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Rosério Rossano Pecoraro A Filosofia Negativa de Cioran Dizer “nao” aos truques da razdo, as pretenses da filosofia, as violéncias da Verdade, as ilusoes sobre o homem e 0 seu devir, as utopias, as promes- sas de uma redencdo, a esperanga, aos enganos do conhecimento, as serei- as do engajamento, aos pensamentos fortes, as profecias sagradas ou profa- nas de um novo advento. A negagao, abismal e absoluta, € um marco da filosofia de Cioran. Ela agita-se violentamente nas veias, esmaga todo sen- tido, massacra qualquer possibilidade. Pensar contra si mesmo, a existéncia, a Historia. Um pensamento nega- tivo, niilista, desenganado, lucido e aporético, que deixa a escritura ("Escrever € mettre en accusation” diz uma anotagao de 1964) — através da qual opera, esquarteja e Jenifica - a tarefa fundamental de expressa-lo, des- loca-lo e (auto) refuta-lo. “Nao inventei nada, s6 tenho sido o secretario das minhas sensagdes”, escreveu Cioran referindo-se a sua obra. Esta frase contém 0 primeiro es- boco de uma forma particular de teoria do conhecimento, que perpassa to- dos 08 livros do filésofo franco-romeno. Ela é significativa porque, além da negacAo que af se manifesta, remete a um ponto fundamental, capaz de ex- plicar algumas escolhas estilisticas e de “método” subjacentes a nossa an4- lise. Tentaremos mostrar que nos abismos hé filosofia, que af se abrigam fantasmas e deménios, como as especulacoes mais refinadas. Nada, porém, pode ser separado desses infernos, desses estados fundamentais com os quais a reflexao contrai dividas imensas e impagaveis. Se tivéssemos de in- dicar os rastros que poderiam vagamente iluminar as margens deste ‘Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Emil Cioran, Cahiers, Gallimard, Paris, 1997, p. 262. Emil Cioran, Ecartétement; em “Chavres”, Gallimard, Paris, 1995, p. 1486. @.que nos faz pensar n°15, agosto de 2002 138 Rosério Rossang Pecoraro ensaio, nds apontariamos para o inferno da existéncia e para os tormentos do ser-af, que nunca deixaram de influenciar o pensamento de Cioran. Escreveu Jaspers: “O homem que pensa filosoficamente, as suas funda- mentais experiéncias, as suas aces, o seu mundo, a sua conduta cotidiana, as poténcias que falam através da sua boca nao podem ser ignoradas quando se segue o seu pensamento™. O que ¢ importante ¢ significativo, usando as pala- vras de Miguel de Unamuno, ¢ o homem (€ 0 fildsofo) de carne e asso. “E este homem concreto, de carne ¢ osso, € 0 sujeito e o supremo objeto de toda a fi- losofia, queiram ou nao certos pseudo-filésofos”’, Existem pessoas que pen- sam apenas com o cérebro, “ao passo que outras pensam com todo 0 corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com 0 coragao, com os pulmées, com o ventre, com a vida. E as pessoas que sé pensam com 0 cére- bro tomam-se definidores, fazem-se profissionais do pensamento”®. §1 Nascer. Passar do nada ao devir, do [eto a prisdo. Receber o batismo da dor, as chagas do absurdo, os estigmas do tédio. Existir. Nao terfamos de amaldicoar para sempre a nossa sorte € toriurar-nos na saudade e na célera por nao ter sido objetos de uma Santa crueldade?: "Um homem que carregava um recém-nascido achegou-se a um santo. - Que devo fazer desta crianga? — perguntou-lhe, - € miseravel, indesejada, e nem tem suficiente vida para morrer. — Mata-a - exclamou o santo com voz ter- rifica, — mata-a e carrega-a durante Ués dias ¢ trés noites seguidas em teus bracos para que tenhas eternamente meméria dela... assim nao te aconte- cera o engendrar de um filho enquanto nao for tempo. Tendo ouvido essas palavras o homem foi embora desapontado e muitos lancaram-se contra 0 santo por aconselhar uma coisa cruel - que se matasse a crianca, — Mas nao sera mais cruel deixé-la viver? ~ respondeu o santo”. E se alguém objetasse Karl Jaspers, Philasophische Autobiographie; rad. it., “Autobiogeafia filosofic: i, 1969, p. 67. Miguel de Unamuno, Del sentimiento trdgico de la vida en los hombres y en los pueblos; wad, por., “Do sentimento trégico da vide", Editora Educacao Nacional, Porto, 1953, p. 27. bid. Friedrich Nietzsche, Die frohliche Wissenschafi, (aforismo 73); trad. por.."A Gaia Ciencia”, He- ‘mus, S40 Paulo, 1981, p. 90. . Morano, Napo- A Filosofia Negativa de Cioran que o sentido deste aforismo de Nietzsche é outro, poder-se-ia responder: essa crianga é uma excecao? Ou ndés nao somos, todos e pelo simples fato de vir ao mundo, miseraveis, indesejados, sem suficiente vida para morrer, fora e aquém do “tempo certo”? Escreveu Cioran no Précis de décomposition: “Pregados em nds mesmos, nao possuimos a faculdade de afastar-nos do caminho inscrito na inanida- de de nosso desespero. Excluir-nos da vida porque nao constitui nosso ele- mento? Ninguém expede certificados de inexisténcia, Somos obrigados a perseverar na respiracao, a sentir o ar queimar nossos labios, a acumular pesares no coracao de uma realidade que nao desejamos e renunciar a dar uma explicacdo a0 Mal que alimenta nossa perdicao. Quando cada mo- mento do tempo se precipita sobre nés come um punhal e nossa carne, instigada pelos desejos, recusa petrificar-se -, como enfrentar um sé ins- tante acrescentado a nossa sorte?” Uma vez nascidos (nado se pode ndo nascer, nao se pode decidir ser abortado: eis a primeira ulceragio) nao ha nada que possa libertar-nos, nem em nés, nem fora de nds. Estamos pregados no nosso existir. Deste cArcere ndo é possivel sair, nao temos a faculdade de evadir. O suictdio po- deria doar-nos a liberdade. Mas se ele nao fosse senao um outro modo de afirmar a vida? E se nao servisse para nada, por estar intimamente ligado a uma logica-anti-logica da existéncia? Encontramos um ponto de partida: a dupla impossibilidade que impe- de a fuga da escravidao mais brutal. Somos obrigados a perseverar na exis- tencia. Mas este conservar-se em vida, este persistir, claramente obstinado, abriga-se sempre em um movimento de recusa ¢ aceitacao, de renuncia e impulso vital. “E que, se a razdo desaprova o apetite de viver, 0 nada que faz prolongar os atos ¢ entretanto uma forca superior a todos 0s absolutos; ele explica a coalizdo tacita dos mortais contra a morte; ndo sé é 0 simbolo da existéncia, mas a existéncia mesma; € 0 todo. E esse nada, esse tudo nao pode dar um sentido a vida, mas ao menos a faz perseverar no que é: um estado de nao-suicidio™. A vida, de resto, “é um vicio. O maior que existe Isto explica porque seja tao dificil livrar-se dela”: nem o desengano nem a lucidez mais profunda e feroz, parece sugerir Cioran, podem nada contra 8 Emil Cioran, Précts de décomposition, trad. por., “Brevitrio de Decomposicao”, Rocco, Rio de Janeiro, 1989, pp. 75-76. 9 lbid., p. 27. 10 Emil Cioran, Ecartélement; i “Ghivres”, op. cit., p. 1482 139 140 | Rostio Rossana Pecoraro i 2 13 os desejos e as feiticarias do vicio por exceléncia, que devora e alivia, de- vasta ¢ lenifica. Para onde olhar, ent4o? Quais amtificios nos ofereceriam a forga para nos encaminhar em busca de uma outra vida, de uma “nova vida"? “O que invita no desespero ¢ sua legitimidade, sua evidéncia, sua ‘documentacio’: é pura reportagem. Observe, ao contrario, a esperanca, sua generosidade no erro, sua mania de fantasiar, sua repulsa ao acontecimento: uma aberra- ¢4o, uma ficgdo. E € nessa aberragao que reside a vida, € dessa ficcao que ela se alimenta””, Confessa Cioran entre amargura ¢ resignacao: “Se esti- véssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensacao de falta de fundamentos fosse ao mesmo tempo continua e in- tensa, cometeriamos suicidio ou cairfamos na idiotia. $6 existimos gracas aos Momentos em que esquecemos certas verdades e isso porque durante esses intervalos acumulamos a energia que nos permite enfrentar as ditas verdades”™ Imaginagdo e esquecimento surgem, pois, como condigdes de possi- bilidade da propria possibilidade a qual o homem se agarra. E gracas a sua faculdade de imaginar - que pode receber da vida algo melhor do que as ruinas que o esmagaram —- e a imensa capacidade de esquecer - que o leva a ignorar os vislumbres (ou os abismos) de lucidez que o inva- diram trazendo 4 luz um “tudo € vao” fulgurante ¢ sem apelacao, ou a evidéncia até banal da propria miséria ¢ da inutilidade de todo esforco toda acao —, que é posstvel avancar, esperar, (sobre) viver. Mas, alias, es- perar 0 qué? Em portugues este verbo possui dois sentidos, que se fundem em uma “imagem” maior, mais profunda e devastadora, ao contrario do que ‘ocorre, por exemplo, na lingua italiana’?, Esperar € “ter esperanca em”, mas também “estar ou ficar a espera de”, “aguardar”. Em outras palavras: universo fisico e universo metafisico, espera de um evento concreto, de um acontecimento, de algo capaz de nos resgatar aqui e agora mas Emil Cioran, Syllogismes de 'ameriume; trad. por., “Silogismos da Amargura”, Rocco, Rio de Ja- neiro, 1991, p. 47. Emil Cioran, Exercices d'admiration; trad. por.,“Exercicios de admiragao”, Rocco, Rio de Janei- 10, 2001, p. 127 Em italiano existem trés verbos diferentes: sperare (esperar, no sentido exclusivo de “ter espe- ranca em’); aspettare (esperar, no sentido de “estat ou ficar & espera de”, aguardar. E um verbo usado ndo s6 na linguagem culta, mas também no dia-a-dia; arvendere (aguardar. E usado so- bretudo em situagdes burocraticas ¢ formais), “4 15 16 v A Filosofia Negativa de Cioran | 141 também esperanca em uma salvacao, em um outro mundo, em uma “re- dencao” que dé sentido a existéncia. Esperar, pois, o qué? Uma Musa que nos venha inspirar? Um profeta fulgurante? Um concurso para professor de filosofia? A “morte no tempo certo”!*? © Godot de Beckett? A invasao dos tartaros de Buzzati? A “possibilidade” de Kierkegaard? As sentencas de Pieretto?!: “A tarde, naqueles bancos, pequenos oasis no coragao de Turim, sentam-se sempre mulheres desocupadas, gente solitéria, vende- dores ambulantes, marginais; todos se entediam, esperam, envelhecem. Esperam o qué? Pieretto dizia que esperam alguma coisa de grande, a destruigdo da cidade, o apocalipse. De vez em quando um temporal de verao os expulsa e lava wdo"!® Sim, hé luz; esplendor fugaz ¢ superficial que desaparecera ao anoite- cer. Hé um Sol. Mas debaixo dele “triunfa uma primavera de cadaveres"” A existéncia € uma das obsessoes de Cioran. Ferida aberta, chaga, inex- plicavel presenca. Tentagao real e sempre a venir, miseravel e fascinante. A existencia esmaga, Ela € o nosso horizonte, 0 nosso “ser proprio”; clausura, terror e possibilidade de todo homem. F nela, através dos seus horrores, das suas banalidades, dos seus esquartejamentos, das suas provas, dos seus sintomas, que — em uma tradicdo de pensamento na qual estao, s6 para in- dicar alguns “nomes proprios” a nés mais préximos, Leopardi, Kierkega- ard, Schopenhauer, Nietzsche, Jaspers, de Unamuno, Heidegger — pode- mos conhecer. Delirar, imprecar, padecer, sofrer, “Quando Mara, o deus da morte, busca por meio tanto de tentagdes quanto de ameacas arrancar do Buda o império do mundo, este, para confundi-lo e desvid-lo de suas pretensdes, Ihe diz entre outras coisas: ‘Terds softido pelo conhecimemto” Esta interro- gacdo a que Mara nao podia responder deveria sempre utilizada quando se quisesse medir o valor exato de um espfrito. E evidente que um Montaigne Escreve Nietzsche no Crepusculo dos Idolos (Editora Relume Dumara, Rio de Janeiro, 2000, p.90):"A morte, eleita livremente, a morte no tempo certo, com claridade ¢ alegria, empreen- dida om meio a eriancas e testemunhas: de modo que uma real despedida ainda € possivel, onde este que se despede ainda esid af, assirn como uma apreciagao real do que foi aleancado e querido, uma soma da vida - tudo em contraposicdo a comédia deploravel ¢ horripilante que o cristianismo levou a cabo com ahora da morte”, Pieretto € um dos protagonistas do romance Labella estate de Cesare Pavese. Em 1950, com 42 anos de idade, o escritor suicidou-se em um hotel de Turimn, Cesare Pavese, La bella estate; wad, por., “O Belo Vera”, Brasiliense, S40 Paulo, 1987, p. 99. Emil Cioran, Précis de décomposition: trad. por., “Brevidrio de Decomposi¢4o", op. cit., p. 76. 142 | Rosério Rossano Pecoraro 18, 19 20 a no sofreu pelo conhecimento: um sabio, e nada mais, um Pascal, pelo contrario, pagou pela menor afirmagao ou negacao que se permitiu”'*, A dor, os estados fisicos alterados, as sensa¢des extremadas, sao, pata Cioran, fontes privilegiadas de conhecimento. O relampago revelador sur- ge dans U'épreuve'’, manifesta-se ao experimentar a existéncia, esquarteja e provoca pelos sintomas da vida: tédio, angustia, insonia, desespero. “Dans Vépreuve a existéncia € posta, de uma maneira abrupta, em presenca da sua propria condigao. Nao diante do que ela pode ser, nem da sua maneira de se conduzir, mas do seu ser. E o que Esquilo definiu phobos, Pascal effroi, Kierkegaard e Heidegger angoisse (...)””. Esse perceber, esse sentir, violento e particularmente fecundo do ponto de vista do conhecimento, do pensa- mento, da critica, nao parece ser fugaz, evanescente, passageiro, nem tam- pouco parece provocado por uma variacdo de humor ou por um esiado de espfrito temporariamente melancélico ou pessimisia. Ao contrario: parece ser algo de mais estavel e duradouro; € “le sentiment de la condition”, € 0 “pensador subjetivo existente" de Kierkegaard; € “o ser como homem na vida, a condi¢do humana dentro da sua contradicaéo”", para a qual a razao ea filosofia, com as suas pretensoes de explicar, tornar previsivel, contor- nar em sistema, sao absolutamente ineficazes. O que vale, e que pode até chegar a ter um ar de seriedade, como Cio- ran diz em Pe culmile Disperdri (Nos cumes do desespero), ¢ 0 parto do “pensador organico (organique) porque sé para ele as verdades emanam mais de um suplicio interior que de uma especulacao gratuita. Ao homem que pensa pelo prazer de pensar contrapde-se o homem que pensa sob 0 efeito de um desequilfbrio vital. Amo o pensamento que guarda um gosto de carne e sangue, e a uma abstragao vazia prefiro mil vezes uma reflexao surgida de uma exaltacdo dos sentidos ou de uma depressdo nervosa. Os homens ainda nao compreenderam que o tempo das preocupacées superfi- ciais € passado, e que um uivo de desespero € mais revelador que o mais Emil Cioran, Anthologie du portrait. De Saint-Simon a Tocqueville; trad. por.,“Amiologia do Re- rato. De Saint-Simon a Tocqueville”, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, p. 15. Preferimos nao traduzir épreuve. O vocabulo frances significa sofrimento, desgraca, adversi- dade, afligao, tormento, mas também prova, experitncia, perigo que pode “testar" a coragem ou a resistencia de alguém, Encendemos por épreuve algo que recolhe em si todas estas acepgoes. Francois Chirpaz, Le tragique, PUF, Paris, 1998, p. 47. Ibid. 2 23 24 25 A Filosofia Negative de Cioran | 143 sutil dos argumentos e que uma lagrima tem sempre origens mais profun- das que um sorriso””, A existéncia - infima, miserdvel e, justamente por isso, imensamente cruel, vingativa, repleta de recursos e instrumentos de opressao, repressao, tortura e controle, em uma definicao: uma verdadeira “maquina de poder” —, tem isso de terrificante: pode ser até massacrada pelo individuo, mas nunca traida. Pode-se refutar o viver, desprez4-lo ou invocd-lo no suicidio. Mas jama- is se pode calunié-lo, injurid-lo ou afastar-se dele permanecendo em vida A maior das punigées caira sobre quem ousar tanto. Existem graus diferen- tes na hierarquia da solidao: no extremo hd o traidor, além dele (nao como superacao ou ultrapassamento, mas como aprofundamento, afundamento abismal ¢ inaudito) abriga-se aquele que Cioran chama “traidor modelo”. No cume do extremo ha Judas, “o ser mais solitério da histéria do cristia- nismo, mas nao na da solidao””. Ele “sé traiu um deus; soube quem traia; entregou alguém, como outros entregam algo: uma patria ou outros pretex- tos mais ou menos coletivos. A traigdo que visa a um objetivo preciso, ain- da que traga a desonra ou a morte, nao € misteriosa: tem-se sempre a ima- gem do que se quis destruir; a culpabilidade esta clara, seja admitida ou negada. Outros te repudiam: e te resignas ao presidio ou a guilhotina...”* Essa trai¢ao € determinada, motivada, parcial; 0 seu “objeto” e os seus es- copos, bem como as responsabilidades, os julgamentos e as penas nao es- capam de um eixo que, amplo, instavel, precério quanto se queira, nao de- ixa de explicd-la e esclarecé-la. Em poucas palavras: essa traigdo tem um sentido e uma légica e nao deixa de ser algo de previsivel, aceitavel, con- trolavel. Nao deixa de ser, em suma, algo de absolutamente compativel com a “maquina de poder”. Existe, porém, um modo diverso e mais com- plicado de trair, de renunciar: “(.,.) Abandonar tudo sem saber o que repre- senta este tudo; isolar-se de seu meio, repelir — por um divércio metafisico - a substancia que te modelou, que te cerca e te sustenta. Quem, ¢ por que desafio, poderia desafiar a exist¢ncia impunemente? Quem, e com que es- forcos, poderia atingir uma liquidagdo do principio mesmo de sua propria respiragao?”™, Emil, Cioran, Sur les cimes du désespoir, em "CEuvres”, op. cit., pp. 31-32. Emil Cioran, Précis de décomposition; trad. por., "Brevidrio de Decomposicio” Ibid. Ibid, 144 Rosério Rossano Pecoraro Quem? Por qué? Para qué? Perguntas cujo destino deveria ser o de fica- rem suspensas para sempre na negatividade e no vacuo mais radical se o proprio Cioran nao as socorresse com um dos seus sintomaticos “entretan- to", respondendo-as e puxando-as para tocas mais confortaveis: “Entretan- to, a vontade de minar o fundamento de tudo o que existe produz um de- sejo de eficacia negativa, poderoso ¢ inapreensivel como uma gota de re- morso corrompendo a jovem vitalidade de uma esperanga...""*, Abandonemos por instantes esta divagacao e retornemos a traigao. "Quan- do se traiu o ser, leva-se consigo apenas um mal-estar indefinido, nenhuma imagem vem apoiar com sua precisdo o objeto que suscita a sensacdo de in- famia. Ninguém te atira a primeira pedra; és um cidadao respeitavel como antes, gozas das honras da cidade, da consideracao dos semelhantes; as leis le protegem; és t4o estimavel como qualquer outro — e entretanto ninguém vé que vives antecipadamente teus funerais e que tua morte ndo saberia acrescentar nada a tua condi¢do irremediavelmente estabelecida. E que 0 uraidor da existéncia 6 tem que prestar contas a si mesmo. Que outro po- deria exigi-las?™”. Nem prisdo perpétua nem torturas ou decapitagao para quem atenta contra as bases da vida. Nada garante ¢ protege a existéncia porque ela sabe vigiar e punir, sabe defender-se e vingar-se sozinha. “Nao ha processo contra os traidores metafisicos, contra os Budas que recusam a salvacdo, pois estes s6 sdo considerados traidores de sua prépria vida. No entanto, entre todos os malfeitores, estes sdo os mais nocivos: ndo atacam 0 frutos, mas a seiva, a propria seiva do universo. Seu castigo, sé eles 0 co- nhecem (...). Um Judas com a alma de Buda: que modelo para uma huma- nidade futura e agonizante!”". §2 Delirio, obsessfio, termo, conceito, criacao louvada e culpada: a consciéncia € “algo” de extremamente fundamental em Cioran, que a enfrenta em pla- nos diferentes de significacao. A irrupgao da consciéncia condenou o homem ao suplicio eterno ao 26 Ibid. 27 Ibid., pp. 62-63, 28 Ibid., p. 63. A Filosofia Negativa de Cioran | 145 desencadear 0 conflito tragico: neste sentido nao ha nada de particular- mente original na andlise do filésofo franco-romeno. Centelhas mais inte- ressante aparecem quando do diagnéstico negativo se passa (e nao poderia ser diferente) a inelutavel solucdo. Na tensdo da tradigao (mas nao em Cio- tan) sempre ha saidas, respostas, superagoes dialéticas. Uma forma de re- dengao, de afirmagdo, de esperanca, de salvacdo, de libertagdo, sempre surge. O ato de Prometeu, “filantropo funesto”, arruinou o ser humano, 0 jogou brutalmente na existéncia, assinando a certidao de nascimento da dor, do absurdo ¢ do hortivel. A irrupcao da consciéncia condena o ho- mem ao suplicio eterno, mas também lhe fornece os doces remédios para alivia-lo. Conhecimento, arte, religido, ideologias, crencas, a busca por uma verdade qualquer: tudo teve origem gracas 4 agao do titd e tudo serve pata esquecer as suas conseqnéncias. Uma embriaguez de utopias que con- segue apagar a consciéncia, sem que isso signifique, porém, um retorno ao indistinto primordial. Mas de que consciéncia estamos falando? Talvez se trate ai de uma per- cep¢do totalmente nova, completamente diferente. Alem, ou aquém, de toda forma de consciéncia ou de auto-consciéncia existe algo de mais abis- mal e doloroso, motor do conhecimento ¢ do desespero, que impede qual- quer forma de adequacdo: a lucidez, “consciéncia da consciéncia”™”, “equi- valente negativo do éxtase”. Ser lucido é “ter sensagdes na terceira pessoa”, ser estrangeiro de si mesmo, voyeur dos proprios atos e das suas tristezas. Devorar-se, corroer-se pela incapacidade de entender as que os outros definem “razées” da vida. Um suplicio sem fim para quem ouve as vozes do mundo, para aquele cuja existencia é uma ferida aberta, que ja sangra com o peso do ar. © desespero: doenca que tem de ser curada; doenca até a morte como di- zia Kierkegaard. Mas ha desesperos imensos que ndo podem ser lenidos por nada, nem sequer pela morte. Desesperar-se, ndo poder viver nem morrer. O desespero ¢ a “doenca mortal porque, bem longe dele se morrer, ou de que esse mal acabe com a morte fisica, a sua tortura, pelo contrario, esta em nao se poder morrer, como se debate na agonia o moribundo sem poder acabar. Assim, estar mortalmente doente € ndo poder morrer, mas neste caso a vida nao 29 Emil Cioran, Histoire et utopie; p. 123. 30. Emil Cioran, La chute dans le temps; em “Cavres”, op. cit., p. 1127 31 Emil Cioran, Le crépuscule des pensées; em “CEavres”, op. cit., p. 418. rad. por., “Historia e Utopi Rocco, Rio de Janeiro, 1994, 146 32 33 Rosério Rossano Pecoraro permite esperanca, e a desesperanga ¢ a impossibilidade da ultima esperanca, a impossibilidade de morrer"”. O desespero: “eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte, Porque morrer significa que tudo est4 acabado, mas morrer a morte significa viver a motte (...). No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera nao pode morter; assim como um punhal ndo serve para matar pensamentos, assim também o desespero, verme imortal, fogo inextinguivel, nao devora a eterni- dade do eu, que o seu proprio sustentaculo. Mas esta destruigao de si pré- prio que é o desespero é impotente e nao consegue os seus fins. A sua vontade propria € destruir-se, mas é 0 que ela nao pode fazer, e a prépria impoténcia é uma segunda forma da sua destruigdo, na qual o desespero pela segunda vez erra o seu alvo, a destruigéo do eu". Como a angustia, o tédio, a tristeza, a melancolia, o desespero € sem ca- usa, isto ¢, ndo € desencadeado por algo de determinado, que pode ser in- dividuado, nomeado, enfrentado. O desespero se desespera pelo proprio ser-desesperado sem motivo. Nada de abstragées, de logica, de jogos de linguagem, de reflexdes sem sangue. O desespero sd pode ser “sentido” quando dilacera as carnes, quando se est obcecado pela idéia de suicidio, quando a insénia interrompe o esquecimento que todas as noites fornece as armas para suportar mais um dia: Cioran escreveu Nos cumes do desespe- ro, o seu primeiro livro, nesse estado. Em um irecho ele discute a duvida e o desespero, 0 cético e o desespe- rado autentico; “Duvidar de tudo e continuar a viver — eis um paradoxo que, todavia, nao é dos mais tragicos, j4 que a duivida é muito menos inten- sa e angustiante que o desespero. A mais freqitente ¢ a duvida abstrata, na qual ¢ envolvida s6 uma parte do ser, ao contrario do desespero onde a participagdo ¢ organica e total. Um certo diletantismo ¢ algo de superficial caracterizam o ceticismo face ao desespero, este fendmeno tao complexo € estranha. Posso duvidar de tudo e opor ao mundo um sorriso de desprezo, mas isso ndo me impedira de comer, de dormir tranqiilamente ou de me casar, No desespero, do qual ndo se apanha a profundidade sendo viven- do-o, esses alos sao possiveis somente a preco de esforcos e sofrimentos. Nos cumes do desespero, ninguém possui mais o direito ao sono. Desta Soren Kierkegaard, Sygdommen til Daden, trad. por.,“Doenga até a Morte”, (usamos a traducao da colegio “Os Pensadores”, Abril Cultural, S30 Paulo, 1979). Ibid. 34 35 A Filosofia Negativa de Cioran maneira, um desesperado auténtico munca esquece nada da sua tragédia: a sua consciéncia preserva a dolorosa atualidade da propria miséria subjeti- va. A davida € uma inquietude ligada aos problemas ¢ as coisas, e provém do caracter insoliivel de todas as grandes questdes, Se os problemas essen- ciais pudessem ser resolvidos, 0 cético retornaria a um estado normal. Que diferenga com a situacdo de um desesperado o qual, mesmo resolvendo to- dos os seus problemas, jamais se tornaria menos inquieto, j4 que a sua in- quietude brota da estrutura do seu ser. No desespero, a ansiedade ¢ ima- nente a existéncia. Nao sao os problemas, entao, mas as convulsdes e as chamas interiores que torturam. Pode-se lastimar que nada neste mundo esteja resolvido; ninguém, todavia, se suicidou por isso”. Nao € dificil perceber nas palavras de Cioran, desse jovem Cioran, sobres- saltos de vida, vislumbres de esperanga. Fala-se ali de ansiedade, de inquietu- de, de problemas, de torturas. E 0 desespero? O que houve com ele? © desesperado esta 14, palido, doente, os olhos perdidos no vacuo. Nada resolveria nada. O cérebro explode, os pensamentos se sobrepoem, a gangrena invade o espirito, a lucidez lateja, o jejum réi as ultimas forgas. Quer destruir-se, mas nao consegue. E mais tenta, mais o seu insucesso 0 devasta e o tortura. Ele nao pode se libertar de si proprio, diz Kierkegaard. Mas fugir do seu eu “para se tornar um eu de prépria invencdo” € apenas uma das faces que compéem as tonalidades infernais do “verdadeiro” de- sespero. Em Cioran nao h4 um Deus nem uma fé nem uma possibilidade” que possa curar a doenga mortal Pela existéncia vagueiam simulacros de seres aos quais € permitido sa- borear somente o veneno das coisas. Nao sao eles, pobres esqueletos an- dantes, cabisbaixos, o rosto cansado, os labios opacos, que ndo conseguem. ver o mel que derrama do universo. Nao, para eles nao ha nada fora do ve- neno. Talvez falte neles alguma glandula para transforma-lo em mel, talvez o mel ndo exista, talvez ele nao se mostre por uma brincadeira ou um acaso do destino. Mas tudo isso pouco importa. Para eles, todo respirar ¢ Emil Cioran Sur les cimes due désespoir; in: “Gavres", op. cit., p. 44 “A salvacdo ¢ portanto 0 supremo impossivel humano, mas a Deus tudo € possivel. Esse € 0 combate da/é, que luta como louca pelo posstvel. Sem ele, com eleito, nao ha salvacao. Perante um desmaio, grita-se Agua! Agua de Coldnia! Gotas de Hofmann! Mas perante alguém que de- sespera, grita-se: possivel, possivel! S60 possivel o pode salvar! Uma possibilidade: ¢ 0 nosso desesperado recomeca a respirar, revive, porque sem posstvel, por assim dizer, nao se respi- ra”, (Soren Kierkegaard, Sygdommen til Doden; trad. por., “Doenga até a Morte”, op. cit.) 147 148 | Rosdrio Rossano Pecoraro dolorosa, todo instante de vida chicoteia, toda surpresa ¢ funesta, toda ex- periéncia é uma nova ocasiao de tortura, todo encontro ¢ um empurrao ao suicfdio, todo sorriso é uma decepcao. O desespero é a lucidez de nao po- der nao sé-lo. E nao poder viver, nao poder morrer, nao poder matar-se. E sofrer sem um motivo “real”. E padecer a consciéncia da infelicidade, Desesperado: wu és inadequado, nenhuma piedade para ti. “Elementos e atos, tudo concorre para ferir-te. Armar-se de desdéns, isolar-se em uma fortaleza de nojo, sonhar com indiferencas sobre-humanas? Os ecos do tempo te perseguiriam em tuas ultimas auséncias... Quando nada pode im- pedir-te de sangrar, as préprias idéias tingem-se de vermelho ou inva- dem-se umas as outras como tumores, Nao ha nas farmacias nada especffi- co contra a existéncia; s6 pequenos remédios para os fanfarrdes. Mas onde est o antidoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso ¢ seguro? Todos os seres sd0 desgracados; mas, quantos o sabem? A cons- cigncia da infelicidade é uma doenca grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incuravel. Ela rebaixa o prestigio do inferno e converte os matadouros do tempo em paraisos. Que pecado cometesie para nascer, que crime para existir? Tua dor, como teu destino, nao tem motivo, Sofrer verdadeiramente € aceitar a invasao dos males sem a desculpa da causalidade, como um favor da natureza demente, como um milagre negativo... Na frase do Tempo os homens se inserem como virgu- las, entretanto que, para deté-la, tu te imobilizaste como um ponto””, O Cioran deste fragmento é vinte anos mais velho do que o universitario que escreveu Nos cumes do desespero: que progresso na negatividade, que cresci- mento na corros4o, que aprofundamento na amargura. A “filosofia desesperada” de Schopenhauer foi uma das fontes privilegi- adas na qual o pensamento de Cioran se abeberou. As diferengas surgem quando do plano da negacdo se passa a tentativa de indicar um caminho. Ele afasta-se de Schopenhauer e do Budismo no exato momento em que encontra neles os vishumbres de uma posstvel liberagto. O “nao” a qual- quer tipo de escapatdria nao recua, a sua forca nao diminui. A ironia coma qual Cioran invoca novas ilusées, lamenta a auséncia de enganos cada vez mais poderosos para socorrer o homem na sua luta impar contra a vida, 6 um berrar que deve menos a uma real intengéo de agir do que a um desejo de amaldicoar o universo com anatemas liricos e desencantados. 36 Emil Cioran, Précis de décomposition; trad, por., “Brevidrio de Decomposigho", op. cit., pp. 36-37. 37 38 39 A Fitosofia Negativa de Cioran © movimento filosdfico e pessoal € claro: o pensamento negativo, o pensar contra si mesmo, a corrosao da lucidez, 0 esquartejamento, nunca podem parar; nem tampouco se tem o poder de fazer algo para ameni- za-los. Conhecer é afundar na dor: “Buda era um otimista. Como ¢ possivel que nao tenha observado que a dor define seja o ser seja 0 nao-ser? Com efeito, a existéncia e o nada ‘sao’ somente através do sofrimento. E 0 que é © vazio senao uma abortada aspiragao a dor? © Nirvana corresponde a um estado de sofrimento mais etéreo, a um grau mais espiritualizado de tor- mento. A esséncia pode significar uma falta de existéncia, mas nao de dor. Porque a dor precedeu tudo, também 0 Universo”. Nao é um instinto masoquista que manda ali, mas a impossibilidade (pa- tolégica? fisioldgica?) de esquecer e esquecer-se. Com uma monstruosa “coe- réncia” negativa Cioran rejeitou ao longo da sua vida todos os remédios que filosofia, religiao, literatura, existéncia, médicos, Ihe prescreviam para aju- da-lo.a suportar o Intoleravel. Tinha consciéncia de que somente vivemos, to- dos, gracas A suma de ilusdes, entorpecentes e infimos prazeres que caracteri- zam 0 “lado bom’ da existencia. Mas apesar disso, e apesar de pregar as vezes, talvez tomado por uma singular forma de piedade universal, a propagacao dos enganos, ele jamais recuou’®, Rejeitou a doutrina do abandono taoista, a alegria tragica de Nietzsche, as seduces fugazes da fama, as consolagées da filosofia, a ascese de Schopenhauer, o nirvana budista... Em Cioran, como j4 acenamos, 0 diagnostico negativo jamais € sepuido por uma indicacdo, uma esperanga, uma possibilidade, um sentido, uma re- dengao, um caminho. Os “estados fundamentais” que possibilitaram a refle- xdo, o conhecimento - angistia, dor, tédio, sofrimento, desespero - nao po- dem ser vencidos, ultrapassados, superados. Cioran nao oferece remédios, consolagdes. A lucidez nunca adormece. Ela, “que nao extirpa o desejo de vi- ver, somente nos torna inadequados a vida"”®, assina a nossa condenacdo. Nao ha libertacdo, apenas o destino infame do “traidor da existéncia”. Emil Cioran, Des larmes et des saints; em “Giawres", op. cit., p. 324. Cremos ser interessante lembrar um trecho de Kierkegaard sobre o “desesperado demoniaco” que recusa a consolacao porque “essa consolacdo perdé-lo-ia, deitaria por terra a objecdio geral contra a existéncia que ele ¢. Para exprimir isto por uma imagem, suponha-se um erro de im- presto escapando a um autor, uma gralha dotada de consciéncia, e que em revolta contra 0 autor Ihe protbe por édio emenda-la e the grita em um desafio absurdo: nao! tu ndo me has de suprimir, ficarei como um testemunho contra ti, como testemunho de que és um escritor me- diocre!* (Sygdommen til Deden; trad, por,, “Doenca aré a Morte”, op. cit.) Emit Cioran, De inconvenient d'éire ne, em “Chavees’, op, cit.,p. 1377. 149) 150 Rosario Rossano Pecararo §3 A questdo do sentido devasta 0 pensamento cioraniano, revela as interro- gagdes extremas, os esquartejamentos da vida ¢ a ultima tentacao: o sui- cidio. Na reflexao filoséfica sobre o fazer violéncia a si proprio, um dos focos fundamentais tem sido a chamada “crise de sentido”. Em extrema sintese: € a crise de sentido (particular ou total) que desencadearia 0 impulso suici dario ao qual o homem pode responder matando-se, (julgando a morte melhor que a vida desesperada e sofrida a qual [oi lancado e invocando, re- ivindicando e afirmando a existéncia de um sentido no devir, cujo rastro ele mostra no gesto de suprimir a si mesmo), ou continuando a viver, supe- rando a crise e recuperando a confianca gracas a novas doacoes de sentido. Como ¢ facil notar n4o ha saidas deste circulo: 0 sentido sempre surge, quer no suicidio, que da sentido a vida, quer nas novas razées e nas novas esperancas que sao oferecidas. O que é preciso, entao, é analisar com mais atencao esse “percurso circular”, os conceitos que o compédem, as situagoes que o marcam. Em primeiro lugar, é inexato falar de “crise”. Este termo evidencia a modificagdo de uma condigao, um periodo, uma fase, uma interrupgdo de algo. Envolve, portanto, a presenca de uma determinada situacao, que ¢ danificada, destrufda pelo surgimento violento da nova condi¢ao. Falar de “crise de sentido” significa partir do pressuposto (errado) de que a vida em si tenha um significado proprio, que o homem, em um certo momento e por uma causa qualquer, perde, caindo em um estado de extremo desespe- ro e, livre, porque ele € quem toma a decisdo, mas ao mesmo tempo obriga- do pelas circunstancias, mata-se. Os termos da questao, a nosso ver, t¢m de ser invertidos € repensa- dos. © ponto de partida nao é mais o pressuposto de um sentido que penetra a existéncia e que, repentinamente, é recolocado em discussdo por um evento (que produz a crise), cuja violencia desencadeia as perguntas sobre as “ques- (es ultimas” as quais o homem pode responder com o suicidio, que fornece- tia a posteriori aquele sentido precedentemente perdido. Nao: aquele sentido no existe; a vida é absolutamente desprovida de significado. Est4 aquia intu- igdo decisiva: quem néo ama a vida nao pode matar-se, quem a considera in- trinseca e irremediavelmente sem sentido nao pode abandoné-la. O suicida deseja a vida; ele encontra-se extasiado ¢ enfeiticado a tal ponto que, 40 41 a2 3 44 A Filosofia Negativa de Cioran revelados os enganos, redescoberta a lu suicida-se para lhe fornecer sentido. Escutemos Schopenhauer: “O suicida quer a vida; ele est4 descontente 86 das contradi¢ées em que a vida se lhe oferece. Destruindo 0 corpo nao renuncia ao querer-viver, mas unicamente ao viver, Deseja a vida, aceitaria a existéncia e a afirmacao do seu corpo, e € porque um concurso estranho de circunstancias nao lhes concede, que sofre até esse ponto””, E Cioran: “Somente nos meus excessos de paixdo pela vida senti ter de morrer real- mente", Somente nos excessos: um rancor contra a vida que pode expli- car a fracassada solucdo final, a recusa concreta do suicidio: “Nao vale a pena matar-se, pois nos matamos sempre muito tarde” escreveu em De Vinconvenient d'étre né, “A morte nao tem sentido senao para aqueles que amaram apaixonadamente a vida"” Eis 0 (aparente) paradoxo: quem ama a vida e se mata depois que, por uma razdo ou por outra, descobre os enganos; e quem a odeia e continua a existir, Para o primeiro nao € suportavel que o seu ideal seja horrendamen- te sem sentido. O segundo suporta o horrendamente sem sentido porque nao acredita que seja possivel dar um significado a vida, julgada inutil a priori. E licido ¢ desiludido, devastado, continua raivosamente a existir. Sabedor da inutilidade de tudo, também do suicidio e do pensamento — salvifico — que o pensa, no sentido heideggeriano, como mera possibilida- de, como algo que tem de ficar em poténcia sem jamais transformar-se em ato. Ou que o cogita como aquela porta, que pode ser aberta em qualquer momento e cuja presenga ajuda a agientar a existéncia de que fala Epicteto € que reaparecera séculos depois no Lobo da estepe de Hermann Hesse. “S6 se suicidam os otimistas, os olimistas que ndo conseguem mais sé-lo. Os outros, n4o tendo nenhuma razao para viver, por que a ieriam para mor- rer?””. A ultima tentacao dissolve-se lentamente: 0 suic{dio nao é mais um “privilégio", a “unica via de salvacdo razoavel e crivel”™. A queda é infinita, o desespero cosmico, a vacuidade esmagadora. jez, derrubado o esquecimento, Arthur Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, LV parte, § 69; trad. it., “Ul mondo come volonta ¢ rappresentazione”, Laterza, Roma-Bari, 1993, Emil Cioran, Des larmese des saints; in: “Cinvres*, op. cit., p. 325. Ibid., p. 291. Emil Cioran, Syllogismes de l'amertume; trad. por., “Silogismos da Amargura’, op. cil., p. 57. Clément Rosset, Le mécontentement de E.M. Ciaran; rad. por., “O Descontentamento de Cio- ran’; in: “Alegria. A Forga Maior’, Relume Dumard, Rio de Janeiro, 2000, p. 101 151 152 45 46 47 48 49 Rosério Rosana Pecoraro Afundamos em uma temporalidade negativa na qual nao € posstvel nem vi- ver nem morrer, nem existir nem matar-se. © Tempo nos devora e nos devasta, retira-se do sangue: “Sustenta- vam-se um ao outro € escorriam juntos; agora que estdo ressecados nos po- demos maravilhar que mais nada devenha? (...) Nenhum instante se pode insinuar nas minhas veias. Um sangue glacial por séculos™’. A cisdo ocorre cedo, pouco depois do nascimento: “Desde da infancia percebia o trans- correr das horas independente de cada referencia, de cada ato, de cada evento, 0 afastamento do tempo daquilo que tempo ndo eta, a sua existén- cia auténoma, 0 seu estatuto particular, 0 seu império, a sua tirania, Lem- bro com extrema clareza aquela tarde quando, pela primeira vez, diante de um universo vazio, eu nao era sendo uma fuga de instantes rebeldes (...). O tempo separava-se do ser a minha custa””*. Uma chance, uma precaria possibilidade, abre-se talvez nas rachaduras quase imperceptiveis da inexorabilidade do devir: fugir do tempo, evita-lo, esquecé-lo. Suspender o tempo: eis a tentagao que explica a imensa atracao de Cioran pela mistica”, “irrupcao do absoluto na historia™, aventura in- temporal, “vertical: que se arrisca para o alto e se apodera de uma outra forma de espacgo”, experiéncia interior, profana ou sagracla, extraordinaria e supra racional, que permite a elevacdo da alma at¢ o divino (até uma for- ma de conhecimento). O éxtase, porém, ¢ rarissimo, provisério, débil, vacuo, de curtissima duragao ¢ € sucedido — inevitavelmente - por uma “nova” queda no tempo; no tempo negativo, angustiante, doloroso, vazio, sem sentido nem logica, que se vinga das vas tentativas do “traidor modelo” obrigando-o a pros- trar-se e devotar-se ao Transcorrer ao qual, apesar das calinias e do ddio, nao é possivel renunciar. Cioran: mendigo do tempo, postulante do devir. “O tempo esta proibido para mim. Nao podendo seguir sua cadéncia, Emi) Cioran, La chute dans te temps}; em “Giwwres”, op. cit., pp. 1152-1153. Emil Cioran, De Vinconvénient d’étre né); em “Chuvres”, op. cit., p. 1274, O cristianismo, as religioes orientais, as experiéncias do divino na twadicao patristica e na Ida- de Média, Mesire Eckari, o misticismo moderna de Teresa de Avila e Joao de Cruz, Simone Weil: sao estes os rastros mais significativos que atravessam © pensamento da [ildsofo fran- co-romeno no seu por-se a caminho, Fundem-se nele perspectivas, tradicoes e experiéncias diferentes que possuem, porém, uma preocupacao, ou uma obsessio, comum: ultrapassar 0 tempo; ver, tocar, conhecer o que est além do tempo, tentar alcangar algo). Emil Cioran, Des larmes et des sainis}; em “Cfuvses", op. cit, p. 306. Ver La tentation d'exister]: em “Ciswres", op. cit., p. 916. 50 5 52 53 os 35 36 oT A Filosofia Negativa de Cioran | 153 agarro-me a ele ou o contemplo, mas nunca estou dentro dele: nao ¢ meu elemento, E em vao espero um pouco de tempo dos outros”. Desejar, pe- nar, expiar: “Como me sinto préximo daquela velha louca que corria atras do tempo, que queria agarrar um pedago de tempo”" “Entre o Tédio e o Extase se desenvolve toda a nossa experiéncia do tempo”” escreveu Cioran nos Silogismos da Amargura. Fracassada a fuga do tempo, terminado o éxtase mistico, 0 que sobra é apenas (e este apenas acolhe um abismo) ennui. Em uma entrevista a Fernando Savater (1997) Cioran disse: “A minha vida tem sido dominada pela experiéncia do tédio. Eu conheci este senti- mento na minha infancia””. Nao se trata do tédio normal, ordindrio, que pode ser amenizado por uma distracao, uma conversa, um prazer qualquer esim do “tédio fundamenial”, do iédio profundo e autentico de cunho hei- deggeriano que revela ao Dasein o seu “ser prop ”, a sua finitude, a sua posicéio no mundb, o seu isolamento™. Em Cioran, porém, o tédio perde qualquer traco “positivo”. Nao € mais uma possibilidade, um recurso, mas “erosao pura”, mal indeterminado, “sem sede, sem suporte, sem nada exce- to este nada, nao identificdvel, que corréi””, “Nada nos inieressa, nada me- Tece a nossa atencao. O tédio é uma vertigem, mas uma vestigem tranguila, mondéiona; a revelacdo da insignificancia universal. Ele lembra que so- mos nada, que nada vale a pena. O tédio talvez nao barre completamente a intensidade da vida; mas veda, impede qualquer forma de integracdo nela: “A minha marginalidade nao € acidental, mas essencial. Se Deus se entedi- asse, cle nao seria um Deus inferior, mas um Deus marginal (il n’en serait pas moins Dieu, mais un Dieu marginal)”. Lennui de Pascal (¢ por muitos aspectos a de Schopenhauer) nao € a mesma que dilacera e pavalisa Cioran, cujo fastio est4 muito mais préximo Emil Cioran, Syllogismes de tamertume; trad. por,, “Silogismos da Amargura”, op. cit., p 32. Ibid., p. 31. bid., p. 36. Enirctiens, Gallimard, Paris, 1995, p. 29. Estamos nos referindo a O Que £ a Metafisica? e, sobrevudo, 20 curso de Heidegger do semestre invernal 1929-1930 Dic Grundbegriffe der Metaphysik, Welt, Endlichkeit, Einsamkeit (Conceitos Fundamentais da Metafisica. Mundo, Finitude, Solidao; trad. it.,“Concetii fondamennali della metafisica”, Il Melangolo, Genova, 1992. Ver, em particular, os capitulos IV ¢ V da segunda parte). Emil Cioran, Bcartélement; em *Gvres", op. cit., p. 1481. Entretiens, op. cit,, p. 29. Ibid. 154 38 39 60 6 62 6 64 Rosario Rossano Pecoraro dos relampagos sofridos e afanosos de Leopardi e da insatisfacao profunda dos romanticos. O.1édio ¢ “convalescenca incurdvel”™, rina do tempo, “ta- utologia césmica””, matadouro “do delirio que sustenta - ou inventa a vida”, “martirio daqueles que nem vive nem morrem por nenhuma cren- ¢a"®, malvadez pura, falsa doenca ¢ falso sofrimento para os quais nao ha nem sequer paliativos: “Os grandes enfermos ndo se enfastiam jamais; a doenca os preenche, como o remorso alimenta os grandes culpados. Pois todo sofrimento intenso suscita um simulacro de plenitude e propoe a consciéncia uma realidade horrivel, que esta nao saberia eludir; enquanto que o sofrimento sem objeto nesse luto temporal que € 0 tédio néo opéde a consciéncia nada que a obrigue a uma atitude proveitosa. Como curar um mal nao localizado e extremamente impreciso, que aflige 0 corpo sem dei- xar vest(gio, que se insinua na alma sem marcé-la com nenhum sinal?*. Retornam os espectros daquelas inquietagées iniciais: nascer por qué? Para qué? Por que nao fomos objeto de uma Santa crueldade? Como recu- perar-se se 0 “tempo é a cruz na qual o tédio nos crucifica”, se nao ha dro- gas para curar as crises de abatimento e “o horror de ser apenas uma alma dentro de uma cusparada™, e se toda vez que abrimos os olhos vemos o mundo como o “Getsémani do Tédio””? Nesse Gélgota de amargura, uma invoca¢ao apenas; um sussurro leo- pardiano: “Enfim repousas sempre / Meu lasso coracdo. Findo € 0 engano/ Que perpétuo julguei. Findou. Bem sinto / Que em nés dos caros erros / Mais que a esperanca, o proprio anelo ¢ extinto. / Repousa sempre. Muito / Palpitaste. Nenhuma coisa vale / Teus impulsos, nem digna ¢ de suspiros / A terra, Nojo e tédio / E a vida, nada mais, e lama é o mundo. / Repousa ¢ desespera / A tltima vez. A nossa espécie 0 fado / Nao deu mais que o mor- rer. Enfim despreza / A natureza, o rudo / Poder que, eculto, 0 comum dano gera/ E a vacuidade sem final de tudo”. Emil Cioran, Précis de decomposition; trad. por., “Brevidrio de Decomposigao”, op. cit., p. 23. Emil Cioran, Le crépuscule des pensées; em “Ciuvres”, op. cit., p. 466. Emil Cioran, Précis de decomposition; trad. por., “Breviario de Decomposi¢4o”, op. cit., p. 157 Ibid., p. 22. . Emil Cioran, Syllogismes de l'ameriume; trad. por.,“Silogismos da Amargura”, op. cit., p. 22. Emil Cioran, Le crépuscule des pensées; em "Cirvres", op. cit., p. 470. Giacomo Leopardi, Poesia ¢ Prosa, Nova Aguilas, Rio de Janeiro, 1996, p. 268, (a poesiaé “Asi mesmo”).

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