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Profanagées ererateenican Oe ners eee eee Ree eet ees eta Sete eee ne en Re eee ee diferengas de classe, mas uma sociedade que soubi eee ue ees eens Giorgio Agamben }! — ofonagoes. de Gioggio Agamben, dé continuidade ‘na rflesbes acerca do capitalismo, das revelugbes ‘ecnnllgieas madernase da inseguranea juridiea ss suetrales onitemporaneas, O autor segue as ‘owlicagiex se Walter Benjamin, quando este azalisa one sévulo XIX cade que 6a saa de visita ‘ones bunjuesia faz os seus negécios”. Enquanto sliyeute norms no Parlamento, a8 verdadeiras eee tomadas nos corredares. A decisto éa Fonna politica do exercivio do governo eaptalista, o emquee poder necessita destaner-se lie Decidir signifies estabelever quais partes ralulade do homem eda mundo ae encontraan lh seyulago do direito, nada mais eseapande ao ues diserieiondria deum soberano, Desaparece Aotingaw entre ointimo, 0 pabice € 0 privade, tudo rte wr obyeta de deciso, ‘hyfanges eolere- ne 208 interstcios da cultura ‘opitoiota qual ve express a ltrapassagem da node menado pela sociedade de mercado, ivernalizagiodo Fendmena do fetichisma pela ‘10 aun eatrutura dentealizante. Ndo por aeaso, ‘onecalo XIN 6 simultancamente, odo progresso ‘oe wala proliferagio do espiritismos nele, Inde coineidem e se identifiesm. Fantantnane modern sora eseapa das mos que sivam, denne de ser produto, expiritos ‘nina ge wepararn de wun aubstancia propria 6 pasaann adonrinaron vvos, adguirinde wna “olyjoividade empeetral com via independlente nen, Hou mundo sem homens e sean ‘non, “ajudanten”, "imbos" & “pai 8 Livro ~canattuem uma reserva He proegan da eatera explrito contra otmpacto da PROFANAGOES PROFANACOES GIoRGIO AGAMBEN stradugdo e apreremtagio Selvino J. Assmann ta bert ou fa ert, Genius da bora, ote Real, tela de 1755. 1 Knstal, Hambgo Bere mee Copyighe © Giorgia Aguen, 2005, ‘Copyright deta eg © Boitempo Faincl, 2007 Coordenasio erat ra Jokings Ebior adie Joo AleandeePeschaski ira entree Soa Pela Casella Tindcto « precntcie Selina J Assmann Edy de exteAlosanda Sedchlag Fernandes (prac) Joortan Busco (vis) trite debice Raquel Sllabemy Bio Cope David Atel ‘ac ide Ged dni, dey Zy Prodapa Mea ha CCIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Anlp ‘Aguben, Giorgi, 1942- TYofinaée / Glongio Agamben; sido «apraenaio de Seino Jos ‘Asmenn,» So Pala Bolempo, 2007 (Marxinmo « terse) “indus de: Prfeesion! ISBN 978-85-7559.093-5 1, Esta 2, Are Elo, 3, Plo ean ~ Stel XX. 1 Thal 07-1420 cpp: 195 cpu: 145) “Todorov ios ssradan: Nenbuona pare dete io poe ser ‘sleds ow cepodssida ce a expres sutecz da elton, 1s eg: mio de 2007 AOITEMPO EDITORIAL Jlnkins Editres Asociados Ua on Enclds de Anda, 27 Ceres Fells (11) 34757250 1 38 \Gbolempordi ew hokey Sumério Apresentagito, Seino J Assmann © ota 90 UFR HOGI DA PROTANAGAD {06 S118 MINUTOS MAIS BELOS DA HISTORIA DO CINEMA Iniice dos prencipais nomesetermercitades Sobre vauter a a a ® 3 Apresentagao ‘Gionyiy Agamben — um dos mais importantes e mais lides pensadores curo- Jade ~ torma-se eada vez mais conhecido entre nés. Independen- 1 clecomo se queim casifcé-lo— como continuador de Walter Benjamin Martin Heidegger, ou de Michel Foucault, Jacques Derrida, Emile weniste © de Guy Debord, ou como alternativa 20 pensamento anglo- «de Richard Rorcy — Agamben & um intelectual instigante, exigente ¢ impestivo, em meio & tamanha produsio bibliografica contemporines, Inpressiona a qualquer letor o fato de ele procurar chaves ou pistas de leitura sly situagio atual andando sinuosamente entre uma mirfade de autores antigos \como Avistételes), medievais, modernos e contemportineos, ¢ em varios cam- da Filosofia (Filosofia politica, ética, estéri- 4. metafisica) & literatara © & teologia. Agamben vai consolidando em sua pos de saber, da fllologia ao di ‘olvia uma corajosaleicara do pensamento politico concemporineo, recorrendo 1 patadigmas extremos como o “campo de concentragio” ou o “estado de exce- a0", ¢ sobretudo falando da biopolitica como luta da vida e das formas da vid contra © poder, que procura submeté-las a seus fins por meios muitas vores ilegitimos. Em um mundo onde eudo parece tere tornado neceeciria © inevitivel, sagrado, Agamben procura resistr, des-eriar 0 que existe, tentando ser mais Forte do queo que esti a, como o fir 0 escriturério Bartleby de Melville (Ypre- Feriria nfo!”). Isso equivalea ir em busca da infincia, ou seja, de nossa capaci- dade de jogar e de amar, a saber, de viver na intimidade de um ser estranho, rao para fizé-lo conhecido, e sim para estar a0 lado dele sem medo de ficar centre 0 dive eo indizvel equivale perseguirsinaisefresas de contingén- 7 cia, de “absoluta contingéncia", ou sea, de subjetividade, de iberdade huma na, de cesuras entre um poder-ser ¢ um poder-no-ser, Insista-se: um mundo em que tudo é necesstio e nada € possivel €um mundo sem sujeito, um mun- do sem liberdade, sem possibilidade de eriagéo. ‘Nessa perspectiva, tornam-se importantes na obra de Agamben os textos em que rediscute 0 conceito de poréncia. Na companhia de Aristbteles, ele chama a atengio para o fato de que nos acostumamos a pensare a agit pensan- do que a poténcia sempre acaba quando passa 20 ato, quando se realiza: uma, cr1anga que tem a poténcia de ser adulto detearia de ter essa potencla quando se torna adulto. Mas hé também, inclusive para Aristételes, outra importante compreensio de poténcia: um pianista no ato de executar Chopin nfo acaba ‘com sua potncia de pianista, Pelo contrério, quanto mais exccutar as sonatas do compositor, mais teri conservada e aumentada a poténcia de artista. Ao ‘mesmo tempo, tera poténcia de pianista equivalea poder executare poder néo ‘executat as obras, De forma semelhante, © de mancira ainda mais ampla, “an centicamence livre, nesse sentido, seria nfo quem pode simplesmente cumprit este ou aquele ato nem simplesmente quem pode no o cumprir, mas quiem, :mantendo-se em relagio com a privagio, pode a prépria impoténcia". A pas- sagem a0 ato no anula nem esgota a poténcia, masa conserva no ato como tal «, marcadamente, na sua forma eminente de poténcia de nio (ser ou faze). (©u, melhor ainda: “Se uma poténcia de no ser pertence originalmente a toda poténcia, serd realmente potente sb quem, no momento da passagem ao ato, néo anulay simplesmente a pripria potincia de ndo, nem adetsar pava trds cam respei- 10 ao ato, mas a izer passa integralmente a el como tal, ou sea, puder néon pasar ao ato” Esta €a grandeza ea mi jada poténcia humana que se trata de cultivar € de promover, ¢€esta grandeza ¢ miséria do ser humano que se encontra prati- camente anulada na forma de vida que sc extabelecca, rosnande a nosis vide tuma “vida nua”, E isso a biopolitica que se consolidou como dominio sobre a vida, E écom a profanagio que se pode resistira tudo isso, e que se pode tentar ‘Ls potenaa del pensero Vieeraa, Neti Pozza, 2005), p. 282. Ihidem, p. 285, rifos do autor. wine nova politica, une nove ser humano, sina nova comunidade, pensande e promovenda o avesso da vida nna, a poténcia de vida, ea vida humana e potdncia de ser e de no set, Agamben termina texto intivalado "A poténcia slo pensamenta”, que di titulo a0 livro ji referido, com as seguintes afirma es, que servem come um programa em tealizagso por parte do autor: “Deve vindla medic todas as conseqiiéneias dessa figura da poréncia que, ao se Ho si mvesnna, se salva e eresce no ato. Hla obriga-nos a repensar na sua toralidale nao apenas a relagio entre poréncia e ato, entre o possivel o real, 1 coniderar de mode neve, na estédea, 0 estatuto do aro de “rhavanre dobre, na polities, o problema da conservagia do poder constituinte » wales constitufdlo, E, porém, toda a compreensio do ser vivo que deve ser pour em xeque se for verdade que a vida deve ser pensada como poténcia que Incessaneemente excode as suas formas e as suas reaizagées”, Nese contexto, a lta pela étea nfo &, como se costuma afirma uta pelo ‘unsprimento da norma existente, nem pela realizagio desta ou daquela ess 1 deste ou daquele destino, desta ou daquela vocagio histérica ou pivitual, Embora nao se trate de negar que. ser humano tenba uma tarefa a veallvatt lta pela ética &a luta pela iberdade, ou sea, Iuta para que possamos perimentar nossa “prépea existéncia como possibilidade ou pottncia”, *po- Wéncia de ser e de nfo ser’, 1 assim qui esse italiano, nascido em Roma (erst pagét!) em 1942, assu- ‘nc explicitamente como tarefa “alargar 0 trabalho de jichel Foucaule”, Ele o lar, tecendo(¢ profanand) vitis fis, vérios conceitos, andando por diferen- ‘es campos de saber. Contudo, nas sendas de Foucault, Agamben abre cami- tho por dois tet Srios em queo pensador francés praticamente esteveausente, 1 dincito ea weologia, Para ficar com o terrtério da teologia, mais préxima do tema da sagrado ¢ do profano, basta embrar © conjunte de obras que tem por lo geral Homo sacer (, IT ¢ ID), incluindo a mais recente, publicada no inicio de 2007, If regno e la gloria: per una genealogia teologica delleconomia e el governo (Homo sacer, 11,2). “Ibidem, p. 286 {La conmind che viene (Toring, Bollati Boringhieti, 2001), p. 39. ° Vindo mais diretamente & obra que aqui procuramos apresentar sos lite res, potlemos afirmar que a profanagio € um tema recorrente en Ayainben. Por isso, Prafanarées pode se visto e seguido como um fio condutor na textura Ccomposta nos vitios textos jé publicados. De forma geral, poderiamos dizer aque cle dedica toda a sua andlise ilséfica,filol6gica, histbrea, stécica, a pro- fanar o sagrado, ou melhor, 2 procurar devolver & comunidade humana aquilo ue historicamente foi subtzaido ao uso comum através da sacralizagio, Profa- ‘nar —conceito otiginalmente romano ~ significa tirar da tempo (fantom) onde algo fol posto, ou retirado initiahuemte du uso € da propricdade dos seres hhumanos. Por iso, a profanagio pressupée a existéncia do sagrado (1ace7), 0 ato de retirat do uso comum. Profanar significa, assim, tocar no consagrado para liberté-lo (e libertat-) do sagrado. Contudo, a profanagio nao permite ‘que o uso antigo possa ser recuperado na integra, como se pudéssemos apagat impunemente o tempo durante © qual o objeto esteve retirado do seu uso comum. O que se pode fazer é apenas um novo uso. Assim, por exemplo, apoiando-se em Benjamin, para quem 0 cap ‘Agamben insiste em apresentar “a profanagéo do improfandvel” como “a tarefa politica da geragio que vem: tata-se de procurarmos libercar-nos da asfixia cconsumista em que estamos metidos, e se trata, a0 mesmo tempo, de afastar- lismo ¢ visto como religio, nos da sactalizagio do eu soberano de Descartes, ¢ chamar a atengio para 0 impessoal, o obscuto, o pré-individual da vida de cada um de nbs, Isso inclui igualmente a tarefa de profanar 2 prépria atividade do autor, transformando 0 ato de conhecer e de escrever em parddia da vida mesma: “Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, mantet-se constantemente vineulado com uma zona de néo-conhe- cimento”?. Ou entéo: “Escrevemos para nos tornarmos impessoais, part nos tomarmos geniais, ¢, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ‘ou daqusla obre, dictenciamo nos de Genius, que nunca pode ter a forma de tum Eu, e menos ainda a de um autor” E hi duas possibilidades, segundo ‘Agamben: “Frente a Genius, nfo ha grandes homens; todos sio igualmente pequenos. Alguns, porém, sio suficientemente ineonscientes = ponto de se 5 Ver adiante, p17. © Idem, p. 18. Jcivareny abalar € attavensar por cle até que caiam aos pedagas, Outros, mas 2s, mas inenios felizes, rejeitam personificar o impeswal, emprestar os pri pins Libis a uma vor que nao thes pertence”. Agamben quer siuarse entre «sem meio de ser menos feliz, mas persistent em querer profs ‘nae o inprotinivel nos temposde tanta seralizagio, que & tempo de secular sim, qqie © deslocamento do sagrado de um hugar para outro, de fora da utile para denito do mundo, e née profanagio... /omscen ols puabliceda em 2004, refine uma dezena de textos de tama lcventes, esctitos em momentos anteriores ou posteriores @ outros livros slo aun Dificil defini lieratiamente os textos: sia en: , sio prosa. Sio fuayentos, ef ow Ik quase aforismes, Mas é um liveo sobre a agéo politica politica possivel e um livto possivel em uma época em que o irracio- nal onsa apresentar-se como racional, Ninguém melhor do que 0 préprio au- nportincia © 0 significado da agéo de profanar: “O que ‘oni qealmente em questi 6, na verdade, possibilidade de uma agéo humana aque se situe fora de toda relagio com 0 diteito, agio que nio ponha, que néo scte ow que no transgrida simplesmente © diteito, Trata-se do que os 1s tinham em mente quando, em sua luta contea a hierarquia ecle- Jisica,veivindicavam & possibilidade de um use de coisas que nunca advém 1. «que nunca advém propriedade, E talver ‘politics’ seja 0 nome desta imensii que seabrea parti de tal perspectiva, 0 nome do livre uso do mun- «lo, Mas tal use nao €algo como uma condigéo natural origindtia que se trata sle restaunat, Hla est mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um ‘pe corpo com os dispositives do poder que procuram subjetivar, no di- ‘eito, as ayes humanas. Por isso tenho trabalhado recentemente sobre 0 con- city de 'profanagi® que, no dirsito romano, indicava 0 ato por meio de qual » qe havia sido separado na eafra da tligitre do sagrade woleava a ser resti- Awd 90 livre uso do homer’® Fara vealizar a atividade de profanagéo, Agamben circula entte a sistema- tiidade e seu abandono. A esctitura & em si mesma uma propasta profana, Wem, p19 Fevista eoncedida 3 otha de Poul, 18/10/2008. 0 movenslo-se conscientemente entre o dizivel ¢ 0 indizivel, Hi paradoxos, hd imetéforas, hi palavras eruas que profanam que parecia teoricamente sagra- do, Agamben profana com uma eserita intensa, cheia de vida, dil, mesmo sendo sinus, esurpreendente. Por iso, pede um leitor atento, diante da feigéo dligressiva e fragmentéria em que se conjugam conccitos anttéticos como 0 profano eo sagrado, a pornografa ea politica, a tligio ea forografia,o judas io e. publicidade, o espeticulo midiético e o dia do juizo final, a parsdiaco inferno, até chegar a0 cendrio dos “seis minutos mais belos da histéria do cinema’. "Todos os conecitox parecem sce faces de prismaa quelevam aexperién vidade, joutias vers Ficamos surpresos até perplexos € confusos, e temos que voltarao cia a linguagem ao limite. As veres ficamos deslumbrados pela cri inicio do texto, Cheios de referéncias a outros autores, nem sempre tio familia- tes, todos 08 textos se apresentam como faces ¢ fases de uma “ontologia do presente", como queria Michel Foucault, Em cada texto, portanto, um elogio da profanago: mostrando a forografia como “dia do juizo universal”, ou apresen- tando o ajudante Pinéquie como “arquétipo da seredade e da graga do inumano”; ‘ou entao declarando que s6 existe uma possibilidade de set feliz: a de erer no divino ¢, no entanto, néo aspiraraalcangi-lo. O di geralmente tio separados, parecem aqui colapsar-se. Ou entéo, frente ao capi- talismo como religito moderna por excelénca, que se tornou o improfandvel »,ohumano, 0 natural, absoluto para todos nés, ou frente destruigéo moderna de qualquer experién- cia, com a exaltagio contemporinea do espetéculo, Agamben convoca & “pro- fanagio do improfandvel” como “o dever polit dla préxima geragio”. Ese desejo de profanar parece encontrar inspiragio em dois grandes ami- {g0s:0 cineasta Pier Paolo Pasolini ca esritora Elsa Morante, esta capar de trans- formar a parédia em personagem de romance. Ea parédia torna ridiculo, cdmico ou grotesco 0 que para outros é sério. Dito de outra maneira: quando se quer atingiro mi cde manter vivaatensio dual presente na realidade, no préprio ser. “Sea ontologia, a relagio [..] entre linguagem ¢ mundo, a parédia (.] expressa a impossibi- Tidade da lingua de alcangar a coisa, ea da coisa encontrar seu nome”. ia, inenarrival, s& nas resta apolar para a parédia, dinico modo © Ver adiante, p. 47. 2 Fsobrennde no capitulo intitulado "Elagio da profinagio” que se tee mais Laramente wi Fin que wura de certa forma todos os textos do livte. Todos les procutam profanar, ou seja, devolver 0 que esté consagrado a0 livre uso omens; on ao aso comum dos homens, Profanae éasumie a vida como Jingu que nos tra da esfera do sagrado, sendlo uma expécie de inverséo do snes Canvislande-nos a profinar, Agamben alerta para o ito de termos povlidis a ante de viver, que éa da infincia, lugar primeiro da mais séria profi vote sa vida, vio fi fora anunelado pelo Zaratustra de Nietasche, ereroma- fjord emer For Eeweflen,cxtswcnca al aapte ‘01 seu “inessianismo imanente”: as erfangas sabem jogar e brineat, enquanto vos alulios séHi0s, perder a capacidale de ser migicos ede fazerem milagres. Rea vando © que dissemos antes, refazemos a pergunta: € possivel eudo toon dante da Forga © da normalidade da excegéo, diante da impetiosa nor- ‘vlidace da vida nua em que estamos ou fomos metidos? Ou entéo, o que é Jpossivel fiver? O que nos resta fazer? Quen Ie os livtos de Giorgio Agamben se sente interessado em saber mais «mello que para ele 6, ou so, “o ser que ver’, “o set humano que vem’, “a politics que ve "", “a ética que ver", “a comunidade que vem”, Tudo 0 que «ter «ver com “o messas que vem. C& el parece haver o preniin- ‘in on aniincio de algo novo, de algo desejado, experado em meio a0 desespero pporante wma normalidade peseda que nao parece deixar nenhuma pos- wle senio uma vida nua, (© que rests fazer? Em primeiro lugas, abandonar as solugdes que foram vjescntadas na modernidade; abandonat, por exemplo, a visio otimista da 1 humana; abandonar a aposta de que tudo pode ser resolvide através swnprimenta da norma. ¢ por isso abandonar também 3 aposes ne “estado slieito”, Poderiamos dizer que, nesse sentido, Agimben radicaliza a deniin- ‘in le que ficamos de mios vazias, de que caimos defi ivamente no nilismo, «tuuls vestaa fazer Se fosse asim, porém, por que insistit com “a comunidade ‘que vom”, “a polftica que vem, “o homem que vent"? Vs além de todas as profanagées jéefetuadas por Agamben, ¢ de todos os anincios ja insinuados por ele, avez nos caiba, como letores, usufivir da 1B companhia instigante e privilegiada deste autos, ¢ tentar aceltar a convite para {que também nds ouseros “Viver com Genie’. Tentando pensst, pensando, também nés nos colocamas em jogo, « podemos, quem sabe, contribuir para «que “a politica que vem” ¢ “o ser humano que ver” estejam uum pouco mais perto como poténcia da vida, poténcia de ser ¢ de nio-ser. Selvino J. Assmann abril de 2007 GENIUS. Now my charms are all oerthrown, And what srength I haves mine own, Prispero ao piiblico (Os latinos chamavam Genius ao deusa que todo homem é confiado sob tutela nur hora do nascimento, A etimologta &transpatente, ¢ ainda évisfvel na Kingua Willan sna aproximasio entre genio [genio] © generare [gerar]. Que Genius lis, evidente, pelo fato de 0 objeto por exceléncia nial” cer sco, para os latinos, a cama: genialis lectus, porque nela se realiza 0 store poravio, Fe sagrado para Genius era 0 dia do nascimento, motivo pelo ‘qual sind o slenominamos genetliaeo, Os presentes e os banquetes com que lostcjans 0 aniversivio so, apesar do odioso ¢ jf inevitivel refiéo anglo- 1 lembranga da festa e dos sactificios que as familias romanas any a Genius no aniversirio de seus membros. Horicio fala de vinho » ee dois meses, de um cordeiro “imolado”, ou seja, salpicado v1 «salsa para o sacificio; mas parece que, originalmente, sé havia incenso, sllisiosss cueas[fatee] de mel, porque Genius, © deus que preside a0 dle sicificios stagrentos ‘CHhama se meu Genius, porque me gerou (Genius mens nominatur, quia ‘ne gomnit).” Mas nao basta. Genius no era apenas a petsonificagio da enegia Claro que cada ser humano macho tinha seu Genius, ¢ cada mulher a nifestagio da ferundidade qive geea © perpetuaa vida. Mas, © ovidente no termo ingenium, que designa a soma das qualidade fsicas m est para nascer, Genius era, de algum modo, slivinizasio da pessoa, o principio que rege e exprime a sua existéncia inteia, Por ese motivo, consagrava-se a Genius a fronte, @ néo 0 pitbis; © 0 gesto de fronte, que fazemos, quase sem nos dar conta, nos momentos de slestnimo, quando parece que quase nos esquecemos de nés mesmos, lemba 0 15 esto ritual do culeo dhe Genius (unde nenenantesdewn tanginns onsen). E dado que esse deus é, de cctta forma, o mais intimo e proprio, é nevessirio aplaci-lo tél bem favorivel sob todos os aspectos ¢ em todos os momentos da vida Hi uma expressio Latina que exprime maravilhosamente a relagio secreta que cada um deve saber cultivar com o proprio Genius: indulgere Genio. F preciso ser condescendente com Genius ¢ abandonar-se a ele; a Genius deve- mos conceder tudo 0 que nos pede, pois sua exigéncia € nossa exigéncia: sua Rlicidase, nossa felicidade, Meamo que suas nossa! protensSco possam parecer inaceitaveis e caprichosas, convém aceité-las sem discussio, Se, para excrever,tendes ~ tem! — necessidade do papel amarelinho, da caneta especial, til dizer que se precisamos exatamente da luz fraca que desce da esquerda, qualquer canera cumpresus tarefa, que qualquer papel e qualquer luz sio bons. Se nio vale a pena viver sem a camisa de linho celeste (mas, por favor, no a bbranca com 0 colarinho de funcionétio)), se nao parece possivel continuar vivendo sem os cigarros compridos envoltos em papel preto, de nada serve ficar repetind® que sio simples manias, que seria hora de criar juizo. Genéum suum defiandare— fraudar 0 proprio génio significa, em latim, tomar tristea ‘proptia vida, ludibria asi mesmo. E genialr— genial —€ 2 vida que distancia ‘da morte © olhar e responde sem hesitagio 20 impulso do génio que o gerou. ‘Mas esse deus muito intimo e pessoal € também o que hi de mais impessoal tem nés, 2 personalizagio do que, em nés, nos supera e excede. “Genius é a nossa vida, enquanto no foi por nés originada, mas nos deu origem.” Se cle parece identificar-se conosco, é s6 para desvelarse, logo depois, como algo mais do que nés mesmos, para nos mostrar que ns mesmos somos mais © ‘menos do que nds mesmos. Compreender a concepgio de homem implicita com Genius equivale a campreender que n hamem née é apenas Fur ¢ conscidne cia individual, mas que, desde o nascimento até & morte, ele convive com um clemento impessoal ¢ pré-individual. © homem é, pois, um sinica ser com duas fases, que deriva da complicada dialésica entre uma parte (ainda) nio idencificada e vivida, © uma parte jé marcada pela sorte e pela expesiéncia individual. Mas a parte impessoal e nfo identficada nao é um passado erono- légico que uma vez por todas deixamos para tris, e que podemos, cventual- 16 mente, chamar de volta com a meméra; ela esté presente até agora, em nds e conosco ¢ junto de nis, no bem e no mal, inseparivel. O rosto de jovem de Gonins, suas longas etrémulas asa signficam que ele née conhece o tempo, «que o sentimos bem perto em nés, estremecendo de frio como quando éramos ‘sans, respitando ebatendo as emporas febris como um presente imemorivel. Vor isso, 0 aniversério nfo pode ser a comemoracio de um dia passado, mas, unc tadasecindeie ea atelier ee aan eee eee, ‘1 presenga imaproximével que impede que nos fechemos em uma identidade uistancial, & Genius que rompe com a prerensio do Eudebasmr seat me:ino. \ cspititualidade ~ afiemou-se ~ é sobretudo, essa consciéncia do fato de ue 0 ser identifieado no esté totalmente identificado, mas ainda contém va carga de realidade néo-identifieada, que importa néo apenas conservat, ‘ns também tespeitar , de algum modo, honrar, assim como se honram as | iprias dividas. Genius, porém, nao é 36 espivitualidade, nfo tem a ver ape- nis Com as coisas que estamos acostumados a considerar mais nobres ¢ eleva- «lis, Todo @ impessoal em nés é genial; genial é, sobretudo, a forga que move o sngue em nossas veias ou nos fiz cait em sono profundo, a desconhecida ppotencia que, em nosso corpo, regula ¢ distribui tio suavemente a tibieza e dlssolve ou contral as bras dos nossos misculos. f Genius que, obscuramen- \e, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiolégica, li onde o mais pré- prio éo maisestranho ¢ impessoal,o mais préximo &0 mais remoto ¢indomdvel. Se no nos abandondssemos a Genius, se fossemos apenas Eu e conscitncia, nunca poderfamos nem sequer urinat. Viver com Genius significa, nessa pers- pectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vineulado a uma zona de nfo-conhecimento. Mas tal zona de néo-conheci- mento nfo é uma temogio, no transfere nem desloca uma experigncia da conscincia para o inconsciente, onde ela se sedimenta como um passadlo in quietante, pronto 2 reaparecer em sintomas e neuroses. A intimidade com uma zona de nio-conhecimento é uma pritiea mista cotidiana, na qual Ea, numa forma de esoterismo especial ¢ alegre, assiste sortindo a0 proprio desmante: Jamento e, quer se tate da digestio do alimento, quer da iluminago da men- te, €testemunha, inerédulo, do incessance insucesso préptio. Genius € a nossa vida, enquanto nao nos pertenee, Devemos, pois, olhar para o sujeito come para um eampo de tensive, cujos pilos amtitéticas sio Genius ¢ Eu, O campo é atravessado por duas foryas conjugadas, porém opostas; uma que vai do individual na diregio do impesoal, © outta que vai do impessoal pars o individual. As duas forgas convivem, entreeruzam-se, separam-se, mas néo poder nem se emancipar integralmente uma da outra, nem se identificar perfeitamente. Qual é, entio, pata Eu, 0 melhor modo de testemunhar Genius? Suponhamos que Eu queira escrever. Eserever nfo esta ou aquela obra, mas simplesmente escrever. Tal desejo signi- fica: Eu sinta que Geninsexietrom algir Ingat, qe hi em mina uena poréncia impessoal que impele a escrever. Mas ailtima coisa de que Genius necessita é de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menos ainda em com- putador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos ge- niais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ou daquela ‘obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode ter a forma de um Eu, € menos ainda a de um autor. Toda tentativa de Eu, do clemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigi-lo a assinar seu nome, esté necessariamente dlestinada a frécassar. Nascem dat a pertinéncia ¢ 0 sucesso de operagbes irbni- ‘eas como aquelas das vanguardas, nas quais a presenga de Genius é testemu- nnhada descriando, descruindo a obra. Se, porém, s6 uma obra revogada e desfeita pudesse ser digna de Genius, seo artista realmente genial é sem obra, o Eu- Duchamp nunea poders coincidir com Genius e, na admiragto geral, vai pelo mundo afora como a prova melancblica da pr6priainexisténcia, como 0 por- tador famigerado da propria improdutividade Por isso, o encontro com Genius € tertivel. Se, por um lado, é paética a vvida que se leva na tenséo entre o pessoal e o impessoul, entre Eu € Genius, por outro € pinico o sentimento de que Genius venha a exceder-nos ¢ superar-nos sob todos os aspectos, que nos acontesa algo infinitamente maior do que nos parece ser suportivel. Por isso, a maioria dos homens foge aterrorizach frente & parte impessoal prépria, ou procuta, hipoctiamente, redusi-la& prépria esta- tura miniiscula, Nesse easo, pode acontecet que o impessoalrejeitado volte a saparecer em forma de sintomas e tiques ainda mais impessoais, de trejeitos ainda mais exagerados. Mas tio ridiculo ¢ Fw tro com Genius como um privilégio, © Poaa que faz pose © se dé ares de é também quem viveo encon- 18 importante, ou, pior ainda, agradece, com fingids humildade, pela graga rece brida, Frente a Genius, nao hé grandes homens; todos sio igualmente peque nos. Alguns, poréim, séo sufcientementeinconscientes a ponto de se det abalar eatravessar por ele até que caiam aos pedagos. Outros, mais sérios, mas menos flizes,reeitam personifica o impessoal, emprestar os proprios libiosa uma vor que nio Thes pertence. Hi uma écica das relagbes com Genius que define a classe de cada ser. A classe inais baixa inclui aqueles que ~e as veues se trata de autores celebérrimos ~ contam cam @ prbptio gio como se forte um bruso pessoal (“eado messi $0 bem!"; “se eu, génio meu, no me abandonas..”). Muito mais amével e sébrio 0 gesto do pocta que, pelo contritio, menospreza csse sérdido ciimplice, porque sabe que "t auséncia de Deus nos ajuda!” ‘As ctiangas sentem um prazer especial em se esconder. E nao para serem escobertas no final. Hi, no proprio fato de flcarem escondidas, no ato de se refsgiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armério, no de se encolherem num canto do sétéo até quase desaparecer, uma alegria incomparivel, uma palpitaglo especial, a que nao estio dispostas a renunciar por nenhum motivo. dessa palpitagio infantil que provém tanto a vohipia com que Walser garan- teas condigbes da sua ilegibilidade (os microgramas) como o desejo obstinado cde Benjamin de néo ser reconhecido, Eles sio os guardas da gléria soitdria, que sua toca um dia revelou Acrianga. De fro, 0 poeta celebra seu ciunfo no nio- reconhecimento, exatamente como a crianga que se descobre trepidando como genius loci de seu esconderijo. Segundo Simoncon, a emogio é aquilo por meio do qual entramos em contato com o pré-individual. Emocionar-se significa sentir 0 impessoal que esti em nds, fazer experidncia de Genius como angistia ou alegria. seguranga ou tremor. No limiar dazona de nfo-conhecimento, Eu deve abdicar de suas propric dades, deve comover paixio é a conda estendida entre nés e Genius, sobrea qual caminhz a vida funimbula. O que nos maravilhae espanta antes mesmo do mundo fora d= nds, é a presena, dentro de nds, dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente, que fica hesitante no inicio de rr qualquer identificagio. E & essa crianga elusiva, esse prer obstinad, que nos Jmpele na diregio dos outros, nos quis procuramos apenas a emogio, que em 1nés continuou incompreensivel, esperando que, pot milagee, no expelbo do outro, esclarega-se¢ se clucide. Se a emocio suprema, a primeira politics, é olhar © prazer, a paixtio do outro, isso acontece porque buscamos no outro a relagio com Genius que no conseguimos alcangar sozinhos, a nossa seereta delicia ea nossa nobte agonia. Com a tempa, Genie dupliesse 6 comepa sabtuinis uma colomgio Seca As fontes,talver por influéncia do cema grego dos dois deménios de cada hhomem, filam de um génio bom ¢ de um genio mas, de um Genius branco (albus) c desum preto (ate). O primeito nos leva erecomenda 0 bem, 0 segun- do nos corrompe € nos inclina 20 mal. Horécio, provavelmente com razio, sugere tratar-se de fato de um s6 Genius, que, porém, é mutdvel, oa cindido, ora depravado, Observando bem, iso significa que fra tenebroso, ora sil quem muda nio é Genius, mas nossa relagéo com ele, que passa de luminosa e clara a opaca € tencbrosa, Nosso prineipio vital, © companheizo que orienta © toma amével nossa existéncia,transforma-se assim, de repente, em um silencioso clandestino, que, como sombra, nos persegue a cada passo, conspirando secre- tamente contra nés, Assim, 2 arte romana representa, um ao lado do outro, dois Geni: um segurando na mio uma tocha acesa, e outro, mensageira de morte, derrubando a tocha, Em su tardia moralizagio, o paradoxo de Genius emerge em plena luz: se Genius €1 nossa vida, enquanto rie nos pertence, entia devernos responder por algo pelo qual no somos responsiveis; nossa salvacio © nossa nuina apre- sentam um rosto pueril, que é € nie nosso rosto. Genius encontra uma correspondéncia na idéiacrsti do anjo da guarela — ‘ou melhor, dos dois anjos; um bom ¢sent0, que nos guia pata a salvagio, eum ‘mau € pervetso, que nos empurra yara a condenagio. Mas é na angelologia irdnica que ele encontra sua mais linpida e inaudia formulagio. Segundo tal doutrina, quem preside ao nascimento de caca ser humana é um anjo, chama- do Daena, que tem a forma de um belisima jovem. Dacna 0 aiquétipo celeste a cuja semelhanga o individue fei erado e, 0 mesmo tempo, éa muda » testemunha que nos espia e acompank em codos os instantes da nossa Contudo, 0 rosto de anjo no continua igeal no tempo, mas, como o retrato dle Dorian Gray, vai se transformando impztceptivelmentea cada gesto nosso, «cada palavra, a cada pensamento. Assim, no momento da morte, a alma vé seu anjo, que Ihe vem ao encontro transfigurado, dependendo da conduta da sua vida, ou numa eriatura ainds mais bes, ou nam demdnio hocrivel, que sussurra: “Eu sou tua Daena, aquela que os teus pensamentos, as tuas palavras ‘© 0s teusatos formaram”, Com uma inversio vertiginosa, nossa vida plasma e Jesenha o arquétipo cin cuja imagers fumes cxiados, Todos fazemos, em alguma medida, um pacto com Genius, com aquilo «que em nés niio nos pertence. O modo como cada um procura livrar-se de Genius, fugit dele, constitui seu cardter. Ble € a careta [rmorfid] que Genius, cenquanto foi exquivado ¢ deixado inexpresso, imprime no rosto do Eu. O estilo de um autor, assim como a graga de cada criatura, depende, porém, nfo tanto de seu génio, mas daquilo que nele ésenco de génio, de seu cariter. Por {ss0, quando amamos alguém, nao amamos propriamente nem seu génio nem veut carter (e muito menos seu Eu), mas a mancira especial que cle tem de cscapar de ambos, seu desenvolto ir evir entre génio e caréter. (Por exemplo, a ssraga pueril com que o poeta em Népoles degustava os sorvetes ou 0 jeito «ansado como o filésofo caminhava de ld para cd pelo quarco enquanto falava, pparando de repente para fixaro olhar em um Angulo remoto do teto.) Surge, contudo, para cada um 0 momento em que deve separar-se de Genius, Pade ser de noite, de improviso, quando, ao som da brigada que passa, ouves née sabes por qué, que teu deus te abandona. Ou entio somos nds que 6 despedimos, na hora lucidssima, extrema, em que sabemos que hi silva, n-que Py mas nés jf nfo queremoe cer salune Vi embora, Ariel a hora pe ro renuncia seus encantos sabe, com a forga que Ihe sobr « leima estagdo, tardia, em que o artista velho quebra o seu pincel © 60 pla. © qué? Os gestos: pela primeira ver 56 nossos, completamente liberi le ‘qualquer encanto. Sea vida, sem Ariel, certamente perdeu sei std Hie ‘no assim, dealgum lugarnos ¢ feito saber que sé agora nos cae, (ue 40 apiea ‘comegamos a viver uma vida puramence humana e cerrens, enti & Vill que a ‘nfo. manteve suas promessis pode agora, por fso mesmo, dar-nos infnita- mente mais, £0 tempo exausto e suspenso, a brusca penumbra em que come- gamos a nos exquecer de Genius; é@ noite esperada. Porventurs alguma ver existiu Ariel? O que é essa milsica que se dilui-e se distancia? S6 a despedida é vverdadeira,s6 agora iniciao longo desaprendimento de si. Antes que a vagaeo- sactianga volte experimentar, uma um, osseus rubores; uma a uma, imperio- samente, a5 suas hesitagSes. 2 MAGIA E FELICIDADE Honjamin disse, certa vex, que. primeira experincia ques crianga tem do mun. lo nfo é de que “os adultos séo mais fortes, mas sua incapacidade de magia”, 1 alltmagio, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mesca. lina, no & por isso, menos exata. E provavel, aids, que a invencivel wistezg syne Ss vezes toma conta das tiangas nasga precisamence dessa consciéncia de sno setem capazes de magia. © que podemos alcancar por nossos méritas¢esforgo ssw pode nos vornar realmente flizes. é a magia pode faz, Tss0 nfo passoy “lespereebido a0 génio infantil de Mozart, que, em carta @ Bullinges,vislumbrou ‘un preciso a secretasolidariedade entre maga flicidade: “Viver bem e vivep Ilr sia duas coisas diferentes segunda, sem alguma magia, certamente ni ve tocard. Paraiso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural” As eriangas, como os personagens das fabulas, sabem perfeitamente que, vara serem felizes, precisam conquistar 0 apoio do génio na garrafa, guardar 10 casa © burrinho-fia-dinheiro [asino eeabaiacchi] ou a galinka dos ovos de vo. E, ema todas as ocasibes, conhecer o lugar e formula vale bem mais do 1c sforgat-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, preci. ‘wente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos shin, feliedadeS medida do homem & sempre Aybris, ésempre prepardncig ‘© ovcesso, Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, sea felicida. Je depender nfo do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te. \san", entio, e 85 entéo, pode realmente considerar-se bem-aventurado. ‘Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade néo & algo que s poss merecer, a moral colocou desde sempre sua objegio, Fo fez com ay 23 palavras do flésofo que, menos do que qualquer outro, compreenclew a dife- renga entre viver dignam enve ¢ viver feliz, “O que em ti tende ardorosamente para 2 Felicidade”, escreve Kant, “éainclinagio; 0 que depois submete tal incli- nagio & condigio de que deves primero ser digno da felicidade € tua rari” ‘Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nés (ou a crianga em nés) nfo sabemos o que fazer. E uma desgraga sermos amados por uma mulher porque 0 merecemos! E como é chataafelicidade que é prémio ou recompensa por um trabalho bem fico! Ne antiga méxima segundo a qual quem se di conta de sr feliz jf defzou de sé-lo, mostra-se que o estreitamenta do vinculo entre magia efelicidade no & simplesmente imoral, ¢ que ele pode até ser sinal de uma étiea superior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relagio paradoxal. Quem é feliz nto pode saber que 0 & 0 sujeito da felicidade nao é um sujeito, nfo tem a forma de ‘uma consciéncia, mesmo que fosse a methor. Nesse caso a magia faz valer sua cexcegiio, a inica que petmitea um homem dizer-e ou considerar-se feliz, Quem sente prazer de algo por encanto escapa da Aybris implica na conseigneia da felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido ano & sua, Assim, Japitet, que se une’ bela Alemena, assumindo as feig6es do consorte Anfitrio, nio sente prazer com ela como tipiter. Nem sequer, apesar as aparéncias, como Anfitrio, Sua alegriapectence totalmente a0 encanto, ¢ se semte prazer, consciente e puramente, s6 com 0 que se obteve pelos cami- rnhos tortuosos da magia, Sé 0 encancado pode dizer sorrindo: “eu”, ¢ 36 a felicidade que nem sonharfamos merecer é realmente merecida, Essa éa razdo tltima do preceto segundo o qual s6 existe sobrea terra uma, possibildade de felicdade: cre no dvino ¢ nfo aspraea aleangé-lo (uma vatidvel 6 em conversa de Kafka com Janouch, a afiemagio de que hi esperan- 49, max nde para nis). Foca tte aparentemente ascltica 16 se corns intelighvel se entendermos 0 sentido do néo pare nar. Néo quer dizcr que a felicidade este reservada apenas a outros (flicidade significa, pecisamente: para nés), mas que ela s6 nos cabeno ponta em que nao nos estava destinada, no era para nés. Ou seja, por migia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, cla coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com 0 gesto com que afsstamos de uma ves por todas, a tistens infant a Se for assim, se ngo houver felicidade a no ser sentindo-nos eapazes de mitica definigio dada por ‘magia, entéo se corna transparente também & Kafka sobre a magia, 0 escrever que, se chamarmos.a vida com 0 nome j la vem, porque “esta é a esséncia da magia, que nio cria, mas chama”. Tal Ulefinigio esti de acordo com a antiga tradigéo que cabalistas € nccromantes seguiram escrupalosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, cssencialmente, uma cigneia dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, slém de seu nome manifesto, um nome escondido, a0 qual nfo pode deixar de responder Sec nmye significa conbever eevocar ene aiyuinuinie, Diss ascent »sintermindveis listas de nomes ~ diabélicos ou angélicos — com as quais 0 nnccromante garante para si o dominio sobre poténcias espirituais, © nome wereto 6 para ele apenas a sigh de seu poder de vida e de morte sobre eriatura Hi, porém, outra e mais luminosa tradiglo, segundo a qual o nome secreto nao 6 tanto a chave da sujeigio da coisa & palavra do mago, quanto, sobretudo, + monograma que sanciona sua libertagéo com relagéo & linguagem. © nome reto era @ nome com o qual a crlatura havia sido chamada no Eden, ¢, 20 jwwmuneti-lo, os nomes manifestos ¢ toda a babel dos nomes acabaram em ppalagos. Por isso, segundo a doutrina, a magia chama por Felicidade. O nome -ereto &, na relidade, 0 gesto com o qual a criatura é restituida 20 inexpresso. Pin iltima instdncia, a magia ndo é conhecimento dos nomes, mas gesto, des- vin em relagéo ao nome. Por isso, a criangs nunca fica to contente quanto undo inventa uma lingua secreta propria. Sua tristeza néo provém tanto da ‘ynonincia dos nomes migicos, mas do fato de nao conseguir se desfuzer do swe que lhe fot imposto, Logo que 0 consegue, logo que inventa um novo ‘nome, ela ostentard entreas méos 0 passaporte que a encaminha & feicidade, Jor um nome é a culpa. A justiga é sem nome, assim como a magia. Livre de swome, bem-avencurada, ¢ eriacura bate & ports da aldeis dos magos, onde 8 se {ala por gestos Autores do Nouveau Roman: Alain Robbe Gilet, Claude Simon, Claude Mauriac, Jerome Lindon, Robert Pinget, Samuel Becket, Natale Saraute Claude Oli, {otografados por Mario Dondero em frente das Editions de rut, em Pats, © DIA DO JUIZO (0 qjue me fascina e me mantém encantado nas forografias que amo? Creio que ‘rata simplesmente disso: a forografia € para mim, de algum modo, o lugar Is Juizo Universal ela representa o mundo assint como aparece no ilkimo dia, 1 Dia da Célera, Certamente néo é uma questio de tema; néo quero dizer as forografias que amo sio as que tepresentam algo grave, sério ou mesmo tnjyieo. Nios a foro pode mostrar um rosto, um abjero, um acontecimento ualquet. £0 caso de um fordgrafo como Dondero, que, assim como Robert spa, sempre se manteve fel a0 jornalismo ativo € muitas vezes praticou o que + poderia denominar a flénerie (ou o “andar & deriva") fotogréftea: passeia-se om meta e se forografa tudo 0 que aparece, Mas “o que aparece” —o rosto de sluas mulheres que passam de bicicleta na Escécia, a vitrina de uma loja em huis ~ € convocado, & citado para comparecer no Dia do Jutzo [Um exemplo mostra com absoluta lareza que isso € verdade desde o inicio «ls histdria da forogeafia. Cercamente &conhecido o célebre daguerrestipo da Jouleoard du Temple, considerado a primeita fotografia em que aparece wma figura humana. A chapa de prata representa o bowevard du Temple fotografado por Daguerre da jancla do sea estédio, em hordrio de pico. O houleuard deve- ria estar cheto de gente e de carrogas ¢, contudo, porque os aparelhos da époce necesstavam de um tempo de exposicio muito Longo, nZo se vé absolutamen- te nada de toda ests massa em movimento. Nada, a nfo ser uma pequena silhueta preta sobre a calgada, embaixo ¢ & esquerda na foto, Trata-se de um hhomem que se fia engraxar as bots e que, por iss ficou imével bastante tem- po, com a perna mal e mal erguida para apoiar 0 pé sobrea caixa do engrexate a Fu ndo conseguiria fantasiar uma irmagem mais adequada do Juizo Univer sal. A multidio dos humanos ~ als, a humanidade inteira ~ esté presente, mas nio se ve, pois 0 juizo refere-se a urna s6 pessoa, a umasé vida: exatamente Aquela, e nfo a outra, Ede que mancita aquela vida, aquela pessoa, foi colhida, apreendida, imortalizada pelo anjo-do Ultima Dia— que é também o anjo da fotografia? No gesto mais banal e ondinirio, no gesto de fazer-se engraxar os sapatos! No instante supremo, 0 homem, cada homem, fica entregue para sem- prea seu gesto mais infimo e cotidiano, No entanto, gragas objetiva forogr- fica, © gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida intcira; aquela aitude irrelevante, até mesmo boba, compendia ¢ resume em si 0 sentido de toda uma existéncla Acredito que haja uma relagio secreta entre gesto e forografia. © poder do sgesto de condensar e convocar ordens inteiras de poténcias angélicas consti se na objetiva fotogeifica, ¢ encontra na fotografia seu focus, sua hora tépica. (Cera vez, Benjamin escreveu, a propésito de Julien Green, que ele representa seus personagens em um gesto carregado de destino, que os fixa na ierevo~ sabilidade de um além infernal. Creio que o inferno, que aqui esti em jogo, seja um inferno pagio,e no crstéo, No Hades, as sombras dos mortos repetem. av infinite © mesmo gesto: Isiéo far sua rods giras, as Danaides procuram inucilmente carregar égua em um cone furado, Néo se tata, porém, de uma ppunigéo} as sombras pagis nfo sio dos condensdos. A eterna repetisio éaqui a chave secreta de uma apoketatass, da infinita recapizulagio de uma existéncia. essa natureza escatoligica do gesto que o bom fotégrafo sabe colher, sem, porém, diminuie em nada a historicidade ea singularidade do evento forogra- fado. Penso nas correspondéncias de guerra de Dondero ¢ de Capa, ou na Fotoptafla de Beilin oriental drada do teto du Aeieyag uu dis antes da queda do muro. Ou em uma fotografia comoaquela, justamente famosa, dos autores do nowvean roman, de Sarraute & Beckett, de Simon a Robbe-Grile, tiada por Dondero em 1959, dante da sede das Editions de Minuit. Todas essas fotos contém um inconfundivel indiio histérico, uma data inesquecivel e, contudo, gragas a0 poder especial do gesto, cl indicio remete agora 2 outro ‘tempo, mais atual ¢ mais urgente do que qualquer tempo cronolégico. B Ti, pon 1 Fotografias que amo, que nie gostaria de , omc aspee ilemviar de modo algum. Tratase de uma exigéncia: » sujeito forografado exi 1 alo de nds. Prezo especialmente 0 concsita de exigencia, que no deve ser volundido com uma necessidade factual. Mesmo que a pessoa foragrafada hhoje completamente esquecida, mesmo que seu nome fosse apagado para ‘pte da meméria dos homens, mesmo assim, apesar disso — ou melhor, Jsstoumente por isso — aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome, exi- ot jue no sejam esquecides. Honjamin devia ter em mente algo parecldo quando, a propésito das foro- sls le Cameron Hl, esereve que a imagem da vendedota de peixes exige 0 swine ea mulher que, durante algum tempo, estava viva. E calves seja porque ‘oon conseguiam suportar essa muda apéstrofe que, diante dos primeitos “Iayuerteétipos os espectadores deviam desviar o olka ese sentiam, pot sua sv olhadas pelas pessoas cettatadas, (No estidio onde trabalho, sobre um ive a0 lado da escrivaninha, esté a fotografia — aliés, bastante conhecida — ‘rosto de uma menina brasileira que parece fixat-me severamente, ¢ sei com shvolata cereeza que €¢ seré ela a julgar-me, tanto hoje como no iltimo dia.) Dondero manifestou uma ver cera distancia em relagéo a Cartier-Bresson Sebastid Salgado, dois fordgrafos que, néo obstante, admira, No primeira, & excesso de construgéo geométrca; no segundo, excesso de perfigio ext &. Ope a ambos sua concepsio do rosto humano como uma histétia a con- ‘ur ou uma geografia a explorar, Na mesma perspectiva, também penso que a ‘xigencia que nos interpela pelas forografias nada tem de estético, Trata-se, snes, de uma exigéncia de redengio. A imagem forogréfica é sempre mais que vuma imagem: €o lugar de um descarte, de um fragmento sublime entre sensivel co inteligive, entre a cépia ea realidaele, entre a lembranga e a esperanga A respeito da ressurteigio da came, os cedlogos cristios se perguntavam, sem conseguir encontrar respostasatsfiréria, se 0 corpo iri ressuscitar na condi- ‘io em que se encontrava no momento da morte (quem sabe velho, calvo € sem uma pera) ou na integridade da juventude. Origenes abreviou tas dis- cussGes sem fim afitmando gue néo serd 0 corpo que ied resuscitar, mas sua figura, seu eidos. A fotografia, nesse sentido, é uma profecia do corpo glorioso, » Wa por todos os Sabe-se que Proust tinha obsessio pela fotografia ¢ proce icios ter as focos das pessoas qui amava e admirava, Um dos rapazes por quem estava apaixonado quando tinha 22 anos, Bdgar Auber, dew-the de pre- sente, a parti de seu insistente pediido, 0 proprio retrato, No verso da fotogea- fia, esereven & guisa de dedicatéria: Look at my face: my name is Might Have Been; am also called No More, Too Late, Farewell (Olhe pata meu rosto: meu some é Poderia Ter Sido; me chamo também Nao Mais, Tarde Demais, Adeus). A dedicatéria certamente pretensiosa, mas expressa perfeitamente a exigéncia que anima todas as foros ¢ capta o real que esti sempre no ato deze perder para romné-lo novamente possvel. De tudo isso, a forogeafia exige que nos recordemos; as foros so testemuc inhos de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocaliptico ~o anjo da fotografia ~ tem entre as mios no final dos dias, ou seja, todos os dias. OS AJUDANTES los womances de Kafka, deparamo-nos com eriaturas que se definem como sjusantes” (Gebifen). Mas parecem ineapazes de proporcionar ajuda. Nao niendem de nada, néo tém “aparelhos”, 38 conseguem aprontar bobagens © vuniidades, so “molestas , As vezes, até “descaradas”e “luxuriosa”, Quanto 1 aspeeto, so to semelhantes que se distinguem apenas pelo nome (Artur, vias), assemelhando-se entre si ‘como serpentes”. Contudo, sio observa- lores atentos, “égeis,"soltos";tém olhos cintilantes¢, contrastando com seus ‘wodlos pueris, ostos que parecem de adultos, “de estudantes, quase”, e barbas Jnygise abundantes. Alguém —néo se sabe direito quem—os confiou pars nds, ‘sso ¢ fel livrar-se deles. Em suma, “nao sabemos quem sia"; talver sejam vwviados” do inimigo (o que explicaria por que insistem em ficar& esprcita e ae), Mesmo assim, assemelham-seaanjos, a mensageiros que desconhecem ‘conteiido das eattas que deve entregat, mas cujo sorrso, cujaolhar cujo ‘odo de caminhar "parecem uma mensagem”. ‘Cada um de nés conheceu tais criaturas que Benjamin define como “cre- rusculares” e incomplecas, parecidas com os gandharva das sages indianas, vuctade génios celestes, metade deménios. "Nenhuuma tem lugar fixo,feigdes Iaras e inconfundiveis: nenhuma que née. pareca prestes 4 subir ou a eaie; vvenhuma que no se confunda com seu inimigo ou com seu vizinho; nenhu- va que no tenha completado sua idade € que, no entanto, néo seja ainda imacura; nenhuma que estja profundamente exausta, ¢, contudo, ainda no inicio de uma longa viagem.” Mais inteligences e mais dotadas do que nossos ‘outros amigos, sempre absortos em imaginagBes ¢ projetos para os quiais pare- «em dispor de todas as qualidades, nfo conseguem, porém, concluir nada, © 3 ficam geralmente sem o que fazer. Encarnam tipo do etemno estudante e do “engoladar”, que envelhece mal e que, no final, mesmo de mau grado, deve- mos deivar para ces, Contudo, nelas hd algo, um gesto inconcluido, uma gra- «2 inesperada, um certo desearamento matemético nos juizos € nos gostos, uma agilidade aérea dos membros e das palavras, que testemunha seu pertencimento a um mundo complementar, que remete @ uma cidedania per- ida ou a um lugar inviolével. Ue ajuda, nese sentido, se the deram, embora rio a consigamos identifica. Talvez consistisse precisamente no fato de nfo screm ajudiveis, cm sou obscinado “para nés nfo hé nada e fazer") mae, preci samente por isso, sabemos a0 final das contas que de algum modo as traimos, “Talver seja porque a crianga & um ser incompleto que a literatura para a infincia est plena de ajudantes,seresparalelos ¢ aproximatives, pequenos de- mais ou grandes demais, gnomes, larvas, gigantes bons, génios e fadas capri- chosas, grilos ou caracdis flantes, burrinhos que fizem dinheiro [eiuchini cacadenarl e outeas pequenas craturas encantadas que, no momento do pet go, surgem ‘por milagre para libertar do embarago a boa princesinha ou Joao Sem Medo. Séo os personagens que 0 narrador esquece no final da histéria, quando os prosagonistas vive felizese contentes até a0 final de seus dias; mas deles, dessa “gentalha” inclasificdvel 3 qual, no fundo, devem eudo, ji nfo se sabe nada. No entanto, tentem perguncar a Préspero, quando demitiu todos os seus encantas e retornou, com os outros seres humanos, a seu ducada, o que é vida sem Ariel Exemplo perfeico deajudante é Pinéquio, o boneco maravilhoso que Gepeto quis fabricar para si fim de fazer uma volta ao mundo com ele, € com isso ganhar “um pedaco de pio e um copo de vinho”. Nem morto nem vivo, mets- de golem e metade rob, sempre pronto a ceder a todas as tentagées ea prome- ter, loge depais, que ‘a parti de hoje sersi hom”, esse arqsiétipn eterna da setiedade e da graga do inumano, na primeira versio do romance, antes que 20 autor viesse em mence acrescentar um final edificance, num determinade mo- mento “estira os pés” € morre do modo mais vergonhoso, mas sem se tornar uum rapsz. Ajudante é também Pavio, com “rua figurinha seca e espigada, que lembrava um pavio novo de lamparina”, que anuncia 20s companhiitos o pals das maravilhas ¢ morte de rir quando se dé conta que Ihe cresceram orclhas de 2 Jun. Da mesma indole sio também os “assizences” de Walser, inveparivel ‘cimosamente preocupados em olaborar com una obra totalmente spel, rout oti dizer inqualificvel. Se estuclam — e parece que estudam muito =, | cor-no pata tirar'um zero bem redondo, E porque motivo deveriam colabo- ‘uy vom @ que © mundo considera sério, quando na verdade néo passa de Ivan ura? Preferem passear. E se, caminhando, encontearem um cio ou outro \ vivo, cochicham: “ndo tenho nada para te dar, querido animal; de bom youn © daria, seo tives, A nfo ser que, so fra, se deitem sobre um prado ur amagamente sua “cenipida existéoeia d= ranhentus, Limbém entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos [nto indteis, meeade lembranga ¢ merade talisma, de que nos envergonha- ‘as tm pouco, mas aos quais nfo gostarfamos de renunciar por nada neste vnnulo, Tratacse as venes de um velho brinquedo que sobreviveu aos estragos ‘iuntis, de uma eaixinha de estudante que guarda um cheico perdido ou de vin camiseta apertada que conservames, sem motivo, na gaveta das camisas lc homem". Devia ser algo assim, para Kane, © pequeno trené Rosebud. Ou, + seus perseguidores o falco maltés que, no fina, revela-se feito da “mes- ons matéria de que so feitos os sonhos’. Ou © motorzinho de motacicleta ‘vansformado em batedeira, de que fila Sohn-Rethel em sua estupenda descri- w de Nipoles. Onde vio acabar tais ebjetos-ajudantes,testemunhos de um vlen nio-confessado? Porventura nfo existe para eles um armazém, uma arca 1m que sejam recolhidos para a etemnidade, como acontece com a genizah em ne 08 hebreus conservam os velhos livos ilegiveis, porque mesmo assim po- levia estar escrito 0 nome de Deus? © capitulo 366 das Iluminardes da Meca, 2 obsra-prima do grande sufi Ibn- Avsbi, & dedieade ane “ajudantes dos Messias”, Keene aj lancer (wane, plarsl le wazir; & 0 vitir que encontramos tantas vezes nas Mil ¢ uma nits) sio homens que, no tempo profano, jd possuem as caracteristicas do tempo ‘messitnico, pertencem ji a0 iltimo dia. Curiosamente — e talver exatamente ‘por iso —, eles foram escalhidos entre os ndo-drabes,sS0 estrangeiros entre os ivabes, embora falem sua lingua, O Mahdi, messias que ver no final dos tem- pos, precisa de seus ajudantes, que de algum modo sio seus guias, embora x 1 simples personificagses das qualidades ou “estaghes" de sua pripria sabedoria, “O Mahdi toma suas decisSes e pronuncia seus juizos s6 depois de se consultar com eles, pois sio os verdadeiros conhecedores do que existe na realidade divina.” Grasas a seus ajudantes, 0 Mahdi pode compreen- der » lingua dos animais estender sua justiga tanto aos homens como aos jinn, Uma qualidade dos ajudantes € a de serem “tradutores” (onutarjin) da lingua de Deus pata lingua dos homens. Segundo Ibn-Arabi, toda 0 mundo nada mais 6 que uma tradugio da lingua divina, e os ajudantes, nesse sentido, sio 0s realizadores de wins weofuitia imtermingvel, de ama revelagéo continus. (Oucra qualidade dos ajudantes éa “visio penetrante”, com a qual eles teconhe- cem 05 “homens do invisive!”, ou seja, anjos outros mensageitos que se es- condem em formas humanas ou animais. ‘Mas como se conseguem identficar os ajudantes, os tradutores? Sendo es- trangeiros, escondendo-re assim entre os fidis, quem terd a visto para distin gui os visiondrios? ina ériatura intermedia entre os wnzara © os ajudantes de Kafka é 0 ue lino da vida torts” nao é apenas a cifta do dessjcitamento purl, do €apenas ‘ espertinho que rouba 0 copo de quem quer beber ¢a oracio de quem quer rezat Pelo contritio, quem olba para ele “perde a capacidade de prestaraten- ando corcunda que Benjamin evoca em suas recordagées infantis. Esse a0", Em si mesmo e no anio, O corcunda €0 representante do esquecido, que se apresenta pata exigit em qualquer coisa parte do esquecimento, E tal parte tem a ver com o fim dos tempos, assim como a distragio néo & mais que uma antecipagio da redengio. Os defeitos fisicos, a coreunda, as grosserias sio a forma que as coisas assumem no eaquecimento, O que sempre jéesquecemos & «© Reina, nds que vivemos “como se nfo fbssemos Reino". Mas quando o mes- siaa vier, 0 orto coonar eed direito, © embarago, decenvoltura, ¢ 0 esqueci- mento se lembrari desi mesmo, Pois, foi dito, “para cles e seus semelhantes, os incompletos ¢ os ineptos, nos & dada a esperang: ‘A idéia de que o Reino esteja presente no tempo profane em formas miopes « distorcidas, de que os elementos do estado final se escondam precisamence ‘no que hoje aparece como infame eescamnecido, de que, em suma, a vergonha u ‘cha a ver seeretamente coma glétia, é um tema messiinico profundo, Tudo ‘ye agora nos aparece envilecido e de povco wlor é fangs que deveremos 1 sjitarno tleime dia, e quem nos guia par a slvagio € precisamente © com- yvunhciro que se perdew pelo caminho, E seu msto que reconheceremos no ‘uj ie toca a trombera ou em quem, distcatde, deixar eair das mio o livia |v vila. A eéstia de luz que nasee em nossosdefeKos e nossas pequenas bsixeras viv ot senio a redengio. Ajudantes, nese sentido, foram também 0 mau unpanbeiro de escola que nos passou porbaixo da carteira as primeira foto- ols pornogeiBeas ou @ aSrdide quactinho onde alguge nos mosecou pola iia vera sua nude, Os ajudantes so nosses desjos instisfeitos, aqucles mio confessamos sequer a nds mesmos, que no dia do juizo viréo a nosso vwonteo soetindo como Artur e Jeremias. Naquele dia, alguém descontari vwsis rubores como letras de cimbio para o paraiso. Reinar nao significa iolizer, Signifiea que o insatisfeito é 6 que permanece. (© ajudante € figura daquilo que se perde, ou melhor, da relagéo com 0 Jronlido, Esta se rere a tudo que, na vida coletiva e na vida individual, acaba slo esquecide em todo instante, & massa intermindvel do que acaba ierevo- yvvelmente perdido, Em cada instante, a medida de esquecimento ede tuina, perdicio ontolégico que trazemos em nés mesmos exeedem em grande «lida a piedade de nossaslembrangase a nossa consciéncia. Mas esse ios ‘nlorme do esquecido, que nos acompanha como um golem silencioso, nio & ‘norte nem ineficaz, mas, pelo contrério, age em nds com forga nfo inferior 3 lus lembrangas conscientes, mesmo que de forma diferente, Hi uma forga ¢ ase uma apdstrofe do esquecido, que nfo podem ser medidas ern rermos de ‘nseiéneia, nem aeumuladas como um patrimdnio, mas cuja insisténcta deter- vwinaa importincia de todo saber e de toda conscigncia. O que o perdido exige sa ser lambada ou satsfeto, mas continuar presente em née como esque ilo, como perdido ¢, unicamente por isso, como inesquectvel, Em tudo isso, vajudante € decasa, Blesoletra 0 texto do ineguectvel eo traduz para lingua slos surdos-mudas. Disso nasce sua obstinadagesticulagio, disso provém o seu impassivel semblante de mimico, Diss, também, sua itremedidvel ambigii- lade, Isso porque do inesquecivel s6 é possivela parédia O lugar do canto esté varia, Ao lado ¢ a0 redor atarefam-se os ajuchntes, que preparam o Reino. as “Angela custae ro da guard, de tra da Cortona, tela de 1656. ‘Gallerie Nazionale Are Antica, Roma PARODIA Von A ithe de Arturo, Elsa Morante excondeu uma meditagio sobre a parédia ue contém verossimilmente também uma indicagio decsiva sobse a pedptia poética. © teemo “Parsi” (com inicial maiiscula) aparece no livro improve sudamente como epiteto, que parece injurioso, do personagem provavelmen- ve central do romance, Wilhelm Gerace, idolo e pai de Arturo, a vox que ‘narra, Ele, a0 ouvir pela primeira ver a palavea (ou melhor, a0 traduzicla da linguagem secreta de assobios que ele acreditava ser o vinico a compartilhae ‘om @ pal), no consegue entender bem seu significado ¢ a repete mental- mente para nio a esquecer. Tendo voltado para casa, consulta um dicionétio & wbcém a seguinte resposta: “Imitagéo do verso de outrem, na qual 0 que em ‘outro & sério passa a ser ridicule, ou cdmico, ou grotesco” A inteusio dessa definigéo tipica de manual de retérica em texto liverrio nto pode ser casual. Ainda mais que 0 termo volta a aparecer pouco antes do Final do romance no episédio que contém a revelacio derradeira, que levari 4 separagio do pai, da ilha e da infincia, Tal revelagao die: Panédia!”. Bssa_ver, Arturo, lembrando a definigéo do dicionério, procura cm vio na Figura magra e graciosa do pai os aspectos cémicos ou grotescos «qu Teu pai é uma ceriam podide justifcar 0 epftcto, Mesmo quc compreenda, logo ci scguida, \que 0 pai esté enamorado do homem que o insultou. O nome de um género licerdrio &, nesse caso, a cifta de uma inversio que no tem a ver com a trans- posigio do sétio para o cbmica, mas com o objeto do deseo. Pela mesma poder-se-ia afitmar, porém, que a homossexualidade do personagem & a cifia do seu néo-ser outta coisa que 0 simbolo do géneto literitio do qual a vor que narra (que é obviamente, também a vor do autor) esti enamorada, Se- 37 gundo uma incengio alepérica especial, de que nio & dificil encontrar proce dentes nos textos medievais, mas qui & quase dinica em romance moderna, isa Morante transformou um género liter: de seu livro, Nessa perspectiva, A idha de Arturo aparece como a histéria do desesperado amor infantil da autora por um objeto literdtio que no inicio aparece muito sério © quase lendirio, revelando-se, no final, acessivel apenas cem forma parédica ~4 paridia ~ no protagonists AA definigao da paréia no dicionario consultado por Arturo é relauwamen- te moderna. Provém de uma tradigio retérica que encontra sua consolidagio exemplar no final do século XVI, em Sealigero, que dedics & parédia um eapi- tuo inteito de sua Pottic. A definigio que aise Ié transformou-se em modelo no qual se inspirou por séculos o tracamento do assunto: “Assim como a Sétira driva da Tragédia © 0 Mimo da Comédia, a Pardia deriva da Rapsédia. Aliés, quando os rapsodos intertompiam sua recitagio, entravam em cena os quc, por amor do jogo e para reanimar os ouvintes, invertiam tudo 0 que havia acontecido antes... Por iso, chamaram tais eantos de paroidous, pois a0 lado © para além do assunto sétio inseriam outras coisas ridiculas. A Purédia &, por- tanto, uma Rapsédia invertida, que transpée 0 sentido para o ridiculo, trocan- do as palavras. Era algo semelhante & Episrhema e& Parébase’ Scaligero era uma das inceligéncias mais agudes de seu tempo, e sua defini- ‘s40 contém elementos como @ referéncia & recitacéo dos poetas hométicos (a rapsédia) ¢ & pardbase cémica, sobre © que teremos oportunidade de voltar a falar, De qualquer modo, ficam marcadas as duas caracteristicas candnicas da parddia:a dependéncia de um modelo preexistente, que de sérioé transforma do em cbmico, ¢ a conservagio de clementos formais em que sio inseridos contetidos novos e incongeuentes. A passagem disso para as definigées dos manuals modemos ¢ breve, devivando dal wquela que leva Astute a pensir muito. As parédias sacras medievais, como as misiae poratorum e a Coena Gpriani, que introdurem contetidos grossciros na liturgia da missa ou no tex to da Biblia, constituem, nesse sentido, um exemplo perfeito de patsdia. © mundo clissico conhecia, porém, outra ~ ¢ mais antiga — acepeio do. termo “parddia", remetendo-o 4 esfera da técnica musical, Ela indica uma se- 38 pparagio entre canto e palavra, entre melos & logos: Na miisica grega, de fio, vviginalmente a melodia tinha que cortesponder 20 ritmo da palavta, Quan- slo, na reeieagio dos poemas hométicos, tal nexo acaba desfeito © os rapsodos ‘omegam a introduzie melodias que sio percebidas como discordantes, diz-se «que les cantam pana ten aden, contra o canto (ou a0 lado do canto). Aristételes informa-nos que o primeito a introduair nesse sentido a parédia na rapsédia {oi Fegemone de Tasos, Sabemos que seu modo de recitar provocavarisadas jimofredveis nos atenienses. Diz-se do citarista Oinopas que ele introduziu @ atédia na poesia lirica, separando, também nesse caso, a misica da palavra. A separagio entre canto ¢ linguagem aparece completa em Calias, que compée wim canto em que as palavzas cedem o lugar 8 soletragio do ABC (bete aff, era eta ec). Independentemente disso, segundo essa mais antiga acepgéo do termo, a parédia designa a rupcura do nexo “natural” entre a misica e a linguagem, a dlissolugéo do canto pela palavra. Ou entio, pelo contritio, da palavra pelo canto, E, de fato, 0 afrouxamento parsdico dos vineulos cradicionais entre imtisica fogos que torna possvel, com Gergias, © nascimento da prosa de arte. © rompimento do vinculo liberta um part, um espaco ao lado, em que se instala a prosa. Mas isso significa que a prosaliverdvia traz em si o sinal da separagio do canto. O “eanto obscuro” que, segundo Cicero, se ouve no dis- curso em prosa (est autem etiam in dicende quidem cantus obrcurior) & nesse sentido, um lamento pela mtsica perdida, pelo desaparecimento do lugar na- tural do canto. Certamente no € novidade dizer que a chave estilistica do universo de Morante & a parédia. A esse propésit, filou-se de “parédia sé © conceito de “parédia séria” &, obviamente, contraditério, no porque a parddia nao seja coisa séris (pelo contrério; As vezes € serfssima), mas porque rio pode pretender ident jcar-se com a obra patodiada, nio pode renegar © fato de se situar necessariamente ao lado do canto (part-oiden) e de no ver um lugar préprio. Séios, porém, podem ser os motivos que levaram o parodiante a renunciar a uma representagio direta de seu objeto. Para Morante, eles io no apenas evidentes, mas também substanciais: 0 objeto que cla deveria des- crever~a vida inocente, a saber, fora da histéria—é rigorosamente inenatrivel, 3 Acxplicagio prevoce dada por Els, tomando-a emprestada do mito hebraico- cristio, em um fragmento de 1950, &definitiva para sua poctiea: © homem foi expulbordlesfldery) pends ireullagan prdpitccaettl fab) ua womyeriil tice animais, dentro de uma histéria que nio Ihe pettence. © proprio objeto da narragéo é,nesse sentido, "parddico”, ou soja, esti fora de lugar, e ao esertor sobra apenas repetir e mimara sua parédia intima. E dado que quer evocar 0 inenarrivel, deverd necessariamente recorrer a meios pueris , confotme sugere ‘autora no final do livro, em um raro momento em que rouba a vor de Arturo, 4 “vicios romancescos”. Alii, Elsa ¢ obrigada a contar com leitores sem mali- «ia, capazes de suprie 0 insuportivel caréterestercotipado e parédico de mui- tos de seus personagens que, como Useppe eo proprio Arturo, parecem saidos de um livzo lustrado para ainFincia, metade Comoe metade A itha do tesou- 170, metade fibula e metade mistério, Na literatura, é um teorema bvio, para Elsa, que a vida pode ser apresen- tada unicamente como um mistério (“Assim, portato, a vida continuow um mistério” ~ constata Arturo antes da iiltima despedida). Sabemos que, nos 1mistétos pagios, os iniciadosassistiam a ages ceatras em que apareciam brin- quedo: pies, jogo das panels debarso’, expelhinhos (ouerilia lira — diver- timentos pueris~, define-os um malévoloinformante) £ Gil refltr sobre os aspectos puetis de qualquer mistério, sobre a fatima solidariedade que o liga 8 parédia. A respeito do mistéro #5 pode se dat pars: qualquer outratentat- va de evociclo descamba para o mau gosto e para. a pssionalidade, Parddica é, esse sentido, a representagéo por exceléncia do mistésio moderno: a liturgia dla missa. Testemunham-no as numerosas paris sacras medievas, nas quais falta de cal mancira qualquer intengio profanaséra, que foram conservadas pela mio devora dos monges. Frente a0 mi acabar em cativatas io, a criago artistica 96 pode ny acutidy etm que Nietzsche, no hicido limiar da loucu- ra, escrevia para Burckhardt: “Sou Deus, iz essa caticaturas preferitia ser pro- fessor em Basiléia em vez de ser Deus, mas nio consigo levartéo Jonge meu * No original, pga. Jogo que consiste em penducar em eordas presas a sm poste, © cima da alrura da cabera,algumas panelas de barr (pignat.), que os jogadores, dlecolhos vendades, procuram romper com um bast. (N.T) 0 e E. por uma espécie de probidade que o artista, sentindo que nio pode levar seu egoismo a ponto de querer representar 0 inenarrivel, assume a pasddia como a forma prdpria do mistésio. ‘A instituigéo da parédia como forma do mistério talver defina 0 mais ex- svemo dos contratextos parédicos da Idade Média, que transforma na mais losonfieada escatologia « aura mistériea que se situa no centro da intengéo vwalheiresca, Trata-se de Audigier, pequeno poema em francés antigo, com yponto por volta do Gnal do sévulo tte conservado em um tinlco manuscrit. | genealogia e a inteira existéncia do anti-heréi que é seu protagonista esto inseritas desde o inicio em uma constelagio decididamente cloacal. Seu pai, Turgibus, & senor de Cocuce, “um pais mole! onde o pessoal estk na merda «iGo peseogo.! Por um riacho de esgoto cheguei a nadot/ nunca pude saic por ‘outro buraco”. Desse nobre senor, de quem Audigier se apresenta como dig- no berdeiro, sabemos que “quando defecou a ponto de encher 0 capuaf enfia ‘osdedos na merda, e depois os chupa’. O verdadeiro nicleo parédico do poe- ina reside, porém, na simulagio do cerimonial da investidura cavalheizesc, ‘que se realiza em uma esterqueia e, sobretudo, nos repetidos combates com a «nnigmatica velha Grinberge, que acabam inevitavelmente em uma espécie de burlesco sacramentirio escatolégico, e que Audigier suporta como “verdadeiro rentil-homer Grinberge a decouvert et eul et con tor le vis lkere.aestapon: dds cul li ebiet la merde a grant foison. Quans Audigier se sit sor un fumierenvers, et Grinberge sor lui qui Ui froie les ners. 4 foi fot batsier som eu ain qui fast tes. (Grinberge pds a nu bunda e vulva sobre o resto se the enroscous dda banda sin merda em profi. Conde Audigier etd deitado numa exrumeins sobre ele Grinberg, que the exfregs 0° tendées duas veces the teve que beijar a bunda antes que ficaselimpa..) 4“ Aqui nie se tanto, como foi sugerido, de uma regressio uterina ou de ‘uma prova inicidtiea, de que se podem vislumbrar precedences no folelore, sim, sobretud, de uma inverséo audaz do que esté em jogo na guéte caval +escae, ainda mais, do abjeco do amor cortés que, a partir da esfera prestgioss do sagrado, é reconduzida bruseamente para a profana da estrumeira. Alés, € posstvel, dessa mancira, que o desconhecido autor do pequeno poema apenas cexplicite cruamente uma intengio parédiea jé presente na literatura cavalhei- resca e na poesia amorosa: confundit ¢ tornar duravelmente indiscernivel 0 tumbral que vepara o sugrado e o profano, o amor ea sexualidade, o sublime e © infimo, A dedicatéria poética na abercura de A itha de Arturo estabelece uma cortes- pondéncia entre a “ithota celeste", que é 0 lugar do romance (a infancia?), 0 limbo. A correspondéncia traz, porée, um eodicilo amargo, que rera assim: ‘fora de limbo no bd elisio, & amargo porque implica que. felicidad 96 pode cexistir de forma parédica (como limbo, € nfo como clisio ~ outra vee uma troca de lugar). A leitura dos tratados teolégicos sobre o limbo mostra, sem sombra de vida, que os padres concebem o “primeico eitculo” como uma parédia conjunta do paraiso e do inferno, quer da bem-aventuranga, quer da eonde- nagio. Do paraiso, enquanto hospeda criaturas — eriangas mortas antes do batismo ou pagios justos que néo puderam conhecé-lo ~ que si inacentes, ‘como os bem-aventurados, e, mesmo assim, trazem em si a mancha original 0 elemento mais itonicamente parSdico tem a ver, porém, com o inferno. Segundo os teélogos, a punigéo dos habitantes do limbo nto pode ser uma, pena aflitiva, como a dos condenados, mas unicamente uma pena privativa, ‘que consiste na perpétua earéncia da visio de Deus. Sé que, a diferenga dos ‘condensdoo, cles nko sencem dor com essa cartncis, o que constiul a primelia ‘entre as penas infernais. Por desfrutarem apenas do conhecimento natural «nto do sobrenatural, que deriva do batismo, a falta do bem supremo no Ihes causa 6 menor pesar. Assim, as criaturas do limbo transmutaim a pen maior em alegria natural, e essa é certamente uma forma extrema e especial de parddia. Disso, porém, tamhém nasce o véu de tristeza que, “como uma. coisa cinzenta", cobre, 20s olhos de Morante tha inviolada, A “casa dos tapa- 2 ves", que evocs com seu proprio nome o limba infantil, txz-em si, com a me dria dos festins homossexuais da regiéo amalfitana, uma parédia da inocéncia, Em um sentido particular, toda a teadigéo da liveratura italiana eai sob © signo da parédia, Gorni mostrou como a parédia (também aqui de forma ria) & elemento essencial do estilo dantesco, que procura produair um duplo, ve dignidade quase igual & das passagens da Sagrada Eseritura que reproduz. Mas a presenga de uma insténcia parédica na literatura italiana é ainda mais ncima, Todos os poetas estto apatxonados por sua lingua. Mas, em gera, algo se tevela a eles por meio da lingua algo que os rapta e os ecupa inteiramente: » divino, 0 amor, o bem, a cidade, a natureza.. Com os poetas italianos ~ pelo ‘menos a partir de determinado momento ~ vetifica-se um fato singular: eles estio apaixonados apenas por sua lingua, ¢ esta thes revel unicamente a si mesma, E isso € causa — ou, talven, conseqiigneia ~ de outro fato singular, a saber, que os poetasitalianos odeiam sua lingua na mesma medida cm que a mam. Por isso, no caso deles, a parédia nfo funciona apenas inserindo eon- teiidos mais ou menos cbmicos dentro de formas séias, mas parodiando, por assim dizer, a prépra lingua. Fla introduz (ou, 0 que é 0 mesmo, descobre) na lingua (, portanto, no amor) uma ciséo. O obstinado bilingitismo da euleara lierdvia italiana (latimfvalgar e, mais tarde, com o declinio progressivo do lacim, lingua mortalingua viva, lingua literiria/dialeto) tem, nesse sentido, certamente uma fungéo parédica. De um modo poeticamente canstitutivo, como aparece, em Dante, a oposigéo gramética/lingua materna; em formas clegiacas © pedantes, como ocorre na Hyprerotomachie, ou desbocadas, como «in Bolengo. © essencial, em qualquer caso, reside no fato de ser possivel ins- taurar na lingua uma tensio ¢ um desnivel, sobre o qual a parddia instala sua central elétrica, facil mostrar os suecssos dessa tensio sna lteratuia dl a€cala XX. A pard- dia nfo 6, nesse caso, um género literdrio, mas a propria estrutura do meio lingiistico no qual a literatura se expressa. Ao lado de escritores que promo- * A Seasa dos rapazes", casa de? guaglioni ex dialeto napolitano, & 0 lugar em que ‘mora o protagonist do romanee de Morante, © nome, dado pelo antigo proprie~ trio, lembea que na casa era proibido o ingresso de mulheres. (NT) a ver 0 duslismo como uma espécie de “discordincia” interna & lingua (Gada ‘© Manganelli),héescritores que, em verso ou em prosa, celebram parodicamente © no-lugar do canta (Pascoli ¢, de mancira diferente, Elsa Morante e Landolti. Obvio é, edo canto), J toda mancirs, que se cante—e se fale ~somente ao lade (da lingua Se, para a parédia, & essencial o pressuposto da inacingibilidade de seu ob- jeto, entio a poesia trovadoresca e estlo-novista contém uma inegavel incen- fo parddica, Isso explica 0 carter 20 mesmo tempo complicado e pueril do seu cerimonial, Limor de lonh € uma parédia que garantea inaproximabilidade em relagéo aquilo com que se pretende unir. Isso é verdade também no plano lingiistico. Preciosismo méttico ¢ trobar elusinstauram na lingua desniveis & polaridades que transformam a significagéo em um campo de tensbes destina- das continuarem insatisfetas ‘Mas tenses polares reaparecem também no plano exético, Desde sempre, causa espanto,a presenga de uma pulsio obscena e buslesca, ao lado da mais refinada espiritualidade, freqlientemente convivendo na mesma pessoa (caso exemplar é Amaut, cuja sirvente obscena nunea deixou de apresentar difieul- dades para os estudiosos). © poeta, absessivamente ocupado em afsstar 0 ob- jeto de amor, vive em simbiose com um parodista, que inverte poneualmente sua intengéo, [A poesia de amor nasce na modernidade sob o signo ambiguo da parédia. © Cancioneiro de Petearca, que decididamente dé as costas & tradigio trova doresca, con: i.a tentativa de salvar @ poesia no confronto com a parédia. Sua rece € simples eficaz: monolingiismo integral no plano da lingua (la- tim e vulgar sio distanciados até se tornarem incomunicantes, os desnivels métricos sio abolidos); eliminaglo da inaproximabilidade do objero de amor Cobviamence, nao no sentido realista, mas transformand 0 que € inaproximavel em um cadéver—ou melhor, em um espectro). A aura morta é agora o objeto proprio e imparodidvel da poesia. Exit parodia. Incipit literatura’ A parédia removida reaparece, porém em formas patolégicas. Nio € apenas uma coincidéncia irdnica que a primeira biografla de Laura se deva a. um [Em lati: "Sai a paréin, Entra a literatura", (NT) 4 antepassido de Sade, quea insereve na genealogia familiar. Ela anuncia a obra slo Divino Marqués como a revolligio mais implactvel do Cncianeira. \ por nografa, que mantém inatingivel 0 pr «jue se aproxima dele de um jeito incepan de ser olhado, &.a forma escatol6gica cls parédia rio Fantasma no mesmo gesto com, Foi Fortini quem estendeu a Pasolini a formula da “parddia séria” de Morante, Ele aconselha lero itimo Pasolini em intimo didlogo com Morante. Asugestio pode ser ulteriormente desenvelvida, Pasi uialoga com Morante (que nas poesis €ironicamence chamada de Baris), certs altura, nao s6 ‘nas aptesenta a respeito uma parddia mais ou menos consciente, Aliés, tam- Ipém Pasolini havia iniciado com uma parddia lingifstica (as poesias friulanas, ‘uso incongruente do dialeto roman); mas, seguindo as pegadas de Morante © com a passagem para o cinema, ele desloca a parddia para os contetidos, screscendo-the um significado metafisico. Assim como a lingua, também a vida (a analogia no causa surpresa;trata-se justamente da equagio ceolégica ‘ene vida e palavra que marca profundamente o universo cristo) traz consigo uma esto. O poeta pode viver “sem os confortos da religiio”, mas néo sem os «la parddia. Ao culto morantiano de Saba, corresponderd assim 0 culto de Penna, a “longa celebragio morantiana da vitaidade”, a crilogia da vida. Aos meninos angelicais que devem salvar 0 mundo corresponde a santificagio de Ninetto. Em ambos os casos, como fundamento da parédia hé algo intepresentavel. E, por fim, também nesse caso a pornografia desponta com uma fungio apocaliptica. Sob tal perspectiva, néo seria ilegitimo ler Salé como uma parédia da Stora’ A parédiatecerelagdes expeciais com a fiesSo, que constieui desde sempre a contra senha da literatura. A opto — de que Morante sabe ser mestea — é sledicada uma das pocsias mais belas de Alibi, que enuncia sinteticamente 0 ‘ald ono 120 dias de Sodema& um filme de Piet Paolo Pasolini (1922-1975), inspi- :ado na obra de Sade, Ze noria 6 um liveo de Elsa Morante (1912-1985), pu do em 1974, que narra a odisséa béiea da [ila e do mundo (1941-1947) por ‘meio da histévia de uma pequena e simples familia romana, (NT) 45 ven 9 duatismo como uma espécie de “discoriincia” interna & Lingua (Gada «eManggnelli, hesertores que, em verso ou em pros, celebram parodicamente © niio-lugar do canco (Pascolie, cde maneira diferente, Elsa Morante e Landolfi. Obvio , detoda mancira, que se cante—es fle ~ somente ao lado (da agua do canto). Se, paraa parédia,é esencial o pressuposto da inatingibilidade de seu ob jeto, entio a poesia trovadoresca ¢ estilo-novista contém uma inegvel inten- so parddica, Isso explica 0 cariter a0 mesmo tempo complicado e pueril do seu cetimonial. Lirmorde lonh éuma paréilia que garante a inaproximabilidade em relagio aguilo com que se pretende unir Isso 6 verdade também no plano lingiistico. Preciosismo méttico ¢ érobar elur instauram na lingua desntveis © polaridades que transformam a significagio em um campo de tenses destina- das a continuarem insatisteicas, Mas tens6es polares reaparecem também no plano etético. Desde sempre, causa espanto, presenga de uma pulsio obscena e burlesca, ao lado da mats tefinada espirtualidade, freqlentemente convivendo ia mesma pessoa (caso ‘exemplar é Arnaut, cujasitvente obscena nunca deixou de apresentardificul- sdades para os estuciosos). O poeta, obsessivamente ocupado em afastar 0 ob- jeto de amor, vive em simbiose com um parodista, que inverte pontualmente sua intenséo. A possia de amor nasce na modernidade sob o signe ambiguo da parédia. ‘© Cancionciro de Petrarca, que decididamente di as costas & tradigéo trova- doresca, constitui a tentativa de salvar a poesia no confionto com a parédia Sua receita€ simples €eficaz; monolingtismo incegel no plano da lingua (la tim e vulgar sio distanciados até se tornarem incomunicantes, os desntveis :étricos sio abolidos); eliminagge da inaproximabilidade do objeto de amor (ebvianente, nfo no sentido reallsta, mas transformando o que € inaproximvel em um cadiver—ou melhor, em um espectro). A aura morta é agora o objeto préptio e imparodivel da poesia, Exit parodia. Incpit literatura ‘A parédia removida reaparece, porém em formas patolégicas, Nao € apenas Juma coincidéncia irénica que a primeira biografia de Laura se deva a um. 7 Bim lati: “Sala parédia, Entea literatura’. (NE) “4 vntepassado de Sade, quea insexeve na genealogia familiar: Ela anuncia a obra «lo Divino Marques como a revolugo mais implacivel do Cancioneiro. A por hnageafla, que mantém inatingivel © préprio fantasma no mesmo gesto com «ives aproxima dele de tum jeito incapas. de set olhsdo, é a forma excatolégica «ls parédia, Foi Fortini quem estendeu a Pasolini a formula da “parédia séria” de Morante, Eleaconselha lero tiltimo Pasolini em intimo dislogo com Morante, ‘Asugesdo pode ser ulterlormente desenvolvida. Pasolint, a cert altura, nao s6 slialogt com Morante (que nas poesias ¢ ironicamente chamada de Basilsa), ‘mas apresenta a respeito uma parédia mais ou menos consciente. Ali, cam- thém Pasolini havia iniciado com uma parédia lingistia (as poesis Friulanas, © uso incongeuente do dialeto romano); mas, seguindo as peyadas de Morante com a passagem para o cinema, ele desloca a parédia para os contei acrescendorlhe um significado merafisco. Assim como a lingua, também a vida (a analogia ndo causa surpresa; wata-se justamente da equasio teoligiea cntee vida e palavra que marea profurndamente o universo ct ic) trax consign uma cisfo. © poeta pode viver “sem 3 confortos da religito”, mas nto sem os dla parédia. Ao culto morantiano de Saba, corresponders assim o culto de Venna, & “longa celebragio morantiana da vitaidade”, a tilogia da vida. Aos rmeninos angelieais que devem salvar © mundo corresponde a santificagio de Ninetto. Em ambos os casos, como fundamento da parédia hé algo imepresentivel. B, por fim, também nesse caso a pornografia desponta com ‘uma fangio apocaliptica, Sob tal perspectiva, nio seria ilegtimo ler Salé como uma parddia da. Storia’ ‘A parédia tece rlagées especiais com fiegéo, que constitui desde sempre a contra-senha da literatura, A Regs ~ de que Morante sabe set sestia dedicada uma das poesias mais belas de Alibi, que enuncia sinceticamente 0 Sal ou es 120 dias de Sodamaa &um Ble de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), inspi- tado.na obra de Sade. Za storia & um livio de Elsa Morante (1912-1985), publica- do em 1974, que narra a odissta belica da Ilia e do mundo (1941-1947) por meio da histéria de uma pequenae simples fala rorsana. (N.) 45 toma tmusicak “di te fnzione mi cingo, faswa vete.." [de ti, fiegio, Ficus veste..”|. Eé sabido que, para Pasolini, a propria lingua de Morance & pura fegio ("Lk finge que o italiano existe”). Mas, realmente, paréia 6 nio coincide com a ficgéo como constitui 0 seu oposto simétrico. De fato, « parddia no pée em divide, como faz a Rego, a realidade do seu objeco ~ ‘este, lis, é tio insuportavelmente real que se trata, precisamente, de manté-lo A distincia, Ao “como se” da Fecio, a parédia contrapée seu dristco “assim & ddemais” (ou “como se nio"), Por isso, sea ficgo define esséncia da literatura, se pie, pur assim dizes, no limiar dela, obstinadamente estendida a pasta centre realidade e fiegfo, entre a palavra ea coisa. Talver ndo haja lugar melhor para pereeber a afinidade e, ao mesmo tempo, a distincia entre esses dois pélos simétricos de toda eriagio do que na passa- gem de Beatria a Laura, Fazendo com que seu objeto de amor morta, Dante dé certamente um passo além da poesia trovadoresca. Seu gesto, porém, ainda continua parédicos a morte de Beatriz é uma parédia que, separando da eria- ‘tura mortal o nome que o traz,capta sua esséncia beatificante. Tem-se assim a absolura auséneia de luto; em-se, daqui até o final, o triunfo, nio da morte, mas do amor. A morte de Laura & porsua ver, a morte da consisténcia parédica do objeto de amor trovadoresco ¢ estilo-novist, seu tornar-se apenas “aura”, apenas flatus vocis, Nese sentido, os escrtores diferenciam-se, de acordo com sua filiagio a tuma ou outra das duas grandes classes: a parédia e a fiegio, Beatriz © Laura Mas também séo possiveis solugdes intermediitias: parodiar a ficgo (2 voca- 40 de Blsa) ou fingir a parddlia (& 0 gesto de Manganelli e Landolt. Se, continuando a vocagio metafisica da parédi gesto, poderemos dizer que ela pressupte tuma tensio dul no ser. Assim, & cisio parsdica da lingua correeponderd, necetatiamente, ume reduplicagio levarmos a0 extreme seu do ser, ontologia, uma pare-ontologia. Certa vex Jarry definiu a sua prefeti- da, a "patafisica’, como a cigncia daquilo que se acrescenta & metafisica. Na ‘mesma perspectiva, poder-se-d dizer que a parédia é a teoria ~ e a pritica ~ aquilo que esté a0 lado da lingua e do ser ~ ou do ser 20 lado de si meso de todo sere de todo discurso. E assim como, pelo menos pata os modernos, a metaflsica & impossive, « néo ser como a abertura parédica de um expago 20 46 ‘via, assim também a parddia & um terreno conhecidamente impraticivel, uncle viajance se choca continuamente com limites e aposias que néo conse- 1, masa respeito dos quais nem sequer pode encontrar uma saida. ea ontologia éa relagio ~ mais ou menos feliz — entre linguagem e mun- ‘lo, a parsdia, como parscontologia, expressa a impossibilidade da lingua de slcangar a coisa, ¢ da coisa de encontrar seu nome. Seu espago —a literatura ~ 6, portanto, necesséria e teologicamente marcado pelo luto e pelo gesto lc-esckenio (como o da ldgiea é marcado pelo siléncis). Contudo, dessa ma- heirs, ea é testemunha daquela que parece ser a dinica verdade possivel da linguagem. Na sua definigéo da parédia, a cert altura Sealigero menciona a parsbase. Na linguagem técnica da comédia grega, a paribase (ow parekbati) designa o momento em que os atores ssem de cena ¢ 0 coro se dirige diretamente 20s cspectadores. Para fazé-o, para poder ilar ao pblico, ele se desloca (panabaino) para a parte do proscénio chamada lageon, lugar do discusts. No gesto da paribase, quando a representagio se romp, ¢atores e expecta- atensio entre cena ¢ realidade lores, autor e puiblico trocam entre si os pa 2 parédia talvez conbega sua inica solugio. A paribase é uma Auffebung uma transgeessio e uma realizagio ~d pardlia. Por sso, Friedrich Schlegel, atento, como sempre, a toda possivel superagio i efinica da arte, vé na pardbase © momento em que 2 comédia vai além de si mesma na diregio do romance, a forma romantica por exceléncia. O diélogo cénico ~ intima e parodicamente dividido ~abre uum espago ao lado ( mente tepresentado palo fogeion) ese transforma apenas em coléquio, em simples e humana con- versagao, [No mesmo sentido, na literatura, quando a vos do narsador ee volta para 6 leitor, ou quando se fazem os famosos apelos do poeta ac leitor, ese uma paréhase, uma interrupgio da parédia. Convém refletis, nessa perspectiva, so- be & fungio eminente da pardbase no romance moderno, de Cervantes até Morante. Convocado e deportado para fora de seu lugar © de sua condigio, 0 leitor nao acede 20 lugar e & condigéo do autor, mas a uma espécie de incermundo. Se a parédia, cisfo entre eanto e palavia © entre linguagem © a mundo, comemors realmente icin de lugar da palavea humana, nesse caso, na pariase, essa angustiante fopia por um momento se atenua, se anula em pittia, Conforme diz Artuto a respeito de sua ilha: “prefiro fingie que no tenha existido, Por iso, até 0 momento em que néo se vé mais nada, seri melhor que néo olhes para lé, Tu, avisa-me, naquele momento”. DESEJAR Desejar éa coisa mais simples © humana que hi. Por que, entio, para nés slo inconfesséveis precisamente nossos descjos, por que nos € tio dificil trazé-os & palavra? Tio diffi que acabamos mantendo-osescondidos,econstruimospars ces, cemalgum lugar em nés, uma cipta, onde permanecem embalsamados, 3 espera [Nao podemos ttazer & linguagem nossos desejos porque os imaginamos. [Na realidade, a cripta contém apenas imagens, como € o caso de um livro de figuras para criangas que ainda nao sabem ler, o caso das images d'Epinal de um ;povo analfabeto. © corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessivel no desejo &a imagem que dele fizemos. CComunicar a alguém os préprios desejos sem as imagens é brutal. Com carthe as préprias imagens sem os desejos é fastidioso (assim como natrar oF sonhos ow as viagens). Mas ficil, em ambos os casos. Comunicar os desejos Jimaginados ¢ as imagens desejadas é a tarefa mais diflcil. Por isso a postergs- mos, Atéo momento em que comegamos a compreender que ficaré para sem- pre néo-cumprida. E que 0 desejo inconfessado somos nds mesmos, para sempre prisioncisor na eripes (© messias vem para os nossos desejos. Ele os separa dasimagens para realizé- los, Ou, entéo, para mostrélos jérealizados. O que imaginamos, jf 0 obtive- ‘mos. Sobram — irtealiziveis ~ as imagens do que foi realizado. Com os desejos tealizados, ele constr o inferno; com as imagens irealizaveis, o limbo, E com ‘0 desejo imaginado, com a pura palavea, a bem-aventuranga do paraiso. 0 {dole (Les Satariques, de FlclenRops, tel de 1882, Musee Frovinda Félcen Rops, Ramer alge) © SER ESPECIAL, s fildsofos medievais estavam fascinados pelos espelhos. De modo especial, interrogavam-se sobre a natureza das imagens que neles comparecem. Qual é seu ser (ou entio 0 seu nio-set)? S40 corpos ou nfo-corpos, substincias ou acidentes? [dentificam-se com a cor, com a luz ou com a sombra? Sao doradas de movimento local? E como é possivel o espelho acolher suas formas? CCertamente o ser das imagens deve ser muito especial, pois, se fossem sim- plesmente corpo ou substincia, como poderiam ocupar 0 espago jf acupado pelo corpo que é 0 espelho? E se o lugar dels fosseo espelho, deslocando-se 0 cespelho, devetiam se deslocar com ele também as imagens. [Em primeiro lugar, a imagem no é uma substdncia, mas um acidente, que ‘nfo se encontra no espelho como em um fugar, mas como em um sujeito (quod est in speculo wt in subiect). Estar em um sujlto & para os fil6sofos edievais,o mado de ser do que insubstancal, ou sea, no existe por si, mas ‘em outea coisa (tendo em conta a proximidade entre a experidneia amoross ¢2 imagem, nfo nos surpreende que ambos, Dante ¢ Cavalcanti, definam, no , amor como “acidente em substincis”) 7a insuihstancial derivam duas earacteristicas da imager. Nao sendo substincia, ea nfo tem realidade continua, nem se pode dizer que se mova através de uin movimento local, Alifs, ela & gerada a cada instante de acordo com o movimento ot a presenga de quem a contemplas “assim como a luz & criada cada ver de novo segundo a presenga do ihuminante, assim tam- bbém dizemos acerca da imagem no espelho que ela ¢gerad toda vez segundo a presenga de quem ols". st © ser da imagem & uma geragia continua (semper nova genenatur). Ser de geragio © nao de substincia, ela € criada a cada instante de novo, assim como acontece com os anjos que, segundo 0 Tidmud, cantam os louvores de Deus € imediatamente precipitam no nada, ‘Aaegunda caracteristica da imagem eonsisteem nfo ser determingvel segun- do a categoria da quantidade, em nio ser proprlamente uma forma ou uma imagem, mas antes “espécie de uma imagem ou de uma forma (species imaginis 1 formas)", que om oi nko pode ser chamada seis loge nein larga, mas “rem apenas a espécie da longuidio e da largura". As dimensées da imagem nio sio, pois, quantidades mensuriveis, mas apenas espécies, modos de ser e *hibicos’ abitur vel dipositiones). © fato de ser possivel referir-se unicamente a um “hahito” ou a um ethos € 0 significado mais reressante da expressio “estar em lum sujeito". O que esti em um sujeito tem a forma de uma espécie, de um uso, de um gesto, Nunca é uma coisa, mas sempre ¢ apenas uma “espécie de coisa” © cermo species, que sig lea “aparéncia",“aspecto”, “visio”, deriva de uma raz. que significa “olhar, ver", e que se encontra também em speculum, espelho, spectrum, imagem, fantasma, perpicuus, tansparente, que se vé com clara, speciosus, belo, que se oferece & vista, specimen, exemplo, signo, spectaculum, espeticulo, Na terminologia Hilossfica, specie & urado para traduzir 0 grego ides (come genus, género, para teadutic geno); dal o sentido que o termo terd nas cignelas da natureza (espécie animal ou vegetal) na lingua do comércio, onde o tetmo passaré a significar “mercadorias” (particularmente no sentido de “dvogas", “especiarias”), , mais tarde, dinhetro (eipéces) A imagem um ser cuja esséncia consiste em ser uma espécie, uma visbili- dade ou uma aparéneia. Raperial £0 see cuja eestincia coincide com seu dase Ver, com sus expéce. ser especial € absolutamente insubstanci Ble néo tem lugar pr mas acontece a um sujcto, e est nele como um habitus ou modo de ser, asim como a imagem esté no espelho. ‘A capécie de cada coisa ¢ sua visibilidade, a sua pura imelighilidade, Especal Eo ser que coinci com o fato de se rornar visvel, com a propria revelagio. 2 O expetho é o lugar em que descobrimos que femos uma imagem ¢, 30 mesmo tempo, que ela pode ser separada de nés, que a nossa “espécie” ou Jmago niio nos pertence. Entre a percepefo da imagem e o reconhecer-re nela bhi um intervalo que os poetas medievais denominavam amor, © espelho de Narciso é, nesse sentido, a fonte de amor, aexperiéncia inaudita e ferox de que «imagem é ¢ nie €a nossa imagem. Quando climinamos o intervalo, quando mesmo que por um instante — ros reconhecemos sem nos tetmos desconhecido ¢ amado na imagem, isso significa jé nao podermos amar, aereditar que somos senhotes da propria espé- cic, que coincidimos com ela, Ao prolongarmos indefinidamente o intetvalo entrea percepgio © 0 reconhecimento, a imagem & interioriada como fantas- ma, €@ amor recai na psicologia. (Os medievais chamavam a espécie de intenti, intengio. O terme designa a tensio interna (intus tnzi) de cada ser que © impele ase fazer imagem, a se comunicar. A espécie nfo é, nese sentido, nada mais que a tensio, que fo amor com que cada ser deseja a si mesmo, deseja perseverar no préprio ser, comunicat asi mesmo, Na imagem, sere desejar,existéncia eesforgo coin cidem perfeitamente, Amar outro se significa: desejara sun espécie, ou sea, o desejo com que ele dessja perseverat no seu ser. O ser especial é, nessesenti- do, 0 ser comum ou genético, ¢ iso € algo como a imagem ou 0 rosto da hhumanidade. A cspécie nfo subdivide o género, mas 0 expde. Nela, desejando e sendo desejado, 0 ser se faz espécie, se torna visivel. E ser especial nao significa 0 individuo, identificado por esta ou aquela qualidade que Ihe pertence de modo cexclusivo, Significa, pelo contritio, ser qualquer um, a saber, um ser tal que € Indiferente e genericamentic cake una de suas qualidades, que aderen clas sem deixar que nenhuma delas 0 identifique. “O ser qualquer um é desejével” é uma tautologia. “Especioso” significa belo e, mais tarde, nfo verdadeiro, aparente. Espécie significa 0 que torna visive e, mais sande, principio de uma classificagio e de 33 uma equivaleneia. Causar espécie significa “assombras, surpreender” (em sentide negativo); mas que individuos constiuam uma especie nos trar seguranga, [Nada é mais instrucivo do que esse duplo significado do termo “espécie”. Bla € 0 que se oferece e se comunica 20 olha, © que torna visivel e, a0 mesmo tempo, o que pode~ e deve a qualquer custo ~ ser fixado em uma substinciae em uma diferenga especifica para que possa eonstituir uma identidade. Pessoa significa originarlamente méscara, ot seja, algo eminentemente es- peclal. Pata sta v scitidy dus provasos teulégives, psicoldgleos e socials, {que revestem a pessoa, nada € melhor do que 0 fato de os ceélogos cristios terem recorrido a esse termo para tracluzicem 0 grego /ypostasi, ou seja, para ligater a mdscara a uma substincia (eés pessoas em uma substincia). A pessoa € a captura da espécie e a sua vinculagao a uma substineia com o objetive de tomar possivel sua identificagio, Os documentos de identidade contém uma fotografia (ou outro dispositive de eapeura da espécte) © especial deve ser reduzido em qualquer lugar ao pessoal, © este a0 subs- tancial. A transformagio da espécie em principio de identidade e de classfica- $80 € 0 pecado original da nossa cultura, 6 seu dispositivo mais implacdvel. S4 personalizamos algo ~ referindo-o a uma identidade ~ se sacrficamos a sua cspecialidade. Especial é assim, um ser— um rosto, um gesto, um evento — que, néo se assemelhando a stenfum, se assemelha a todor os outros. O ser especial é delicioso, porque se oferece por exceléncia 20 uso comum, mas nfo pode ser objeto de propriedade pessoal. Do pessoal, porém, néo sio possiveis rem uso nem gozo, mas unicamente propriedade e ciime. (O ciumento confunde o especial com o pessoal, o bruto canfunde pesoal com ocspecial.A jeune fill clusmenta desi mesma. A mulher valorosabrutaliea O ser especial comunice apenas a propria comunicabilidade. Mas esta aca- ba separada de si mesma e constinuida em uma esfera auténoma. O especial transforma-se em espeticulo, O espeticulo é a separagio do ser genético, ou soja a impossbilidade do amore o tiuafa do cide. ey O AUTOR COMO GESTO Fm 22 de fevereiro de 1969, Michel Foucault proferiu sua conferéncla O que é um autor? perante os membros ¢ 05 convidades da Sociedade Francesa de Filosofia. Dois anas antes, a publicagio de As palevrase ar coisas 0 havia torna- dio famoso subitamente, e entre. piblico (estando presente, entre outros, Jean \Wabl, queapresentou 0 conferencista, Maurice de Gunilla, Lucien Goldmann « Jacques Lacan) nio era ficil fazer a distingio entre a curiosidade mundana e asexpectativas pelo tema anunciado, Logo depois das primeira frases, Foucault formula, com uma citagio de Beckett (*O que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fal”), a indiferenga a respeito do autor como mote ou prinefpio fundamental da ética da escritura contemporinea, No caso da lceratura —sugere ele~néo se trata tanto da expresso de um sujelso quanto da abertura de um espago no qual o sujeito que escreve nio pira de desaparecer: “a marca do autor esté unicamente na singularidade da sua auséncia’, Porgm, a citagio de Beckete apresenta no seu enunciado uma contradic que parece lembrar ironicamente o tema secreto da conferéncia, “O que im- porta quem fala, alguém disse, 0 que importa quem fala.” Ha, por conseguin- te, aguém que, mesmo continuande anénimo esem rosto, proferiuio enunciado, nlguém cem qual 2 ter, que nega s importance quem fala, néo teria podido ser formulada. © mesmo gesto que nega qualquer relevancia & identi dade do autor afirma, no entanto, a sua irreduttvel necessidade, [Nessa altura, Foucault pode exclarecer 0 sentido de sua operagéo. Ela se fundamenta na distingéo entre duas nogbes que feeqtientemente so confuundi- «das: o autor como individuo real, que ficarérigorosamente fora de campo, a 35

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