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Primitivismo e ciéncia do homem no século XVIII HELENE CLASTRES Ao longo da série de estudos que consagrou a etnografia, a sua hist6ria e suas lacunas, Van Gennep nota o quanto foi tardio, compa- tado ao das outras ciéncias, 0 aparecimento das ciéncias humanas, da etnografia em particular, e a dificuldade que esta teve para se impor: dificuldade, diz ele, imputavel em grande parte a propria etnografia, 4 flutuagao de suas nogdes e de suas teorias.' Dai, sem divida, essa teflexao que o reconduz ao passado: ao século XVIII e aos precur- sores do que ele chama de “‘etnografia teérica’”’. Gostariamos de destacar duas questdes que atravessam seu es- tudo, pois elas, em muito, nos serviram de fio condutor. Desde 0 inicio, apresentando as obras de Démeunier, de Lafitau, de De Brosses, Van Gennep constata 0 isolamento, a independéncia de cada uma delas e, em cada caso, se interroga sobre esta descontinuidade. Por que, per- gunta ele por exemplo, um Lafitau (que teve, entre outros méritos, © de ser o primeiro a definir, e de uma maneira tao precisa, em que consiste o método comparativo e dentro de que limites é possivel aplica-lo) permaneceu sem posteridade? E até mesmo ignorado por seu século? E, com efeito, natural o espanto, tratando-se de um século que (1) A. Van Gennep. Religions, Moeurs et Légendes, Paris, Mercure de France, 1914. Em particular, na quinta série, o Cap. I: “algumas lacunas da etnografia atual”; © toda a segunda parte: “O método etnogr4fico na Fran¢a no século XVIII". As ci- tagdes que se seguem sao todas extraidas desses ensaios. 187 quis fundar a ciéncia do Homem. De fato, nao somente nenhum desses etndgrafos foi retomado pelos tedricos da época, como nfo ha sequer lagos de sucessao entre eles. Ao lé-los, pode-se ter, muito ao contrario, aimpressao de repeticdo de uma mesma obra (com a diferenga, é claro, dos povos estudados) ja de inicio concluida, ou de antemao limitada e impossivel de aperfeigoar, que teria sido produzida de maneira inter- mitente: pois os projetos sio idénticos,? como os métodos, os modelos explicativos...e mesmo a forma da exposi¢gao ou as qualidades litera- rias. O traco mais marcante da etnografia tedrica do século XVIII, se € possivel caracteriza-la por um trago, € talvez uma certa solugdo de continuidade e, pode-se dizer, uma certa inércia: como se nao houvesse hist6ria propriamente dita, ou como se ela nao fosse cumulativa (po- demos perfeitamente reduzir os intervalos, adicionando outras obras etnograficas Aquelas que Van Gennep toma, sem modificar em nada essa caracteristica). O exato oposto, conseqiientemente, do que vai caracterizar a etnologia um século depois, a saber, o “estado de flu- tuacao” do qual se queixa Van Gennep, as nogdes que tiveram de ser continuamente “‘desfeitas e reconstruidas’’: enfim, tudo 0 que marca os comecos da ciéncia e € indicio de seu progresso. A segunda pergunta de Van Gennep remete a interrup¢4o que se produziu no comego do século XIX: “... no concernente as Ciéncias do Homem, houve uma interrup¢io, marcada pela morte da Sociedade dos Observadores do Homem”. Ele vé ao menos uma razao desta interrupcdo na conjuntura histérica: “‘O limite ‘século XIX’ nao tem nada de artificial, ja que a Revolucdo e o Império marcam nitidamente uma interrupgao temporaria da producio intelectual, nao somente liter4ria mas também cientifica”. E precisa ainda que, se a etnologia apareceu tardiamente na classe das disciplinas universitérias, é por causa da “recrudescéncia religiosa dos primeiros trés quartos do século XIX". A interrupgo e a retomada tardia da etnologia seriam conse- qiientemente imputaveis a causas exteriores a esta ciéncia mesma — parcialmente imputaveis, em todo o caso, pois, por algumas obser- vacdes, Van Gennep sugere que é necessario procurar outras causas, de tal forma que sua questao continua em aberto. (2) Os titulos de suas obras so sugestivos a este respeito. Relembremos Lafitau: Moeurs des Sauvages Amériquains, comparées aux moeurs des Premiers Temps, 1724; De Brosses: Du culte des dieux fétiches, ou paralléle de l'ancienne religion de I'Egypte avec a religion actuelle de la Nigritie, 1760; Démeunier: L'esprit des usages et des coutumes des différens peuples, ou observations tirées des voyageurs et des historiens, 1776. 188 E tanto em diregdo da histéria e da busca das razdes conjun- turais, quanto em direg&o da epistemologia e da busca das razdes in- ternas, que nos vemos orientados. As duas questées, efetivamente (o porqué do carater isolado das obras dos que foram chamados e, nao sem razdo, de “precursores’’, e 0 porqué dessa stibita interrup¢ao) contém uma terceira, subentendida, e que poderia, ingenuamente, ser assim enunciada: como é possivel que a etnologia nao tenha nascido no século XVIII quando, aparentemente, as condigdes estavam reunidas para torna-la possivel? Pois, que sentido tem falar de “precursores”’, em se surpreender com o carater descontinuo das obras que fazem a “pré-histéria" da ciéncia? Em outras palavras, 0 que a historia da etnologia indica quando (nao pensando, aqui, somente em Van Gen- nep, mas também em Lowie, Métraux ou outros) estabelece, no interior do que ela reivindica como seu préprio passado, uma diferenca entre seu yerdadeiro comego (por volta do fim do século XIX) e seus pr6- dromos mais ou menos esporddicos? Se se admite que a divisdo é legitima — e nao ha raz&o para nao considera-la assim — pode-se perguntar o que a fundamenta. E esta questo remete, nao a histéria cronolégica das obras e das teorias, mas A histéria légica de suas condigdes de possibilidade: tais condigdes estavam efetivamente pre- sentes no século XVIII? Ou, mais exatamente (j4 que se sabe perfei- tamente que a etnologia sé apareceu mais tarde), que obstaculo, in- terno ao discurso antropolégico de entao, impossibilitava seu apareci- mento? E preciso esclarecer que 0 periodo que nos interessa (dado que, para nés, parece revelar uma unidade prépria) vai do inicio do século, com a publicagao das primeiras Lettres Edifiantes et Curieuses... dos Jesuitas (em 1702) e a dos Dialogues de La Hontan (1703), até o fim da Sociedade dos Observadores do Homem. Concordamos, pois, com Van Gennep neste ponto. E ainda estamos de acordo com ele quando Precisa que apenas pertencem ao territério da etnologia os “‘fendmenos de comeco, e n&o os fendmenos muito evoluidos”, e define o objetivo desta ciéncia como “‘estudar 0 homem semicivilizado e as populacdes Turais da Europa’: a etnologia emprega hoje outros termos, mas mantém essas distingdes. Deixaremos de lado a etnologia rural, cuja historia nao coincide com a da etnologia dos poyos primitivos, ou, como se falava ainda no século XVIII, dos povos selvagens. x ok OF No entanto, é uma inovagao desse século o pensar os povos sel- Yagens precisamente como povos primitivos. Primitivos, isto é, pri- 189 meiros: no comeco de uma histéria que é a do género humano, Pensamento ele mesmo novo, esta idéia da humanidade como “es- pécie’’, portanto dotada de uma unidade natural e tendente por natureza A mesma evolucao (pois a Natureza fez 0 homem perfec- tivel, ao contrario das outras espécies). “Originariamente”’, escreve Buffon, ‘‘s6 houve uma espécie de homens que, tendo-se multipli- cado e disseminado por toda a terra, sofreu diferentes mudangas por influéncia do clima, pela diferenca da alimentagao, da maneira de viver, das doengas epidémicas, e também pela mistura variada ao infinito de individuos mais ou menos semelhantes’’.° Pouco importa, aqui, que a hipétese da unidade da espécie humana nao tenha obtido unanimidade, e que alguns pensadores, Voltaire por exemplo, a tenham violentamente criticado. Permanece a novidade de uma teoria do ho- mem, cientifica e nao mais religiosa ou metafisica (como nos séculos precedentes), e que vai transformar radicalmente (quer se esteja ou nao de acordo com Buffon) o modo de pensar a diversidade das socieda- des. As duas idéias, a de um estado primeiro do homem e a de uma hist6ria natural da espécie, sao correlatas e implicam uma terceira: que este estado primitivo é um estado de natureza. Voltaremos a essa Ultima nogao, cujo contetido nao deixa de ser ambiguo. Notemos, por enquanto, que é no seio das teorias dos naturalistas que so formulados postulados, hipOteses € conceitos sobre os quais vai se fundar todo 0 discurso antropolégico do século XVIII. E que o naturalismo vai tentar explicar nao somente a diversidade fisica, mas também a dos “naturais” — dos caracteres, diriamos nés — e, mais ainda, dos costumes. Assim Buffon confere, a uma historia natural da espécie, a tarefa de dar conta das variedades que se podem constatar entre os homens dos “diferentes climas”: “‘A primeira e a mais mar- cante dessas variedades-é a da cor, a segunda é a da forma e do tamanho, ea terceira ¢ a do natural dos diferentes povos”’. Dos tragos fisicos vamos, entao, gradualmente, para os tragos morais e intelec- tuais. A natureza nao da saltos, a ciéncia tampouco. “‘Ainda que os negros tenham pouco espirito, nao deixam de ter muito sentimento, sao alegres ou melancélicos, laboriosos ou preguicosos, amigos oi: inimigos segundo a maneira pela qual sao tratados... Eles tém pois... 0 coraga0 excelente, possuem o germe de todas as virtudes”. Para nado sermos injustos com Buffon, acrescentemos que este retrato ingenuamente condescendente era, no seu tempo, banalidade muito difundida, que nao impediu Buffon de tomar vivamente partido contra a escraviddo. (3) Buffon, “Histoire Naturelle de !'Homme”, in Buffon, éd. Jean Piveteau, PUF, 1954, p. 315. 190 Como o universo, o homem é cognoscivel através de leis: pode e deve ser objeto de ciéncia. Um encaminhamento metédico: do sim- ples ao complexo (do fisico ao moral e ao mental), e do particular ao geral (do individuo as relagdes sociais); um pequeno nimero de prin- cipios bem fundamentados, dentre os quais, aquele, herdado de Locke: as idéias provém dos sentidos, donde segue que, colocados em condi- ges idénticas, os homens recebem as mesmas sensacoes e, portanto, concebem as mesmas idéias; principio ligado a este outro: que existe uma ordem natural segundo a qual as sensagdes e as idéias se enca- deiam, de maneira que se pode descobrir sua origem e reconstituir sua formacao. A partir dai, poder-se-4 dar conta de todas as diferengas: se ha diversidade, é precisamente porque as condicdes (e nao somente as climaticas) nao sao idénticas, é porque variam as circunstancias exteriores 4 natureza do homem. Variam tanto que podem degener4-lo: “alimentagao grosseira, mals& ou mal preparada pode fazer degenerar aespécie humana; todos os povos que vivem miseravelmente sido feios e mal feitos; mesmo entre nés, a gente do campo é mais feia do que a das cidades, e notei freqiientemente que, nas povoacdes onde a pobreza é menor que nas povoag®es vizinhas, os homens sdo melhor feitos e os rostos menos feios”” Que a hist6ria do homem seja, no século XVIII, natural, nao implica, portanto, apenas que ela rompe com a teologia (relembremos, no entanto, que ao descrever as Epoques de la nature, sem fazer nenhuma referéncia aos tempos biblicos, Buffon e seus colaboradores escreveram sem ditivida a primeira hist6ria fisica do mundo). Essa ruptura que, para além das polémicas, constitui um dos marcos do século e um dos elementos de sua unidade, possui evidentemente con- tetidos positivos. Se a Natureza é — para tomar ainda outra definigao de Buffon — “‘o sistema de Leis estabelecidas pelo Criador, para a existéncia das coisas e para a sucessao dos seres’’,’ entdo, a historia natural tem o projeto, e nao somente o projeto como a possibilidade de descobrir a ordem necessaria e sucessiva que, subjacente 4 multipli- cidade observavel, é capaz de explicd-la. Dois eixos sao necessarios para fornecer um tal modelo explicativo: geogrAfico (referente 4s condi- gdes exteriores acidentais) e hist6rico (referente As leis naturais necess4- tias), mas 0 primeiro, como veremos, subordinado ao segundo. (4) Sem entrar em pormenores, sublinhemos a novidade e a importancia dessa definigao. Ela visa, é claro, Descartes e sua teoria da criag&o continua: se a succssao dos seres é sujeita a leis, imutaveis, e ndo a uma continua intervengao divina, entio uma ciéncia humana € possivel. 191 Em si mesma, a diversidade das sociedades é problematica, o que quer dizer que é preciso explicar racionalmente a distancia que separa, digamos, os lapses da sociedade policiada do século XVIII francés (com efeito, nem mesmo a hipétese de uma pluralidade originaria das espécies no seio do género humano d4 conta de uma tal distancia); e, através dela, coloca-se 0 problema do progresso, 0 que quer dizer que é preciso reencontrar 0 caminho necessario da Natureza. No pensamento da maior parte dos homens do século XVIII, todos os caracteres pelos quais os homens, e as sociedades, se diferen- ciam, esto estreitamente ligados; e mais: decorrem logicamente uns dos outros. Assim, a feiura fisica se conjuga a negritude moral, a estu- pidez, as crencas absurdas, os costumes cruéis, etc., e, inversamente, para as qualidades positivas (e este resumo nao é uma caricatura: que se leia apenas as descrigdes que Buffon, Linneu, Voltaire, Raynal, De Pauw, fazem dos africanos, dos lapdes, dos chineses, dos indios da América). Além da diversio que proporciona ao leitor de hoje seme- Ihantes retratos, h4 ai um pensamento que nos parece ser uma das pecas-chave da antropologia de entéo: com efeito, nao é ele que per- mite que se passe, quase sem dar-se conta, de um lado, do individuo para a sociedade e, de outro, da geografia para a histéria, isto é, das condigdes externas para as condigdes internas? Ele também nos parece ter uma outra implicagdo: torna singularmente dificil a disjun¢4o entre, de um lado, 0 discurso simplesmente cientifico (a descrigado e a explicagio dos costumes) e, de outro, o discurso moral e politico (a sociedad descrita é boa ou mA, e os homens sao nela felizes?). Pois, certamente, nao é por acaso que sempre encontramos, constantemente mesclados nos escritos dos tedricos e dos etndgrafos, a observagao dos costumes e sua avaliacado moral. Voltaremos a este assunto. Mas, antes de mais nada, retomemos 0 primeiro ponto. Este modo de pensar é, em suma, a aplicagio ao estudo das sociedades, das teorias de Locke e de Condillac. Se as idéias provém das sensacdes, se as sensagdes € as idéias se combinam segundo um pequeno nimero de leis numa ordem de complexidade crescente, entao basta descobrir as causas das diferengas fisicas (0 primeiro e 0 mais simples dos dados, segundo as regras do método) para que todo o resto se explique. Essas causas, quase sempre, sio exteriores, e a mais freqiientemente invocada € a do clima. A importancia da teoria dos climas (controvertida, de certo) 6 conhecida; 0 que nos parece inte- ressante € o tratamento que recebe, fora das teorias naturalistas, de Montesquieu, por exemplo, que a faz sua em L esprit des lois. O clima (e também a alimentagao, as doengas, etc.) explica, ent&o, a distancia 192 que separa as sociedades atualmente observaveis sobre a terra: todas dotadas, na origem, de uma natureza idéntica (perfectivel, nado o esquec¢amos) e portanto de possibilidades iguais, se viram localizadas em condigdes reais completamente diferentes, algumas fayoraveis 4 natureza, outras nao; e, as mesmas causas continuando a agir e a acarretar os mesmos efeitos, a distAncia diferencial se amplificou pro- gressivamente. Donde: aqui progresso, ali estagnagdo, alhures degene- racao. E aqui estamos, como num passe de magica, instalados na hist6- ria, transportados das condicdes acidentais para a ordem necessaria. A geografia esta ai apenas para atestar a existéncia de uma hist6ria (a his- toria do homem) cujos diferentes momentos so representados pelas sociedades reais (selvagens ou antigas, pouco importa); a diversidade espacial ordena-se em decorréncia, ja que ela é legivel como uma sucessao temporal mais fundamental; é levantada a questao da origem. Ai esta, com relacio aos séculos precedentes, uma reviravolta completa que se opera na maneira de apreender as outras sociedades. Esses outros, barbaros e selvagens,® deixam a partir deste momento de ser concebidos como estrangeiros, como o eram, por exemplo, aos olhos dos homens do século XVI, para tornarem-se semelhantes: de mesma natureza que nés, e tais como éramos em nossos inicios. Primi- tivos. Que este novo modo de pensar os selvagens s6 tenha realmente tomado forma pelo movimento de idéias que acabamos de relembrar brevemente, poderemos confirmé-lo olhando para tras. Aos primeiros exploradores do continente americano, os indios apareceram, antes de tudo, como pessoas de uma outra natureza que a deles mesmos. E, com efeito, o que viram eles? Selvagens que iam e vinham nus, sem sequer sonhar em esconder “‘o que no entanto natu- reza requer que se mantenha escondido”’; mulheres que nao possuiam nem um grama do pudor que ‘ha naturalmente”’ neste sexo; criangas ignorando a obediéncia que a ‘‘natureza quer que se tenha’’ em relagao aos mais velhos; e essas pessoas passavyam o tempo a se entredevorar; e, ainda, se entregavam 4 sodomia, pecado “contra a natureza” por exceléncia, e que nao queriam nem mesmo nomear. Nos etndgrafos do século XVI, esse yocabulario deve ser levado ao pé da letra: todos os tracos de “cultura”, diriamos nés, s4o para eles 0 indicio de uma outra (5) No século XVIII, as duas palayras sao freqiientemente empregadas juntas Para a mesma sociedade. Elas nao tém, no entanto, a mesma conotagdo, e a primeira € equivoca: ora “barbaro” faz referéncia a um momento da historia do homem, ora denota um conjunto de “‘qualidades” fisicas e morais, notadamente a coragem e a cruel- dade. Selvagem é de um uso mais univoco: sociedade onde os individuos sao livres, onde nao existe coer¢Xo religiosa nem politica. 193 natureza e, certamente, os selvagens nao Ihes séo semelhantes. Por si s6, essa maneira de descrever, no entanto tao particular aos relatos de entao, pouco significaria. Mas, justamente, ela nao esta s6 e a hist6ria ai estA para testemunhar o que foi pensado. E 0 fato é que os indios da América pareceram tao estrangeiros pelos seus habitos (nunca pelo seu aspecto fisico) que se perguntou seriamente, e durante varias décadas, precisamente sobre sua natureza: tinham eles ou nado uma alma? Eram eles humanos? Questao abundantemente argumentada e contro- vertida e que nao exigiu nada em menos, para ser concluida, que uma bula pontificia — que nao impediu, como se pode adivinhar, que se continuasse, durante um longo tempo, a debaté-la. (Além do que, 0 debate sobre os indios nao foi concluido, ele apenas se transformou.) Tanto é que, ainda hoje, é possivel o espanto: o que era necessario que fossem os selvagens para que, quando foram descobertos, nascesse tal controyérsia, com o que ela traduzia de certeza e de estupor; exis- tem outras sociedades que tenham suscitado, dentro da nossa, questao assim fundamental? Aqui esta, ao menos, mais do que é preciso para demonstrar que, aqueles que desde entao denominamos os “‘selva- gens”, foram percebidos ¢ concebidos como radicalmente outros, novos, singulares. Que se leia com um pouco de cuidado os cronistas da época: os indios lhes sao tao inacreditaveis afinal, que, muitas vezes, antes de chegarem a descrever uma ou outra de suas particularidades, tomam mil precaugées de estilo, certificando o fato de nao estarem inventando nada, exagerando nada, enfim, que sdo yeridicos. Sabe- mos, é claro, que, entre as testemunhas de entao, ha algumas que se contradizem: mas sao raras e, quando se acusam mutuamente de men- tira, é que suas interpretagdes divergem; as informagdes etnograficas, por sua vez, sao perfeitamente concordantes (como no caso de Léry e de Thevet). Mas, se se teme tanto 0 descrédito, néo seria na verdade por- que esses selvagens sao inverossimeis? Entretanto, essa estranheza nao exclui de forma alguma uma certa proximidade, e talvez mesmo possa torna-la possivel. Essa proxi- midade é extremamente marcante, em todo caso, e manifesta-se de miltiplas maneiras. Pensando bem, nao somente os individuos séo proximos (se fizermos abstragao das pinturas, tatuagens, orelhas € labios perfurados, e outros procedimentos pelos quais os indios sabem tao bem se desfigurar, eles nao sao diferentes ou piores que os euro- peus; e suas qualidades, suas yirtudes e seus vicios nao sdo t&o diver- sos), mas sobretudo sua sociedade® esconde, sob a barbarie das manei- (6) Pois é de sociedade que se fala nos séculos XVI e XVII. A questo de saber se 0 estado selvagem € ou nao é um estado de sociedade ainda nfo se coloca. 194 ras, uma certa ordem, uma certa justeza ou justica. Estranhos pois a nossa natureza, nos s4o no entanto proximos; sua ordem social pode, moralmente, comparar-se 4 nossa: alguns fazem efetivamente a com- paragao (assim, Léry). Os costumes permanecem irredutiveis, impermedveis 4 com- preensao. Na impossibilidade de compreendé-los, era ao menos possi- vel descrevé-los, era um dever testemunhar: viajantes, missiondrios testemunharam. Dedicaram-se 4 descrig&o, tio minuciosa quanto pos- sivel, das singularidades observadas: como os selvagens cagam, pescam ou cultivam suas hortas; como preparam seus alimentos ou bebidas, e quem os prepara, e quando e como comem, bebem, dormem; e como nascem seus filhos, como se casam, como enterram seus mortos; quais so suas doencas e a maneira de curd-las; 0 jeito com que pintam o corpo, 0 escarificam, o enfeitam; e seus vilarejos, seus chefes, suas guerras e sua paz. Os indios suscitaram os grandes livros de etnografia. E esta dupla relacio, ao mesmo tempo préxima e longinqua, do Ocidente com os selvagens, que o século XVIII vai derrubar. A nova ciéncia vai reaproximar, em principio, os selvagens: nao menos hu- manos que nés, e arrastados pela mesma histéria. Porém, situando-os na origem desta histéria, de fato ela os distancia infinitamente, abo- lindo, a0 mesmo tempo, tudo que os diferencia. ee OF Por sua vez, ent&o, o século XVIII vai interessar-se pelo sel- vagem. E 0 interesse chega mesmo 4 paix4o: nao somente a filosofia se apodera dele para pensé-lo, mas ele tem seu lugar em todas as criagdes da literatura e da arte, no romance, no teatro, no balé e na prépria misica (Rameau compe uma “danga dos selvagens’’)... ele é adap- tado, em suma, a todos os molhos. Jamais época alguma tera conhe- cido tal entusiasmo: ele é compreensivel, sem divida, porque a época fez do selvagem um modelo (no sentido légico e moral do termo). E preciso, esta certo, estabelecer distincdes no seio dessa proliferagao do discurso sobre o selvagem. Mas, antes de tudo, quem sao, nesta época, os selvagens? So ainda os indios da América (aos quais ir&o se juntar os tahitianos, mas somente no ultimo terco do século, apés a viagem de Bougainville):’ os do Brasil, que podiam ser vistos séculos (7) Os povos do Mundo Antigo no sio considerados selvagens. Os do Artico (lapdes, samoiedos) degeneraram; os habitantes de Berbérie, barbaros, ao mesmo tempo Tefinados e cruéis; os povos da Africa Negra (entéo muito parcialmente e mal conhe- 19S antes em Rouen e em Paris, e que existem apenas nos relatos antigos; os do Paraguai, com os quais os jesuitas ainda prosseguem na sua experiéncia de uma sociedade modelo (de que Voltaire cagoava tanto, e era admirada por Raynal); os do Canada, sobretudo, que nos inte- ressam de mais perto, j4 que, aliados aos huronianos, € que os fran- ceses 14 combatem os ingleses, aliados aos iroqueses. Os indios do Ca- nada sao certamente aqueles aos quais nos referimos mais facilmente quando pensamos em “‘selvagens”. De um lado, porque a realidade de sua sociedade deixa-se perfeitamente subsumir pelo conceito de selya- geria (estado de insubordinagao politica, auséncia de coergao religiosa, ignorancia da propriedade privada); de outro lado, por serem os mais conhecidos nos meios esclarecidos, celebrizados pelo barao de La Hontan desde o comeco do século.® Eles interessam sob varios aspectos: continua-se a descrevé-los (e a veia etnografica, longe de esgotar-se com 0 Renascimento, durou quase até o fim do século XVIII), a explicd-los também, a julga-los enfim (veremos adiante se sAo ou nao 0 objeto real dessas explicacdes e desses julgamentos); em todos os textos da época, 0 discurso cienti- fico e o discurso moral e politico se repercutem constantemente. E que a ciéncia do homem, em relagao 4 qual se é unanime em reco- nhecer como “‘a mais titil”, nao tem em si mesma o seu fim: sua fina- lidade é moral e politica; trata-se de chegar, através do conhecimento das diversas sociedades, até aquela que coincidir finalmente com 0 reino da Raz4o, onde os individuos poderao realizar o fim que lhes foi atribuido pela Natureza, a saber, a felicidade. Explicagao cientifica juizo de valor esto, pois, intimamente associados, até mesmo nos teéricos da etnografia. Assim, Lafitau comega por anunciar que n4o esta de forma alguma preocupado com o “conhecimento estéril” ou a “va curiosidade”: “‘deve-se’”’, diz ele, “‘estudar os costumes apenas cida), escravos € submissos a tiranos; os chineses, policiados sem diivida alguma © hd muito tempo, mas caidos num estado de estagnacdo... Van Gennep tem razio ‘ao escrever: "'... a etnografia te6rica e, em seguida, a formagao do método etnogré- fico, praticamente nao foram influenciadas pelo orientalismo, pelo extremo-orienta- lismo nem pelo africanismo (...), mas antes pelo americanismo, e em dois casos (...) pelo oceanismo”, op. cit., vol. 5, p. 100, (8) Os textos de La Hontan — Voyages, Mémoires, Conversations — publi- cados em 1703 em La Haye, tiveram no mesmo ano trés reimpressdes. Em 1704, essa edigdo é traduzida para o inglés, ¢ La Hontan faz uma segunda edigao, em francés, reimpressa duas vezes neste mesmo ano. Em 1705 aparece uma terceira edigao que sera reimpressa até em 1709. Duas outras edigdes iriam seguir-se ¢ 0 livro sairia sem interrupgao até cerca de 1760, Enquanto isso, € traduzido para o holandés € para © alemao. Isto apenas para dar uma idéia do sucesso de uma obra hoje esquecida. 196 para formar os costumes, e ha sempre, em tudo, algo de que se pode tirar vantagem”’.° Os costumes que se deve formar, criticar, nao sao apenas os dos selvagens (mesmo para o missiondrio que é Lafitau), sao também (e para alguns filésofos sao sobretudo) os nossos. Conse- qiientemente, nao basta mais descrevé-los nem espantar-se, é preciso compreender, e, para isso, comparar. Mas nao qualquer coisa, nem de qualquer maneira. Nao, por exemplo, os selvagens, ou os antigos, conosco; apenas 0 que é comparayel, como, por exemplo, os antigos com os selyagens. Tal aproximagao foi bem cedo realizada: j4 a encon- tramos em Fontenelle, que descobre ‘‘uma espantosa conformidade entre as fébulas dos americanos e as dos gregos”,"° ou ainda no Padre Tournemine, que também teve o projeto de tratar da origem das f4- bulas e escreveu que ‘‘para julgar o que é verossimil, é preciso evitar julga-lo em relacgio 4 nossa época... A verdadeira regra & qual deve- mos comparar as fabulas, sao os costumes dos selvagens da Amé- rica..." " O fato € que 0 comparatismo, como método aplicado ao es- tudo dos costumes, se baseia num duplo postulado, a saber: h4 uma unidade do espirito humano que manifesta uma tradi¢ado comum ori- ginal, e seu desenvolvimento histérico é sujeito a leis. E a projegio, ao plano da ciéncia dos costumes, das hipdteses do naturalismo, ou, mais que a projegao, sua seqiiéncia légica: ndo é verdade, com efeito, que a filosofia de Locke funda a passagem do fisiol6gico ao mental, e, além disso, nao permite ela (A medida que considera que a sensa- gao é primeira e o espirito tabula rasa) definir a unidade espiritual como identidade de contetido? (Percebe-se, é claro, que as coisas ten- dem a complicar-se singularmente, A medida que, com o encadea- mento entre sensagGes e idéias, 0 espirito progride... mas voltaremos a isto mais adiante). Em todo caso, se a comparacao torna-se possivel como método (pois nao se esperou o século XVIII para fazer compa- ragdes), € porque s4o postuladas uma unidade original de pensamento e, se tal é possivel, uma unidade de tempo. O livro de Lafitau abre-se com uma gravura, que 0 padre explica: “O frontispicio representa uma pessoa na atitude de quem escreve, no momento empenhada em fazer a comparacao entre diversos monu- mentos da antiguidade, piramides, obeliscos, figuras, pantedes, me- dalhas, autores antigos, e entre varios relatos, cartas, viagens e outras curiosidades da América, entre as quais est4 sentada. Dois génios apro- (9) Moeurs des Sauvages amériquains..., p.5. (10) Fontenelle, De lorigine des Fables. (11) P. Tournemine, Mémoire de Trévous, nov.-déc. 1702. 197 ximam esses monumentos uns dos outros, ajudando-a a fazer essa comparacao, fazendo-a perceber a relagio que podem ter entre si. Mas © tempo, a quem cabe dar conhecimento de todas as coisas € desyela-las progressivamente, torna-lhe essa relag&o ainda mais sensi- vel remetendo-a a fonte de tudo, e fazendo-a como que tocar com as maos a conex4o que todos esses monumentos tém com a primeira origem dos homens, com o fundo de nossa religido..."? Em seguida, criticando os antigos relatos que chegaram a dizer dos selvagens que nZo possuiam costumes nem religiao (0 que de fato disseram, ao mesmo tempo que descreviam, e muito bem, crengas € costumes, como o nota o proprio Lafitau), Lafitau justifica sua propria empresa: “Trata-se apenas, pois, de provar essa unanimidade de sentimento em todas as Nagdes, mostrando que, efetivamente, nado ha nenhuma tio barbara que nao tenha uma religiao e que nao tenha costumes”. Nessa unanimidade se enraiza a possibilidade de comparar: “No somente os povos que chamamos de barbaros tém uma religido, mas essa religiao possui relagdes de uma tal conformidade com a dos primeiros tempos, com o que chamavam, na antiguidade, de Orgias de Baco e da Mae dos Deuses, os mistérios de isis e de Osiris, que se percebe de imediato, por esta semelhanga, que se trata em toda parte dos mesmos principios e do mesmo fundo”. A idéia de uma religiao originaria é banal no século XVIII. O que é preciso notar, é o lugar singular que ela ocupa no quadro “eyolucionista” de entao: com efeito, ao contrario do que ocorre com os costumes, as técnicas, as artes, as ciéncias, as leis e a arte de governar, que s6 progrediram (com, é claro, interrupgdes, decadéncias e reno- yacdes), a religido s6 regrediu desde seu inicio. Originariamente, ela possuia um contetido racional: 0 sentimento e a idéia do Criador ¢ da harmonia da criacao (e pouco importa que se atribua este conteido A Natureza ou a Revelacdo, pois permanece 0 mesmo); pouco a pouco, ela foi se impregnando de toda uma miscelanea de superstigdes absur- das e de ritos insensatos (como o atestam os ritos e mitos dos antigos gregos ou dos antigos egipcios) 4 medida que foi se distanciando de sua simplicidade e pureza originarias. “OQ género humano”, escreve De (12) Lafitau, Moeurs des Sauvages amériquains... O grifo é nosso. (13) Diz Voltaire: ““O tempo, ora corrompe Os usos, ora os corrige... ¢ a supers- figdo, filha desnaturada da religito, distanciou-se da pureza de sua mae, a ponto de forcar os homens a imolar seus proprios filhos”. Essais sur les moeurs, Paris, 1829, p. 160. Nascida da natureza, a religiio pdde desnaturar-se a ponto de engendrar ritos contra a natureza. 198 Brosses, “havia de inicio recebido do préprio Deus instrugdes ime- diatas conformes 4 inteligéncia da qual sua bondade havia dotado os homens”."* Deus ou a Natureza, dependendo das opinides, no final da no mesmo, j4 que a conclus&o é idéntica: as religides realmente observaveis, no passado como na atualidade, so todas degradadas, umas mais, outras menos, conforme os povos, em que se as observa, estejam mais ou menos distantes do seu comego. Dai (pelo menos em parte) as divergéncias de julgamento entre Lafitau e De Brosses, por exemplo, isto é, entre a religiaéo dos americanos e a dos africanos. Lafitau, sob o véu de ‘‘magia” e de-“‘idolatria” que comega a corrompé- la, descobre sem maiores dificuldades esta religido original nos huro- nianos e nos iroqueses, em seu culto do Grande Espirito. Menos mati- zado, por escrever com um intuito deliberadamente contestatério, La Hontan localiza apenas esta religiaio originaria, e poe ma boca de seu interlocutor huroniano: “‘Gracgas ao Grande Espirito que nos deu ape- nas a Luz natural, nao apagamos este fanal, seguimos exatamente os Preceitos da Razio”.® E que os americanos, se n&o est4o exata- mente no inicio da hist6ria, ainda estao bem pr6ximos dele e, portanto, n&o sio muito pervertidos. Tal nZo é 0 caso dos africanos, instalados ha muito tempo num “estado informe’, tal que “seus costumes, suas idéias, seus raciocinios, suas praticas so as das criangas”. Todas as nagdes passaram, pois, por este estado (excegdo feita, especifica De Brosses, 4 ‘‘raca escolhida”’), apenas algumas abandonaram-no, de maneira que se quisermos compreender 0 que nelas era outrora prati- cado, basta ver o que ainda se faz nas que permaneceram neste es- tado, basta ver “este amontoado de praticas triviais de uma multidio de homens estipidos e grosseiros” onde nado se encontram sequer resquicios das “‘instrugdes imediatas conformes 4 inteligéncia” de que fora dotado na origem o género humano. Vé-se, em De Brosses, armar- se um modelo explicativo que é hist6rico: explicar um fendmeno signi- fica retornar 4s causas que 0 provocaram, as que 0 perpetuaram, desvelar o mecanismo pelo qual uma idéia de inicio inteligivel (no caso a idéia da divindade) foi se obscurecendo pouco a pouco, deslo- cando-se até encarnar-se em objetos. Causas estas: “‘a ignorancia asso- ciada ao temor” que caracterizam a infancia dos povos (notemos, desde ja, que ha um elo perdido na histéria natural do homem: com efeito, como se passa racionalmente — sem recorrer 4 hist6ria (14) De Brosses, Du Culte des Dieux fétiches... (15) La Hontan, Conversations de I’Auteur avec un Sauvage distingué nommé Adario, Editions Elysées, Montreal, 1974. 199 santa — do nascimento esclarecido 4 infancia estiipida?). Ignorancia e temor explicam, pois, que a divindade possa ter se identificado com personagens que a representavam, e depois com objetos utilizados por esses personagens, e, progressivamente, com qualquer tipo de objeto. O que perpetuou estas supersticdes: 0 habito, pois os usos no se desenraizam tao facilmente. Como prova o exemplo desse sel- vagem que tinha um boi por Manitu: “ele concordava em que nao era este boi que ele adorava, mas um Manitu de boi que estava sob a terra e que animava todos os bois: ele concordava também que os que tinham um urso por Manitu adoravam semelhante Manitu de urso, Perguntaram-lhe se ndo havia também semelhante Manitu de homens; ele concordou. Mostraram-lhe entao... que seria mais conye- niente invocar © espirito que era senhor dos outros. Este raciocinio pareceu bom ao selvagem, mas nao o fez mudar de habito”.'® A igno- rancia e o temor, a forca do habito, explicam, pois, 0 fetichismo; e a extensdo que De Brosses d& ao termo, que acaba de inventar, permite-lhe explicar mais ou menos todos os ritos e todas as crengas, o xamanismo entre outros: tudo pode ser incluido nesta categoria. Tudo, ou quase: sao excluidos as crengas € os ritos (préprios a “‘povos menos insensatos”) centrados no sol e nos astros; estes constituem uma outra categoria, o sabeismo. E De Brosses, para explicar a diversi- dade das religides, chega a fabricar um modelo digno da botanica (a mais ordenada das ciéncias de entao). Todos esses modos de pensar, diz ele, ao falar do que enquadra na categoria de fetichismo, “tém, no fundo, uma mesma fonte,... esta nao é mais que o acessério de uma religido geral disseminada nos extremos de toda a terra, que deve ser examinada em separado, como classe particular dentre as diversas religides pagis’’. A outra classe é 0 sabeismo. Portanto, uma religido original justa, reta, que se subdivide, engendrando (como?) duas classes, fetichismo e sabeismo, onde entra a totalidade das religides pagas. O modelo é uma classificacao. Todo modelo, decerto, depura e simplifica 0 real, mas 0 que este elimina, ao eliminar as singularidades, é a propria etnografia. Embora procedendo diferentemente (quanto mais nao seja por estudar uma sociedade particular e estuda-la na sua totalidade), Lafi- tau desemboca na mesma disjuncio entre a etnografia e a teoria. Ha nele 0 mesmo modelo “‘histérico”, como o indica o discurso do método que inaugura seu livro: “‘... procurei manter um certo método, encadeando as coisas de tal modo que elas se encontram na ordem (16) De Brosses, op. cit., p. 58-59. 200 que devem naturalmente ter; e dando-lhes uma tal articulagao que elas parecem derivar uma da outra... Na descrigao dos costumes dos ame- ricanos, 0 paralelo com os antigos € sempre mantido, pois ngo h4 um tinico trago dos costumes daqueles que nao tenha seu exemplo na antiguidade” (p. 18). E, de fato, seu paralelo se da em todos os niveis: as crencas e os ritos, como vimos acima, mas também os costumes, desde que sejam distintivos (a couvade, por exemplo), pois dos costu- mes gerais “nada se pode concluir comparando-os” (Lafitau, segura- mente, definiu muito bem o comparatismo), e ainda os objetos (a ma- raca, e o cistre de Isis, p. 212), até o yocabulario (Areskui, nome que os huronianos dao ao Grande Espirito, e Ares, Marte dos povos da Tracia, p. 127). Ao contrario de De Brosses, ele cuida das singulari- dades. As coisas que encadeia segundo sua ordem natural, sao os costumes americanos; ai se incrustam constantemente os paralelos com os antigos. Mas 0 que esse encadeamento e esse paralelo expli- cam? Os costumes dos selvagens? Dos antigos? A obra de Lafitau ea De Brosses sao, sem divida alguma, obras de etnografia (encon- tram-se tanto numa como noutra, sobretudo na primeira, descrigdes bem precisas); elas se querem também, e 0 sAo, obras teéricas. Entre- tanto, acontece com a etnografia e a teoria 0 que acontece, em suma, com os selyagens e os antigos: existem paralelamente, mas nunca se encontram. Pois 0 que o noyo método (o comparatismo) e 0 novo modelo (essa “hist6ria” natural e racional) nao explicam, e nem podem fazé-lo, sao exatamente os Selvagens. Alias, o proprio Lafitau o entre- yiu: “confesso, diz ele, que se os autores antigos me forneceram evi- déncias para apoiar algumas conjeturas felizes concernentes aos selva- gens, os costumes dos selvagens me forneceram evidéncia para enten- der mais facilmente, e para explicar varias coisas que estao nos autores antigos”’ (p. 3-4). Na&o seria que, tornados de direito primitivos, os selvagens sao despojados de uma “‘hist6ria”’ anterior que possa, por sua vez, explica- los? De modo que 0 mesmo pensamento que (colocando os selyagens na espécie humana e inscrevendo 0 conjunto das sociedades na ordem de uma mesma hist6ria) funda 0 comparatismo, torna possivel uma explicagao cientifica dos costumes, e funciona, ao mesmo tempo, como obstaculo epistemolégico para 0 conhecimento dos primitivos.'7 En- quanto nao é possivel comparar os selvagens a eles mesmos, antes (17) Morgan serd o primeiro a explicar os costumes dos iroqueses (suas relagdes de parentesco e de alianga) pelo estado passado e pela evolugdo desses mesmos costu- mes, sempre, portanto, segundo um modelo hist6rico: foi necessario esperar, para atri- 201 que aos gregos Ou aos egipcios, a antropologia nada pode dizer deles. De modo que nao é por acaso que 0 século XVIII ostentou tanto desprezo pelas “curiosidades” ou pelas ‘‘singularidades”’ das socie- dades: com efeito, o que é que se poderia fazer com elas? Tomando-as em considerac4o, todo este conjunto tedrico nao teria podido funcio- nar. Os pensadores nada querem da etnografia (que eles, no entanto, conhecem), querem sim viajantes que sejam filésofos, que tragam jdéias, e nao “curiosidades”. E quanto aos etnégrafos (quer obtenham suas observacdes da propria experiéncia, quer dos livros), eles des- crevem fatos que é impossivel explicar, j4 que nao tém antecedentes. Ou melhor: nao é necessario explicd-los. De um lado porque a ordem “natural”, e conseqtientemente necessaria, da descric&io, faz as vezes de explicacao. De outro lado, e sobretudo, porque as sociedades onde os observamos, estando ainda préximas do come¢o da hist6ria hu- mana, estao também ainda proximas da natureza (n&o esquegamos que a possibilidade da historia esta inscrita na natureza), Ora, por defi- nicdo, a natureza — assim como 0 conjunto das leis que determi- nam a condicao humana — tem em si mesma sua propria razao, e nao ha que explica-la. Isto nao quer absolutamente dizer que os cOs- tumes singulares dos selvagens provém diretamente da natureza, longe disso: dela surgiram apenas as faculdades humanas, de perceber € conceber idéias, de experimentar sentimentos, pois ha sentimentos naturais (também, mas voltaremos a isso mais tarde, a faculdade de tender a felicidade e, com este intuito, de se reunir em sociedade); o exercicio dessas faculdades esta sujeito a leis conhecidas, elas fun- cionam como uma combinatéria que d4 conta do progresso. Entre este belo ordenamento légico e o pulular das singularidades reais, 0 abismo é intransponivel: as singularidades s6 podem ser acidentais (senao elas nado seriam exatamente singulares). Elas permanecem entao (assim como no século anterior) inexplicdveis: mais vale ignord-las e teorizar sobre aquilo que é possivel compreender, por exemplo, 0 estado de natureza. Uma ilusao de ciéncia que, por graca de uma ordem metédica, natural e racional ao mesmo tempo, permite descrever os fatos e nao levé-los em conta. “Etnografia teérica”’, dizia Van Gennep, a respeito desses precursores do século XVIII: é propositalmente que conser- buir aos primitivos a dimensdo histérica que hes faltava, de um lado, que o natu- ralismo inventasse uma teoria transformista das espécies (com Darwin), e, de outro, que fosse criada uma nova ciéncia, a pré-hist6ria (com Boucher de Perthes e a descoberta do homem “‘antediluviano"). 202 yamos sua expressao, por ela permitir distinguir suas obras da antiga etnografia e da etnologia futura, e por nela se encontrarem, mas total- mente desconexas, etnografia e teoria. xk OF O melhor exemplo dessa disjuncao entre a etnografia e o dis- curso tedrico é, talvez, fornecido pela obra de La Hontan. Sabe-se que apés uma longa estada no Canada, o barao escreveu trés volumes: dois dos quais — os Voyages e as Mémoires — descrevem, ao longo de suas aventuras, a geografia do Canad4, os costumes dos indios, as guerras. O terceiro (0 que teve tanto sucesso) é uma critica viru- lenta da sociedade européia (francesa, sobretudo), que se faz através de trés conversas com um selvagem — sobre a religiao, as leis, a moral — cujo objetivo confesso é de comparar os costumes franceses com os dos huronianos; e é também, formulada por este distinto huroniano (pois ele nao raciocina, finge queixar-se La Hontan, do particular para o geral?), a teoria de entdo sobre a sociedade selvagem. E notayel que toda a realidade social dos huronianos (que La Hontan bem co- nhece e descreve noutro texto) seja abandonada: sao apenas variacdes sobre o Estado de Natureza, a Raz4o, o Direito natural. “Quer que eu te faca’’, pergunta Adario ao bardo, ‘de acordo com a realidade, o quadro de uma sociedade de huronianos? Sao homens onde o Direito natural se encontra em toda a sua perfeigao” (op. cit., p. 308). A no¢gao de Direito natural tem, é claro, um contetido; nés o descobrimos ao longo dessas conversas de La Hontan. E 0 direito cujo fundamento é 0 respeito da liberdade dos individuos. Idéia retomada pelos fil6- sofos, como Diderot na Enciclopédia: “Nenhum homem recebeu da natureza © direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu e cada individuo da mesma espécie tem o direito de goz4-lo tao logo goze da Razio”® — o que implica, diga-se de passagem, que © direito positivo nao decorre da natureza. “Tao logo goze da Razio": a restrigao permite precisar 0 contetido deste direito que inclui, notadamente, a autoridade paterna (a tinica decorrente da natu- reza, a tnica também naturalmente limitada: ela termina quando as criangas chegam A autonomia, ao ‘‘état de se conduire’”’, ibid.). Mas: 0 que é a liberdade individual? Ea possibilidade de realizar a tendéncia natural A felicidade. Assim, d’Holbach: “Ser livre é pao, encontrar nenhum obstaculo a nossa tendéncia para @ felicidade’; (18) Encyclopédie. Artigo " Autoridade politica”. 203 e mais: ‘‘Nenhum poder, sobre a terra, tem o direito de roubar ao homem a sua liberdade, que nada mais é do que a faculdade de trabalhar para sua felicidade”. Assim, também, a Enciclopédia: “«.. todos os homens se retinem no desejo de serem felizes. A natu- reza nos impés a todos a lei de nossa propria felicidade”,” 0 que im- plica em que 0 objetivo da sociedade (‘‘os homens se retinem..."’) seja a felicidade dos individuos. Dai, serem indissociaveis, no pensa- mento do século XVIII, a andlise teérica e o discurso moral e poli- tico. Cuida-se entio de definir 0 que é 0 estado de natureza, e a quest&o é saber se tal estado é, ou nao, aquele que permite a feli- cidade. Diderot escreve na sua Réfutation d’Helvetius: “Entao é 0 estado selvagem preferivel ao estado policiado? Eu 0 nego. Nao basta mostrar-me que ha mais crimes, seria necess4rio demonstrar-me que ha menos felicidade”’. Estado selvagem, estado de natureza. Este ultimo termo possui mais de uma acepcao. Indiquemos apenas que, além do sentido juri- dico, ha também uma conotagdo cronolégica (a condigao do homem na sua origem), e que ele se define, ainda, por oposi¢o ao estado poli- ciado (e, neste caso, sera o estado no qual as técnicas, as artes e as ciéncias nao prosperaram). Salvo raras excecdes (notadamente Rous- seau) esse termo é aplicado, em todos esses sentidos, aos selvagens reais: incontestavelmente representam o estado originario do homem — ou, pelo menos, estao muito préximos dele —, nao esto submetidos a uma autoridade politica, ignoram as artes e as ciéncias. Mas, sao ou nfo felizes? O estado de natureza pode, portanto, ser definido: pode também ser aplicado a uma realidade, os selvagens, que, destarte, nao carecem de explicagio mais ampla — a natureza, como vimos, explica-se por si mesma. Se nao ha que explicar o estado de natureza, pode-se, em compensacio, avalid-lo: bom ou mau. No espaco deixado vazio pelo discurso cientifico vem insinuar-se 0 discurso moral ‘e politico: mas seu objeto real é a sociedade policiada, jamais a sociedade selva- gem. As teorias concernentes ao bom selyagem, que tanto deram 0 que falar, tém apenas uma funcdo critica: La Hontan, a quem, no entanto, poder-se-ia imputa-las com mais razao, nao se deixou enga- nar, como prova este didlogo pelo qual termina as Conversations: “_ La Hontan: Que terrivel homem és, Adario! Teu humor errtico te leva de um extremo a outro. Deves falar-me sobre a felici- (19) D'Holbach, Systéme social, 1773, p. 145 e 107. (20) Encyclopédie. Artigo “Felicidade”. 204

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