento coletivo |crowd- funding] na Europa - um substituto inadequado para os genero- ‘sos or¢amentos culturais que tiveram de ser cortados em razio das medidas de austeridade. A nossa incapacidade de ver tudo isso por outro 21 prisma que néo aquele focado na internet 60 que explica a dificuldade de decifrar um conceito como o de “economia com- partilhada” [sharing economy]. Estamos diante de surgimento de uum verdadeito pés-capitalismo cooperativo, ou diante apenas do bom e velho capitalismo, com a sua tendéncia a transfor- mar tudo em mercadoria, mas com anabolizantes? Ha incon- tveis maneiras de responder a essa questio se as procurarmos na histéria da prépria internet ~ que comecou com um grupo de empreendedores geniais em um fundo do quintal ou gracas ao generoso financiamento puiblico das universidades? -, mas, provavelmente, no ha como chegar a nenhuma conclusio re- ‘motamente precisa. Ai vai uma pista: para entender a “econo- mia compartilhada’, nada melhor do que comegar, bem, pela prépria economia. Deum ponto de vista cultural, o maisinteressante nio saber sea internet promove o individualismo ou a cooperacio social (ou, ainda, se ela solapa ow reforga ditaduras); 0 que interessa é 0 mo- tivo por que temosde levantar questées tio importantes em fungio da “internet” ~ como se esta se tratasse de uma entidade que paira inteiramente separada do funcionamento da geopolitica e do atual capitalismo totalmente financeiro. Enquanto nao conseguirmos pensar fora da “internet”, jamais conseguiremos fazer um balango justo e preciso das tecnologias digitais disposigao. Lamentavelmente, passamos as duas iltimas décadas confundindo a nossa interpretacao da mancha de tinta de Rors- chach da internet, por si confusa, com a realidade ~ em decor- réncia dos esforgos bem-sucedidos dos marqueteiros do Vale do Silicio. Dedicamos tempo demais a decifrar o significado dessa ‘mancha detinta, em vezde analisaras tendéncias efetivas - nos setores de emprego, automacio ¢ financiamento ~ que a produ- ziram. Tendo nos acomodado a determinada narrativa que 22 ressalta a importancia da internet na explicagao da reali- dade ao nosso redor, seja ela penosa ou inspiradora, continua- mos a buscar casos interessantes que confirmem que a narrativa est correta - 0 que sé reforca a convicgao de que a nossa nar- rativa predileta deve ser fundamental para qualquer explicacio das adversidades atuais. O que significa, na prética, pensar“fora da internet”? Bem, significa ir além dos contos de fadas inventados pelo complexo industrial-divulgador do Vale do Silicio. Significa prestar aten- ‘Gio as mimticias econdmicas e geopoliticas do funcionamento de tantas empresas de alta tecnologia que atualmente nos escapam. Por exemplo, seria bom saber que a Uber ~ grande defensora da mobilidade e da contestagao as elites - é uma empresa de 72 bi- Ihdes de ddlares parcialmente financiada pelo banco de inves- timentos Goldman Sachs. Do mesmo modo, seria esclarecedor perceber que 0 atual pacote de tratados de comércio ~ como 0 risa [Trade in Services Agreement, Acordo sobre Comércio de Servigos], o rr1P [Transatlantic Trade and Investment Partnership, Acordo de Parceria Transatlantica de Comércio ¢ Investimento] 0-7? [Trans-Pacific Partnership, Parceria Transpacifico] - tam- ‘bém visa incentivar a livre circulagio de dados - um eufemismo insosso do século xx1 para designar “a livre circulagao do capi- tal” -, 0s quais vio, na verdade, constituir um dos pilares prin- Cipais do novo regime de comércio global Eo que hé na retérica da “cidade inteligente” [smart city] - ‘outro conceito popular ~ que soa téo reconfortante e progres- sista? Numa leitura mais atenta, isso significa apenas que nassa infraestrutura urbana ser entregue a um grupo de empresas de tecnologia - no muito adeptas da transparéncia -, que a administraré do jeito que quiser, tornando quase impossivel mais tarde a devolucao das cidades ao setor piiblico, (Como. 23 se faria uma reestatizacao dos servicos encampados pelo Google, por exemplo?) Seria apenas uma coincidéncia o fato de que a agenda oficial de politica europeia do Departamento de Comércio americano, tal como apresentada em seu website até o fim do governo Obama, relacionava, simplesmente: “TT17, Cidades inteligentes, mercado tinico digital"? ‘Uma perspectiva pés-internet como essa talvez faca 0 mundo parecer muito deprimente ~ mas ele ficard tio depri- mente quanto a realidade do capitalismo contemporaneo. Essa nova visio também proporciona um resumo do que precisa ser feito ~ e mostra em quem se pode ou nao confiar para levar adiante esse programa de emancipagao. Uma discussao adulta e madura sobre a construgao de um futuro tecnolégico robusto tem de partir do reconhecimento de que esse futuro tecnolégico deverd ser desvinculado do neoliberalismo. Assim, em ver de prosseguir com essa discussio intermi- nvel sobre o poder que podemos exercer por meio do consumo, cou sobre como devemos nos adaptar A tiltima calamidade apren- dendo a decifrar nossa prépria solugdo individual, o que nos cabe perguntar é de que modo as politicas de austeridade afetam a quantidade de recursos disponiveis para a inovagiio, Preci- samos averiguar se o fato de muitas de essas empresas de tec~ nologia néo pagarem impostos na verdade impede que surjam alternativas a elas no setor piiblico, Precisamos reconhecer que a incapacidade das pessoas para saldar as suas despesas corri- queiras, em virtude da crise financeira, torna a economia com- partilhada ~ ao facilitar as pessoas a negociacao de seus hens ¢ servigos ~ nio s6 muito atraente, como também inevitével. De outro modo, uma hora ou outra os peixes vio comegar a ‘morrer diante dos nossos olhos. Sim, ainda hé tempo para mudar as bactérias no nosso aquério global. Mas nao devemos nos 24 iludir com a crenga de que um meio de emancipagao social ppossa surgir e prosperar num ambiente politico extremamente t6xico, que ¢ individualista e consumista e no admitea existoncia de vida fora do mercado, Como Schwartz comentou em seu artigo de 1973, “as novas midias podem comunicar novos valores encar- nados em si ou podem promover um consumismo novo e dina mio, numa embalagem eletrénica para valores antigos”. Para retomar uma das questies originais desse ensaio: & possivel que os cidadaos reconquistem a soberania popular sobre a tecnologia? Sim, é possivel ~ mas somente se antes re- conquistarmos a soberania sobre a economia e a politica. Se a maioria de nés acredita em algum tipo de “fim da histéria’” ~ sem disposigao ou capacidade para questionar a possibilidade de uma alternativa genuiina tanto ao capitalismo glabal como a0 predominio do mercado na vida social -, entdo nao resta de fato nenhuma esperanca; quaisquer que fossem os novos valo- res contidos na internet, eles acabariam esmagados pela forga da subjetividade neoliberal. Todavia, dado o estado calamitoso em que o capitalismo se encontra hoje ~ desde a crise financeira, passando pelas guerras no Oriente Médio, até a desagregagio potencial da Unio Euro- peia -, 6 dificil pressupor qualquer uma dessas narrativas de “fim aahistéria’, Assim, ama noticia é que, para ainternet dar conta do seu potencial, o préprio capitalismo tem de acabar. A boa no- ticia é que iso pode acontecer bem mais cedo do que se imagina. A tese deste livro é simples: hoje, toda discussao de tecnologia implica sancionar, muitas vezes involuntariamente, alguns dos aspectos mais perversos da ideologia neoliberal. Pior 25 ainda, pouco importa 0 lado que se escolha, visto que quase todas as criticas do Vale do Silicio também estao alinha- das com o neoliberalismo. Por isso, os criticos da tecnologia, sobretudo nos Estados Unidos, podem odiar 0 Google e a Amazon, mas isso nao ga- rante que estejam do lado do povo e da sua luta pela emancipa- Gio do atual capitalismo financeiro predatério, A critica deles é geralmente conservadora, mesmo que o seu alvo ~ quase sem- pre o Vale do Silicio ~ seja igualmente odiado pela esquerda, E possivel fazer uma critica emancipatéria da tecnologia? Estou convencido de que sim. Mas o primeiro passo para que ela seja articulada é entender as deficiéncias da nossa critica de tecnologia atual, que é ineficaz por algum motivo. E ha apenas uma forma de torné-la radical e verdadeiramente efetiva: ela precisa tratar seriamente nao sé da economia politica do Vale do Silicio, como também de seu papel cada vez mais preponderante na arquitetura fluida, e em constante evolucéo, do capitalismo global contemporineo. Nao é que as promessas do Vale do Silicio sejam falsas ou enganosas - ainda que muitas vezes isso ocorra -, mas elas sé podem ser entendidas, por exemplo, através do prisma da dis- solugdo do Estado do bem-estar social ¢ da sta substituigao por alternativas mais enxutas, répidas e cibernéticas, ou através do prisma do papel que a livre circulacao de dados esta destinada a desempenhar sob um regime de comércio global totalmente des- regulado ~ questdes que nao costumam ser levantadas quando falamos do Facebook, do Google ou do Twitter. Mas é preciso levanté-las: tal como o Vale do Silicio, cujo futuro s6 existe sob © capitalismo contempordneo, também o capitalismo s6 tem fu- turo a sombra do Vale do Silicio. POR QUE ESTAMOS AUTORIZADOS A ODIAR O VALE. DO SILicIO? Se Ronald Reagan foi o primeiro presidente teflon, entao o Vale do Silicio é a primeira indkistria teflon: nao importa quanta lama se atire nela, nada parece grudar ali. “Big Pharma’ (as grandes companhias farmacéuticas), “Big Food” (as grandes alimenticias) e “Big Oil” (as grandes petroleiras) so termos de- preciativos usados para descrever a ganAncia suprema que reina nesses setores, porém no se nota a mesma animosidade no caso de “Big Data’, Esse termo inocente nunca é usado em re- feréncia is agendas compartilhadas das empresas de tecnologia, Que agendas sio essas? Afinal, esses caras N40 psslcadocomo estio empenhados em melhorar 0 mundo, em “Why Weare Ale linha apés linha de programagio? te ne pee Hé algo estranho ai, Embora entendamos in-p susianmn, que os interesses das empresas farmacéuticas, M-M-Hamiltone alimenticias e petroliferas so naturalmente di- “,hiusm (Ets) vergentes dos nossos, raras sto as ocasides que Writing. New nos aproximamos do Vale do Silicio com Cnn 27a desconfianga necesséria. Em vez disso, 2014.99.31 continuamos a considerar os dados como se fossem uma merca- doria migica e especial que, sozinha, poderia defender-se contra qualquer génio maligno que ousasse exploré-la, Nocomego de 2013, porém, um pequenoarranhao apareceu no teflon retérico do Vale do Silicio. O caso Snowden contribuiu para isso, entre outras coisas. O mundo parece ter enfim perce- bido que a “disrupgao" [disruption] - a palavra predileta das elites digitais ~ descreve um fendmeno bastante desagradével e dolo- 1080. Os professores universitérios comecam jé a se queixar da “disrapcao" provocada pelos Moocs [Massive Open Online Courses, ‘Cursos on-line abertos e massivos|; 0s taxistas mobilizam-se con- tra servigos como o da Uber; os moradores de Sao Francisco fi- nalmente lamentam a “disrupgio" dos aluguéis mensais em uma cidade subitamente tomada por milionérios. Além disso, claro, hé as ideias loucas e mesquinhas concebidas no préprio Vale do Silicio: a mais recente, apresentada por um executivo do setor de tecnologia numa conferéncia, é a de que o Vale do Silicio deveria se separar do pais e “construir uma sociedade de adesio opcio- nal, em iltima andlise fora dos Estados Unidos, gerida por meios tecnoldgicos”. Vamos nos colocar em seu lugar: um pais onde é preciso uma comissao no Congreso para consertar um site na internet é uma vergonha para o Vale do Silico. Esse descontentamento esfuziante ¢ algo tranquilizador. Poderia até mesmo ajudar a enterrar alguns dos mitos engen- drados pelo Vale do Silicio. Nio seria étimo que um dia, diante da afirmativa de que a missio do Google é “organizar as infor- mages do mundo e torné-las acessiveis ¢ iteis para todos", pu-

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