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CAPITULO 12 Vinculos e Configuracoes Grupais: O Vinculo do Reconhecimento © propésito deste capitulo é 0 de enaltecer o fato de que é fundamental que o grupoterapeuta reconhesa clara e discriminadamente a natureza dos vinculos das relagoes que unem — ou sepa- ram — as pessoas que cotidianamente estéo reunidas em casais, familia, grupos sociais, profissi- onais e, naturalmente, terapéuticos. Dependendo de como os diversos vinculos se combinam entre si, vai resultar uma possibilidade quase infinita de distintas configuragées vinculares, cada uma com caracteristicas proprias e singulares. CONCEITO DE VINCULO © termo vinculo tem sua origem no étimo latino vinculum, 0 qual significa uma unido, com as caracteristicas de uma ligadura, uma atadura de caracteristicas duradouras. Da mesma forma, vinculo provém da mesma raiz que 2 palavre “vinco" (com o mesmo significado que aparece, por exemplo, em “vinco” das calgas, ou de rugas, etc.), ou seja, ela alude a alguma forma de ligacdo etre as partes que estdo unidas e inseparadas, embora claramente delimitadas entre si, Trata-se, portanto, de um estado mental que pode ser expresso por meio de distintos modelos ¢ com varia dos vertices de abordagem, Como costuma acontecer na terminologia psicanalitica, também o termo “vinculo” nao tem uma significado semantica uniforme entre os diversos autores que se aprofundaram no seu estu- do, Alguns privileyiam o enfoque conceitual de “vinculo” a partir dos elos de liyacdo do individuo com seu mundo exterior real, enquanto outros conceituam-no como sendo uma designagio dos diferentes tipos de ligacdes entre os objetos, instncias psiquicas e fungoes do Ego que se proces- sam dentro do mundo interno do psiquismo do préprio individuo. Partindo da crenca de que a FUNDAMENTOS BASICOS DAS GRUPOTERAPIAS 125 realidade exterior é, em grande parte, inseparvel da realidade interna (embora, ¢ clare, nem sempre elas se superponham entre si), eu particularmente me incluo entre os que adotam o vértice de que 0 conceito de vinculo abrange os trés planos das inter-relagoes do individuo © intrapessoal (alude a como os objetos internalizados se relacionam entre si e, da mesma forma, como se vineulam mutuamente 0 consciente e o pré-consciente e incons- dente, 05 pensamentos e os sentimentos, a parte infantil e a adulta, etc.). +O plano interpessoal dos vinculos diz. respeito as diversas formas de como um indlviduo se relaciona com as demals pessoas de seus diversos grupos de convivéncia familiar, institucional e profissional. © — Adimensao transpessoal alude as distintas modalidades de como os individuos e grupos se vinculam com as normas, lels e valores dos demais macrogrupos, assim como 20s papéis e fungées que eles desempenham no contexto sécio-politica-cultural no qual ‘estao inseridos. Essa dimensdo transpessoal ¢ de natureza transcendental, porquanto se refere a vinculos e fantasias inconseientemente compartilhados por todos os individuos @, portanto, abrange os mitos, lendas, folclores, narrativas biblicas, etc, Uma tercelra conceituagao dessa transubjetividade alude a possibilidade — tal como aventou Freud (1916 — Conferénctas introdutdrias, vol. 16) — de que se trate de uma transmissio filogenética, com as respectivas marcas mnémicas de fantasias originérias de nossos antepassados. Essas fantasias do inconsclente coletivo arcaico, por sua vez, teriam tido ‘origem em experiéncies realmente sofridas, como, por exemplo, 0 caso da universal angistia de castracéo, e também explicariam os fenmenos psiquicos cancernentes as pré-concepsies inatas, como a da existéncia de um seio nutridor no recém-nascido, E Gil ressaltar que uma das caracieristicas Inerentes & conceituagéo de vinculo & que 0 mesmo esti sempre acompanhado de um estado emocional, portanto hd a inevitivel presenga de algum grau de fantasia inconsciente em cada tipo de vinculo em separado e das diferentes configu- ragées vinculares que s¢ formam, FANTASIA INCONSCIENTE ‘Nao custa lembrar que a primeira conceltuacao de fantasia inconsciente considerava-a como coro- lirio mental dos instintos biokbgicos. Atualmente, esta definigao continua sendo aceita como uma verdade, porém parcial, tendo em vista que a fantasia inconsciente também deriva de outros fato- Tes importantes, como os que decorvem da pulséo epistemofilica (como as respectivas teorias que a crianca cria para tentar preencher 0 vazio de sua ignorancia acerca do mistério do nascimento, eic.). Da mesma forma, as fantasias inconscientes também sao modeladas pelos significantes € significados que so veiculados pelo discurso dos pais, muitas vezes formulados sob a forma de imperativos categéricos ou de duplas mensagens paradoxais e confusionantes, que obrigam a crt: anca a um exagerado esforgo de imaginagao. Resumiamente, pode-se dizer que os vinculos sio elos de ligacéo intra, inter e transpesso ais, e que sempre esto acompanhados de emocées e fantasias inconscientes. TIPOS DE ICULOS Como sabemos, até Bion, a psicanilise girava em tomo de dois vinculos fundamentais: 0 do Amor € 0.do Odio, sendo que o enfoque do trabalho analitico priorizava o contflito resultante da oposicaa ambivalente entre estas duas pulsoes ¢ respectivas emosées. Bion postulou a cxisténcia do que cle 126 DAVID E. ZIMERMAN vyeio a denominar come “vinculo de conhecimento” e, a partir dai, houve uma mudanca na concep- a0 do eixo central do conflito psiquico que passou a ser nao tanto o amor versus ddio, mas muito mais como o individuo se vincula com as verdades que estao contidas nas relagdes amorosas agressivas, isto ¢, através de uma tomada de conhecimento ou de um desconhecimento. Destarte, partindo de uma conceltuagio de que “vinculo” é uma estrutura relacional-emo- cional entre duas ou mais pessoas, ou entre partes separadas de uma mesma pessoa, Bion estendeu este conceito a qualquer fungao ou drgao que, desde a condigao de bebs, esteja encarregado de vincular objetos, sentimentos ¢ idéias uns aos outros. Assim, nao custa recordar que Bion descre- veu os vinculos de Amor (designou pela letra “L’, de love, porém nos textos em portugues muitas vezes aparece como “A, de amor), Odio (*HY, de hate, ou “O°, em portugués) ¢ Conhecimento CK’, de knowledge. ou °C", de conhecimento, ou ainda pela letra *S*, de saber). Estes trés vinculos emocionais podem ser sinalizados tanto de forma positiva (+) como negativa (-), sendo que Bion deteve-se mais particularmente no vinculo -K, 0 qual designa um ataque aos vinculos pereeptivos, tal como serd explicitado mais adiante, De uma forma talvez pretensiosa em demasta, eu me permito propor a existéncia de um quarto vinculo, que me parece ser Igualmente importante, e que daqui em diante chamarel de “vineulo do reconhecimento”, E tui considerar, em separado, a cada um dos quatro vinculos acima aludidos. Vinculo do Amor (L) Até 1920 — época em que Freud, através de seu clissico Mais além do principio do prazer, postulou a existéncia do instinto de morte — ¢ trabalho psicanalitico estava praticamente reduzido a um eenfoque centralizado quase que exclusivamente nas pulsdes libidinais, mais precisamente nas di versas configuragées edipicas. A medida que os conhecimentos da teoria ¢ da pritica da psicandli- se foram evoluindo, tornou-se mais claro que: © As demandas por amor ndo sio unicamente de natureza libidinal-sexual (conforme priorizava a conceituagio original de Freud). © Em algum grau, as manifestacoes de amor provenientes do instinto de vide sio insepa- riveis do instinto de morte. As demandas por amor procedem ce uma fonte original muito anterior a da descarga pubional edipica; antes disso, elas se situam na relagao diddica com a mae, estéo pre- sentes em todos os vinculos humanos, mais notadamente nos pacientes regressives, © representam uma necessidade de preenchimento de vazios afetivos para garantit a sobrevivéncia psiquica. © As fantasias inconscientes que acompanham o vineulo do amor sao miiplas ese esten- dem desde a necessidade de reproduzir com os seus objetos amorosos uma ligagio simbolica indiferenciada (que muitas vezes adquire forma de uma paixao aguda e cega), passando pelas formas de avidez possessiva (As vezes até ao nivel de um engolfamento ddo outro) ou se manifestando pelas modalidades de uma demanda insactavel, um con- trole narcisista-obsessivo onipoteate, até poder atingir as mais dramiticas formas de “amor” caracterizadas por vinculos fortemente sadomasoquisticos. Portanto, nio basta mencionar a presenga do sentimento de amor em alguma relagio vincular; antes, é necessério diseriminar e compreender qual é o tipo de amor manifesto ou ocuito, com as respectivas fantasias, ansiedades e propésitos, que vio determinando distintas configuragées vinculares. Assim, trata-se de um amor ternura? erético? simbi- ‘rico? paixco? (e, neste caso, com a predominincia do seu lado belo e sadio, ou preva lece o lado burro ¢ cego que as paixdes podem adquirir?), ou prevalece um compankeirismo FUNDAMENTOS BASICOS DAS GRUPOTERAPIAS 127 ‘com miituo respeito consideragao, ou um amor que se configura como um sufocante controle obsessivo, ou, ainda, se trata daquele tipo de amor que tzo freqiientemente se estrutura de uma forma sadomasoquista? Quem sabe uma mistura de todas essas for- mas de amar e de ser amado? Em suma, tanto pode estar acontecendo um vinculo amoroso construtivo, como pode estar prevalecendo uma agressao escravizante e des- trutiva. Vinculo do Odio (H) © mesmo vale para o sentimento de agressividade, o qual tanto pode ser destrutivo como, tam- bim, estar a servigo da vida e da construtividade, A etimologia pode nos ajudar a compreender melhor essa tltima afirmativa, A palavra “agredir" & composta pelos étimos latinos “ad” (‘para a frente”) e “gradior™ (um movimento’). Fortanto, normalmente, agredir € um movimento sadio que nos mevimenta para a frente e nos protege contra os predadores externas. No caso de uma patologia de rerolucao psiquica, o agredir transformase em agressao destruttva, podendo atingit os graus miximos de violéncia ¢ crueldade, Como sabemos, M. Klein consirulu a sua importante obra psicanalitica a partir da concepgio. do instinto de morte, de Freud. Segundo ela, as inatas pulses agressive-destrutivas provocam no bebé uma forte angistia de aniguilamento, contra-arrestadas por primitives mecanismos defens!- vos do Exo inato, como a negagao, onipoténca, dissocingao, projesao, idealizagao, etc. A medida que aprofundava 0 seu trabalho de andlise com criancas, M. Klein foi comprovando a existéncia de intensas fantasias inconscientes de natureza sédica, a8 quais, posteriormente, em 1957, ela velo a considerar como sendo manifestacées decorventes de uma inveja primiria. Embora nao caiba aqui um aprofundamento nas diversas formas de como se manifestam as fantasias sadico-destrutivas, ¢ itil lembrar que M. Klein enfatizou aquelas que se referem & posse e controle nao s6 dos contetidos co interior do corpo materno (pénis, bebés, etc.), como também descreveu as fantasias inconscientes da crianga em devorar e ser devorada, em envenenar e ser envenenada, em relacao 20 seio, 20 penis ou a relacio sexual dos pais, te Principalmente a partir destas concepgées da escola Kleiniana, os pricanalistas passaram a dar uma categorica valorizacio ao vinculo do édio como sendo um integrante fundamental de toda e qualquer relagéo objetal, intra ou interpessoal. Deste modo, em nosso meio, a pritica psica: nalitica impunha enfatizar acima de tudo a agressao destrutiva, com as conseqientes culpas € intentos reparatérios. Em termos grupais e sociais, o vinculo do édio pode adquirir a dimenséo de uma violéncia, € pela extraoidinaria importancia que esse aspecto vem crescentemente assumindo no cotidiano de nostas vidas, cabe fazer uma expliitagéo mais detalhada. Mais uma vez vale a pena apelar para a etimologia. Assim, o étimo latino “vis” (que significa “forca") tanto dé origem aos vocdbulos “vigor” (de vis, vita) e “vitalidade”, como também origina otermo “violéncia". A transicao de um estado mental de “vigor” para um dle “violencia” é a mesma que se processa entre a antes mencionada passagem de uma agressividade sadia para uma agres sio destrutiva. Resulta evidente que a violéncia pode se manifestar em diversos graus, formas e situacées. Estritamente no plano intra-subjetivo, é importante consignar a violéncia que os objetos superegoicos cometem contra o self do individuo, impedindo-o de crescer e de se emancipar, amea: ando-o desde o interior do psiquismo ¢ tolhendo o direito a liberdade de o sujeito ser quem ele realmente ¢ e ndo como o Superego punitivo ou as expectativas exageradas de seu Ideal do Ego exijam que ele deva ser. Ao conjunto de objetos sédicos, enlouquecedores ow narcisista-parasitéri: 0s, que somados a pulsoes e ansiedades aniquiladoras habitam o interior do individuo e, qual uma “gangue” (Rosenfel, 1971), se constituem como uma “organizacéo patologica” (Steiner, 1981) 128 DAVID E. ZIMERMAN que, tendo como moradia o Ego, comete violéncias contra o proprio Ego, eu, particularmente, denomino como sendo o “contra-Fyo". Em relagio a violéncia manifesta nas relagées intersubjetivas, nao resta diivida de que a mais primitiva e deletéria é aquela que a mie e o meio ambiente cometem contra o bebé desampa- rado ¢ indefeso, nao entendendo nem atendendo as suas necessidades basicas, frustrando a crian- ga excessivamente e, ainda por cima, inundando-a com ansiedades, culpas e ameacas. ‘Nas relagoes interpessoais que caracterizam o funcionamento de determinadas familias, a violencia costuma se manifestar sob a forma da designagao de determinados papéis destrutivos, que sio impostos a um ou varios de seus membros, e que devem ser cumpridos estereotipadamen- te a0 longo da vida, como, por exemplo, os papéls de “bode expiatério", “pequeno poleyar’, etc, Além disso, € necessario lembrar a violencia que emerge do clissico “conflito de yeragoes", no qual, muitas vezes, uma contestagéo de um filho contra os valores dos pais pode vir a ser significa- da por estes como uma violénela agressiva contra eles dai gera-se um clima de reciproca e eres- cente violencia, quando, na verdade, aquela contestagao do filho podia estar representando uma agressividade sadia em busca de uma diferenciagdo, individuagae e auto-afirmacio, Em nivel de casal, por vezes a violéncla manifesta-se de forma acintosa, tal como transpare- ce nos vinculos de natureza abertamente sadomasoquista, ou pode estar presente sob formas dis- farcadas, como ¢ o caso de uma relagao simbictico-parasitaria travestida de amor; de um controle obsessive de um cdnjuge sobre o outro, que pode atingit 0 grau de escravidao, esvaziamento crueldade; de um deslumbramento narclsista de um deles, que promove a idealizacao excessiva e consequiente autodesvalin no outro ¢ assim por diante, Nio fora a natural limitagio de tempo e espaco para a apresentacio no presente trabalho, seria bastante dil enfocar a violéncia que estd presente sob inimeras modalidades como a de “gangues adolescentes” (nestes cases, a prdpria violéncia ¢ idealizada por seus pattici- antes, e constitui-se como um artogante fetiche de coragem, e essa é uma das razées que contrl- buem para a dificuldade de recuperacio). ‘Também seria interessante abordar as formas sutis de como a violéncia pode estar presente ‘as instituicdes em geral, tal como pode ser exemplificado com as instituigdes de ensino, desde os primeiros bancos escolares até as mais sofisticadas, como algum instituto de psicandlise, por exem- plo. Nestes casos, a violencia pode aparecer na forma catequisadora dos professores que acham ser justo e eficaz impor os seus valores e maneira de pensar acs seus alunos, sem se importarem com a possibilidade de estarem esterilizando a capacidade de autonomia ¢ criatividade destes, No entanto, é importante esclarecer qe a maior violencia nao parte tanto dos professores ou autoridades manifestamente tirdnicos, mas sim daqueles que, fazendo uso de uma brilhante capacidade narcisistica de sedugio e deslumbramento (e nio é por nada que essa ultima palavra vetn de “des”, que significa “privagéo”, e “lumbre", “Iuz"), ofuscam os alunos através da cegueira de uma idealizacdo excessiva. Ainda em relago & violéncia presente nas instituigdes, seria interes enfocar como o establishment tende a expulsar ou anular todo individuo que for portador de idéias novas e, portanto, ameagedoras. Da mesma forma, nio pode passar sem um registro a vio éncia que se instala entre os individuos e subgrupos das ciipulas dirigentes em razao dos conflitos inerentes 8 disputa pelo poder Particularmente, a violencia que aparece no campo do vincula psicanalitico, quer se trate de andlise individual ou grupal, mereceria, por si sé, longas consideracées, tal a sua importincia na pritica clinica. A violéncia do campo psicanalitico a que estou aludindo nao se refere & pessoa do paciente, afinal, este esti rigorosamente em seu papel; antes, estou me referindo a violencia que pode vir a ser praticada pelo psicanalista, e isso pode ocorrer de duas maneiras: a violéncis da {nterpretagéo e a formacdo de conluios inconscientes entre a dupla analista-analisando. ‘Tomo emprestado de P. Aulagnier (1979) a expresso “violéncia da interpretagio” para ca acterizar aquelas situacoes nas quais as “interpretacoes do psicoterapeuta podem, na verdade,

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