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Laird Harris Inspiracdo e Canonicidade da Biblia Inspiragao e Canonicidade da Biblia, de R. Laird Harris © 2004, Editora Cultura Crista. Reprodugao proibida. 1* edigdo em portugués ~ 2004 3,000 exemplares Tradugao Helen Hope Gordon Silva Revisdo Claudete Agua de Melo Wilson de Angelo Cunha Editoragao Vanderlei Ortigoza Capa Lela Design Harris, R. Laird (Robert Laird) 1911 - HBISi Inspiragdo e canonicidade da Biblia / Robert Laird Harris; [tradugo Helen Hope Gordon Silva]. — Séo Palo: Cultura Crista, 2004. 368p. ; 16x23x1,92cm. ‘Tradugio de Inspiration and canonicity of the Scriptures ISBN 85-7622-050-4 1 Unspiragio, 2.Canon. 3.Exegese. LHarris, R.L. IL Titulo. CDD 2led. - 220.1 Publicagao antorizada pelo Conselho Editorial: Clindio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Lufs Ramos, Mauro Fernando Meister, Otévio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastidio Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos. €DITORA CULTURA CRISTA ‘Rua Miguel Teles Junior, 394 — Cambuci (01840-040 ~ Sao Paulo ~ SP ~ Brasil Postal 18.136-Sdo Paulo-SP-01599-070 Fone (0°11) 3207-7099 ~ Fax (0°11) 3208-1255 wHu.cep.org.br ~ cop @cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Claudio Anténio Batista Marra Prefacio Bw A inspiragao é um tema que € tratado com freqiiéncia. Ela €, no entanto, de importancia perene. Ao autor parece bastante estranho vé-la ser considera- da, muitas vezes, sem que a devida atengdo seja dada A questo da canonicidade. Parece que esta segunda questao é coroldrio da primeira, pois saber 0 que é inspirado é tao vital quanto conhecer a natureza da inspiragao. No presente estudo, portanto, a canonicidade, tanto do Antigo Testamento como do Novo, é tratada junto com a doutrina da inspiragao, e alguma aten- go é dada também a uma outra questdo, que é complementar a da inspiragdo: a transmissdo do texto biblico ao longo dos séculos, O autor nao procurou inovar. Sua visao da inspirag4o concorda ple- namente com a posic¢io histérica crista. Do mesmo modo, seus pareceres com respeito a transmissao do texto sagrado e do cénon nao sao novos, embora varias visdes diferentes a respeito do principio que determinou o canon — nao necessariamente excludentes entre si — tenham sido mantidas ao longo dos séculos, e haja espago para algumas diferengas de opiniao a respeito desse ponto. Varias informagdes novas sobre a questio da trans- missdo do texto bem como do canon do Antigo Testamento podem ser obtidas dos Rolos do Mar Morto. O que se espera é que estas paginas ajudem os cristaos a avaliar esse Angulo do estudo dos rolos, cuja descoberta foi tao inesperada e que langam uma luz tao surpreendente e bem-vinda sobre a hist6ria da aceitagio e das cépias do texto do Antigo Testamento. & itil acrescentar que os novos rolos nao alteraram nenhum ponto que vem sendo sustentado ha muitos anos pelos estudiosos conservadores do Antigo Tes- 6 INSPIRAGAO F CANONICIDADE DA BIBLIA tamento tais como Robert Dick Wilson, Moses Stuart e outros. Varias das posigGes de criticos extremistas foram refutadas pelos novos achados, como as paginas que seguem indicar&o, embora os rolos nao sejam suficiente- mente primitivos para produzir um veredicto conclusivo para muitas das discussGes entre os da alta critica versus conservadores. Foi feita uma tenta- tiva de avaliar os rolos pelo valor que eles tém e nao forgar seu testemunho além das provas disponiveis. O livro Theopneusty — or the Plenary Inspiration of the Holy Scriptures, de S. R. L. Gaussen, de Genebra, foi escrito h4 mais de cem anos. Esse livro tornou-se um texto padrao. Porém, durante 0 século 19 os ventos dos quatro cantos sopraram com forga de tornado sobre 0 edificio de Gaussen. Sera que a visio crista histérica ainda pode ser sustentada? No final do século 19, a alta critica destrutiva cresceu a proporgées tao imensas que conquistou quase por completo a erudigao biblica da Europa. Hoje, ela é ensinada como fato certo na maioria dos semindrios teologicos da Europa (que geralmente sao vinculados a universidades) e nos semindrios teolégi- cos mais antigos da América — embora praticamente todos os semindrios teoldégicos americanos mais novos sejam evangélicos e se oponham a isso. Durante 0 mesmo perfodo, o ensino da evolugao de tal maneira cativou 0 mundo cientffico que a visao alardeada é que a ciéncia demoliu totalmente qualquer interpretagao rigorosa e justa dos primeiros capitulos de Génesis. Apareceram numerosos livros sobre temas como Em Que Podemos Ainda Crer? Muitos tentaram uma retirada estratégica ante esses dois antagonis- tas poderosos e optaram por tentar modificar esta doutrina consagrada pelo tempo — a de que a Biblia é realmente verdade em sua histéria e ciéncia como o é em assuntos espirituai O autor é um dos que créem no Livro. Ele cré que a alta critica — elaborada, como claramente foi, numa era em que praticamente nada se conhecia sobre os tempos antigos por investigacio arqueolégica — nio tem correspondido as novas informagGes e precisa ser muito modificada ou to- talmente rejeitada. Do mesmo modo, existem indicios, que seraio apresentados nos pr6ximos capitulos, de que a evolugao nao possui nenhum mecanismo operacional conhecido, e que a explicacdo dela, pelo menos quanto as origens humanas, j4 foi tio modificada que se pode dizer que simplesmente nao existe prova da passagem de um grupo de formas de vida para outro, e especificamente, das formas brutas para a humana. Ha provas de alguma variagao dentro da espécie ou dentro dos principais grupos de vida, mas nao ha nenhuma prova do desenvolvimento evolucionario. Ja & tempo de os cristdos se aperceberem desses novos fatos e reafirmarem, co- rajosamente, a posicdo crista histdrica. Essa posig’io foi mantida durante todos esses anos por incontaveis milhdes de crentes humildes. Eles basea- ram sua fé numa prova de uma espécie diferente — 0 testemunho do seu Senhor. Porém, a luz de novas evidéncias ¢ novos estudos, a fé humilde talvez possa ser demonstrada como sendo a ciéncia e a Histéria mais bem sustentadas. Essa é a conviccao do autor. PREFACIO 7 QuestSes importantes dependem das conseqiiéncias da nossa posi- gio. Muitas vezes se mantém a visto de que a inspiragio verbal (a qual, cuidadosamente definida, € a visdo crista hist6rica) € opcional na teologia crista, que pode ser aceita ou entéo omitida. Espera-se que este estudo de- monstre de forma convincente que o crente humilde sempre esteve certo na sua opiniao instintiva de que ou a pessoa precisa aceitar toda a Biblia, ou nao ter certeza a respeito de nenhuma parte dela. Um livro didatico sobre a Fisica pode estar 99 por cento correto e | por cento errado. Nés acreditamos na parte que esta certa porque é inerentemente verdadeira e verificavel. 0 restante nds estamos livres para rejeitar. Mas quem cré na Biblia por partes j4negou que ela deva ser crida por ter autoridade, pois o mesmo Senhor que autentica os Salmos também autentica Génesis 3 e a autoria do livro de Daniel. Quando um cristéo nega fatos e histérias do Antigo Testamento, ele duvida do seu Senhor. Aqui surge a seriedade de toda pesquisa crista em assuntos de autoridade biblica. Ainda é verdade que “se crésseis em Moisés, também crerieis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito” (Jo 5.46). Perguntas biblicas ainda sao basicas. Espera-se que nestas paginas elas te- nham recebido tratamento justo e cuidadoso. Possa este estudo estimular outros nesse mesmo campo. E um dever prazeroso reconhecer 0 quanto se € profundamente deve- dor a outros — aos grandes homens que nos antecederam, mas também a varios amigos do presente. A visio apresentada aqui, a de que a divisao do canon do Antigo Testamento nao consistiu de trés segdes definidas, mas que elas eram em certa medida fluidas, e que alguns livros estavam ora na segunda divisao ora na terceira, nao é original deste autor. Aparentemente, foi sustentada em dias passados (ver cap. 6, n. 35), masa visio de um desenvolvimento triplice ganhou crédito entre os criticos estudiosos no século 19. Depois, entre os conservadores, 0 prestigio do nome de William Henry Green se destacou a favor da teoria de um canon triplice. Robert Dick Wilson, ao considerar as evidéncias com novos olhos, ensinon essa visao de uma classificagao triplice fluida dos livros. Ela foi passada ao autor pelo seu professor, pupilo de Wilson, o Dr. Allan A. MacRae, que hd muitos anos vem sendo tanto colega como amigo. E um prazer reconhecer essa divida. No levantamento das provas desde os primeiros séculos cristéos quanto ao motivo que levou a escolha dos livros neotestamentarios atuais, o autor foi ajudado muito na preparagao da primeira edigao deste livro por um cole- ga e amigo mais novo, William A. Sanderson, que j4 havia tratado da evidéncia quando da preparagao de uma tese de mestrado sob a orientagio do autor. Outro dos orientandos do autor, Carl Cassel, que fez trabalho de mestrado semelhante no Wheaton College, havia chegado 4 mesma conclu- sao —a de que o teste de canonicidade aplicado pela igreja primitiva foi o da autoria apost6lica. Essas duas teses foram usadas como referéncia aos da- 8 INSPIRACAO © CANONICIDADE DA BIBLIA dos, embora os dados patristicos em si tenham sido conferidos constante- mente e sejam citados aqui com freqiiéncia. Talvez seja interessante observar que quando esses estudantes comegaram suas pesquisas, ambos tinham uma visdo diferente do teste de canonicidade usado pela Igreja Primitiva. O exa- me das evidéncias os levou também as vis6es aqui propostas. E livremente reconhecido que as 6ticas sobre a canonicidade aqui expressas n&o sdo as tinicas mantidas pelos estudiosos conservadores da Biblia. Por essa raziio, repetidamente citamos os préprios autores cristdos primitivos, de modo que o leitor possa ter maior facilidade em julgar por si mesmos os argumentos. Também, as questdes de canonicidade e inspiragao muitas vezes se baseiam nas mesmas testemunhas primitivas € assim, por- tanto, acontece de itens importantes 4s vezes serem objeto de referéncia mais de uma vez. Espera-se que esse tratamento dé ao leitor mais do que apenas uma introdugao a riqueza do testemunho cristao, especialmente dos dois primeiros séculos. Varios desses autores primitivos sofreram martirio por causa da fé que professavam. Bem nos faria ouvir mais vezes 0 testemu- nho e a histéria deles. Gratidao é devida a estudantes pacientes que, no decorrer de anos de aulas, oferecerarn incentivo e encorajamento para 0 estudo da Palavra de Deus. O autor agradece aos estudantes que o ensinaram! Também uma pa- lavra de apreciagio deve ser dirigida a uma neta e artista eximia, Amanda Dryden Smick, pelo desenho da capa; agradecimentos adicionais devem também ser feitos a amigos pacientes que ajudaram o autor a entrar na era do computador - 0 Rev. Gareth E. Tonnessen de Lewes, Delaware; e 0 Sr. D. Randall Iserman, de Wilmington, Delaware, que ajudaram com aconselhamento e material; e ainda, especialmente, ao Sr. Samuel B. Harvey, do Business Research Institute, de Stowe, Vermont, pelo incentivo e auxilia técnico. Finalmente, o maior agradecimento vai para minha esposa, Anne — ela mesma professora treinada na Biblia e suas linguas — pelas corregdes, sugestdes, sabedoria e apoio nas horas de verificagiio, busca e formulagao dos dados aqui apresentados — Provérbios 31.30. R. LAIRD HARRIS, Ph.D., Professor Emérito de Antigo Testamento, Covenant Theological Seminary, St. Louis, Missouri, agora domici- liado em 9 Homewood Rd., Wilmington, DE, 19803, Dezembro de 1994. Sumario Prefacio Abreviagdes Primeira Parte: Inspiragao 1. Introdugaio O Surgimento da Alta Critica A Evolugio ea Biblia A Difusdo da Descrenga Moderna 2. Por Que Cremos na Biblia O Ensino de Jesus (O Sermao do Monte) Ama teu Préximo Juramentos Otho por Otho Adultério Homicidio Divércio 10 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA O Ensino de Jesus em Outra Parte Reivindicagées da Inspiragdo em Outras Passagens Biblicas 3. Inspiragdo Verbal na Hist6ria da Igreja 4. Critica Textual e Inspiragao O Novo Testamento O Antigo Testamento 5. Hermenéutica e Inspiragio 6. Objegdes A Doutrina da Inerrancia Verbal Segunda Parte: O Canon do Antigo Testamento 7. Historia da Aceitago do Canon do Antigo Testamento 8. O Principio Determinante do Canon do Antigo Testamento 9. A Extensao do Canon do Antigo Testamento Conclusaio Terceira Parte: O Novo Testamento 10. O Testemunho do Novo Testamento sobre si Préprio 11. Hist6ria da Aceitagao dos Livros do Novo Testamento 12. Os Principios Determinantes do Canon do Novo Testamento 13. O Teste Patristico da Canonicidade 14. Livros de Autoria Questionada 15. Conclusio Notas Bibliografia Selecionada Referéncias para Materiais Fonte Antigos Rolos do Mar Morto Pais da Igreja Primitiva Papiros Biblicos Primitivos Referéncias Gerais Indice Remissivo 127 129 159 183 194 197 199 217 241 257 293 305 349 349 349 350 350 350 357 AB ALQ ANET ANF BA BAG BASOR BCS BR BSac cbc DSD DSS EBC EGT HAC HE ICBI Icc IVP JBR JETS OTCNTC SCM SPCK TWOT VT WCNT ZINT ZPEB Abreviagoes Anchor Bible The Ancient Library of Qumran Ancient Near Eastern Texts Ante Nicene Fathers Biblical Archaeologist Bauer-Arendt-Gingrich Greek Lexicon Bulletin, American Schools of Oriental Research Bruce, The Canon of Scripture Biblical Review Bibliotheca Sacra Cairo Damascus Covenant (também chamado Doc. Zadoquita) The Dead Sea Manual of Discipline (também chamado IQS) The Dead Sea Scrolls The Expositor's Bible Commentary The Expositor’s Greek Testament Hermeneutics, Authority and Canon, org. pot Carson & Woodbridge Eusébio, Ecclesiastical History International Council on Biblical Inerrancy International Critical Commentary Inter Varsity Press Journal of Bible and Religion Journal, Evangelical Theological Society (originalmente BETS) Beckwith, The Old Testament Canon in the NT Church Qumra Cave Scrolls; 1Q = de gruta 1; TQS = Manual de Disciplina (um Seder) da gruta 1; 4Q flor = Gruta 4 Florilegium, etc Student Christian Movement press Society for Promotion of Christian Knowledge Theological Wordbook of the Old Testament Vetus Testamentum Westcott, Canon of the New Testament Zahn, Introduction to the New Testament The Zondervan Pictorial Bible Encyclopedia Primeira Parte INSPIRACAO 1 Introdu¢gao Tanto nos Estados Unidos como em toda a civilizag4o ocidental, a maioria das pessoas tem a Biblia em alta estima. Ela pode nao ser lida tao fielmente como deveria ser. Em muitos lares, ela talvez esteja acumulando pé, sobre um aparador num dos cémodos da casa. Porém, sem diivida, a maioria dos lares americanos tem uma Biblia e reverencia a Palavra de Deus, pelo me- nos em teoria. No lar e no corag4o de milhées de pessoas, ela é reverenciada de fato bem como em teoria, ¢ as béngaos da sua doutrina enobrecedora ainda enriquecem muitas vidas, como jd abengoaram as vidas e os lares dos nossos antepassados, A Biblia foi o primeiro livro a ser impresso. Uma porgao da Biblia, o livro de Salmos, chamada 0 Bay Psalm Book, foi o primeiro livro impresso na América do Norte. A Biblia ainda é, de longe, 0 livro mais vendido nos Estados Unidos. Mesmo a partir da edigao original do presente livro, publi- cado em 1957, um bom ntimero de importantes novas versées da Biblia tém aparecido e sido usadas em larga escala. A mais popular, a New International Version (NIV), impressa em 1978, registrou quase cem milhdes de exem- plares da Biblia toda ou do Novo Testamento, até 1994. [Em portugués, ha a Nova Verso Internacional (NVI) desde 2000 — N.T.]. A Biblia ja foi traduzida para muito mais lfnguas do que qualquer outro livro: sua leitura abengoa seus leitores dedicados em mais de mil linguas. Sua forga na cultu- ra inglesa nao é resultado do estilo especialmente lindo da Versio do Rei James de 1611. Na verdade, é justo dizer que a King James Version (KIV) foi o produto daqueles que amaram a Biblia em vez de ser a causa desse 16 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA amor. Varias versées anteriores haviam tornado 0 povo inglés conhecedor e amante da Biblia como Palavra de Deus, em qualquer roupagem em que aparecesse. Na Europa Continental, o grande movimento de reavivamento chamado de Reforma Protestante foi deflagrado por uma énfase renovada na Biblia. Os dois grandes principios da Reforma foram a justificacao pela fé somente e a suprema autoridade da Biblia. Na Alemanha, um dos frutos mais duradouros da obra do grande Reformador foi a traducao da Biblia por Lutero. Geralmente se reconhece que a escolha que Lutero fez de um diale- to para sua versdo foi o que assegurou que esse dialeto tivesse um lugar de supremacia, de modo que acabou se tornando a lingua da nacao. Assim a Palavra de Deus cresceu e prevaleceu. Uma pergunta que tem sido feita repetidamente é: O que é que a Biblia tem que fez com que recebesse tao tremendo reconhecimeto — pelo mundo todo e de modo tao duradouro ~ de tantas pessoas de varios tempe- ramentos € civilizagées, e gerasse nos seus adeptos uma devogo tal a ponto de eles sujeitarem-se ao martirio por ela? Qual € 0 segredo da atragao que a Biblia exerce? Em si é um fenémeno estranho que a hist6ria das lutas e dos pecados dos reis ¢ sacerdotes de uma nagao antiga e fraca tivesse um fasci- nio tao constrangedor até para as criangas dos nossos dias. E os homens se perguntam qual o sentido que poderia ter, para os nossos dias, a hist6ria de um professor religioso de Judaismo e seu pequeno grupo de doze pescado- res. Se a Biblia fosse apenas uma coletanea de contos antigos, para nao dizer lendas, a imponente estrutura da Igreja Crista, com todos os seus em- preendimentos sociais de beneficéncia, repousaria sobre um alicerce de areia. Se a Biblia fosse meramente um livro classico, seria de interesse, mas nao haveria explicagéio para o poder que ela exerce sobre 0 coragdo dos homens. Que a Biblia é um livro de interesse, de beleza e de forga moral, poucos chegariam a negar. Porém, que ela é mais do que isso parece sobremaneira auto-evidente. CO fato é que a Biblia vem tendo sua influéncia no mundo e no cora- gdo dos homens nos lugares em que foi recebida como nada menos do que o Livro de Deus, uma revelagao de vida e luz e imortalidade. Ali, sua beleza € vista como sendo a beleza da verdade. Suas histérias sao os registros da intervengdo divina real na Hist6ria. Seus personagens so homens a quem ¢ por intermédio de quem Deus falou. E sua figura central é o Deus encarna- do. Isso, como veremos, é 0 que a Biblia afirma ser — um Livro inspirado pelo Espirito de Deus, que traz uma mensagem de salvag&o a homens de- sesperados e desamparados. Varias definigdes so necessdrias ao abordarmos um tema tao discu- tido como é a inspiragdo da Biblia. A palavra “inspiragdo” € usada numa variedade de sentidos. Quando a bandeira esta sendo abaixada numa retira- da, a miisica militar no campo de exercfcios pode ser chamada de profundamente inspiradora. A poesia elevada, ou a arte, ou um apelo retérico por aco para uma boa causa também pode ser chamada de inspiradora. Isrropucio 7 Mas a Biblia € dita inspirada no velho sentido da palavra. O termo “inspi- rar”, naturalmente, dd a entender que hd um fdlego ou espirito dentro. Dizemos que a miisica é inspirada porque ela eleva 0 espirito dentro de nés. Mas 0 uso mais antigo da palavra com respeito a Biblia vem da referéncia em 2 Timéteo 3.16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus”, no sentido de que o Espirito Santo de Deus trabalhou na produgao da Biblia. O Espirito de Deus estava dentro dos autores que a produziram. Em palavras simples, a igreja crista tem crido, ao longo dos séculos, que a Biblia foi produzida por Deus, “respirada por Deus”, mas como a palavra “inspiracdo” € usada com diferentes sentidos até nos meios teolégicos, torna-se necessdrio agora qua- lificar 0 termo para indicar especificamente 0 que um homem quer dizer quando afirma crer na “inspiragéo” da Biblia. Numa geracao passada, a palavra “plendria”, com o significado de “cheia”, era usada como adjetivo qualificativo para indicar a crenga de que a Biblia era “completamente ins- pirada”. Essa é a terminologia usada por Charles Hodge na sua conhecida Teologia Sistemdtica do século 19. Ele quis dizer com isso que a Biblia é toda de Deus; é a Palavra de Deus in toto, e nao h4 mistura nenhuma de erro humano na sua produgado.' O mesmo fato € agora expresso de outras manei- ras, muitas vezes, porque a expressio de Hodge as vezes tem sido interpretada como significando apenas que todas as partes da Biblia, de Génesis a Apocalipse, foram de alguma forma produzidas com a ajuda de Deus, mas nao sao todas, necessariamente, de verdade divina absoluta. Para preservar o conceito mais antigo, a expressao “inspiragao verbal” ou “inspiragao ple- naria verbal” veio a ser usada para declarar que Deus dirigiu até a propria escolha das palavras no Santo Volume, de maneira que pode ser dito verda- deiramente que a Palavra de Deus é sem mistura de erro humano. Isso também pode ser expresso insistindo-se que a Biblia € “verdade de comego a fim” ou especificando que é sem erro de “fato, doutrina ou juizo”. A idéia de “inspiragéo verbal” foi rejeitada por muitos tedlogos do Ultimo meio século. Naturalmente, rejeitar qualquer verdade é privilégio de qualquer homem. Ha poucos ensinos que nao foram negados por ninguém! Mas parece muitissimo desastroso que a doutrina da inspirago verbal te- nha sido, em dias recentes, nao somente rejeitada, como também mal entendida, depois caricaturada, caluniada, e ostentada para ser atacada como se matd-la significasse prestar um servigo a Deus. No momento, tudo o que queremos fazer é definir a doutrina. O apoio a ela vem depois. Alguns caricaturam a doutrina dizendo que nado podem crer numa “teoria do ditado” tao rigida e mecAnica. Ora, rigida a doutrina pode ser, mas ela ndo é mecAnica, a ndo ser que seja mantido que o Espirito de Deus no tem meios para trabalhar que ndo sejam mecdnicos. Segundo a Biblia, 0 Espirito de Deus levou o rei da Assiria numa grande expedigao contra Israel e Judd sem que o rei soubesse de modo algum que estava cumprindo os propésitos de Jeova, o Deus de Israel (Is 10.5s.). O Senhor € capaz igual- mente, segundo nossa doutrina, de usar e supervisionar a boca disposta do 18 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA rei Davi para que ele diga o que é verdade de Deus e s6 a verdade (28m 23.2) sem que por isso ele tenha os seus prdprios poderes naturais de retéri- cae canto sustados. Isso pode ser chamado de teoria da operagao concordante. E claro que ha partes da Bfblia que foram ditadas. Deus nao apenas pronun- ciou os Dez Mandamentos, mas a Escritura diz que “as tabuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus” (Ex 32.16 cf. 31.18). Muitas das palavras do Cristo glorificado a Joao na ilha de Patmos foram escritas por ditado, Mas em geral a reivindicagao dos profetas e apés- tolos é que suas palavras foram as palavras de Deus, porque esses homens foram impelidos, “movidos pelo Espirito Santo” (2Pe |.21), nao porque seus escritos foram ditados palavra por palavra. Nenhum credo de qualquer importancia na Igreja Crista ensinou a teoria do ditado, embora, como iremos ver, os credos estejam cheios de afirmagées de que nao ha contradigdes na Escritura, que toda ela é para ser crida, que Deus é o Autor da Biblia inteira, etc. E h4 poucos — se é que ha algum ~ autores teolégicos de importancia que se tenham prendido a teoria do ditado, ainda que a visao geral durante a histéria da igreja crista tenha sido que as Escrituras sao verdade até o menor detalhe. Talvez 0 unico cre- do que possa ser acusado de ensinar o ditado seja a declaragao catélico-romana escrita pelo Concilio de Trento em 1546. Nessa declaragao € dito que as Escrituras eram um Spiritu Sancto dictatas. Mas sem divida devemos traduzir essas palavras simplesmente como “Faladas pelo Espiri- to de Deus”.> O método de Deus dar sua Palavra ao autor humano provavelmente nao esta especificado na declaragao tridentina, e a lgreja Catélica Romana hoje nao se prende a uma teoria do ditado mecanico, mesmo que oficialmente se atenha estritamente a inspiragdo plena das palavras. A declaragiio do Concilio Vaticano de 1870 foi que a Biblia (in- cluindo os Apécrifos) “contém revelagdo sem nenhuma mistura de erro”.* Ao manter a doutrina da inspiragao verbal, os credos protestantes e a Igre- ja Romana estac e sempre estiveram de acordo. Esse nao foi o ponto em questao nos dias da Reforma. Deve ser desnecessario, mas talvez seja prudente, acrescentar um pro- testo a mais contra a equiparagao de inspiragdo verbal com ditado mecanico. O protesto de Machen ainda é digno de ser reimpresso: “O Espirito, diz-se, é representado nessa doutrina como ditando a Biblia a escritores que foram realmente pouco mais do que datilégrafos. Mas naturalmente essas carica- turas nao sao baseadas em fatos, e é um tanto surpreendente que homens inteligentes estejam tao cegos pelo preconceito sobre essa questao que nem examinam por si os tratados perfeitamente acessfveis nos quais a doutrina da inspiragao plendria é apresentada. Geralmente considera-se boa prdatica examinar uma coisa pessoalmente antes de ecoar a ridicularizagéo vulgar da mesma. Porém, com respeito a Biblia, essas reservas eruditas de alguma forma so vistas como fora de propésito. E tio mais facil contentar-se com alguns adjetivos infamantes tais como ‘mecAnicos’, ou semelhantes, Por InTRODUGAO, 19 que se ocupar da critica séria quando as pessoas preferem a ridicularizagao? Por que atacar um adversério real quando é mais facil derrubar um espanta- Iho?’ Engelder cita A. H. Strong, T. A. Kantonen, E. E. Flack, A. Deissmann, GT. Ladd, W. Sanday e outros, que fazem essa confusdo fatal (ele poderia ter citado também Karl Barth). Ele cita também Quenstedt da Reforma Luterana, Epifanio e outros antigos, Graebner, F. Pieper, B. B. Warfield e outros modernos como definitivamente ndo se atendo a uma teoria mecani- ca, todavia defendendo nada menos que a inspiracdo verbal.° Warfield coloca contra a caricatura um protesto como 0 de Machen.” Essa doutrina da inspiragao verbal, mesmo entendida corretamente, foi agora abandonada em larga escala. Ao longo dos séculos, a Biblia tem resistido a muitos ataques de inimigos de todo tipo. Mas no século 20 foi chamada a suportar ataques repetidos na casa dos seus amigos. A Biblia agora é livremente colocada em diivida por pregadores em muitos ptlpitos € por professores na maioria dos seminérios tradicionais nos Estados Unidos. Os leigos de nossas igrejas custam a acreditar que nossos ministros, em muitos dos pulpitos de nossas denominagées tradicionais, talvez a mai- oria deles, ndo mais creiam que a Biblia seja verdade do comeco ao fim, como criam nossos antepassados. Os fatos chegam como um chogue tao pouco bem-vindo que ou n&o sao cridos, ou entdo, como é mais freqiiente, nao sao enfrentados. Mas essas atitudes nado levam a nada. A evidéncia € grande demais para ser negada. E a questao é crucial demais para ser negli- genciada. As igrejas tradicionais perderam terreno e seus nimeros cafram de modo marcante no tiltimo meio século.' Nao é surpreendente, para dizer © minimo, que o periodo de apatia crescente dessas igrejas, sua perda de membros, a redugaio em suas missées, o fracasso de sua influéncia moral, e a perda de zelo evangelistico corresponde quase que exatamente com o pe- riodo da difusdo de sua falta de crenca na Biblia e nas doutrinas centrais que ela contém? Como prova disso, 0 crescimento dos seminarios e das organi- zacOes missionarias, ¢ a expansdo de denominacées novas e mais rigorosas correspondem a um ressurgimento da fé na Biblia como Palavra infalfvel de Deus. A questo da plena veracidade da Biblia precisa ser enfrentada pelos cristaos inteligentes. Como a pergunta ainda mais basica “Que pensais vés do Cristo?”, ela nao pode ser posta de lado. O Surgimento da Alta Critica Para compreender essa mudanga de atitude em relacdo a Biblia, um breve esbogo histérico se faz necessario. Durante séculos, a Igreja havia crido no que esta 4 mostra na evidéncia biblica, que os varios livros da Biblia foram escritos pelos autores cujos nomes levam e que foram mais ou menos con- tempordneos dos acontecimentos que narram, como eles préprios afirmam. A unidade dos varios livros nao foi questionada, exceto, talvez, por um ocasional herege antigo e extremado como Celso. Esses pontos de vista nao 20 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA foram seriamente desafiados antes do final do século 18. Durante 0 século 19, pontos de vista completamente opostos vieram 4 tona e se tornaram popularmente conhecidos pelo nome de “alta critica”, ou como alguns a designariam, “alta critica destrutiva”. Nao € necessério ir além de um breve resumo do desenvolvimento desse movimento. Jean Astruc (1753) € creditado com a primeira observa- ¢do da variaco dos nomes divinos no Génesis, tendo conclufdo disso que parte do Génesis era uma combinagao de fontes diferentes. Ele sustentava de mancira suficientemente ortodoxa que Moisés havia usado duas fontes histéricas antigas, uma que usava o nome hebraico de Deus, YHWH, ou “Jeova”,? ea outra que usavaa palavra hebraica Elohim, que significa “Deus”. Foram escritores posteriores que estenderam essa hipétese de fontes documentérias a todo o Pentateuco e também a escritos posteriores. Eles declararam que o Pentateuco nao foi obra de Moisés, mas sim um composto de partes histéricas escritas por outras e desconhecidas mios. A hipstese foi apresentada por um alemio, Eichorn (1823), modificada por Hupfeld (1853), que argumentou que o préprio documento Eloista foi composto de dois do- cumentos, um “Primeiro Elojsta” e um “Segundo Eloista”, depois modificado novamente por Karl H. Graf, cujas idéias foram popularizadas por Julius Wellhausen (1878). As novas teorias foram espalhadas na Inglaterra especial- mente por Robertson Smith, editor da Encyclopedia Britannica no seu tempo. A teoria entdo sustentada tomou forma em 1865, quando Graf deci- diu que o Primeiro Elojsta (que ele chamou de documento “P”) era realmente 0 mais recente dos quatro e o Segundo Elohist seguia, cronologicamente, ao documento “J”. Assim, dois documentos, como foi sustentado de inicio, tornaram-se quatro, porque Deuteronémio tinha sido atribufdo aos dias de Josias por DeWette em 1805. Esses quatro documentos foram chamados de “J”, a partir da idéia original de que usava o nome “Jeova”, “E”, por causa do uso da palavra Elohim para Deus, “D”, por causa da grande porgiio de Deuteronémio nele, e “P”, por causa das caracteristicas sacerdotais (“Priestly”) encontradas nesse documento, Portanto, a base da alta critica, conforme mantida durante muitos anos, é a divisdo dos primeiros cinco ou sete livros da Biblia nos Documentos J, E, D, e P.'° A teoria da alta critica esbogada acima representa 0 consenso dessa erudigdo nos primeiros anos de 1900. Desde entao foram feitas varias mo- dificagdes, que nao podemos detalhar aqui. A visto de Wellhausen foi seguida pela Critica da Forma; esta foi modificada pela Critica Tradicional-Histéri- ca, depois vieram outras modificagées. A Critica da Forma procurou identificar varias formas ou géneros literdrios nos documentos e atribuir essas porg6es a varias fontes ou a perfodos anteriores. A Critica Tradicio- nal-Hist6rica opera sobre os itens escolhidos pela Critica da Forma e estuda como podem ter sido modificados e ajustados por maos posteriores e entretecidos para formar unidades maiores. Esses pontos de vista foram aplicados de varios modos por varios estudiosos e com varios resultados. IntRopugAo 21 Mas 0 resultado no final de dois séculos de critica do Pentateuco foi negar que as leis e a hist6ria dos cinco livros de Moisés sejam primitivas ou que sejam fato. Como Otto Kaiser 0 coloca num livro representativo sobre in- trodugao de um ponto de vista da alta critica: “O quadro, conhecido por todos pela narrativa biblica do Israel que, a partir dos doze filhos de Jacé, miraculosamente tornou-se uma na¢do numerosa no Egito, escapou da ser- vidao sob a lideranga de Moisés, foi salvo no Mar, aceito em alianga com Deus no Sinai e finalmente depois de quarenta anos de andangas foi condu- zido por Josué que o fez entrar na terra prometida, para nés nao faz mais parte da Histéria”."' E claro que, se esses registros do Pentateuco nao sao verdadeiramente hist6ricos, eles ndo sao utilizados no estudo da religiiio do Israel primitivo, e as leis e os mandamentos nao tém forga de imposi¢ao. Os Dez Mandamentos acabam sendo chamados entao, jocosamente, de as Dez Sugestoes! E instrutivo olhar para a hist6ria da alta critica em dias mais recentes. Otto Kaiser reconstitui essa histéria de modo pratico.'? Hé uma variedade estonteante de opinides, muitas vezes contraditérias. Assim, a origem da nacao foi retratada por Alt e seus seguidores como devida ao ritual de um santudrio central no qual pessoas espalhadas se uniram num grupo de doze tribos, talvez relacionadas a obrigagdes mensais de culto. Kaiser duvida disso ¢ mantém que a nagdo 86 se tornou unida sob Davi. Ele diz mesmo que Israel se estabeleceu em Canad em “duas ondas de invasées entre os séculos 14 e 11”." Ele considera isso como sendo “certeza”. Atualmente, porém, hd um ponto de vista que diz que os israelitas nao vieram de parte alguma. Eles eram os camponeses locais que se revoltaram contra os que os governavam e estabeleceram uma unidade diferente.'* Deve ser lembrado, no entanto, que seja como for que os estudiosos criticos possam diferir so- bre a pré-hist6ria de Israel e a formagao dos registros primitivos, ha concordancia bdsica a respeito da antiga hipdtese documentéria de que Génesis a Nuimeros so compostos de trés fontes, J, E e P, escritos em cerca de 950, 750 e 450 a.C., que com toda certeza contém apenas material lendé- rio. Deuteronémio é tratado de varias maneiras, com Noth estendendo o trabalho do “deuteronomista” até o final de 2 Reis, outros sendo mais restri- tivos, mas todos concordando que Deuteronémio nao pode ter sido escrito por Moisés. O Dr. K. A. Kitchen, Meredith G. Kline e outros do lado conser- vador quase nao sao ouvidos.'5 O. Kaiser, numa nota de rodapé (p. 126) diz: “Os argumentos contrarios de G. T. Manley... e M. G. Kline ... nao vao fazer voltar a roda da erudigao”."’ Tendo em vista as répidas revolugées de opi- niao dos estudiosos criticos que o proprio O. Kaiser documentou, a metafora de uma roda giratéria de erudigdo liberal pode realmente ser mais apropria- da do que o intencionado. Tratamento posterior e mais extenso dos varios pontos de vista das origens e vicissitudes das variadas fontes se encontram nas introdugées padrao do Antigo Testamento. Os detalhes esto além do nosso presente propdsito,'” 2 INSPIRAGAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Nao se deve supor que qualquer pessoa que conhega hebraico pode pegar sua Biblia e ler alguns versiculos do Génesis e saber ao certo que esses versiculos pertencem a este ou aquele documento. As alegadas dife- rengas de estilo nao sao tao distintas assim. Na verdade, existe ampla divergéncia de opiniao entre os criticos quanto a exatamente o qué pertence aos varios documentos. E os critérios que dao base para a divisao falham com tanta freqiiéncia e apresentam um quadro tao confuso que um sem-fim de documentos subordinados e subeditores ou “redatores” sao acrescenta- dos para ajudar a sustentar a teoria. Nas mos de criticos extremistas a situagao ja ficou quase risivel. Por exemplo, no volume sobre Génesis no International Critical Commentary, (1910) Skinner, um estudioso compe- tente, dividia Génesis 21.1 em duas partes. A primeira metade, “Visitou 0 Senhor a Sara como lhe dissera”, é J: note o uso do nome Jeova. A segunda metade, “e o Senhor cumpriu o que lhe havia prometido” é de E; claramen- te, “Jeova” é usado nesta metade também, mas sem dtivida é uma glosa (uma substitui¢do posterior) para Elohim, que deve ter estado aqui no docu- mento original. E. A. Speiser, no seu comentrio sobre Génesis (1964) faz a mesma afirmagao."* E preciso usar lentes criticas fortes para se dividir versiculos assim com 0 uso de critérios que nao estio 14! Faz lembrar 0 episédio de Alice no Pais das Maravilhas em que Alice, olhando para 0 caminho, diz: “Eu nao vejo nada”. “Que visdo maravilhosa”, comentou a Rainha, “poder ver nada, e a essa distancia!” Teme-se que a tendéncia da hipétese critica é possibilitar aos criticos extremados, pelo menos, nao ver nada, mas dividirem os documentos assim mesmo. Nosso objetivo no pre- sente momento, contudo, nao é tanto considerar a alta critica como mostrar a relago dela com a questo da crenga na Biblia. Um ponto mais deve ser enfatizado. A objegdo ortodoxa a alta critica nao é simplesmente contra a andlise do Pentateuco por fontes, mas contra as datas atribuidas a essas fontes. E bem possivel, até provavel, que Moisés tenha usado fontes para suas hist6rias no Génesis. Nada hd nessa posi¢Z0 que seja inconsistente com a doutrina da inspiragao verbal. Lucas, no seu prélogo, nos assegura que ele tinha cuidadosamente usado todas as fontes que péde consultar. O uso de fontes escritas por Moisés no restante do Pentateuco seria mais dificil de aceitar, visto que ele proprio era a melhor fonte para todas essas histérias. Mas 0 grande afastamento da alta critica do ponto de vista antigo é a data atribufda a esses documentos. A reivindicagao € que eles foram escritos séculos, até mil anos, depois de Moisés. Eles sus- tentam que o Documento P 6, quanto ao estilo e 4 perspectiva, muito semelhante ao Livro de Ezequiel, e que pode, portanto, ser datado segura- mente do perfodo das turbuléncias durante e depois do Exilio — cerca de 450 a.C. E dito que o Documento J tem afinidades com os grandes movimentos proféticos dos dias da monarquia, e foi ent&o datado em cerca de 850 a.C. (agora colocado em aproximadamente 950 a.C.). O Documento E mostra um desenvolvimento a mais e é dito ser de cerca de 750 a.C. O Documento Déconfiantemente afirmado ter sido 0 rolo da Lei que Hilquias, o sacerdo- Intropucko. 23 te, disse ter encontrado no entulho do Templo durante os dias de Josias, e cuja descoberta causou tanta agitagdo no reino. Realmente, dizem eles, Hilquias nao descobriu um livro hd muito perdido; ele simplesmente levou ao rei um livro que havia sido escrito recentemente e passou-o, ludibriando © monarca que de nada suspeitava, como produgao de Moisés, 0 grande doador da lei de dias passados. Sua data assim seria cerca de 625 a.C. Al- guns diriam mais cedo, outros mais tarde. Noth e alguns outros dariam ao “deuteronomista” também a forma atual dos livros de Josué a 2 Reis.” O Pentateuco inteiro teria sido composto por volta de 400 a.C. Por esse esboco da hipstese documentaria, € facil ver por que aqueles que sempre acreditaram na integridade da Biblia, e especialmente na verdade das palavras de Cristo, esto grandemente preocupados. E inconfundivel- mente claro que o Pentateuco reivindica ser uma unidade; que os outros livros do Antigo Testamento se referem a ele como sendo a Lei de Moisés; que Cristo o declarou verdadeiro e como sendo obra de Moisés, que falou profeticamente a seu préprio respeito. E bem aparente que negagées tao amplamente difundidas da veracidade plena da Biblia inteira, incluindo o Novo Testamento, estao ligadas intimamente com essa visdo da alta critica que cresceu tao tremendamente no tiltimo século e meio. Devemos admitir que Jesus Cristo nao era um alto critico. Sua visdo da autoria dos varios livros era a que foi comumente mantida ao longo de séculos de Cristianis- mo. A questao torou-se, portanto, uma escolha entre Cristo e a critica. O efeito da alta critica é negar Cristo ou reduzi-lo a proporgdes puramente humanas. Ele foi, dizem, um filho de seus dias, sujeito aos erros e as limita- g6es do conhecimento do seu tempo. E problema da teologia moderna, tendo chegado a esse resultado, tornar a revelagao e a obra dele relevantes para os nossos dias. E parece mesmo ser um grande problema, quase igual a reter um fluxo de corrente depois que se jogou uma chave inglesa no gerador! Mas ainda a situagdo nao estd toda diante de nds. Pés-datar o Pentateuco do modo descrito pedia um reexame do restante dos livros. E dito que a teologia do Documento J € primitiva e que tragos da velha idola- tria transparecem. Por exemplo, por causa da cena em que Aarao adorou 0 bezerro de ouro, é dito que todo o Israel em certa época adorava um bezerro de ouro — adoragao de touros.”* De acordo com isso, a adoragao semelhante de bezerros de ouro por Jeroboao no Israel do Norte por volta de 920 a.C. & também tipica da velha pratica israelita. Mas os reformadores dos tempos do Documento J (por volta de 850) tentaram erradicar tudo isso e retrataram Aariio e Jeroboao como se estivessem introduzindo uma nova idolatria, apostatando do culto a Jeové. E depois que os homens do Documento J tinham elevado Jeové A posigao de supremacia em Israel, os homens do Documento E foram mais longe e declararam que o Deus de Israel era su- premo em todo o mundo. Assim, a religiao de Israel evoluiu do estégio baixo do politeismo e idolatria para o henotefsmo (um Deus para cada na- ¢4o), e finalmente, os profetas do século 8° descobriram o monotefsmo. 24 INSPIRAGAO FE CANONICIDADE DA BIBLIA Essa evolugo da fé de Israel, que escritores criticos atribuem ao génio da nacdio hebraica para a religiao, tem sido parte integra do pacote da visio documentiria. De fato, teve um papel grande nos critérios dos criticos em selecionar as diferentes por¢gdes para os documentos tratados. Ora, é claro demais que se o monotefsmo foi uma invengao do século 8° a.C., entaéo Davi nao escreveu os Salmos, Salomio nao escreveu Provér- bios, J6 foi uma criacio posterior, e muito de Samuel e Crénicas € em grande parte ficcao. Todos esses precisam ser pés-datados. Com essa visio da reli- gido de Israel, é claro, nao h4 espaco para predicdo sobrenatural especifica. Naturalmente, os profetas ainda podem ser chamados de “videntes” e suas adivinhagdes sagazes sobre o que pode acontecer no cenario politico pode Ihes ter trazido um bom renome, mas é impensdvel que Deus tenha dito a Abraaio que seus filhos passariam por quatro séculos de escravidao (Gn 15), ou que Davi pudesse predizer a ressurreigdo de Jesus Cristo (SI 16) ou que Isaias pudesse predizer a vinda de Ciro jd dois séculos antes do tempo (Is 44 e 45) ou que Daniel pudesse predizer trés grandes impérios mundiais que se seguiriam a Babilénia (Dn 7 e 8). Mas o simples recurso de pés-datar resol- ve todas essas dificuldades para os criticos. Eles insistem, pois, que Isafas nao foi escrito por um s6 homem por volta de 700 a.C., e sim por dois homens; outros dizem trés, e ainda outros dizem muito mais do que trés. Deutero-Isafas, que escreveu a profecia sobre Ciro, trabalhou durante o Exflio, e longe de ser profecia, é uma linda reescrita de acontecimentos contemporaneos.”! Trito-Isafas escreveu mais tarde ainda. Quanto a Daniel, a visdo usual é que o livro foi escrito por volta de 168 a.C., durante os tempos herdicos dos macabeus, que lideraram os judeus na gloriosa revolta contra o dominio de Antfoco Ep/fanes, o rei da Sfria, que havia profanado 0 Templo e perseguido os judeus. E histéria passada apresentada como profe- cia, para que os judeus pudessem ser encorajados pelo fato de que Deus reina e certamente os livraria. Como matéria de fato bem como de légica, esses varios pontos de vista da alta critica permanecem unidos. E impossfvel encontrar um autor que cré na alta critica do Pentateuco, mas que creia, também, que Davi escreveu todos ou quase todos os salmos que lhe sao atribuidos. Alguém que cré na divisio de Isaias também cré na data posterior de Daniel, etc. Eo que € mais importante para o nosso estudo, alguém que cré nessas coisas nao tem senao desprezo pela doutrina da inspiragao verbal. Ela é mecfinica; nao est4 mais na moda; cheira a ortodoxia morta; seus adeptos s4o obscu- rantistas; falta-Ihes amor na sua expressdo de um credo duro; trata-se de uma minoria inconseqiiente. Nas edigées anteriores deste livro (1957, 1969) foi dito (p, 28): “In- felizmente pode ser verdade que aqueles que se atém a inspiragao verbal so uma minoria nos lugares de aprendizado teolégico de hoje.” Hoje, isso nao € mais totalmente verdadeiro, A multiplicagao e 0 crescimento de semi- ndrios conservadores tém surtido tanto efeito que a partir de cerca de 1985 IntRopucAo 25 © mimero de estudantes que se graduam em seminarios conservadores a cada ano é maior do que o numero dos que se graduam em semindrios libe- rais, Ainda é verdade, no entanto, que o ponto de vista liberal prevalece na maioria dos departamentos de religiao das universidades estaduais ameri- canas e sociedades teolégicas de prestigio. Na visio popular, a ortodoxia biblica esté fora de moda e desatualizada. Duvida-se, no entanto, que a por- centagem seria téo pequena, fosse a pesquisa feita com as pessoas que se assentam nos bancos de igreja. Muitos membros de igreja que reconhecem que nao léem a Biblia tanto quanto deveriam, iriam, no entanto, declarar que créem nela e seriam as pessoas mais surpresas da cidade se seu pastor dissesse, do pilpito, em algum domingo, o que ele realmente pensa sobre a Biblia. Devemos questionar a franqueza de milhares de ministros nos puilpi- tos que escondem dos seus paroquianos sua crenga verdadeira. O espirito profético nesses lugares parece ter sumido de Israel. Nao é de admirar que as pessoas estejam confusas e indecisas. Talvez devamos acrescentar aqui que nos tiltimos anos a hipétese documentéria tem se dobrado um pouco sob o peso das descobertas arque- ol6gicas. A hipétese toda foi desenvolvida numa época em que muito pouco era conhecido sobre as antigas linguas semiticas e menos ainda sobre a historia antiga. Ela envolve o ponto de vista de que o Pentateuco era na sua maior parte lenddrio, que Davi e seu império sdo um tanto ficticios, que as expressées e formas aramaicas observaveis em varios lugares no Antigo Testamento — mais nas passagens poéticas — surgiram bem tarde na histéria da literatura semita. Todos essas concepgées sao colocadas em diivida hoje em dia. Descobertas posteriores em Nuzi e Mari forneceram téo grande riqueza de cendrio sobre os costumes é¢ as leis das familias patriarcais, que muitos agora admitem que os relatos sobre os patriarcas no Génesis estao corretos até nos minimos detalhes. E dificil manter que sejam meramente as lendarias retroprojegées de autores que viveram mil anos depois dos acon- tecimentos descritos.” As exatiddes do Génesis indicam fontes contemporaneas dos acontecimentos. Seria até quase maravilhoso demais © proprio Moisés ter escrito com tanta exatiddo a nfo ser que o material tivesse sido revelado por completo a ele como num sonho, ou a nao ser que ele tivesse consultado documentos que usou sob Deus como fontes hist6ricas do seu trabalho. E as descobertas das edificagdes de Salomao em Megido e suas obras para marinha mercante em Eziom-Geber” lan- gam uma luz tao reveladora sobre a época da monarquia unida que nao se pode mais lembrar de Davi como um rude chefe de tribo incapaz de escre- ver seus Salmos. Na verdade, agora j4 se torna comum ter porgées do Pentateuco declaradas auténticas e dar a Davi 0 crédito que Ihe cabe como o doce cantor de Israel.”* Se isso é feito, no entanto, se Moisés era monoteista, como Albright alega (ver nota anterior), entéo muito da estru- tura da visio da alta critica sobre a evolugdo da religiao de Israel precisa ser repensada. E mais, 0 velho argumento de que palavras de afinidade aramaica presentes nos Salmos e poemas do Antigo Testamento dio a 26 INSPIRAGAO F CANONICIDADE DA BIBLIA entender uma data pés-exilica ja foi totalmente abandonado nos circulos mais avancados. Em vez disso, muitas dessas formas sao agora reconheci- das pelo que sao: caracteristicas poéticas arcaicas que evidenciam, ao contrario, uma origem primitiva para essas composigées. Em suma, as teorias da alta critica de uma geragao anterior ainda esto conosco, mas foram modificadas em varios rumos por causa de mais is conhecimento da situagdo do antigo ambiente. Muitos, natu- ralmente, dirfio que nem todas as novas descobertas apsiam a Biblia, e eles ainda poem obstaculos & manutengao da doutrina da inspiragao verbal. E verdade que podem surgir problemas a partir das novas descobertas. Mas a torrente de luz agora langada sobre os registros do Antigo Testamento mos- tra uma propor¢do muito grande de exatidao histérica bem clara. Provavelmente o critico mais inamistoso apontaria para menos de meia dii- zia de casos no Antigo Testamento nos quais o relato biblico esta em franca contradig&o com os fatos até agora alegados por investigagao arqueolégica ~e j& houve, como veremos, alguns casos notdveis em que essas contradi- ges foram resolvidas por luz arqueolégica mais completa. A Evolucao e a Biblia HA outro lugar onde a inspiragdo verbal sofre forte ataque hoje. Esse ataque afeta somente uma pequena por¢io do registro biblico, mas é importante. Estamos nos referindo a questdo da evolugio ¢ a Biblia. Quase nio é preci- so falar de ciéncia e a Biblia, porque a ciéncia como um todo atinge muito pouco a Biblia. Ha poucos pontos nos quais a quimica, a fisica, a matemati- ca, etc, apontam para as Escrituras, e muito menos a contradizem. E verdade que As vezes esses poucos pontos sao levados a sério demais, mas realmente no so de grande importdncia. Por exemplo, alguns ridicularizam a Biblia dizendo que ela da um valor de 3 para pi, em vez de 3,1416. E verdade que em 2 CrGnicas 4.2 e também em | Reis 7.23 as dimensGes da grande bacia de bronze sdéo dadas como trinta ctibitos de circunferéncia e dez ctibitos de diametro, mas 0 que isso realmente prova? Trés € 0 valor de pi ao primeiro algarismo significativo, e embora o valor de pi tenha sido calculado até muitos decimais, seu valor exato nao pode ser conhecido! Nao nos sao ditas com precisao as medidas da pia, nem sabemos se era exatamente redonda, nem sabemos 0 tipo de beirada que tinha ou de que pontos as medidas de largura foram tiradas. Nada hd aqui para perturbar a fé de qualquer pessoa, nem ha base para se dizer que as Escrituras estdo erradas em sua matemati- ca. B assim € com muitas outras objegdes de menor importancia. E claro que nao é cientifico crer que o dia de Josué teve 48 horas, mas € igualmente absurdo crer que um machado podia flutuar, ou que uma virgem podia ter um filho, ou que Cristo podia andar sobre a 4gua. Todos os milagres, gran- des ou pequenos, sao impossiveis para os homens, e so uma interrupgao das leis regulares da natureza que formam a base da ciéncia. E por isso que InrropucaAo, 27 so milagres, e € por isso que Deus os deu ao homem: para provar que h4 um Deus no céu que € mais poderoso do que qualquer que é sonhado em muita filosofia, como Hamlet disse a Horacio.” Mas esses nao so conflitos entre a ciéncia e a Biblia. Antes sao conflitos entre a filosofia e a Biblia, como C. S. Lewis argumenta tao lindamente.”” No campo da intervengao miraculosa direta de Deus, a ciéncia nao pode interpor uma objecao propri- amente. Porém, os céticos acham que 0 novo conceito da evolugio torna im- possfvel manter os primeiros capitulos do Génesis. Sobre isso ha muitos diferentes pontos de vista. Sem divida é verdade que novas descobertas tornaram impossivel firmar-se nas datas determinadas por Ussher e Lightfoot no século 17 que muitas vezes aparecem nas margens das Biblias mais an- tigas. De acordo com elas, a criagio do mundo aconteceu em 4004 a.C. Nem é preciso dizer que essas datas no so inspiradas; clas nfio aparecem em nenhum credo cristo e envolvem certas suposigdes que Ussher e Lightfoot nunca deveriam ter feito. Deve-se observar que, durante a Idade Média, estudiosos judeus calcularam a data da criagao e 0 calendario judai- co atual é baseado nessa data. Ussher nao foi o tinico responsdvel, embora geralmente leve toda a culpa! Também, nao é necessdrio sustentar que os seis dias criativos de Génesis eram de 24 horas cada um. Isso, também, seria uma inferéncia da Escritura que foi bastante comum em algumas épo- cas, mas que nao é de modo nenhum declarado na Biblia. H4 muito tempo Agostinho jf mantinha que os dias eram perfodos de comprimento indefini do.” como de fato parece provavel pelo fato de que seu cémputo comeca antes que o sol e a lua tivessem aparecido. Também esse uso indefinido da palavra “dia” é evidenciado logo no capitulo seguinte (2.4), onde se fala da obra inteira da criagao como tendo sido feita em um “dia” (KJV). A NIV aqui traduz b‘yom corretamente como “quando” mas permanece a questao de que yom nao significa um dia de 24 horas. J4 houve muita discussio pré € contra a respeito dessa questdo. Que muitas vezes yom quer dizer um dia de 24 horas & verdade, mas que sempre tem esse significado nao. Ao contra- rio, no capitulo | de Génesis, freqiientemente é ressaltado que os marcadores para o dia nao foram feitos (ou nao eram visiveis no céu?) até o quarto dia. Talvez mais significativa seja a referéncia ao sétimo dia como sendo o dia em que Deus descansou da criagio. Esse descanso de Deus é citado no Salmo 95.11 como durando até o tempo de Josué e é interpretado ainda em Hebreus 4.8-11 como durando para sempre. Nao ha “tarde e manha” depois do sétimo dia. Se 0 sibado semanal de Israel de 24 horas era simb6lico do longo dia de descanso da criagao de Deus, pareceria natural que os outros dias de 24 horas do trabalho do homem poderiam ser simb6licos dos longos dias de criag&o de Deus. Se esse argumento for valido, entao a terra antiga que 0s cientistas agora alegam nao prop6e problema algum para 0 cristao. Isso nao diz que a terra seja na realidade muitissimo velha. Ha argumentos interessantes contra sua grande antiguidade como Whitcomb (veja abaixo) 28 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA e outros alegaram. Porém, se nosso argumento for valido, 0 cristo ndo tem nenhum problema seja qual for o resultado do debate sobre a antiguidade da terra e do universo. Se Deus nao nos fornece nenhuma data para a criagao, ndo devemos ir além da Biblia em nossas afirmag6es. “No principio... Deus...” Assim, essa conclusao da nova ciéncia de que o mundo € antigo real- mente nao toca a doutrina da verdade da Biblia, porém sé as inferéncias que alguns deduziram da Biblia. Uma abordagem que est4 na moda em alguns meios é procurar resolver 0 problema da evolugdo falando-se numa evolu- ¢do tetsta. Segundo essa visdo, dito que a Biblia declara 0 fato da criacdo; novas éticas cientificas apenas diio-nos os métodos da sua criagiio, que foi por evolugio. Essa idéia é aparentemente bastante atraente, mas ao que pa- rece, hd alguns pontos fixos no registro biblico que devem ser mantidos; e sao esses determinados pontos que os cientistas evoluciondrios na sua mai- oria aparentemente buscam negar. Muitas vezes se diz que a énfase no registro de Génesis é que Deus interveio diretamente na criagdo da matéria, da vida e do homem. Parece dificil nao inserir na série que Deus também interveio na criag&o de certas grandes divisdes dentro da vida. Ora, 0 problema dos cientistas quanto & criagdo da matéria talvez seja menor do que ja foi, no sentido que a matéria € vista hoje como sendo mais volatil do que os estagios anteriores da ciéncia a concebiam. Ela parece nao ser nada mais que uma variedade compacta de energia que se converte em energia com conseqiiéncias catastr6ficas. A equag4o fatal de Einstein ajuda a explicar a criagéo quando abre as possibilidades tragicas de destruigao! As concepgées atuais de um universo em expansdo imaginam um inicio, ha cerca de vinte (alguns agora dizem oito) bilhdes de anos atras, com um big- bang. Mas 0 que originou essa grande explosao no inicio da expansio? Os cientistas continuam a procurar por uma causa fisica, mas a mais dbvia é dada em Génesis 1.1. E verdade que alguns excelentes estudiosos cristaos questionam a teoria do big-bang e argumentam por um universo recente criado em meio ao véo, por assim dizer.» Se a teoria do big-bang & verda- deira, ela pelo menos parece apoiar Génesis 1.1! Nao precisamos insistir que a teoria do big-bang é verdadeira. Mais estudos poderio modificar es- sas conclusées atuais. Mas pelo menos é€ possivel dizer que nao ha agora nenhum problema cientifico em dizer que a matéria nao é eterna e que ela teve um comego. Que Deus fez isso € tao crivel como sempre foi. Podemos estar certos confiantemente de que estudos futuros, se solidamente basea- dos, nao derrubardo essa conclusio. Quanto a criagdo da vida, a ciéncia nao tem mais resposta ao que a vida € do que tinha ha alguns anos. Sio muitos os bioquimicos que tém ingénuas esperangas de que por alguma nova sintese de moléculas protéicas eles possam criar matéria viva, mas ainda nado chegaram a nenhum éxito nesse sentido. Os processos vitais esto realmente sendo mais bem compre- endidos, e devemos ser gratos por isso, mas n&éo temos motivo para pensar Inrropucao 29 que a criagdo da vida sera duplicada pelo homem. Que isso ocorreu por acaso em algum lodo primevo é pura conjectura. Em anos recentes j4 houve muito estudo da mecnica da vida. O DNA no niicleo da célula serve como padriio para a sintese das proteinas que compéem a maior parte do tecido vivo. As proteinas sdo feitas de compostos simples — vinte aminodcidos “canhotos” unidos numa seqiiéncia de cem a muitas centenas de unidades de comprimento. Eles podem estar arranjados em qualquer bandeamento, mas sé em certas maneiras sao titeis, e cada protefna é especifica para seu préprio propésito. As chances de que isso possa ocorrer por acaso sao infi- nitamente pequenas. Do mesmo modo, o DNA é formado de cordées de fosfatos e aguicares repetidos que podem ser feitos facilmente, mas os cor- does duplos sao ligados entre si por bragos semelhantes a degraus de escada de corda, compostos de quatro bases nucleotidias. Essas bases podem ser feitas sem dificuldade, mas sua configuragéo em longos cordées permite um ntimero de combinagées variadas que é dificil de imaginar. Esses mode- los se reproduzem na célula e a seqiiéncia é o que faz o organismo funcionar. Que essas seqiiéncias pudessem ter surgido por acaso exige mais fé do que © criacionismo! Num importante livro que aponta os problemas da evolu- ¢éio, Michael Denton observou que o fato de que Fred Hoyle da Inglaterra e outros de seu porte sugeriram que a vida foi importada do espago simples- mente mostra “quao intratével o problema da origem da vida ja se tornou”.*! Quanto & questao da formagao de espécies, deve ser salientado que “espécie” é uma palavra diffcil de definir. Quando a Biblia diz que Deus fez as criaturas “de acordo com as suas espécies” (Gn 1.11, NIV), ela nao espe- cifica em nenhum detalhe os limites de variagdo em gerag6es que se sucedem. O que por vezes tem sido chamado de microevolucdo nao esta excluido, embora o quadro geral parega sugerir claramente a diversidade e estase de formas de vida. Cada vez mais o pensamento evoluciondrio atual reconhece que variagGes e pequenas mutagées nao operam para mudar uma espécie ou um tipo principal de vida em outro. Observago extensa e experimentacio repetida, especialmente com as moscas-das-frutas, convenceram a muitos que praticamente todas as mutagGes sao nocivas, e as pequenas muta¢des sé ocasionam mudangas dentro da espécie ou familia. Em parte como conse- qiiéncia disso, a visdo principal parece ser que grandes mutagées que surgem espontaneamente transformam uma criatura ou um sistema significativo de uma criatura em uma coisa nova, a visio chamada de evolugio por salto. Assim, uma asa, ou penas, apareceriam de repente. Isso nado foi observado, e, visto ser uma probabilidade remota, provavelmente nunca seria observa- do, mas “deve ter acontecido”.* A essa altura, € costume os bidlogos fazerem a retirada para outro campo. E impossivel provar por experimento ou observacdo que um tipo principal de vida transformou-se em outro, mas foi alegado que o registro das rochas provou que acontece. No entanto, esse registro ja foi também posto em diivida seriamente. Darwin, de fato, reconheceu que ele nao podia 30 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA apontar para gradagGes na evidéncia fossil, mas achava que com o acimulo de mais evidéncia fossil, as formas de transigao esperadas apareceriam. Desde ent&o, multiplos espécimes de fésseis foram coletados para encher nossos museus, mas as formas transicionais nado aparecem. Esse fato embaragoso causou uma mudanga significativa no pensamento cientifico. Gould reco- nheceu o fato, ¢ ele é seguido por muitos outros.*’ A conclusao aparentemente & bem aquela que os que se opdem a evolugio vém dizendo h4 muito tempo. A evidéncia de transformagao de um tipo de organismo em outro realmente nao é encontrada. Por causa de tudo isso, talvez possamos ser perdoados se achamos mais razodvel crer que Deus teve seus préprios modos de formar as espécies durante seus grandiosos dias criativos e que dali em diante as coisas procriaram conforme suas espécies, que é tudo o que jd foi observa- do na maioria dos experimentos mais detalhados. Quanto a criag&o do homem, a Biblia torna bastante explicito que Deus no escolheu um par dos simios superiores e adotou-os como seus filhos, dando-lhes um desejo ascendente de pintar figuras nas suas casas nas cavernas e finalmente conscientizarem-se de um Poder Mais Alto. A Biblia diz que Deus criou Adio primeiro e depois, do seu corpo, criou Eva e colocou 0 casal sem pecado no Jardim do Eden, de onde cafram. Ora, a teoria da evolugio podia concebivelmente permitir essa intervengio miraculosa, mas nenhum cientista evoluciondrio admite qualquer ocorrén- cia desse tipo no progresso ascendente do homem de ancestrais brutos. O argumento é que a vida animal tornou-se mais diversificada e complexa conforme indicada pelo registro nas rochas, originando finalmente os ma- m¥feros e depois um estranho animalzinho arb6rco que se tornou o ancestral dos macacos, dos simios e dos grandes animais chamados homens. E visto como sinal de ignorancia dizer que a evolugdo agora ensina que o homem veio dos macacos. Ninguém sustenta essa visa. Os evolucionistas agora ja avangaram para a posigdo de que tanto os macacos como os seres humanos vieram do mesmo ancestral. Nao somos mais netos de macacos — sé seus primos distantes. Que assim seja. A distingéio sem diivida € de importancia biolégica. Teologicamente, e ousamos crer, praticamente, nado ha grande diferenga. A idéia de uma gradacao fisica continua do bruto ao ser humano nao pode ser enquadrada no relato de Génesis. Porém, isso também nao pode ser provado pelos fatos cientificos. Durante anos pensou-se que restos humanos muito primitivos mostravam um fisico extremamente pouco desenvolvido, depois ossos de uma idade intermediaria mostraram as caracteristicas de Neandertal, ¢ ossos recentes mostravam 0 alto desenvolvimento do homo sapiens. Essa série natural foi desfeita em anos relativamente recentes. Primeiro, o homem de Java foi estudado e reestudado, com a conclu- so de que seus restos muito fragmentados podem fazer paralelo com os do homem de Pequim. Mas o homem de Pequim nao esta nada claro porque seus restos foram misteriosamente destrufdos durante a guerra sino-japone- Irropugio 31 sa e nds temos apenas reconstrugdes que com demasiada freqiiéncia sio tendenciosas. Gish conclui que a evidéncia é tao fragmentada e duvidosa a ponto de ser sem valor.* Outros achados que foram muito estudados antes da mudanga de cendrio em 1959 foram o homem de Piltdown, o homem de Neandertal, o homem Cro-Magnon e alguns achados menores. Esses foram arranjados num padrdo ascendente. Mas apareceram problemas. Descobriu- se que o homem de Piltdown era um embuste. O homem de Swanscombe foi descoberto e reivindicado ser mais antigo do que o de Neandertal, con- tudo mais moderno. O homem do Carmelo foi descoberto, também mais moderno do que o Neandertal, mas mais velho (pensou-se que era de cerca de 125 mil anos de idade; mais tarde estudos de carbono 14 dataram-no em 35 mil anos). Os detalhes nado podem ser dados aqui, mas por causa desse quadro, os restos de Neandertal foram reexaminados e ficou decidido que tinham sido mal interpretados e o homem de Neandertal nao era significati- vamente diferente das pessoas de hoje. A evidéncia era de variacdo em tipos humanos, nao evolucao. Em 1959 o quadro foi ampliado pelo primeiro dos muitos achados na Africa Oriental. Uma caveira foi encontrada no Desfiladeiro de Olduvai por Louis Leakey: foi chamado Zinjantropus e classificado primeiro como uma forma intermediaria entre 0 bugio e o homem. Estudo posterior definiu-o como um tipo de bugio extinto chamado Australopiticine. O filho de Leakey, Richard, mais tarde encontrou entre outras coisas, um craénio — numerado 1470 — num lugar mais ao norte chamado Lago Rudolph (Lago Turkana) Achou-se que era mais parecido com o ser humano embora de data anterior (2,9 milhdes de anos de idade) do que o achado pelo pai (1,75 milhées). Mais tarde, varios esqueletos mais ou menos completos foram encontrados no Lago Rudolph e ainda mais ao norte na Etiépia, por Donald Johansson. Para a discuss&o completa sobre todos esses achados, referéncia deve ser feita a Gish.’ Johansson reivindicou que seu esqueleto famoso, Lucy (cujo cranio nao foi preservado), era uma forma intermedidria que andava em pé, mas tinha caracteristicas sfmias, e foi datada de 3 a 3,6 milhdes de anos atrds. Essa data motivou reexame da datagao do cranio 1470 de R. Leakey que recebeu nova data de cerca de dois milhdes de anos (uma corregao de cerca de 30% daquilo que tinha sido uma “data correta”). Gish favorece 0 ponto de vista de que afinal seré demonstrado que todas essas formas sido australopiticinas, antigos sfmios que tinham um modo de caminhar semi- ereto, semelhante ao do orangotango. Ele também pée em diivida a datacio, tendo em vista a reviséo considerdvel da data do cranio 1470. O quadro todo é complexo e mais descobertas poderao esclarecer as coisas. Gish diz que alguns restos encontrados por Richard Leakey, que ele chama de homo erectus e data de 1.5 milhao de anos atrds, so semelhantes a achados do pantano de Kow na Australia, que sao descritos de modo semelhante, mas que claramente tém apenas dez mi] anos. Pode ser que achados claramente humanos venham a ser descobertos no Leste da Africa — afinal de contas, foram encontradas ferramentas, e também, numa camada “primitiva”, uma 32 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BiBLIA enigméatica estrutura circular que parece ser 0 que sobrou de uma casa. Mas nao ha acordo nem mesmo entre cientistas seculares de que esses varios restos de f6sscis australopitecinos sejam ancestrais do homem.** S6 uma palavra deve ser dita sobre as datagdes dos achados africanos acima citados. A maioria deles depende primariamente do método radiométrico de potassio-arg6nio. O princfpio & que um certo tipo de potds- sid, 0 potéssio-40 (K-40) se desfaz formando argénio e célcio. Se é encontrada uma rocha que contenha potdssio-40 e argénio, as porcentagens podem ser medidas, € visto que sabemos a razdio a qual se desfaz, a idade pode ser calculada. Teoricamente, 0 método é bom, mas ha certos pressupostos que podem facilmente levar a erro. Primeiramente, presume-se que nenhum potdssio j4 se dissolveu e nenhum argénio escapou ou entrou. Em segundo lugar, € preciso que nao tenha havido nenhum argénio na amostra original. Depois também, os fésseis (que nao contém argénio) devem estar em ver- dadeira associag&o com as rochas datadas. Todas essas so suposigdes duvidosas. O arg6nio é um gas e pode escapar das rochas. Na verdade, as quantias consideradas sao t4o pequenas que hd mais argénio no ar do que nas rochas e 0 perigo € que o argénio possa invadir em vez de escapar. O potdssio é um elemento muito comum e seus sais séo em geral totalmente soliiveis. Em alguns casos podem se desintegrar e ser lixiviados. As rochas que esto sendo datadas sao vulcanicas e 0 que se pensa é que a lava origi- nal ejetada expeliria todos os gases na fervura, de sorte que nao haveria nenhum argénio original. Mas mesmo Ifquidos quentes como aco fundido ainda retém gases dissolvidos em pequenas quantidades que, no caso do aco, interferem na qualidade do produto. Uma rocha vulcanica recente me- dida no Havaf deu resultados discordantes” e a revisao da datagio do cranio 1470 de R. Leakey nao é tranqiiilizadora. Muito mais estudo precisa ser feito, e sem dtivida mais descobertas ocorreraio, o que deve esclarecer 0 quadro. Gish cré que alguns dos achados demonstrarao claramente que so da familia dos simios, e que outros serao classificados como varios tipos do homem.** E notavel, assim mesmo, que essas duas investidas poderosas contra a plena veracidade da Biblia — a alta critica e a evolugao — tenham obtido vitéria durante 0 século 20. Nao seria possivel, alguns perguntam, que todas as respostas tentadas sejam apenas criagao ilus6ria de fatos que se desejaria fossem realidade, que essas respostas sejam o tiltimo suspiro de uma ortodoxia ultrapassada? Devemos ainda crer na Biblia? A Biblia ja resistiu a muitos outros ataques; talvez esse moderno obtenha sucesso. Al- guns podem achar que sim. Mas nao precisamos crer que toda idéia moderna € necessariamente a certa s6 porque é moderna. Pode ser demonstrado que a alta critica esta, no seu desenvolvimento, muito préxima da filosofia da Historia de Hegel, que retratou o homem como quase necessariamente de- senvolvendo-se através de novos estégios de progress. A evolugao da religiao de Israel e o desenvolvimento evolucionario da espécie foram ape- nas grandiosas ilustragées da filosofia alema. IntRopUcAo 33 Ora, € natural que haja algum progresso nas artes e nas ciéncias & medida que a experiéncia e a sabedoria dos homens se acumulam. Mas que haja um progresso inerente e necess4rio de todas as coisas em direcdo a sinteses mais novas e melhores, nés, pessoas da virada do século, estamos comegando a duvidar. O século 20 nao é todo ouro, embora seja em sua maior parte todo de brilho barato! E as concepgGes da alta critica e da evo- lugdo que j4 foram claramente despojadas dos seus argumentos originais basicos estao, provavelmente, com os dias contados. Elas podem nao ser a verdade s6lida, mas sereias que estdo nos atraindo com seu canto para nossa prépria destruigao. No minimo, para aqueles que ja encontraram na Palavra de Deus, a Biblia, esperanca e consolo numa era confusa, nao ha necessida- de nenhuma de desistir da sua fé nesse Livro que s6 trouxe béngao sempre que foi crido e seguido, e que ainda garante esperanga celestial para as tris- tezas dos homens, bem como punigao divina para a brutalidade humana. A Difusao da Descrenga Moderna Mas até que ponto a descrenga na Biblia se difundiu entre os clérigos? Sabe- se bem que em muitos lugares, especialmente entre a nossa assim-chamada intelligentsia, € moda ver a Biblia como uma obra de literatura ultrapassada que nao tem sentido para os nossos tempos. Muitas das nossas instituigdes de ensino superior foram em grande parte fundadas por pessoas que criam na Biblia. Elas mudaram muito. Tendo desistido da Biblia, elas tém, em alguns casos, se tornado centros de filosofia atefsta e de teorias sociais es- tranhas, que aparecem de forma mais branda como idéias socialistas e de forma mais radical como idéias abertamente comunistas. Nossos lideres em educagao, as artes e a imprensa em grande medida se distanciaram da cren- ¢a na Biblia e do registro que ela contém a respeito dos modos nos quais Deus lida com os homens. Na América do Norte nao existe quase nenhuma universidade grande e importante, com excegdo das catélico-romanas, que baseie a instrugo sobre a verdade da Biblia. Essa situag4o estranha surgiu na terra dos “peregrinos” colonizadores; e a maioria das mudangas ocorreu nos tiltimos 75 a 100 anos. Mas, ¢ a propria igreja? Certamente os lideres das nossas grandes denominagées protestantes resistiram aos dcidos da modernidade. Infeliz- mente, isso nao é verdade. E doloroso termos de relatar 0 modo como nossos lideres eclesidsticos na maior parte sentem que poderiam neutralizar esses Acidos simplesmente diluindo-os um pouco. Nao tém sido feito esforcos para enfrentar o ataque frontalmente, mas para apaziguar a descrenga mon- tante em cada ponto, e nesse fnterim tentar salvar alguns fiapos de fé da ruina geral. O resultado é uma pregagio sem convicgaio, uma religizo sem autoridade, um Cristo de proporgdes humanas. E, num mundo doente até a morte, as igrejas tradicionais se voltaram para a panacéia do ecumenismo para apresentar ao mundo uma frente unida — unida em descrenca. 34 INSPIRACAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Em 1893 ocorreu nos Estados Unidos algo de importancia consideré- vel que mostrou a tendéncia dos tempos do campo da teologia. Um professor do Union Theological Seminary of New York, chamado Charles A. Briggs foi levado a julgamento por heresia pelo seu presbitério da Presbyterian Church in the U.S.A. Os pontos de vista de Briggs eram bem conhecidos, e ele nao tentava escondé-los. Ele aceitava os ensinos da alta critica e negava claramente a verdade plena da Biblia. Seu principal adversério no processo foi Francis L. Patton, diretor do Princeton Seminary. Briggs foi condenado e afastado da igreja. Em protesto, o Union Seminary desligou-se da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos e desde entao ficou conhecido como um lider da teologia liberal. Porém, diplomados do Union Seminary, infetados com as novas idéias, continuaram a entrar na Igreja Presbiteriana dos Esta- dos Unidos, bem como em outras comunidades religiosas. Outros semindrios, tais como o McCormick de Chicago, se voltavam na diregdio das novas crengas. Nos primeiros anos de 1900 os novos pontos de vista j4 tinham uma literatura impressionante. Um dos livros mais importantes da alta critica, largamente usado nas suas sucessivas edigdcs até os dias de hoje, € Introduction to the Literature of the Old Testament de S. R. Driver, publica- do em 1891 na série Intemational Theological Library, que tem como editores Briggs e Salmond. Depois veio a série International Critical Commentary que vem sendo usada desde entéo por milhares de pastores para estudo e para o preparo de sermées. E uma série extensa, com muitos volumes, real- mente profundos e valiosos na sua erudigdo, mas quase todos escritos do ponto de vista da alta critica. Nos primeiros anos, Briggs e Driver foram os editores da segdo sobre o Antigo Testamento. A alta critica estava ganhando forga. Em seguida podemos notar 0 surgimento de um pregador popular e talentoso do novo modo de pensar. O nome de Harry Emerson Fosdick tornou-se conhecido por toda parte como simbolo. Muitas vezes ele foi chamado o sumo sacerdote do Modemismo. Na década de 20 ele, embora Batista, estava pregando no pilpito da First Presbyterian Church of New York. Fosdick negava abertamente os simples fatos da Escritura — tais como o nascimento virginal de Cristo ~ e sua prega- gao suscitava muita reagdo das fontes ortodoxas. Sentindo a forga da nova teologia, Fosdick em 1922 pregou um sermao memordvel, “Os Fundamen- talistas Vao Ganhar?” Sua resposta negativa tornou-se profética para os rumos do partido ortodoxo nas décadas seguintes. Mas primeiro a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, por agao de sua Assembléia Geral, desti- tuiu Fosdick do seu pilpito. Mesmo assim, sua influéncia cresceu ao tornar-se pastor da Riverside Baptist Church of New York, financiada pela fundagao Rockefeller, e pregador de rddio, representando o Federal Council of Churches (agora a National Council). A agdo movida contra Fosdick em 1923, que incluiu uma declaragao da Assembléia Geral Presbiteriana, de que era imprescindivel que seus minis- InrropucAo tros cressem na inerrancia das Escrituras, no nascimento virginal de Cristo, nos milagres reais dele, na sua expiagao substitutiva e na sua ressurreigao corpérea, ocasionou uma forte reagdo. Foi formada uma comissio de dez ministros, encabegada por homens do Auburn Seminary (que hoje j4 encer- rou suas atividades e transferiu seus bens ao Union Seminary), que emitiu a chamada Afirmagdo de Auburn. Esse documento declarou que “a doutrina da inerrancia (da Escritura), que tem a intengao de realgar a autoridade da Biblia, na verdade prejudica sua suprema autoridade para a fé e a vida”. Declarou ainda que as cinco doutrinas declaradas como essenciais pela As- sembléia eram somente “teorias” a respeito da inspirago da Biblia, da encarnaciio, da expiaciio, da ressurreicdo e da vida eterna e do poder sobre- natural de nosso Senhor Jesus Cristo. Eles insistiam que a inerrancia verbal, © nascimento virginal, os verdadeiros milagres, a expiagiio substitutiva e a ressurrei¢do corpérea “nao sao as tinicas teorias permitidas pelas Escrituras e pelos nossos padrées”. A importéncia da Afirmagao Auburn é que foi um dos primeiros de- safios formalmente levantados em nossas denominag6es americanas contra a teologia ortodoxa e em favor de uma visdo afrouxada que inclui todos os matizes de descrenga na Biblia e em seus ensinos centrais. Foi assinada por 1.293 ministros presbiterianos ~ cerca de 10 por cento do total — e nao foi desafiada com eficdcia por nenhum processo por heresia em nenhum tribu- nal da denominagao. Houve dois débeis esforgos, mas eles morreram ao nascer. Nao podemos entender a descrenga tao generalizada da Biblia em nossos tempos sem reconhecer que a alta critica vinha fazendo seu trabalho ja por cem anos no nosso pais, e que ela nao foi desafiada como uma opi- nido herética por mais de meio século nos concflios de nossas assim chamadas denominacées principais. Uma interessante medida do progresso do liberalismo na década de 1920 esté registrada num pequeno livro de George H. Betts.” Betts enviou um questiondrio a cerca de mil e quinhentos ministros protestantes e rece- beu respostas de quinhentos ministros e duzentos estudantes de teologia. Os ministros da ativa representavam principalmente as denominagdes Ba- tista, Congregacional, Episcopal, Evangélica, Luterana, Metodista e Presbiteriana, e todos eram da area de Chicago. A pesquisa nao foi nada completa, mas foi indicativa e muito instrutiva. Das 56 perguntas, interes- sa-nos principalmente a décima quinta: “Vocé cré que a Biblia foi escrita por homens escolhidos e dotados sobrenaturalmente por Deus para esse propésito, que a eles era dada a mensagem exata que deveriam escrever?” Quarenta e trés por cento responderam “Nao”. Parecia que o ataque contra a Biblia tinha progredido imensamente. Dos metodistas que responderam, 66 por cento responderam “Nao”. Talvez tenham sido ainda mais significa- tivas as respostas recebidas de duzentos estudantes de teologia de trés grandes seminérios denominacionais distantes um do outro. A essa pergunta sobre a plena veracidade da Biblia 91 por cento dos seminaristas responderam “Nao”. 36 INSPIRAGAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Aparentemente, a descrenga era exatamente duas vezes mais difundida no ensino superior avangado para ministros do que nos nossos ptilpitos. Era como. se a pessoa devesse ir ao semindrio para aprender como atacar a Biblia! Sera que a situagao mudou da década de 20 para cA? Sim € nao. A alta critica, embora apresentada em formas novas e um pouco restringida pelo peso das novas descobertas, é sustentada com mais tenacidade como nunca — quase como item de fé. Aqueles que estavam sendo atacados como modernistas nos anos 20 inverteram a situacao, e nos anos 30 puseram fora de seus pulpitos e demitiram seus atacantes anteriores. Isso foi feito no caso de Dr. J. Gresham Machen, Dr. J. Oliver Buswell, Dr. Carl McIntire, e outros da Igreja Presbiteriana U.S.A. No caso da denominagao Batista do Norte, mais de 600 congregagGes se afastaram por causa dessas ten- déncias. Em 1938, a Igreja Metodista uniu as ramificagdes Norte, Sul € Metodista Protestante na maior denominagao protestante da América na qual a voz do protesto fundamentalista est4 muito enfraquecida. O ho- mem que no passado havia sido seu luzeiro principal, o Dr. G. Bromley Oxnam, chegou, nos seus escritos, a chamar o Deus do Antigo Testamen- to de “um intimidador sujo”."! Isso pode ajudar a explicar 0 fato de que a Igreja Metodista Unida é menor do que suas trés partes. De um total de 10,304.184 membros em 1966 caiu para 8.812.294 em 1991] e éa denomi- nago com o menor fndice de contribuigées per capita na América. A gloria parece ter se ausentado. A situagio foi muito melhorada na segunda metade do século 20. Os batistas do sul acordaram para a situagdo e as forgas conservadoras assumi- ram 0 controle. Comegaram — nao sem resisténcia — 0 processo de mudar suas escolas e seus programas para um formato compativel com a veracida- de total da Biblia. Por tras desse movimento esta um crescimento admiravel de 10.598.429 em 1966 para mais de 15 milhdes em 1991. Outras denomi- nagdes conservadoras, tais como as Assembléias de Deus, tém crescido fenomenalmente, assim como varias denominagdes menores, algumas re- cém-criadas. Também, a partir de cerca de 1930 um grande nimero de semindrios teol6gicos foram iniciados, adequadamente providos de docen- tes competentes possuidores de todas as credenciais académicas e, em praticamente todos esses seminarios, a verdade plena da Biblia, a sua inerrancia, é afimada, Evangelistas de grande poder, tais como o Dr. Billy Graham, levaram ao ressurgimento da fé biblica, e tradugGes novas e mo- dernas da Biblia, feitas por estudiosos crentes, vem tendo aceitagao notavel. Muito ainda esta por ser feito, mas o ressurgimento mostra-se notavel. No entanto, as velhas negagées ainda esto difundidas e a lideranga e adirecao das denominagées tradicionais dos Estados Unidos ainda se opdem distintamente a crenga plena na verdade das Escrituras. Por exemplo, Krister Stendahl, um estudioso influente do Novo Testamento, diz que um estudo que use a alta critica verifica que “nao ha diferenca intrinseca entre o candnico Iyrropu¢ao 37 e 0 extracanénico”. As tradigées do evangelho que aparecem num formato um tanto transformado no Evangelho de Tomé ou no Agrafa (Ditos Desco- nhecidos de Jesus) podem apontar na diregao de tradigdes que so tio validas como as do Novo Testamento, Para 0 estudante da hist6ria crista primitiva, a limitagdo ao ‘biblico’ é um ato de preguiga textual ou um pecado 39 42 metodolégico”. Outro autor bem conhecido, James Barr, diz “...este livro escrito pressupondo-se que para seus leitores — como para a corrente geral da fé cristaé moderna — o fundamentalismo dogmatico real nao é uma opgao viva”. E também, Otto Kaiser diz que a formacao do Pentateuco por combinagées posteriores de quatro documentos “faz agora parte do quadro geralmente aceito da origem do Pentateuco pela erudigao internacional a respeito do Antigo Testamento”.* Uma fonte mais popular oferece um tratamento se- melhante do Novo Testamento. Artigos sobre “Quem Escreveu a Biblia” na revista U.S. News and World Report nos informam que “A maioria da opi- nido moderna erudita sustenta que todos os quatro livros (os Evangelhos) foram compilados durante o periodo de décadas depois da crucificagaéo de Jesus, como o prélogo a Lucas sugere. Muitos peritos créem que, depois de terem sido escritos, os Evangelhos foram revisados ou editados repetida- mente medida que cram copiados e circulavam entre presbiteros da igreja no final do século 1° e comego do 2°”.*5 A opiniao expressa ha tempos por Shailer Matthews, da University of Chicago Divinity School é ainda aceita como valida: “Por quase um século a Biblia vem sendo estudada cientifica- mente... Mas tio Jogo os homens estudam a Biblia assim, aparecem fatos que tornam indefensavel a crenga na sua inerrncia verbal”.*° Nao é nosso propésito catalogar todos os clérigos modernos que ne- gam a veracidade plena da Biblia. Muitos e eminentes nomes poderiam ser citados. A importancia das citagdes acima de homens de meios teolégicos diversos & que todos eles concordam que ningném que saiba pensar pode mais crer na Biblia. Se a verdade esté com a maioria, podemos ja terminar nosso livro com este capitulo, tornando o primeiro capitulo o ultimo. Mas uma das conviegdes da humanidade € que a verdade pode ser, e na verdade muitas vezes é, esmagada até o chido, mas que, no entanto, se levantara novamente. E a fé crista, sempre associada com a crenga na Biblia, foi mu tas vezes quase extinta, apenas para soergner-se com novo e maior poder. possivel que também dessa vez seja provado que os atacantes da Palavra de Deus estejam errados, pois 0 povo de Deus tem uma convicgao da verdade da Biblia, intocada pela mudanga de culturas e pelo passar dos séculos. O crist&io nao pode se esquecer de que o Senhor Jesus Cristo cria na Biblia e mandou que nés também créssemos. A nio ser que seja provado que Cristo é um impostor e que seu ensino é sem valor, teremos de continuar a nos apegar ao Velho Livro até o tiltimo recurso. E essa base positiva para o nosso posicionamento que devemos examinar agora. 2 Por Que Cremos na Biblia BO Nao deixa de surpreender 0 autor 0 fato de que a maioria dos cristdos, quan- do perguntados por que créem na Biblia, responde citando 2 Timéteo 3.16. Citar 0 versfculo nao esté errado. O versiculo é claro: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e Util...” Mas essa citagdo d4 margem a acusagao de raciocfnio circular: “Prova-se a Biblia citando a Biblia”. Mais séria ainda é aacusacio feita livremente em meios criticos (erradamente, cremos nds) de que 2 Timéteo nao é genufno e portanto nao deve ser considerado como base para uma doutrina tao importante. Em todo caso, mesmo assim, os dois textos famosos em 2 Timéteo e 2 Pedro 1.21 s&o valiosos. Vamos supor que esses versiculos nao sejam genuinos, mas apenas trabalho de algum sucessor do século 2° dos apédsto- los, de cujos livros a Igreja se apropriou. Nesse caso, os textos aqui pelo menos provariam que essa doutrina da inspiracgdo verbal foi o ensino da Igreja primitiva. Muitos fatores combinam para nos assegurar que isso esté correto. A Igreja primitiva colocava a Biblia, tanto 0 Antigo Testamento como 0 Novo Testamento, numa classe totalmente 4 parte porque os cris- tdos estavam plenamente persuadidos de que ela era a verdade de Deus. Porém, precisamos admitir essa reivindicagao dos criticos? Sera que precisamos raciocinar em circulo? Certamente uma doutrina tio universal- mente aceita como essa da inspiragdo verbal tem uma base melhor. Cremos que essa base se encontra, simplesmente, no ensino do Senhor Jesus Cristo. Vamos supor, por amor A Idgica, que abordemos o Novo Testamento mera- mente como um livro fonte de muita antiguidade e Sbvio valor para a hist6ria 40 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DASBIBLIA, do Cristianismo primitivo e dos ensinos de Jesus. O que encontramos? En- contramos, permeando as fontes, a doutrina da inspirag4o verbal, e isso dos labios do préprio Jesus.’ Espalhados pelo registro dos Evangelhos em cada Evangelho e em cada tipo de registro — parabola, historia, registro da Pai- xdo, etc. — do primeiro até o Ultimo, encontra-se a garantia nos ensinos de Jesus de que as Escrituras do Antigo Testamento, aos quais ele se refere com tanta freqiiéncia, siio verdade. Ele nfo faz nenhuma distingao, quanto & veracidade, entre 0 religioso, 0 histérico e o pratico. Todos os ensinos da Escritura eram igualmente verdade para Jesus Cristo; ele cria em todos eles. O Ensino de Jesus (O Sermao do Monte) Talvez a primeira passagem a atrair a nossa atengio seja Mateus 5.17, 18, do Sermao do Monte: “Até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passaré da lei, até que tudo se cumpra.” Como o versiculo anterior mostra, Cristo aqui se refere a um livro. O nome caracterfstico desse livro no Novo Testamento é a costumeira expressao judaica, “a Lei e os Profe- tas”. Esse titulo ou um semelhante, como “Moisés e os Profetas” € usado quinze vezes no Novo Testamento.? Uma vez o volume sagrado é chamado de “a lei de Moisés, os Profetas e os Salmos” (Le 24.44). Algumas vezes, todo o Antigo Testamento é chamado simplesmente de “a lei” (Jo 10.34). Assim, em Mateus 5.18, Cristo esta se referindo claramente aos sagrados escritos dos judeus como uma unidade, e exatamente uma unidade sagrada bem definida. Ele diz muito positivamente que esse Livro é perfeito até o menor detalhe. Nao é mera inspiragdo verbal que ele ensina aqui, mas inspi- racdo das préprias letras! A “menor” letra era o “Yodh” hebraico, a menor letra do alfabeto hebraico. Exatamente o que significa o “menor trago da pena” é menos claro. A maioria considera como se referindo as pequenas partes de letras hebraicas que as distinguem uma da outra, como o nosso pingo no “i” ¢ o trago que cruza o “t”. Outros acham que pode ser uma referéncia a letra hebraica “Waw”, que muitas vezes servia s6 para distin- guir uma vogal longa de uma breve. Em todo caso, 0 ponto principal esta claro. Jesus declarou que as Escrituras eram perfeitas até na letra. ‘Vale notar que Jesus nao se referia necessariamente a perfeigao das cépias escritas. Isso pode ser mostrado pelo seu uso de linguagem seme- Ihante citando-se suas préprias palavras. Em Mateus 24.35 ele declara que suas préprias palavras sao téo durdveis quanto os céus e a terra — nao em cépias escritas, obviamente, porque suas préprias palavras nao estavam es- critas de forma nenhuma naquele tempo, exceto possivelmente alguns fragmentos, e, em qualquer caso, ndés sé temos uma pequena parte do seu ensino. Ele esta se referindo a eterna forga e A sublime verdade das suas palavras. Mas note que, com essas expressées, ele pde suas préprias pala- vras e as do Antigo Testamento no mesmo nivel. Alguns cristaos se apegam a um Novo Testamento no qual as palavras de Jesus est@o impressas em vermelho. Observe, porém, que quanto 4 divina autoridade e verdade delas, Por Que Cremos Na BIBLIA 4 Jesus Cristo quer todas as palavras da Escritura enfatizadas por igual. Sao todas verdadeiras. Mas alguns poderao objetar que nés elaboramos demais sobre Mateus 5.17s, Possivelmente essas ndo tenham sido as palavras exatas de Jesus, mas que apenas foram atribuidas a ele por algum discipulo posterior, ele proprio um expoente dessa doutrina. E dificil manter esse ponto de vista. Primeiramente, deve-se notar que esses versiculos sio encontrados no Ser- mao do Monte, que é amplamente reconhecido como um trecho auténtico do ensino de Jesus, mesmo por aqueles que sustentam pouco mais do que isso. Negar essa segao é ser quase totalmente cético; ¢ total ceticismo a respeito dos documentos basicos do Cristianismo primitivo nao é uma posi- ¢4o que se espera de estudiosos cuidadosos. Mais ainda, esse dito de Cristo tem paraleclo em Lucas (como também a observagao sobre suas préprias palavras, Le 21.33). Essa afirmacio de Cristo, feita duas vezes, é considera- da pela erudigao moderna como pertencente a fontes extremamente antigas e genuinas.’ O fato de que esse versiculo tem paralelo em Lucas 16.16, 17 apéia a conclusao de que a doutrina da inspiragao verbal € realmente basica ao ensino de Jesus. Terceiro, podemos acrescentar, embora nao 0 provemos de imediato, que esse mesmo pensamento ocorre repetidas vezes no ensino de Jesus. E impossivel supor que com tantas provas ela nao tenha base nas palavras de Cristo. Mas primeiro devemos tratar de uma objecdo que é feita & nossa in- terpretagio de Mateus 5.17s. E dito que essa referéncia nao pode ensinar a inspiragao verbal porque Jesus, nos versiculos seguintes, nega o Antigo Testamento. Muitos argumentam que ele passa a citar o Antigo Testamento e ent&o coloca sua prépria autoridade num plano mais alto. Ora, é verdade que Jesus nunca hesitou em reivindicar toda autorida- de possivel para si e suas préprias palavras. Mas que ele contradisse o Antigo Testamento nao é considerado possibilidade em Mateus 5.17s., ¢ nem em qualquer outra parte do relato dos Evangelhos. Sera que isso pode ser en- contrado em versfculos mais adiante de Mateus 5? Achamos que nao. Uma exegese justa e cuidadosa mostrard, cremos nés, que nessa por¢do do Ser- mio do Monte também Cristo da apoio ao Antigo Testamento. HA seis versiculos nesse capitulo em que Jesus diz: “Ouvistes que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo”, ou alguma fraseologia semelhante. Ora, note-se que ele nao diz: “Esta escrito, mas...” Novamente, deve-se enfatizar que as palavras ditas “As pessoas de muito tempo atras” nao sao todas citagées diretas da Escritura. Ama teu Proximo O versiculo 43 é 0 exemplo mais claro: “Amards o teu préximo, e odiards 0 teu inimigo”. A primeira parte é verdadeiramente uma citagdo de Levitico a2 INSPIRACAG E CANONICIDADE DA BIBLIA 19.18, mas a tiltima parte nao é encontrada em lugar algum do Antigo Tes- tamento. Na verdade, o proprio Antigo Testamento contradiz essa parte final; cf. somente Levitico 19.17 e 34: “Nao aborrecerds teu irmao no teu inti- mo... O estrangeiro... Amd-lo-eis como a vés mesmos”. E Jesus nao esta contra a primeira parte da citagao, a parte encontrada no Antigo Testamen- to. A que, entio, esta Jesus se opondo? Muito obviamente aqui, como tantas vezes, ele estd se opondo as tradigdes dos judeus, os ditos com que os pais deles haviam revestido a Palavra de Deus e a tornado sem efeito. Ele esta contradizendo 0 comentario dos escribas, o ensino tradicional judaico, mas nao a Escritura. Juramentos Outro exemplo de situagdo semelhante é encontrado nos versiculos 33ss., a lei dos juramentos, a quarta nessa série de seis. Ora, felizmente nds conhe- cemos a atitude dos escribas em relagao aos juramentos. Jesus refere-se ao assunto novamente em Mateus 23.16-23. Os escribas e os fariseus eviden- temente distinguiam graus de obrigag4o em juramentos. Alguns juramentos nao tinham valor. Alguns levavam, por assim dizer, as penalidades do per- jirio. A atitude deles nao era a atitude de consideragao pela verdade ordenada por Deus, mas antes era a atitude do advogado de encontrar penalidades para varias infragGes. Seus “advogados” evidentemente estavam ansiosos por tirar proveito de safdas na lei. Essa atitude deu origem a muitos dos regulamentos tradicionais do farisafsmo. Era aceito o princfpio de que a seriedade do juramento de um homem poderia ser medida pelo objeto pelo qual ele jurava. Se jurasse pelo ouro do Templo, ele estava obrigado. Se jurasse pelo cordeiro sobre o altar, ele esta- va obrigado. Mas, curiosamente, sustentavam que se o homem jurasse pelo Templo, ele nao estava obrigado — aparentemente porque o templo nao esta- va 4 venda! Do mesmo modo, um juramento pelo altar podia ser quebrado impunemente. Seria muito facil, obviamente, para um advogado sagaz, que operasse por esses principios, devorar a propriedade de uma pobre vitiva que nao sabia exatamente por quais coisas jurar! Era como pér as clausulas de excego em letra mitida no final de um contrato! Que essa era a doutrina farisaica € provado ainda por referéncia ao Mishna, a codificagao da lei judaica de cerca de 200 d.C. Diz assim: “Se um homem disse, ‘Eu 0 adjuro’, ou ‘Eu ordeno a vocé’ ou ‘Eu o obrigo’ ele esta sujeito. Mas se ele disse “Pelo céu e pela terra’, ele est4 isento”, E ainda: “Se uma reivindicagado concerne a estes, nenhum juramento é imposto: servos, documentos escri- tos, propriedade imével e a propriedade do Templo... Juramentos sé podem ser feitos sobre 0 que pode ser definido de acordo com tamanho, peso ou ntimero”.* Essas sao precisamente as tolas distingdes que Jesus condenou. Jesus censurou os hipécritas por essas praticas infquas. Um juramento feito na presenca de Deus é executavel pelo Juiz Justo 0 que quer que os homens Por Que Cremos NA BiBtia B possam dizer. de algum interesse notar que 0 principio que continuava em vigor no Mishna representa as préprias idéias dos fariseus que Jesus conde- nou. Outras provisdes semelhantes do Mishna dao a impressio de que o ramo do judafsmo representado no judafsmo ortodoxo é a continuagio his- térica do partido farisaico dos dias de Jesus. Os saduceus e os essénios e outros grupos possivelmente menores daqueles dias desapareceram nas re- voltas causadas pelo comego do Cristianismo e pela destruigao de Jerusalém em 70 d.C. O Antigo Testamento nao tem provisGes faceis para quebra de juramentos tais como os escribas tinham acrescentado por sua tradigao Ntimeros 30 da provisdes sob as quais votos de menores e de mulheres nao eram obrigatérios a nao ser que houvesse o consentimento do pai ou do marido. Mas 0 terceiro mandamento, e Deuteronémio 23.22, Deuterondmio 6.13, e outras passagens enfatizam que a obrigacao de juramentos é religio- sae depende do fato que ha um Deus da verdade. Em contraste, Jesus est citando os escribas que distinguiam entre juramentos. A resposta de Cristo, “De modo algum jurem”, certamente é para ser tomada como uma negativa de comparagado. Alguns tém insistido em dar & negativa sua forga total e tém resistido a fazer qualquer juramento. A maio- ria dos cristios, tendo considerado os exemplos de Paulo e Tiago (Ai 18.8; 21.23), a resposta do préprio Cristo ao juramento do sumo sacerdote (Mt 26.63, e a promessa com juramento de Deus a Abraao, Hb 6.16, 17), etc., no chega a essa conclusio. Esses versiculos indicam que Cristo pretendia ensinar veracidade em vez de prética legal sagaz. Ele condenou juramentos infqiios e conversas com duplo sentido, e insistia que a palavra de um filho de Deus deveria ser t&o boa quanto sua fianga. Nisso, Cristo revela plena concordancia com o Antigo Testamento. Mas 0s escribas e fariseus estavam tristemente em desacordo com o alto ensino moral da Escritura. Estavam quebrando mandamentos e ensinando os homens a fazerem isso. E 0 resultado é que Cristo, em linguagem forte, condena nao o Antigo Testamento, mas a soffstica dos comentarios tradi- cionais e dos escribas a respeito. Olho por Otho O quinto dos exemplos de exegese pobre dos escribas é a famosa lei de retaliagéo em Mateus 5.38-42. A antiga regra de olho por olho e dente por dente estd aqui sendo contestada. Ao tratar desse comentario de Jesus, vere- mos que os escribas haviam cometido 0 erro conhecido de tirar um texto do seu contexto. A citag4o realmente se encontra no Antigo Testamento — em trés lu- gares: Exodo 21.24; Levitico 24.20; e Deuteronémio 19.21. Em cada caso 0 contexto mostra claramente que esse aforismo era uma diretriz dada divina- mente para os juizes de Israel. Em Exodo 21 temos uma série de regulamentos 44 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA para a aplicagao dos Dez Mandamentos a vida de Israel. Os jufzos tratam de servos, homicidio culposo, pena capital para assassinato, negligéncia cri- minosa, etc. Entre as prescrigées tratadas est4 0 caso do aborto causado por briga e agressio. A lei diz que esse aborto é punivel por multa, mas que se a mae morre em conseqiiéncia, entao é castigdvel por morte — a regra é vida por vida, olho por olho, dente por dente, m&o por mao. Também em Deuteronémio 19.21 os versiculos esto num contexto de procedimento juridico. Os versiculos anteriores s4o instrugdes para os jutzes a respeito de regras de evidéncia. O perjtirio deve ser punido de acor- do com a magnitude da ofensa. A falsa testemunha deve receber a penalidade que seu perjtirio teria trazido sobre 0 acusado. Se o falso testemunho tivesse condenado um homem inocente & morte como assassino, a falsa testemunha deveria ser executada. Se tivesse feito com que um homem inocente pagas- se uma multa pesada como ladrao, a testemunha falsa pagaria a multa. “Nao 0 olhards com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mao por mao, pé por pé”. Também em Levitico 24.20 a consideragao da senten- ga a ser dada para um blasfemador traz tona esse princfpio de que a penalidade deve ser de acordo com o crime. Na mente de muitas pessoas, hd a pergunta se esse € mesmo um prin- cipio apropriado até mesmo para o procedimento jurfdico, Podemos observar que era muito mais apropriado do que as penalidades da corte distribuidas na Inglaterra do comego do século 18, em que a forca era a penalidade por 160 crimes que iam de assassinato a roubo de lojas de valor superior a um délar! O princfpio aparece também no Cédigo de Hamurabi. Podemos res- saltar que naio hd nenhum caso claro no Antigo Testamento (nem na jurisprudéncia da Mesopotdmia) de que essa penalidade tenha sido aplicada literalmente. E possfvel que as expressdes “olho por olho”, etc., fossem expresses mais ov menos proverbiais da lei comum, que expressavam o principio legal muito importante de que a severidade da punigdo deve corresponder a gravidade da ofensa. Os escribas do tempo de Jesus, literais como eram, aparentemente tiravam passagens do contexto do procedimento da corte e as usavam para justificar todo tipo de vinganga pessoal. Os fariseus nao eram do tipo que comumente oferecia a outra face — pelo menos os fariseus e os saduceus se empenharam numa verdadeira briga quando, no concflio, Paulo declarou sua crenga na ressurreigéo (At 23.6-7). E os fariseus viviam de suas agdes judiciais; eles séo muitas vezes mencionados como estando na mesma clas- se que os advogados. Certamente nenhum deles teria pensado em dar uma capa extra para resolver um assunto fora da corte! E hé uma sugesto em Mateus 5.41 de que o espitito vingativo dos fariseus para com 0 governo romano era destacado. As palavras refletem a pratica dos oficiais romanos de pressionarem uma pessoa a prestar servigo de mensageiro para o gover- no. Imagine um fariseu que, assim pressionado pelos odiados romanos, nao Por Que Cremos NA BIBLIA 45 tivesse sentimentos de vingan¢a, mas caminhasse uma segunda milha! Até o modo de dizer isso é uma exposigo veemente da atitude farisaica de vinganga pessoal que eles aparentemente desculpavam referindo-se a essas regras para os juizes de Israel — regras que no contexto eram apropriadas. Quando Paulo adverte contra a vinganga pessoal, em Romanos 13.9, ele apela aos livros de Deuteronémio e Provérbios para substanciar sua adver- téncia. Por isso conclufmos que nesse caso Jesus também nao esté contradizendo o Antigo Testamento, e sim argumentando contra a ma inter- pretagio farisaica que tinha retirado os versiculos do contexto e perdido o verdadeiro significado deles. Adultério Com esses exemplos em mente, estamos preparados para considerar a se- gunda das seis questdes que Jesus menciona: 0 adultério. A citagao é diretamente do sétimo mandamento. Mas Jesus diz: “Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com inten¢do impura, no coraciio, j4 adulterou com ela.” E comumente suposto que aqui Jesus estd indo mais longe do que o mandamento, fazendo-o ir além do ato externo até a motivagio no coragao. Acredita-se que Jesus nao contradiz o mandamento e sim o amplifica. Mas a pergunta é: Serd que Jesus realmente amplia o sentido do texto do Antigo Testamento? O mandamento meramente profbe atos externos? Uma interpretagao desse mandamento encontra-se na legislagdo de Deuterondémio 22.22-27. Ali é afirmado explicitamente que 0 ato externo sem consentimento e propésito nado € contado como um ato culpavel. Os regulamentos leviticos nZio foram s6 um mero legalismo externo, mas in- clufam as motivagées e atitudes internas. Na verdade, Provérbios 6.25 (“Nao cobices no teu corag&o a sua formosura”) ja da esse ensino de Jesus. O Antigo Testamento projbe tanto a cobi¢a do coragao como 0 ato externo. E Jesus assim estava em pleno acordo com o Antigo Testamento. Mas parece claro que a doutrina farisaica, ao enfatizar a exterioridade, estava aqui sendo censurada por Cristo. A atitude dos fariseus € mostrada claramente em vérios lugares nos Evangelhos. Em Mateus 12.39, em re: posta & pergunta dos escribas e fariseus, Jesus os chama de “uma geragao mé e adtiltera”. Esse tipo de linguagem é usada também em Mateus 16.4 e em outra parte. Na parabola do fariseu e do publicano (Lc 18.9-14) o fariseu agradeceu a Deus pelo fato de que ele nao era roubador, injusto ou adtltero, quando a implicagao é que ele, no coracao, era todos os trés. Paulo, que conhecia bem os fariseus censuradores, acusa-os diretamente de adultério em Romanos 2.22. Parece combinar melhor com o quadro geral dizer que aqui também Jesus estava contradizendo a interpretagao legalista errada dos fariseus;* ele com certeza no estava contradizendo o Antigo Testamento e nem mesmo expandindo o seu ensino. 46 INSPIRACAG FE CANONICIDADE DA BIBLIA Homicidio Essa conclusao é reforgada pelo estudo da primeira declaragao de Jesus, Mateus 5.21-26, na qual, deve-se notar, a justiga do mandamento de Jesus € contrastada, no versiculo 20 com a dos escribas e fariseus. Aqui a tinica parte da citagdo vinda do Antigo Testamento é o préprio sexto mandamen- to: “Nao matards”. O restante, “E quem matar estar sujeito a julgamento {devedor & corte de julgamento]” é de fonte desconhecida, mas é tipico do interesse na legalidade nos regulamentos da época. Ora, a resposta de Jesus: “Mas eu vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irm&o estard sujeito a julgamento” em nada contradiz 0 Antigo Testamento. Na verdade, est4 em total acordo com o texto do Antigo Testamento ja citado: “Nao aborrecerds teu irmo no teu intimo” (Lv 19.17) e “O estrangeiro que peregrina convosco... Ama-lo-eis como a vés mesmos” (Lv 19.34). O Anti- go Testamento ordena atitudes apropriadas do coragao e Jesus o apdia em oposigdo ao externalismo farisaico. As duas frases seguintes de Mateus 5.22 podem ser interpretadas de varios modos. Geralmente é dito que o argumento é apresentado de um modo climatico; 0 pecado menor de dizer Raca e o pecado minimo de dizer “tolo” sio puniveis pelo Sinédrio e até pelo Geena de fogo. Mas nao esta claro por que dizer rolo € um pecado menor do que dizer Raca ou por que Jesus ameagaria alguém com castigo pelo Sinédrio. Antes, parece ao escritor que aqui temos uma nova alternancia entre a citagao de um erro comum e a resposta de Jesus a isso. ““Vocés dizem que dizer Raca tornara a pessoa sujeita ao Sinédrio; eu digo que dizer Mo-re, “vocé € tolo’ torna a pessoa sujeita ao inferno”. Qual a diferenca entre Raca e More? Parece que Raca é “‘cabega oca” em aramaico e que Mo-re, “vocé é tolo”, € um equivalente grego bastante semelhante. A intengiio das palavras de Jesus pode bem ser que os judeus por algum tempo tinham considerado Raca, a expresso aramaica, com desaprovagio, e tinham prescrito, como de costume, penalidades para a feia palavra externa em vez de reconhece- rem a pecaminosidade da atitude. O equivalente grego, que do mesmo modo revelava um coragio irado, tal vez nao tivesse ainda entrado na lista farisaica! Eles proibiam falatério detestavel sé quando era feito em aramaico! Jesus, naturalmente, nao tolerava esse raciocinio sofistico e diz que o pecado mi- nimo é pecado em qualquer lingua, e torna a pessoa sujeita nao sé a corte humana, mas ao jufzo de Deus. A tradugdo NIV [mais do que a NVI que usa “e” em lugar de “mas” — N.T.] sugere essa interpretagao. Um exemplo para- lelo dessa alternancia de citagdo sem a repetigao de “Vés dizeis... mas eu digo” é encontrado em Mateus 23.16-19. Divorcio Chegamos finalmente ao ensino de Cristo sobre 0 divércio, Mateus 5.31 32. Sera que aqui ele contradiz o Antigo Testamento ¢ dé uma revelagao Por Que Cremos NA BIBLIA aT neotestamentaria mais elevada? Parece que nao. Antes, aqui ele esté contra- dizendo uma tradugio errada de Deuterondmio 24.1-4. A tradugdo inglesa de 1611 (King James) dessa passagem deixa implicito que o divércio por ofensas nao especificadas recebia sangao divina. “Dé-lhe carta de divér- cio.” Isso parece também ter sido a interpretagdo errada dos fariseus do tempo de Jesus, pois, como é bem conhecido, eles estavam divididos a res- peito da questo sobre o que constitufa a base legitima para o divércio. Um grupo — os seguidores de Shammai — dizia que 0 adultério era a tinica base apropriada; 0 outro grupo — os discipulos de Hillel - dizia que quase qual- quer coisa justificava 0 divércio. Examinando a passagem de Deuteronémio no hebraico, vemos que, na realidade, © versiculo provavelmente nao deve ser entendido como dan- do qualquer aprovagao divina ao divércio. As clausulas da primeira parte, a prétase, sao tao unidas umas as outras por conjungées que nao parece haver lugar adequado para a conclusio, a apédose, antes do versiculo 4, onde a negativa lo’ dé a conclusao ao kiy do versiculo 1, que tem sentido de “quan- do” ou “se”. Observe também que a prétase inclui diferentes situagdes possfveis, &s quais a apédose do versiculo 4 se aplica. Ele est4 dizendo que se um homem se casa e se divorcia da sua esposa e ela se casa com outro e 0 segundo esposo se divorcia dela ou morre, ela nao pode voltar ao primeiro marido. De acordo com isso, a passagem nao é uma permissao de divércio mas uma proibigdo de “trocar de esposa”, o que seria uma tentagdo numa cultura na qual as esposas eram compradas e portanto poderiam ser trocadas como bens méveis. A tradugao da Septuaginta desses versiculos sustenta essa tradugao do hebraico e é seguida pela NIV, NASB, KJV E NRSV. Na verdade, segundo essa interpretagio, a propriedade ou a impropriedade do divércio nao é discutida em Deuteronémio 24. O divércio é simplesmente aceito como um costume social comum, mas seus males mais grosseiros so regulamentados. Aqui nao hé aprovacao geral do divércio por causas indiscriminadas. Mas os fariseus, para tentar a Jesus, procuravam fazé-lo tomar o par- tido de Hillel ou de Shammai ¢ assim assegurar 0 6dio do outro grupo contra ele (Mt 19.3-9). Cristo respondeu a eles fazendo referéncia a instituigao do casamento na criagao. Os fariseus perguntaram: “Por que mandou, entdéo Moisés dar carta de divércio e repudiar?” (Mt 19.7,8). Jesus respondeu que Moisés “permitiu” 0 divércio por causas nao especificadas “‘por causa da dureza do vosso coragao”, mas essa nao era a lei moral de Deus e nao tinha aprovacao divina. A legislagao civil de Moisés fazia vista grossa a varios pecados, como a poligamia, a escravidiio e o divércio sem dara eles a apro- vagiio divina. A legislagao civil era baseada na lei moral, porém tratava-se de uma norma pratica para o povo. Ela nao tratava de todas as questdes possiveis, e nem proibia absolutamente todos os males sociais, porque, Je- sus diz expressamente, eles tinham o coragiio duro. O fato de Moisés nao ter 48 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA proibido essas coisas nao as tornam certas, como se vé claramente por ou- tras passagens no Antigo Testamento (MI 2.16). Na verdade, as tradugdes farisaicas err6neas de Deuterondémio 24.1-4 teriam sido evitadas se princf- pios idéneos de tradugio tivessem sido aplicados. A tradugao de Jesus € correta e est4 em pleno acordo com o préprio Antigo Testamento. Que 0 divércio tinha apenas uma base prépria, a fornicagdo, € tornado claro por Jesus na sua declaragdo adicional (Mt 5.32). Do tratamento detathado do Sermio do Monte que se vé aqui, entao, certamente pode-se constatar que, nesses versiculos, Cristo de forma algu- ma contradiz as Escrituras bdsicas de Israel. As autoridades 0 acusaram de muitas coisas, mas nio 0 acusaram disso. Cristo concordava plenamente com os judeus a respeito da autoridade e plena veracidade da Biblia.” O Ensino de Jesus em Outra Parte JA dissemos que a atitude uniforme de Cristo para com as Escrituras € de confianga completa. Quanto a isso, a histéria do homem rico e Lazaro é instrutiva. Pode ser debatido se essa histéria de Lucas 16 € uma parabola ou um acontecimento real. Parece que faria pouca diferenca no seu ensino, pois as pardbolas de Jesus no foram contos de fada, mas sim sempre ilus- tragSes que correspondiam a vida. Os versfculos finais, no entanto, tém uma énfase especial, explicitando 0 propésito da histéria. O pobre homem rico no inferno implora que um testemunho seja dado aos seus cinco irmaos que estdo vivos. Mas a resposta é que eles j4 tém um testemunho — Moisés e os profetas. O rico insiste que outro apelo seja feito por um mensageiro vindo dos mortos. A resposta é duplamente enfatica: “Se nao ouvem a Moisés € aos profetas, tampouco se deixarao persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Le 16.31). A énfase aqui é tremenda. O testemunho da Biblia é a voz maxima do além, diz Jesus. E podemos notar que a histéria estd colocada, no evangelho de Lucas, bem perto do dito de que nem mes- mo um til da lei caira (Le 16.17). Oevangelho de Joao dd muitos testemunhos das concepgdes de Jesus a respeito desse ponto. Um dos mais marcantes € 0 de Joao 10.34, 35: “Nao est4 escrito na vossa lei... e a Escritura nao pode falhar.” Alguns se esfor- gam para dizer que isso é apenas um argumento ad hominem, raciocinando com base no fato de que ele era sem culpa em relagao aquilo que os fariseus admitiam e declaravam em seus principios, O comentario de Meyer* propoe um ponto de vista um tanto diferente, argumentando que a particula grega ei, “visto que”, rege as duas metades da prétase: “Visto que esta escrito, e visto que a Escritura nao pode fathar, segue-se que...” A gramatica ndio mos- tranenhuma sugestao de dtivida expressa por Jesus de que ele est4 meramente presumindo isso por amor ao argumento, Ao contrdrio, ele apéia seu caso sobre a Biblia, e mais, sobre um versiculo do livro de Salmos que esta na Por Que CREMOS NA BIBLIA 49 terceira divisdo da Biblia Hebraica atual e na terccira divisdo de Josefo (como serd enfatizado em discuss4o posterior), uma divisao que € considerada por muitos como sendo menos conceituada pelos judeus. Aparentemente, ela era altamente considerada por Cristo. Outra se¢do sobre esse assunto encontra-se em Jodo 5.39-47. Para confirmar suas préprias reivindicagées, Cristo apela para Moisés, em quem eles confiavam. Mas ele diz que eles n&o criam realmente em Moisés. “Se de fato crésseis em Moisés, também crerieis em mim; porquanto ele escre- yeu a meu respeito. Se, porém, nao credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?” Aqui nao temos um argumento ad hominem. Ele vai de encontro aos seus perseguidores judeus com uma afirmagdo de que a Biblia deles € verdadeira, embora eles a tenham interpretado de modo in- correto. Cristo declara que o Pentateuco foi escrito por Moisés, e que profetizava a seu respeito. Estranhamente, esses dois pontos sao negados por todo o grupo atual da alta critica. Que o Antigo Testamento foi escrito sobrenaturalmente e que fazia predigdes sobre Jesus Cristo nao € aceito pela erudigao moderna. Com uma tendéncia completamente naturalista eles excluem a predigo messianica direta.” E curioso o estudo de verificar a versao NRSV da Biblia, um monumento do estudo da alta critica, e notar quantas passagens importantes do Antigo Testamento que pretendiam pre- dizer diretamente a vinda de Cristo, foram alteradas para remover ou questionar essa possibilidade. As vezes a alteragao é pela tradugiio, e as vezes por alterag&ao sem fundamento das consoantes hebraicas. Cf. Salmos 2.12; 16.10; 110.1 (0 pequeno 1); Isafas 7.14; Daniel 9.25s.; Miquéias 5.2, etc. O mesmo pode ser dito com respeito a NEB. A comparaciio de todos esses versiculos com o Novo Testamento e com as tradugdes da Scptuaginta grega pré-crista € muito esclarecedora. E quase impossivel escapar a con- clusio de que a tendéncia, admitidamente a da alta critica, por parte dos tradutores, atuou em todos esses lugares. As tradugdes dadas n&o sio de forma alguma necessérias pelo hebraico e, em alguns casos, claramente vi- olam o hebraico. Mas o homem que nao cré no Cristo sobrenatural nao pode crer no Antigo Testamento, porque, como Jesus disse, ou os dois permane- cem de pé ou caem juntos. Voltando-nos para Marcos !2.36 e Mateus 22.43, encontramos um detalhe que enfatiza o nosso ponto. E dito que a citago do Salmo 110 pre- diz Cristo. O titulo do Salmo diz ter sido escrito por Davi, 0 que a erudigao critica moderna nega. Mas Marcos deixa claro que Jesus sustentou que Davi falou esta palavra “pelo Espirito Santo”. Em Marcos e também em Mateus © argumento gira em torno de uma s6 palavra, David, envolvendo a questao da validade do titulo do Salmo — Davi falando, chama a pessoa a quem ele fala de seu Senhor e também o chama de sacerdote bem como soberano supremo. Também em Joao 10.34 0 argumento de Jesus se baseia na exati- dao de uma s6 palavra do Salmo 82.6. 50 INSPIRAGAO & CANONICIDADE DA BIBLIA A narrativa em Lucas que narra a caminhada a Ematis também dé proeminéncia a esse elemento no ensino de Jesus. Ele os repreendeu porque nao criam em “tudo o que os profetas disseram!” (Le 24.25). Ele assegurou aos discfpulos reunidos que “importava se cumprisse tudo o que de mim estd escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Entao lhes abriu 0 entendimento para compreenderem as Escrituras” (vs. 44, 45). Outras passagens podem ser tratadas classificando-as juntas. Nao s6 0s autores do Novo Testamento, mas o proprio Cristo se refere repetida- mente & necessidade divina do cumprimento das Escrituras. Essa foi a nota coma qual ele comegou seu ministério na sinagoga em Cafarnaum (Lc 4.21). Ele reconheceu durante seu ministério que a Paixao estava designada para ele pela predigao da Escritura (Mc 9.12). Ele poderia ter chamado doze legides de anjos para evitar que fosse preso. Mas “Como, pois, se cumpriri- am as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?” (Mt 26.54). Mesmo no detalhe da inimizade de Judas, Cristo reconheceu um cumprimento da Escritura (Jo 13.18). As proprias palavras que disse na cruz aplicam a si o Salmo messidnico 22. Nao é demais dizer que embora Jesus declarasse que veio do céu como 0 Deus encarnado, contudo foi ao mesmo tempo governa- do pela Escritura e reconhecia que ela também tinha vindo do céu. Nao sé as predigdes como também as porgées didaticas e histéricas da Escritura sao recebidas e usadas por Cristo. Até as préprias proposigées sobre as quais a alta critica insiste sio marcadamente negadas por Cristo. Ja citamos uma ocasido em que ele afirma a autoria mosaica do Pentateuco. Ha outras. Ele cita o Livro de Daniel e 0 atribui a Daniel, o profeta (Mc 13.14). Jonas, ele declara, esteve no ventre do peixe (Mt 12.40). Ele afirma acriagio divina de Adio e Eva (Mt 19.4). Os dias de Noé sao citados como fato hist6rico util para nos advertir a estarmos prontos para sua volta nas nuvens (Le 17.26). Lembre-se da esposa de L6 (Le 17.32), Cristo nos ad- verte, embora criticos argumentem que o fato de ela ter sido transformada num pilar de sal é meramente um conto etiolégico sugerido pelas forma- goes de sal peculiares da regio ao sul do Mar Morto. Fica bem claro que Jesus Cristo nao era um alto critico. Nem o Diabo foi, ao que parece, pois ele nao teve resposta quando Cristo citou-lhe a Escritura. Jesus Cristo vivia na Escritura. Como um menino de 12 anos, ele confundiu os doutores da lei porque conhecia a lei deles e a distinguia das tolas tradigdes humanas. Ele declarou que os saduceus erravam quanto a questao da ressurreig&o porque nao conheciam a Escritura (Mc 12.24). Como ja dissemos, ele explicou as Escrituras a seus discipulos nos seus aparecimentos depois da ressurreigao. Nao se pode separar Cristo das Escrituras. Uma compreensio segura da evidéncia mostrard por que essa doutri- na da inspiragao verbal convence com tanta forga a igreja crista. Nao adianta tentar refuta-la dizendo que ela é judaica, ou que parece ser do Isla, ou que foi criagéo do periodo que se seguiu a Reforma, ou que foi invengaio do Por Que Cremos NA BIBLIA 51 antigo Seminario de Princeton. De fato, ela foi sustentada pelos judeus, pela igreja primitiva, e ao longo dos séculos da histéria da igreja. Uma visao semelhante, embora nao a mesma, é encontrada nos meios mugulma- nos, um fato que é mais bem explicado, provavelmente, pelos contatos judeu-cristéos de Maomé. Hoje esse ponto de vista é mantido por um grande grupo de cristaos, muitas vezes intitulados evangélicos ou fundamentalistas. Mas a razio pela qual esses cristéos e muitos mais vém mantendo essa visio é simplesmente que eles sao cristios e consideram como suprema a autoridade de Cristo. Portanto, crgéem no que ele lhes mandou crer. Nao podem fazer diferente sem de novo trair seu Salvador. Se hd problemas que podem impedir uma crenga plena na Biblia, esses problemas devem ser reconhecidos e uma resposta buscada, ou a fé incentivada onde falta evidéncia completa. Mas negar a Biblia, com a con- seqiiente negacio de Cristo, traz outros problemas que nos nossos dias j4 levaram nosso mundo ocidental para bem perto do desespero. Nao pode- mos sentir que o distanciamento da Biblia no século 20 tenha produzido poder espiritual, crescimento em graga, seguranga da salvagao, paz de espi- rito, santidade do lar, ou qualquer outro dos frutos normalmente associados com 0 Cristianismo. Algo esté podre na casa da fé. Talvez seja porque os profetas da teologia moderna perderam sua fé no Cristo do Livro. E verdade, naturalmente, que a doutrina da inspiracao de Jesus nao era apenas dele. Nesse ponto ele compartilhava do ensino do Antigo Testa- mento e das judeus de sua época. Contudo, nao é preciso sustentar que ele era um mero filho de seu tempo, nao responsdvel pelos seus ensinos. B preciso lembrar que ele nunca hesitou em contradizer seus contemporaneos sobre outros assuntos. Nao, Cristo manteve essa doutrina porque era a ver- dade de Deus. Reivindicagées da Inspirag¢ao em Outras Passagens Biblicas Um pequeno levantamento mostraré que a doutrina da inspiragao verbal era sustentada pelos autores do Antigo Testamento. Josué 1.8 insiste que todas as coisas escritas no livro da lei devem ser obedecidas. Josué 22.5 também ordena respeito semelhante pela lei de Moisés. Davi, em 2 Samuel 23.1, afirma uma inspiragao semelhante aquela designada a ele em Marcos 12.35. Os profetas em toda a Biblia reivindicam estar falando a palavra do Senhor em verdade e em detalhe. Daniel 9.2 contém uma referéncia interessante ao estudo que Daniel fez de “‘os livros” (0 hebraico tem 0 artigo), 0 que inclufa a profecia de Jeremias. Ele acreditava na sua predi¢ao e orava de acordo. Neemias, um dos tiltimos livros inclufdos no Antigo Testamento, mostra pleno conhecimento e alta estima pela lei de Moisés e pelos profetas, que falavam pelo Espirito do Senhor (cf. Ne 9.3, 30; 10.29). Nosso ponto aqui 52 INSPIRACAO & CANONICIDADE DA BiBLIA nao é afetado pelo fato de que a alta critica pode declarar que essas passa- gens nao sao genuinas. No minimo, elas foram escritas muito antes de Cristo. A reveréncia pelas Escrituras estava bem estabelecida na comunidade ju- daica. As admirdveis descobertas dos Rolos do Mar Morto, incluindo um rolo completo de Isafas de um século antes de Cristo, outra segdo consider4- vel do Livro de Samuel, uma porgdo dos Salmos e fragmentos, pelo menos, de todos os outros livros do Antigo Testamento, exceto Ester, estao ilustran- do novamente 0 cuidado com que os judeus guardavam suas Escrituras sagradas nos tempos primitivos. Na primeira edig4o deste livro, essa decla- ragao foi feita incluindo Ester porque fragmentos de Ester tinham sido anunciados tentativamente. Essa afirmagao foi retirada depois, mas deve- mos lembrar que milhares de fragmentos dos Rolos do Mar Morto ainda estio sendo publicados e estudados (em 1994) e surpresas podem advir no futuro préximo quando esses materiais se tornarem disponiveis. Em todo caso, a falta de Ester, um dos livros menores, poderia bem ser questao de um acidente.' O Cristianismo, baseado como foi nos ensinos do Antigo Testamento, foi desde o comeco uma “religiiio do livro”. O judaismo do tempo de Cristo reverenciava 0 livro. Provavelmente a melhor testemunha de primeira mao é Flavio Josefo. Esse famoso histori~ ador judeu, que escreveu no final do século 1° d.C., conta-nos que o judeu piedoso tinha suas Escrituras em mais alta estima que a prépria vida. Em sua obra Against Apion ele escreve: “A firmeza com que damos crédito a esses livros da nossa propria nacao é evidente por aquilo que fazemos, pois durante tantas épocas como tém transcorrido, ninguém foi tao ousado a ponto de lhes fazer algum acréscimo, tirar algo deles, ou fazer qualquer mudanga, mas tornou-se natural a todos os judeus, imediatamente e desde seu nasci- mento, estimar esses livros como contendo doutrinas divinas, e persistir nelas, e se houver ocasiao, de bom grado morrer por elas.”" Nessa citagao valiosa, ele também nos dé uma lista dos livros das Escrituras Judaicas, que sao, como veremos na Parte II, exatamente equivalentes aos 39 livros en- contrados no Antigo Testamento Protestante e na Biblia Judaica. Os Apécrifos nao estado incluidos Mas nao s6 os antepassados judeus de Cristo criam que 0 Antigo Testamento era verdade em sua totalidade; os apdstolos e a igreja posterior também mantiveram o mesmo ponto de vista. Nao ha nenhuma sugestao de uma diferenga entre Cristo e os apéstolos a esse respeito. Os escritores do Novo Testamento citam o Antigo Testamento tao livremente como citam as falas registradas de Jesus. Se Jesus insistia que as Escrituras precisavam ser cumpridas, os autores dos Evangelhos o faziam também (cf. s6 Mt 1.22; 8.17; Le 3.4; Jo 12.38). O Livro de Atos de 1.16 até 28.25 também esté cheio dessa doutrina. O apelo constante de Paulo nas suas Epistolas é ao Antigo Testamento, Sua prova do pecado dos judeus bem como dos gentios € uma cadeia de citagdes do Antigo Testamento (Rm 3.10-18). Sua constan- Por Que CREMOS NA BIBLIA 53 te oposigdo a idéia de justificagao pelas obras da lei nao é contra a lei em si, muito menos a Escritura. Ele reconhece que “a lei é santa” (Rm 7.12), de- clara que a Escritura previu a Era do Evangelho (Gl 3.8), ¢ considera a Escritura suficiente tanto para a esperanca bem como para o aprendizado. E aqui, sem dtivida, que o famoso versiculo, 2 Timéteo 3.16 deve ser menci- onado. Este ja foi tratado tao completamente por tantos comentaristas que pouco precisa ser dito. Certamente nao significa, como as vezes se deduz da velha Revised Version de 1901, que toda Escritura que é inspirada é tam- bém proveitosa. A tradugao Revista foi um erro reconhecido por quase todos e foi corrigida na Revised Standard Version e outras tradugées recentes. O versiculo diz que toda Escritura é inspirada por Deus. E a palavra “inspira- da” nao é usada no sentido lato de animagao tao comum nos nossos dias. Ela indica que a Escritura é literalmente respirada por Deus (NIV), ou cla- ramente inspirada por Deus (ARA, NVI, NTLH), falada por Deus. Mais significativo do que os detalhes da exegese, no entanto, pode ser 0 contexto. Qual era essa Escritura que Paulo louva? Foi 0 livro que Timéteo conhecera como crianga (3.15). Sua mae e avé piedosas o haviam instruido bem. E a base da instrugao delas tinha sido a lei de Deus. Isso s6 pode ter sido 0 Antigo Testamento. A conclusao de Paulo (4.2) vem com forga aquele que quer servir a Deus hoje: “Prega a palavra”, porque na verdade é a palavra de Deus. As mesmas observagGes podem ser aplicadas a 2 Pedro. Se essa epis- tola foi escrita por Pedro (como o presente autor cré), ela apdia o fato de que ele cria na inspirago verbal, assim como Atos 1.16 diz que ele cria. Se cla foi escrita mais tarde por outro escritor, prova que a igreja de um periodo posterior mantinha a doutrina, pois a Epistola ensina claramente essa visio da Escritura. Em 2 Pedro 1.21 a origem humana da Escritura é negada em favor da divina superintendéncia. As escrituras proféticas, isto é, as Escritu- ras dos profetas sao ditas “mais certas”, em comparagao com o registro solene da gloria da cena da Transfiguragdo. Em vista do uso ocasional de um comparativo grego como superlativo,' e visto que as Escrituras nao sao facilmente vistas como sendo mais certas do que o relato da testemunha ocular 4 qual é dada tanta énfase, parece melhor traduzir “Temos ainda mais firme a palavra dos profetas” (cf. 2Pe 1.19 NVI). Um detalhe adicional poderd ser admitido nessa passagem interes- sante, Na KJV, 0 versiculo 20 parece estar ligado a princfpios de interpretagdo. ARSV vai ainda mais longe ao declarar que a Escritura nao é de interpreta- ¢4o da prépria pessoa. Mas interpretagdo nado est4 em vista no contexto. A dificuldade é com respeito a uma palavra grega, epiluseos, usada apenas aqui no Novo Testamento. Seu sentido nao é claro. Ela é usada com relagio ao relato do sonho de José registrado na Septuaginta, onde significa “inter- pretagdo”. Mas o contexto da passagem em Pedro sugere que o sentido etimolégico “soltando” seria preferivel. A questao em foco € a origem da 54 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA Escritura, nao a hermenéutica. O pensamento é que a Escritura nao apare- ceu, nao foi solta, por si mesma, nem veio por vontade dos profetas: ela foi escrita por Deus.'? Em todo caso, Pedro claramente sustenta a verdade, a certeza e a autoridade divina do Antigo Testamento. Foi a doutrina de Pedro e foi a doutrina de todos os cristaos primitivos. Ora, o fato notavel é que nao s6 as Epistolas reivindicam essa alta visao da inspiragao para o Antigo Tes- tamento, como também os escritos, e realmente os ensinos orais dos apéstolos sio colocados num plano igualmente elevado. Ocasionalmente é assumido que os apéstolos nao estavam conscientes de estar escrevendo livros ofici- ais, autorizados. De tempos em tempos aparece uma fabula em periddicos de hoje. Retrata 0 Apéstolo Paulo voltando a uma de nossas igrejas urbanas para uma reuniao de oragao e descobrindo, para sua surpresa, que 0 estudo trataria do Livro de Romanos. “Que interessante”, ele € posto a comentar. “Ev nao pensei que minha correspondéncia casual seria estimada por tanto tempo, mas fico feliz se vocés acharem que ela os ajuda.” Essa facil suposi- ¢40 dos jornalistas religiosos modernos, naturalmente, de fato contradiz 0 testemunho expresso de Paulo nas Epistolas que sao indubitavelmente de sua autoria. Varias dessas passagens devem ser notadas. Em | Corfntios 14 Paulo da instrugées aos cristaos para 0 exercicio dos dons espirituais. Ele havia dito em 12.28 que Deus havia estabelecido na igreja primeiramente os apéstolos. Agora ele conclui suas instrugdes em 14.37 dizendo: “Se alguém se considera profeta ou espiritual, reconhega ser mandamento do Senhor 0 que vos escrevo.” No mesmo sentido, ele man- tém em | Corintios 2.10-13 que ele fala o que Deus Ihe revelou, nao em palavras de sabedoria humana, mas em palavras ensinadas pelo Espirito Santo. Quase 0 tinico meio de evitar a conclusao clara de que essa passagem é, como Hodge a chama, a mais clara passagem didatica sobre a inspiragao verbal em todo o Novo Testamento, '*¢ interpretar o uso de “nds” no versfculo 13, etc., como se referindo a todos os cristaos espirituais. Isso é feito, por exemplo, no New Commentary de Gore, Goudge e Guillaume. '* Essa inter- pretagado certamente n4o é necessdria, pois em 2 Corintios 10 ha uma alternancia dos pronomes “eu” e “nds” exatamente do mesmo modo como ha em | Corintios 2, e a referéncia 14 € claramente ao Apéstolo Paulo do comego ao fim. (Note como 0 “nés” de 2Co 10.8 faz paralelo com o “me” de 13.10). Eum “nés” editorial. E mais, as alegagdes em | Corfntios 2.10- 13 nao sao verdade a respeito dos cristaos espirituais em geral, nem isso € afirmado com referéncia a eles em outra parte. E finalmente, a reivindica- ¢40 do versiculo 13 é feita por Paulo na primeira pessoa do singular no versiculo 4. Paulo e os apéstolos reivindicavam um dom especial para seu ensino escrito e oral, e era especificamente nesse dom que a proeminéncia dos apéstolos como mestres se apoiava. Paulo faz a reivindicagao outra vez em | Tessalonicenses 2.13. Aqui, novamente a palavra que Paulo pregava — oralmente dessa vez — nao é chamada palavra de homens, mas verdadeira- mente a palavra de Deus. Que a primeira pessoa do plural seja usada de Por Que Cremos NA BIsLiA 55 novo nao € problema. A situac4o € precisamente a mesma na Segunda Epis- tola aos Tessalonicenses, onde eles recebem a ordem de receber e guardar as tradigdes que lhes foram dadas “‘seja por palavra, seja por epistola” (2.15); no entanto, a Epfstola € muito cuidadosamente assinada pelo préprio Paulo, uma assinatura e um fechamento caracterfstico que seria o sinal em cada epistola que fosse escrever. Paulo escreveu e pregou Claramente esperando ser crido porque trazia uma revelagdio que era divina — até no detalhe. Pedro (2Pe 3.2, 15) e Joao (Ap 22.18, 19) apresentaram o mesmo ensino, confor- me sera mostrado em detalhe mais adiante.'* As vezes sio citadas duas exceges a essa conclusio. Porém, sao excegdes apenas aparentes. Muitas vezes é comentado, a respeito de | Corintios 7.6, 10, 12, 25, sobre as distingSes que Paulo faz entre sua propria palavra e os mandamentos do Senhor. O carater incomum dessas expres- sdes faz-nos perguntar se nao haveria outra e melhor explicagao. Ela se encontra no fato de que um nome freqtiente usado por Paulo para a segunda pessoa da Trindade é “‘o Senhor”."” Se entendermos a palavra “Senhor” nes- sa segao como sendo Cristo falando durante seu ministério terreno, tudo fica claro. Uma ilustragao desse uso de Paulo encontra-se em Lucas 22.61, que diz “Pedro se lembrou da palavra que o Senhor lhe tinha dito” (NVI). O paralelo em Mateus 26.75 usa o nome “Jesus”. E verdade que Paulo nao tinha ouvido Cristo de primeira mao, mas em seus companheiros ele tinha uma fonte dessas citagdes (cf. At 20.35). Contra o divércio Paulo podia citar as palavras que o Senhor tinha dito enquanto estava na terra (v. 10). Com respeito a deixar o parceiro no salvo em um casamento misto, Paulo nao podia citar a instrugdo de Cristo, porque o Mestre nao nos deixou ne- nhuma. Ele também nao nos deixou um mandamento sobre as virgens (v. 25) nem sobre a continéncia (v. 6). Mas Paulo se sente plenamente compe- tente para acrescentar suas prdprias instrugdes apostélicas sobre esses assuntos. De fato, com um fino toque de ironia, Paulo, na conclusao desse mesmo capitulo, reafirma sua autoridade apostdlica, insistindo que certa- mente ele tinha direito de reivindicar 0 Espirito de Deus tao verdadeiramente quanto os profetas arrogantes de Corinto (1Co 7.40). A outra aparente excegio é dada no contraste que Paulo traga entre a letra eo espirito em 2 Corfntios 3.6. Atengao ao contexto nos livrara de uma interpretagio que poderia fazer Paulo parecer contradizer o ensino que ele da em outra parte. Ele aqui nao esta fazendo um contraste entre uma crenga na inspiragao verbal e uma espiritualizagdo geral da Escritura que nega sua plena veracidade. Paulo esté contrastando o legalismo dos escribas e fariseus — que havia penetrado na igreja crista por ser 0 ensino dos judaizantes — com a verdadeira doutrina que nos € revelada pelo Espirito Santo. A palavra para escriba € grammateus. A palavra para letra é gramma. A doutrina legalista do escriba é denunciada como sendo “da letra”. A doutrina crista é louvada como sendo “do espirito”. 56 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA O mesmo contraste é feito em Romanos 2.27-29. Ai o ensino judaizante da justiga por meio da letra (ou “c6digo escrito” - NIV) e circun- cis&o nao vale, pois é uma verdadeira transgressao da lei e € condenada. O ensino verdadeiro é justificagao pela fé que toca o coragao e o espirito. A circuncisdo nao era errada. Mas 0 que os judeus tinham feito dela era erra~ do. Do mesmo modo, o Antigo Testamento nao estava errado, mas a interpretagao que os judaizantes davam a ele era errada. O verdadeiro erro deles, Paulo diz, nao estava em crer no Antigo Testamento, mas em interpreta- lo mal (2Co 3.14-16). Cristo havia dito o mesmo (Mc 7.9). Essa explicagao € reforcada por uma terceira passagem, Romanos 7.6, na qual novamente nao pode ser feito 0 contraste entre a crenga de alguns fundamentalistas na Biblia e a visdo de alguns modernistas que a aceitam de um modo geral e vago. Ao contrario, Paulo diz, ser escravo da letra (NIV, corretamente, “c6- digo escrito” [NVI “lei escrita”]) era o legalismo da justificagdo pela circuncisao, pelas festas e pelos jejuns e semelhantes obras da lei, enquanto a novidade do Espirito é sua pregagdo de uma liberdade da lei a fim de se encontrar salvagio pela graca. E clara e esmagadora a evidéncia de que Paulo e os outros autores do Novo Testamento tanto acreditavam no Antigo Testamento verbatim como esperavam que seus préprios escritos fossem cridos da mesma maneira. Uma outra objegiio pode ser levantada: visto que o Novo Testamento cita mais freqiientemente a versao Septuaginta, e como esta é incorreta em alguns pontos, sera que isso nao indica que os autores do Novo Testamento nao tinham cuidado no manuseio da Escritura? Que os autores do Novo Testamento geralmente citavam a Septuaginta é realmente verdade. De fato, todos parecem fazer isso comumente, exceto Mateus nas citagdes peculia- res ao sen evangelho. Mas disso nao decorre que os autores do Novo ‘Testamento no tivessem estima pelo texto do Antigo Testamento. Nas pa- ginas deste livro o autor citou por vezes a Versio King James da Biblia Inglesa, e em geral a NIV, meramente por conveniéncia e sem deixar a visdo de que apenas 0 original € inspirado. Do mesmo modo, a Septuaginta é usada pelo Novo Testamento, Observe o fato dbvio de que os autores do Novo Testamento, que escreveram em grego, tiveram de citar o Antigo Tes- tamento em tradugdo. A tinica questo era: deveriam usar a tradugdo comumente conhecida ou deveriam traduzir de novo para cada citagio? deve ocasionar surpresa 0 fato de que geralmente eles usaram a tradugo padrdo tanto para conveniéncia deles como de seu puiblico, Além do mais, nao podemos estar tao certos como os estudiosos ja estiveram de que a Septuaginta é uma versio inferior. Houve uma tendéncia no passado de considerar 0 texto massorético da Biblia hebraica bem perto do ideal ¢ tratar todas as divergéncias dela como erros. Partindo desse pres- suposto, naturalmente a Septuaginta é culpada de muitos erros. Mas a metodologia € ma. O estudo dos Rolos do Mar Morto, especialmente um Por Qu CReMos NA BIBLIA 57 rolo de Samuel em hebraico, encontrado na regiio do Mar Morto indica que ele também mostra varias divergéncias marcantes do texto massorético que estdo na diregdo seguida pela Septuaginta.'* A Septuaginta pode estar certa mais freqiientemente do que se supés. E claro que precisamos dar margem para erros cometidos quando a Septuaginta foi copiada durante o perfodo anterior ao século 4° d.C., quando nossos principais manuscritos da Septuaginta foram feitos. O Novo Testamento naturalmente nao citou a par- tir da cépia do Codex Vaticanus, que foi feita por volta de 325 d.C. Ele citou de uma c6pia da Septuaginta que parece concordar mais de perto com 0 Codex Alexandrinus, que foi feita no século 5° d.C. Mas é evidente que o Alexandrinus contém erros que nao havia no texto do século 1°, usado pelos apéstolos. Em varios casos parece claro que o Novo Testamento prefere a Septuaginta ao texto massorético quando este tltimo esté claramente erra- do. Um exemplo tipico € Romanos 10.18, ao citar o Salmo 19.4. O versiculo em Romanos diz que “a sua voz” se fez ouvir por toda a terra. O Salmo (em KJV, NASB) diz “sua linha” foi por toda a terra. (A NIV e NRSV correta- mente adotaram a tradugdo da Septuaginta, “sua voz”). Aqui, 0 Novo Testamento segue a Septuaginta. Mas com certeza a Septuaginta aqui est4 correta. A diferenga no hebraico entre “sua linha”, gwm, e “sua voz”, qwim ou gim, é muito pequena e pode facilmente levar um copista a errar. A evi- déncia das vers6es gregas menos importantes feitas em cerca de 200 d.C. é um pouco dividida. Alguns traduziram-na “som”; um traduziu-a “linha”. Essas tradugées, baseando-se em geral no hebraico daquela época, parece- riam indicar que os manuscritos hebraicos diferiam entre si nesse ponto em tempos pés-cristdos. Voltando a evidéncia interna, encontramos que 0 paralelismo poético do versiculo nos Salmos parece claramente preferir a leitura “sua voz”. Se for mantido que a leitura original era glm, “sua voz”, as tradugdes gregas esto explicadas, o contexto é satisfeito, e as cépias hebraicas existentes so explicadas como um erro minimo por copistas pos- teriores. Aqui, o Novo Testamento de fato segue a Septuaginta, mas ao fazer isso evita um erro que aparentemente tinha entrado de modo furtivo no texto hebraico. Nesse caso 0 Novo Testamento esté plenamente justificado quanto ao seu método de citagAo. Outros exemplos serio dados mais tarde” quando tratarmos da questio da critica textual. Pode-se acrescentar que al- guns t¢m explicado a leitara “voz” nessa passagem como uma interpretagao livre e justificdvel da leitura hebraica “linha”. E uma possibilidade que deve ser mantida. Mas parece nao haver evidéncia para esse uso idiomatico de “linha”. Parece, ao contrario, que a Septuaginta preservou o texto verdadei- to. Varias das discrepancias entre o Antigo Testamento e o Novo podem ser tratadas desse modo. O Novo Testamento geralmente seguiu a Septuaginta onde sua tradugao era aceitdvel. Em alguns poucos casos nos quais a Septuaginta difere do texto massorético e 0 Novo Testamento segue a 58 INSPIRACKO E CANONICIDADE DA BIBLIA Septuaginta, em geral pode ser provado que 0 texto hebraico é suspeito e provavelmente errado. Um caso interessante de cardter um tanto diferente pode ser mencionado. Em Romanos 11.26, onde o Novo Testamento diz, “Vira de Sido o Libertador”, a Septuaginta de Isafas 59.20 diz, “O Liberta- dor vir a (ou para) Sido”, O curioso aqui é que nova evidéncia da literatura cananita de Ugarit indica que a preposigao hebraica Lamedh (e também Beth) pode ser traduzida do modo usual: “para”, como na versao King James, mas também “de”, como 0 Novo Testamento faz nessa citagaio.” Nesse caso Paulo foge um pouquinho da Septuaginta, em que uma tradugio diferente é permissfvel e desejavel. Na segunda linha (“e ele apartard de Jacé as impi- edades”), 0 Novo Testamento novamente segue a Septuaginta que leu o hebraico com vogais diferentes e traduziu a preposigdo Beth como “de” em vez de “para”. A citagéo do Novo Testamento da Septuaginta aqui é bem apropriada. Todo esse principio a respeito das citagdes do Novo Testamento serem do Antigo Testamento na Septuaginta é, na opiniao do autor, plena- mente defensdvel, embora 0 assunto seja extenso e nao possamos entrar em detalhes aqui.?' Alguns outros exemplos serio apresentados no capitulo 6. O que nos fica € uma sélida visdo da inspiragio verbal. Foi claramente 0 ensino de Jesus Cristo, e para os cristaos isso deve ser suficiente. A doutrina do proprio Cristo estava em completo acordo com o dos antigos judeus e com seus contemporaneos judeus. O Antigo Testamento em si j4 alega essa visio. Quando acrescentamos a isso que os apéstolos ensinados por Cristo apresentavam essa mesma Gtica, vemos que a doutrina é tio basica, tio difundida, nas origens da Igreja, e tao necesséria & nossa fé que nao pode- mos abrir mao dela sem o mais terrivel perigo. Nao se trata de matéria eletiva no curriculo cristao. E obrigatéria. A Biblia é o guia infalfvel do cristo num mundo escuro. Cremos nela de bom grado como verdadeira e voltamos-nos a ela como proveitosa para o ensino, para a repreensio, paraa corregao e para a educagiio na justica. Em O Peregrino, de Bunyan, nés lemos que num certo ponto de sua jornada Peregrino dormiu um pouco e perdeu seu rolo. Bunyan prende a nossa atengao ao retratar a ansiedade e a dificuldade que resultou até que Peregrino voltou e encontrou seu livro. Hoje a América perdeu sua crengae a énfase na Biblia. Houve um tempo em que ela era lida e ensinada nas escolas ptiblicas. Agora dizem ser ilegal ler e ensinar a Biblia. Ela costuma- va ser pregada, memorizada, citada, estudada e crida. Agora isso é verdade somente em circulos restritos. A América deve voltar 4 Biblia. Mas nao voltaremos 4 Biblia enquanto ela for vista meramente como literatura im- portante. S6 quando a recebermos como a Palavra santa e infalivel de Deus & que ela trard a béngdo prometida. “Bem-aventurados aqueles que Iéem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escri- tas, pois o tempo est proximo” (Ap 1.3). 3 Inspiracao Verbal na Historia da Igreja SO Nesta secdo tentaremos apenas fazer um levantamento da aceitagéo dessa doutrina ao longo dos grandes periodos da hist6ria da igreja. Que a doutrina foi aceita assim estd claro e muitos o admitem livremente - mesmo aqueles que sao hostis 4 doutrina. Devemos considerar somente a era pés-Reforma, 0s proprios reformadores e os tempos da igreja primitiva. E seguro dizer que nao h4 nenhuma doutrina, com excegao da Trin- dade e da deidade de Cristo, que tenha sido tio amplamente sustentada durante as eras da historia da Igreja como a da inspiragao verbal. Mas esse nao é de modo algum 0 conceito comum da situagio. Ocasionalmente faz- se um esforgo para retratar essa doutrina como um desenvolvimento recente, o produto da escola de pensamento de Hodge-Warfield-Machen no Semi- nario de Princeton. Foi esse o ponto de vista de homens da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos que defenderam a Afirmagao de Auburn de 1924. Eles afirmaram que em 1923 a reuniao da Assembléia Geral dessa igreja havia errado quando readotou cinco pontos basicos, que incluiam a doutrina da inerrancia verbal, como essenciais aos padrées presbiterianos. Mantiveram que os Padrdes de Westminster ensinam que a Biblia é “nossa tinica regra infalivel de £6 e pratica”, isto é, um guia infalfvel em questdes espirituais. Mas a Afirmagao de Auburn argumentava que “a doutrina da inerrancia da Escritura, que pretendia acentuar a autoridade das Escrituras, na verdade enfraquece sua suprema autoridade para a fé e vida”.' Foi argumentado que a inerrancia nao se encontra nos Padrdes de Westminster, mas tratava-se de um novo desenvolvimento adotado pela Assembléia Geral sob pressao dos grupos fundamentalista dos primeiros anos do século 20. 60 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA, Esse argumento jé havia sido considerado por Warfield ¢ tratado mi- nuciosamente.’ Philip Schaff havia escrito em 1893, mais ou menos na época do julgamento por heresia de seu colega, C. A. Briggs, que “a teoria da inspiragao literal e inerrancia nao fora sustentada pelos reformadores”.? Warfield vai adiante, considerando o argumento de Briggs e outros de que a Confissdo de Westminster nao ensina essa doutrina. A Confissio, é claro, dedica o primeiro capitulo as Escrituras, e declara que os livros canénicos e estes somente sAo autoridade. Os apécrifos ndo sao, pois sao meros “escri- tos humanos”. A autoridade da Escritura depende “de Deus (que € a prépria verdade, 0 autor dela), e, portanto deve ser recebida, porque é a Palavra de Deus”. “Nada em tempo algum deve ser acrescentado” & Escritura. H4 um maravilhoso “acordo de todas as partes” entre suas “muitas outras excelén- cias incompardveis”. “O Antigo Testamento em hebraico... e 0 Novo Testamento em grego... sendo inspirados diretamente por Deus... sao por- tanto auténticos... a Igreja deve valer-se apenas deles”’. Pareceria que a Confissio fala de modo suficientemente positivo, embora a palavra “inerrante” nao seja usada. E facil ver a razio pela qual a palavra “inerrante” nao é usada. HA 350 anos, os problemas criticos moder- nos € 0 “conflito” entre ciéncia e Biblia, ou as sérias quest6es sobre a exatidao histérica ainda nao tinham surgido. A Confissao fala sobre “a verdade infa- livel” da Palavra de Deus ¢ isso deveria ser suficiente. “Inerrante” significa “sem erro”; “infalivel” significa “incapaz de erro”. Essa é realmente uma palavra mais forte. Em 1645 ainda nao havia surgido a distingio que os tedlogos liberais agora tentam tragar entre verdade espiritual e erro histéri- co. O antigo credo, portanto, nao diz especificamente que a Biblia é também verdade em questées de Histéria e ciéncia bem como na esfera espiritual. Ele simplesmente enfatiza que a Biblia é toda verdade, Como 0 capitulo XIV da Confissio de Westminster afirma: “Por esta fé [fé salvadora], um cristo cré ser verdade tudo o que é revelado na Palavra, porque a autorida- de do préprio Deus fala nela.” Também deve ser notado que a questio de autocontradigao na Biblia ja tinha surgido repetidamente, mas que aqui a Confissdo assumiu sua posi¢’o com os outros credos da Reforma, para in- sistir que nado ha contradigdes na Escritura.4 Ela menciona “o acordo de todas as partes”. Assim, os padrdes de Westminster realmente ensinam a inerrancia biblica, embora nao usem a terminologia moderna que foi desen- volvida para enfrentar o novo ataque. Warfield considera isso cuidadosamente no artigo mencionado aci- ma, mas, com sua meticulosidade caracteristica, ele faz ainda mais. Ele trata em detalhe os escritos dos eminentes tedlogos de Westminster que foram preservados para nés e mostra que eles negam claramente a possibi- lidade de erros na Escritura. Ele cita o catecismo de John Ball, que declarou que “as Santas Escrituras nos Originais foram inspiradas tanto em matéria como em palavras”.* Richard Capel € citado também como dizendo que os escritores originais da Escritura foram “dotados com o Espirito infalivel” e

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