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RESGATE Veet Shean INTERDISCIPLINAR DE CULTURA DO CENTRO DE MEMORIA UNICAMP EB R APRESENTAGAO 07 ARTIGOS & ENSAIOS Iconografia e Historia Ciro Flamarion S. Cardoso A Idéia de Brasil Moderno Octavio lanni Da Necessidade do Diabo (Imaginario Social e Cotidiano no Brasil do Século XVIII) José Roberto do Amaral Lapa Os Homens e suas Pontes (Comentario sobre a Histéria da Técnica) Paulo Miceli De Herddoto ao Gravador: historias da historia oral Diana Gongalves Vidal COMUNICAGOES 19 57 09 83 As obras do quartel de voluntarios de So Paulo, em 1791 Carlos Lemos Cinco cartas de amor de um sodomita do século XVII Luiz Mott DEBATES 83 91 100 Inconfidéncia Mineira Laura de Mello e Souza/Caio Cesar Boschi Abolig&o Clévis Moura/Maria Helena P. T. Machado Republica Maria Yedda L. Linhares/Décio Saes José Enio Casalecchi/Edgard Carone/Jacob Gorender NOTICIARIO 101 107 111 119 ART 1 Gos & ENSAIOS ICONOGRAFIA E HISTORIA Ciro Flamarion S. Cardoso (Universidade Federal Fluminense) 1. Introdugaio A iconografia penetrou nas obras de Histéria primeiro na forma de ilustrages — as vezes abundantes, pertinentes, bem escolhidas e dotadas de legendas adequa- das. Nao 6 este, porém, 0 uso que aqui me interessa: quero abordar, por um lado, © emprego sistemético da iconografia como fonte para a Historia; por outro lado, a trans- formacao da iconografia em objeto de Historia. ‘Se se acompanhar a presenga, nas lltimas décadas, da preocupagéo com as fontes iconogréficas e seu manejo em Histd- ria nos manuais franceses — que escolho por estar mais tamiliarizado com a historio- grafia que refletem normativamente (sempre posteriori, ¢ claro) — algumas constata- des serdo possivei © ambicioso volume compilado por Charles Samaran, publicado em 1961, dedica ao assunto dois capitulos curtos, Georges Sadoul, “Photographie et cinématographe' ques et cinématographiques”, in Charles Samaran (or um relativo a fotografia e ao cinema visto ‘como testemunhos, outro acerca do uso de tais testemunhos pelo historiador. As indicagdes de métodos so muito genéricas, @ ajudariam pouco quem quisesse apoiar- se nelas para interrogar os tipos de fontes ali mencionados '. Em 1969, ao se ocupar do comentério de textos e documentos his- t6ricos, André Nouschi incluiu uma pequena seco que trata das plantas e dos mapas antigos, isto porque, depois de décadas de uso de tais documentos por historiado- res franceses — em parte devido a longo e frutifero contacto com a Geografia Humana — jd era pratica freqiente na Franga a inclu- so deles em certos concursos de Historia’. Alguns anos depois, em 1974, numa obra ‘em trés tomos que é uma espécie de mani- festo do que se costuma chamar de Nova Historia, foi reproduzido o artigo sobre o cinema como fonte que Marc Ferro publi- cara um ano antes no Annales. O texto é provido de indicagdes de método bem mais especificas e relevantes do que as contidas nos capitulos de Georges Sadoul que cons- Georges Sadoul, “Témoignages photographi- ), L'istoire et ses méthodes. Encyclopédie de la Pigiade, Paris, Gallimard, 1961, pp. 771-782, 1990-1410. 2. André Nouschi, Le commentaire de textes et de documents historiques, Paris, Fernand Nathan, 1969, p.36-47, 09 10 ARTIGOS tam do livro organizado por Samaran °. Embora mais inclusivo, o verbete imagem, também redigido por Ferro, que aparece ‘em outro manifesto da mesma tendéncia, uma enciclopédia publicada em 1978 con- cede maior espaco a fotografia e ao cinema — fontes iconograficas j4 privilegiadas no manual de 1961‘. Um capitulo da obra de & metodologia da Historia de autoria de André Corvisier esta dedicado aos documentos iconograficos e auditivos. No caso dos ico- nograficos, mencionam-se de um lado plantas, fotografias, pinturas e gravuras “em que o autor se apaga atrés de seu tema’; de outro lado, “obras originais em que 0 autor deu uma interpretacao pessoal da realidade”’. Classificag&o das mais pro- blematicas! Os elementos de método que se seguem sao, aliés, bem pobres, desem- bocando no conselho de usar as fontes iconograficas com circunspecgao e critica- mente — sendo a critica em questéo adaptada das regras gerais da critica histo- rica externa e interna. Por fim, no curto manual de Thuillier e Tulard, que é de 1986, entre as fontes de novo tipo utilizaveis em Histéria mencionam-se a arte (mais particu- larmente a pintura), os cartées postais © 0 ENSAIOS cinema, sem maiores detalhes e mais adiante @ paisagem, abordada por exemplo através da fotografia aérea. Também neste caso, invocam-se reservas e prudéncia no uso das fontes iconograficas*. A impresso que fica dessas leituras 6, sobretudo, a da auséncia de um trata- mento sistematico do tema. Este aparece fragmentado, sempre incompleto e, na maio- ria dos casos, 6 objeto de conselhos metodolégicos vagos e pouco tteis na pré- tica — quando ndo transparece uma forte prevencao de alguns dos autores a respeito das fontes iconograficas,levando-os a acon- selhar um uso limitado e critico delas! Pode ser notada, também, a auséncia de certos Angulos de analise possiveis, em especial a perspectiva semidtica. ‘Sem poder preencher tantas lacunas num pequeno artigo, minha ambigao se limita a oferecer um quadro sistematizado das possibilidades metodolégicas disponi- veis hoje para o tratamento histérico da iconografia,seja como fonte que ilumina outros aspectos do social, seja como objeto especifico de pesquisa histéric 2. A iconografia como fonte 2.1 Utilizagao qualitativa Ocupar-me-ei agora da _modalidade de uso das fontes iconogréficas que nao implica seu enfoque quantitativo, no estabe- lecimento de séries. Em outras palavras, daqueles estudos em que cada unidade ico- nografica (quadro, gravura, mapa, estatua etc) vale por si, como uma entidade distinta e especifica — mesmo quando, por proces- sos de comparacao e generalizagao, for possivel trabalhar um grande numero des- sas unidades e chegar a conclusdes amplas. ART!IGOS & ENSAIOS Em setores de pesquisa como a Histé- citam, 0s proprios camponeses daquela ria Antiga, devido relativa raridade das época em sua realidade intrinseca, ou — fontes escritas, j4 tem longa tradigao 0 0 que é muito mais provavel — a visdo que recurso & iconografia como documento, a classe dominante que explorava e gover- embora, no passado (mesmo recente), tal nava tinha deles e decidiu perpetuar na recurso se caracterizasse muitas vezes por pedra? No fundo, alids, as afirmagdes de ™métodos simplistas e inadequados. Escolhi Wilson derivam sobretudo de seus precon- um exemplo da Egiptologia. John Wilson, ceitos acerca do camponés moderno. tratando dos camponeses do III° mi a.C., depois de dizer, com raz8o, que “o Multo mais adequado 6 0 manejo dos Pouco que sabemos das pessoas comuns” mosaicos imperiais romanos por M. Ros- do antigo Egito “‘corresponde a periodos tovtzetf. Conhecedor, em grande detalhe, Posteriores””, passa ao que ele mesmo dessa iconografia maciga em suas temati- chama de “‘uma analogia bem forcada”: 2 cag, composicées e ordenamentos — supasio&o de que Ta camponés do século muytaveis no tempo — o autor, sem chegar JONI 2.C. vivia om forma bastante Some 4 yma anélise seriada, a utiliza com siste- marie come vila 0 csinpones idade e inteligéncia, em grande XIX d.C.”, Ele acha que se com tal idéia romero, para iluminar aspectos diversos fem mente observarmos 0s relevos das tum- J2"2Cornomia do Imperio Romano dos pri bas egipcias do III° milénio a.C.. FuNGs bouillon de teceoane . veremos 0 camponés jipcio como sends pouco exigente, improvidente, rita. Note-se que a constatacso da ausén- digo mas incapaz de guardar rancor, de Cla de técnicas seriadas ou quantitativas coragdo levee amante da alegria, capaz 40 comporta for¢osamente, de minha parte, de trabalhar muito intensamente mas inca- pel lzo on een scuarunecan tes rn =— Tongamente sustentado’.” tment possivel empreender andlises Eis ai dedugdes copiosas tiradas dos _coerentes e interessantes com uma metodo- relevos — por certo abundantes — das logia mais tradicional. Além de Rostovizetf, mastabas menfitas que representam cenas um bom exemplo disto é 0 estudo de Carl da vida quotidian! Faltou, porém, a mais Schorske sobre a cultura de Viena nos ttti- elementar aplicagéo da ‘critica ‘interna. mos anos do século XIX e primeiros anos Teremos nds, nos relevos funerarios e nos do século atual — estudo em que a icono- textos breves que os acompanham e expli- grafia ocupa um lugar privilegiado’. Marc Ferro, Le fim, une contre-analyse de la sociét6?”. in Jacques Le Gott © Pierre Nora (org.), Faire 4e Ihistor. II, Nouveaux objets, Paris, Gallimard, 1974, pp. 236-255. Marc Ferro, L'image”, in Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel (org), La nouvelle histoire. Les Encyclopédies du Savoir Moderne, Paris, FetzC.E.P.L., 1978, 246-248, ‘André Corvisier, Sources et méthodes en histoire sociale, Paris, S.E.D.E-S., 1980, pp. 217.233. Guy Thuilier © Jean Tulard, La méthode en histoire. Que sais-e? n? 2323, Paris, Presses Universita- res de France, 1986, pp. 5354, 85-86. John A. Wilson, The culture of ancient Egypt. Chicago, The University of Chicago Press, 1951, pp. 73-74. M. Rlostovtzeft, Historia social y econémica del Imperio Romano, 2 vols. Trad. de Luis Lépez-Balleste- ros. Madri, Espasa-Calpe, 1973 (3* ed). ‘Cari E. Schorske, Viena fin-de-siécle. Poltica @ cultura, trad. de Denise Bottmann, S8o PauloiGampl rnas, Companhia das Letras/Editora da UNICAMP, 1988. 11 12 ARTIGOS 2.2 Utilizagdo quantitativa Neste caso, cada unidade — quadro, relevo, escultura etc — passa a ser unica- mente um elemento no interior de uma série elaborada a partir de um corpus mais ou menos vasto. E pois a série, ndo cada ele- mento iconografico individual, que se constitui no foco da andlise. Um livro pioneiro foi, nesta ordem de idéias, o que Gaby e Michel Vovelle consa- graram aos altares das almas do purgatério fla Provenga, sobretudo entre os séculos XV e XIX. O casal procedeu a uma sonda- gem tematica em cinco unidades adminis- trativas (departamentos) daquela provincia francesa. As folhas de levantamento e coleta de dados, em que as categorias ocu- pam as colunas e os casos as linhas, especificam os lugares que foram objeto de prospeccao, a natureza dos documentos (tumba, vitral, quadro, altar etc) @ um total de 11 elementos teméticos julgados perti- nentes, além de dados de identificagao (autores, datas, referéncias). O preenchi- mento dessas folhas abriu caminho & elaboragaéo de uma tabela de distribuic&o cronolégica dos elementos de composicao da iconografia analisada, a qual permitiu fazer constatagdes que os autores tratam de explicar. A iconografia do purgatério competiu, do fim da Idade Média até o século XVII, com a do inferno e a do julgamento final dos mortos. Depois, no século XVII, difun- diu-se a devocdo as almas do purgatério, respondendo a idéia moderna de um julga- mento individual. O século XVIII foi um divisor de aguas, levando a um divércio social e cultural entre a devocao popular e a polémica erudita ". A estatistica ocupa um lugar efetiva- mente reduzido no livro de Gaby e Michel Vovelle. © mesmo se pode dizer do artigo ‘consagrado em 1973 por Maurice Agulhon & ENSAIOS as representacées alegéricas da Republica na Franga do século passado ". Nesses mesmos anos, entretanto, 0 aperfeicoa- mento dos computadores e sua crescente utilizag&o por historiadores ja estavam assentando novas possibilidades, através do estabelecimento intormético de ficharios de imagens, que podiam ser objeto de uma andlise quantitativa mais sofisticada, apli- cada a séries macigas . Esta tendéncia metodolégica, bem como as tematicas que a utilizam, vémn-se confirmando e ampliando desde entao. Ainda assim, impde-se a cons- tatagéo de que a quantificagdo avangou, neste campo, muito menos do que, por ‘exemplo, em Histéria Demografica, Econd- mica ou das estruturas sociais — ou mesmo do que nos estudos histéricos de corte semantico a partir de corpus de textos escritos. 2.3 Cinema e Historia © artigo metodolégico jé citado de Mare Ferro — vinculado a pesquisas con- cretas do mesmo autor — merece menc&o. & parte. Nos exemplos citados até aqui, ‘como em numerosas outras obras, as fon- tes iconograficas foram interrogadas com 0 fito de serem investigadas coisas distin- tas delas mesmas: ideologias, mentalidades, © imaginario etc. O texto de Ferro fica a meio caminho entre tal tendéncia e 0 que seria a transformagdo da iconografia em objeto para a Histéria: “Partir da imagem, das imagens. No pro- curar somente, nelas, ilustracdes, confir- maces ou desmentidos de um outro saber, © da tradic&o escrita. Considerar as ima- gens tais quais so, mesmo se for preciso apelar para outros saberes para melhor abordé-las ".” © autor esperava, com efeito, enten- der tanto a realidade figurada quanto a propria obra“. No entanto, predomina no seu texto a preocupacao com 0 uso da fonte ARTI1GOsS cinematografica para revelar, decodificando 08 filtros ideolégicos, um conteudo /atente, uma realidade social externa de que o filme seria uma imagem *. Ferro se distancia, metodologicamente, das vises semidticas do cinema. O filme 6 por ele observado como “um produto, uma imagem-objeto, cujas significacées no s&0 s6 cinematograficas”: trata-se, ‘em suma, de um testamento ", O trabalho do historiador nem sempre se apdia na tota- lidade das obras: pode usar sequéncias ou imagens destacadas, compor séries & conjuntos. E deve integrar o filme ao mundo social, ao contexto em que surge — o que implica a pertinéncia do confronto da obra cinematografica com elementos ndo-cine- matogréficos: 0 autor, a produgdo, o publico, regime politico e suas formas de censura. 3. A iconografia como objeto 3.1 Historia da Arte, Sociologia da Arte A Historia da Arte foi, e nas suas ten- déncias dominantes ainda 6, disciplina metodologicamente reacionaria, marcada por uma forte carga de empirismo e positi- vismo, pelo desejo de fechar a arte sobre si mesma, muitas vezes por concepgdes organicistas de nascimento, expansao, apo- geu e decadéncia. 10. Gaby Vovelle e Michel Vovelle, Vision de la mort et de & ENS AtIOS Desde fins do século passado, no entanto, a escola austriaca, a partir de Alois Riegl e Franz Wickhoff, reagiu contra alguns destes tragos, em especial a nogao de deca- déncia artistica, A polémica entabulou-se propésito do Baixo Império romano: a arte da Antigiidade tardia, habitualmente considerada uma degenerescéncia da arte greco-romana, foi resgatada como possuindo uma sensibilidade estilistica viva e inova- dora, nascida de valores novos e servindo de ponto de partida para novos desenvolvi- mentos ’. Mas Riegl acreditava numa liberdade, numa indeterminagao da arte, expressando-a na noco de vontade ou intencionalidade artistica_(Kunstwollen), wu-dela en Provence d’aprés les autels des mes du purgaloire XVe-XXe siécle. Cahiers des Annales n° 29, Paris, Armand Colin, 1970. 11. Maurice Aguihon, “Esquisse pour une archéok les. Economies, sociétés, civilisations. XXVII, de la République. Lallégorie civique féminine". Anna- 1973, pp. 5-34. 12. Uma obra fundadora foi, neste caso: Victor-Louis Tapié et ali, Retables baroques de Bretagne, Paris, Presses Universitaires de France, 1972 18. Mare Ferro, capitulo citado na nota n? 3 supra, p. 240. 14. Ibid, p. 241 18. Ibid, p. 246. 16. Ibid, p. 241 17. Ver, a respeito Santo Mazzarino, La fin du monde antique. Avatars d'un theme historiographique, Trad. de André Charpentier, Paris, Gallimard, 1973, pp. 189-193. 13 14 ART!IGOsS & opondo-se a qualquer interpretacéo que buscasse ver nas obras de arte um reflexo de realidades de outros tipos (sociais, eco- némicas, ideolégicas etc). No nosso século surgiu, porém, uma interessante Sociologia da Arte, que de diversos modos tentou correlacionar as artes. plasticas (entre outras) com seu contexto Social. As respostas sobre como estabele- cer tal correlacdo variaram. Alguns viram @ imaginago artistica enraizada na vida social, mas de forma a surgir como uma extrapolacdo que, para além das experién- cias reais, formulasse antecipadamente experiéncias novas,como numa aposta sobre aspectos futuros da existéncia ". Outras muitas solugdes foram propostas ®. Parece-me, no entanto, que os debates a respeito ndo desembocaram numa (ou em mais de uma) metodologia claramente indi- cada. Tomarei como exemplo as formula- g0es de Pierre Francastel. Ao indicar métodos Para uma Sociologia da Arte, ele destacou ‘seis pontos: 1) “‘Sociologia dos grupos e tipo- logia das civilizagdes", ou andlise das relagdes mantidas pela arte com os “gru- os criadores e utilizadores das obras de arte"; 2)"Sociologia das obras”, ou “dos objets artisticos de civilizagao” vistos como totalidades complexas; 3) “Sociologia dos objetos figurativos e dos meios de expresséo”: resultante de tomar as obras ‘no mais em sua totalidade, mas em seus elementos constitutivos e formas de expres- 8&0 (incluindo o suporte fisico e tecnolégico, mas também que Lucien Febvre chamou de “‘utensilagem mental"); 4) ‘Sociologia dos modos de apresentacao”: a arte consi- derada como uma das modalidades em que se exerce, num meio social dado, a dialé- tica do real © do imaginario (estudo da presenga da arte na vida quotidiana, em museus, em liturgias e festas etc); 5)"'Socio- logia artistica comparada”: tratar-se-ia do confronto da arte com outros sistemas ENSAIOS expressivos de uma época determinada, partir da problematica dos simbolos e dos sinais (ou seja, do que outros chamariai de problematica semistica); 6) ‘Sociologia da arte na sociedade industrializada”: j& que 0 desenvolvimento da Sociologia da ‘Arte passaria necessariamente, segundo Francastel, por um conhecimento adequado da experiéncia artistica do presente. E pre- ciso notar ainda que, em plena época do debate estruturalista, 0 autor recusava ener- gicamente uma base lingiistica, matematica ou légica para a disciplina”. As indicagdes_metodolégicas acima 'sAo, na verdade, além de amplas demais, muito vagas. Carecem de um carater nor- mativo e operacional claro, que permita alguém apoiar-se nelas para empreender Pesquisas concretas: seria, de fato, ainda Preciso construir uma metodologia para abordar cada uma das diregdes ou proble- méticas que aponta Francastel. O mesmo, alias, se pode dizer do mar- xismo no tocante & relacdo entre arte & vida social. Indicagdes teorizantes abundam em G. Plekhanov, G. Lukécs, E. Fischer, W. Benjamin — entre muitos outros”. Mas se uma metodologia ndo pode existir sem fundamento tedrico,também 6 verdade que este ultimo nao garante per seo surgimento de métodos aplicaveis que possam orientar Pesquisas. A tentativa mais ambiciosa de fundar no marxismo — em verso derivada de Althusser — uma metodologia para His- toria da Arte, a de Nicos Hadjinicolaou faz criticas pertinentes a disciplina tal como existia ent&o, mas decepciona terrivelmente ao formular propostas concretas e especifi- cas de método”. Hoje em dia, setores da Historia da Arte procuram dinamizar-se, metodologice- mente, através da perspectiva semidtica — de que trataremos adiante — e de uma aproximagdo com a teoria do inconsciente. Desde as préprias tentativas de Freud neste ARTIGOsS & sentido, h4 uma ambigdidade persistente quanto a este ultimo ponto: busca-se expli- car psicanaliticamente a génese da obra de arte, ou sentido (¢ 0 efeito) das préprias obras? * Outro problema, que aliés 6 0 de toda Histéria de base psicolégica até agora, consiste no carater indireto da explicacdo @ da comprovacao psico-histérica™. 3.2 A iconologia de Erwin Panofskyi (1892-1968) No Ambito da Historia da Arte, o espe- cialista mais influente foi talvez, em nosso século, Erwin Panofsky, que concebeu o Projeto de uma disciplina — a iconologia — cuja finalidade seria atingir 0 sentido objetivo imanente das obras de arte. Sob forte influéncia da filosofia d formas simbdlicas de Ernst Cassirer, sua teoria parte da definig&o do espaco pictd- rico, n&o como forma a priorida percepcao, nem como convengao arbitréria, mas sim, como espaco de representacao articulado de modo especifico, o qual expressa na sua totalidade as formas simbélicas de uma sociedade. Partindo da critica do formalismo, do ENSAIOS obra para atingir as estruturas ocultas do sentido, percebendo, assim, as ligagSes pro- fundas da arte com a cultura e com a ideologia sociais. Este projeto ambicioso foi muito limitado por duas circunstancias. Em primeiro lugar, pela crenga em que a verificagao da interpretagdo que se propu- sesse das artes plasticas deveria passar necessariamente pelo seu confronto com 08 textos de época, o que no fim das con- tas prejudicava o projeto de uma iconologia como disciplina voltada para as estruturas especificas das imagens (como uma teoria do significante icénico). Em segundo lugar, porque os trabalhos de Panofsky ativeram- se a uma imnica tradicao artistica — a do Ocidente cristéo — 0 que impediu um apro- fundamento e uma universalizagéo dos seus métodos de leitura e interpretagao. Seus discipulos no resolveram tais proble- mas, antes os agravaram. E preciso reconhecer, mesmo assim, 0 aspectos positivos desta tentativa de tra- tamento coerente e teorizado dos objetos produzidos pelas artes visuais*. 3.3 A perspectiva semistica aplicada a ico- nografia Nao 6 nosso objetivo, aqui, desenvol- psicologismo e do empirismo antiteorizante, ver por si mesmo o tema da Semidtica vista a iconologia de Panofsky tem a pretenséo como disciplina e suas relagdes gerais com de ultrapassar a superficie fenoménica da a Historia. 18. Cr. Joan Duvignaud, Sociologie de I'art Paris, Presses Universitaires de France, 1967, pp. 135-138. 19. Ver, por exemplo: Gilberto Velho (org.), Sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar, 1966; Gilberto Velho (0rg.), Sociologia da arte, I!Rio de Janeiro, Zahar, 1967. 20. Pierre Francastel, “Problemas da sociologia da arte”,in Gilberto Velho (org.), Sociologia da arte, I, ‘em especial pp.35-41. 21. Cr. por exemplo: George Plekhanov, A arte e a vida social, Trad. (do espanhol) por Eduardo Sucupira Filho, S80 Paulo, Brasiliense, 1964; Ernst Fischer, A necessidade da arte. Uma interpretacao marxista, Trad. de Leandro Konder, Rio de Janeiro, Zahar, 1966. Nicos Hadjinicolaou, Historia del arte y lucha de clases, Trad. de A. Garzén, México, Siglo XXI, 1974. \Ver Henri Zerner, “L’art’, in J. Le Gott @ P. Nora (org.), Faire de I'histoire. Il. Nouvelles approches, ci, pp. 183-202. Saul Friedlander, Histoire et psychanalise. Essai sur les possibiltés ot les limites de la psychohistoire, Paris, Seuil, 1975, p.209. Ver: Erwin Panofsky, Essais a’iconologie. Paris, Gallimard, 1967; Erwin Panotsky, L'oeuvre a'art et ses significations, Paris, Gallimard, 1969, Ciro Flamarion Cardoso, Ensaios racionalistas, Rio de Janeiro, Campus, 1988, pp. 61-92. BR F BS 15 16 ARTIGOS ‘A ampliagéo da perspectiva semidtica aiconografia e, mais globalmente, ao mundo das formas, desenvolveu-se sobretudo devido ao fato de permitir uma conceptuali- zag&o mais precisa dos objetos analisados, mediante a percepgdo, neles, de unidades significativas (sememas), nas quais se apoia a anélise”” & Uma primeira modalidade de aplicacéo baseou-se na Semitica derivada de Ferdi- nand de Saussure, conhecida como Semiologia. Exemplos desta tendéncia so 08 trabalhos de Roland Barthes (seus estu- dos da moda, da retérica da imagem e da mensagem fotogréfica) * e de semiotistas soviéticos, na area das artes plasticas do cinema®. A Semistica saussureana, ao ser esten- dida a objetos ndo-lingUisticos, apresenta, porém, um sério problema de fundo, que 6 bem percebido por T. Todorov: “De certo modo, a Semistica esté esma- gada pela Linguistica. (...) ... parte-se da Tinguagem para estudar 0s outros sistemas de signos, mas correndo 0 risco de impor © modelo lingiiistico a fendmenos diferen- tes, reduzindo assim a atividade semistica ENSAIOS a. um ato de denominago (ou de redenomi- nacao). Toda Semiologia construida a partir da lin- guagem (e por enquanto é a Unica que ‘conhecemos) deve renunciar ao estudo do problema central de todo sistema semidtico, que 6 0 da significacdo. Ocupar-se-a tao somente com a significaco linguistica, pela qual substituird sub-repticiamente seu ver- dadeiro objeto. Os obstaculos com que tropega a Semiética nao existem no nivel do objeto (que existe sem divida), mas no nivel do seu discurso, que vicia com o ver- bal os resultados de suas indagaces™."" No interior desta mesma tradig&o deri- vada de Saussure houve, sem divida, tentativas bastante sérias — por exemplo no dominio dos estudos semidticos da’arqui- tetura e do cinema — no sentido de uma modelizag&o semistica ndo-lingdistica das imagens no espaco” projeto de construir uma semistica especifica dos objetos icdnicos tem-se baseado mais, entretanto, numa outra ver- tente fundadora da disciplina: a que parte de Charles Peirce *. Com efeito, ¢ mais adequada a tal objetivo, e pode-se conside- rar que jé existem fundamentos concretos que apéiem uma abordagem semiética peir- ceana daqueles objetos ®. Sua aplicago em Historia desenvolveu-se muito pouco, porém, até agora. Uma questo interessante é a que se liga & transcodificagao, ou seja, ao trans- porte de dado objeto de um cddigo a outro. Um artigo recente mostra bem como uma obra literaria — no caso, O nome da rosa, de Umberto Eco — ao ser transposta para linguagem cinematografica, sofre obrigato- riamente modificagdes que, pelo menos em parte, dependem da légica dessa lin- guagem™. ARTIGOS & 4. Conclusao O historiador interessado em trabalhar com fontes iconograficas — seja que as encare como testemunhos de outros aspec- tos do social, seja como objeto especifico de estudos histéricos — pode contar, hoje, com uma gama bastante variada de enfo- ques e métodos disponiveis. A escolha entre eles dependera, como 6 natural, do tema @ pesquisar, das hipéteses de trabalho for- muladas e da natureza e caracteristicas do corpus de documentos iconogrdficos que se escolheu. Como também se notou em outros casos — 0 da Histéria Oral é um bom exem- plo® — a critica dos testemunhos néo- escritos nao difere, na sua esséncia, da cri- tica historica tradicional. E dbvio que as fontes iconograficas devem ser confronta- das com 0 resto da documentaco de todos 0s tipos a que se puder ter acesso, mas esta também é uma regra geral, aplicével @ quaisquer fontes. 27. Ver: Umberto Eco, in “Para uma andlise semantica ENSAIOS Uma observacéo que deve ser feita quanto ao uso da iconogratia como fonte Por historiadores 6 que tal uso tem estado quase sempre vinculado a estudos das men- talidades, das ideologias, do imagindrio. Isto,todavia, nada tem de necessario. Fei- tas as oriticas externa e interna dos documentos iconogréficos, é perfeitamente Possivel e util (como vimos com 0 exemplo de Rostovizeff) empregar fontes assim tam- bém em anélises econémico-sociais de tipo histérico. Cabe formular 0 desejo de que, no Bra- Sil, 0 interesse indubitavel que, nestes ultimos anos, se tem manifestado pela iconografia ‘como documentagao histérica e parte inte- grante da meméria nacional, leve & multi- plicagéo de estudos aplicados a fontes iconograficas e estimule, neste setor de Pesquisas, o desenvolvimento metodolégico — bem como a descoberta, protecdo e res- tauracéo de acervos iconograficos ameacados de deteriorizacao ou destruigéo. dos signos arquiteténicos”. As formas do conteudo, 135-154, Trad. de Pérola de Carvalho, Sé0 Paulo, Perpectiva/Edusp, Roland Barthes, Systéme de la mode, Paris, Souil, 1967; Roland Barthes, “E! mensaje fotogratico”’ & “"Retérica de la imagen”, ambos 08 artigos in Eliseo Verén (org.), La semioiogia. Trad. de Silvia Delpy. Buenos Aires, Tiempo Contemporaneo, 1976 (4* od.), pp.115-140, 29. Por exemplo: B.A. Ouspenski, “Sobre a semidtica da arte”, Trad. de Luzia Peltier. Tempo Brasileiro, 1? 29, abri-junho de 1972, pp.8488; Boris Schnaiderman (org.), Semidtica russ, Trad. de A. F. Bernar- ini, B. Schnaiderman @ L. Sek. S8o Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 163-218, 255-260; Y. M. Lotman B. A. Ouspenski (org), Travaux sur les systémes de signes, Trad. de Anne Zoukott, Bruxelas, Editions. Complexe, 1976, sobrétudo pp. 158-160. Tzvetan Todorov e Oswald Ducrot, Diccionario enciclopédico de las ciancias del lenguaje, Trad. €. Pez- zoni, Buenos Aires, Siglo XXI Argentina, 1976 (3* ed), pp. 210211. Cr. Emilio Garroni, Projecto de Semidtica, Trad. de A. J. Pinto Ribeiro. Lisboa, EdigBes 70, 1980. Charles Sanders Peirce, Semidtica e flosofia. Trad. de O. S. da Mota @ L. Hegenberg, Sto Paulo, Cul trixEDUSP, 1975, Consuitar, por exemplo: Max Bense ¢ Elisabeth Walther (org.), La semisica, Guia allabética. Trad. Laura Pla, Barcelona, Anagrama, 1975. John Updike, “Filmar a la rosa”, Trad. de Arturo Gémez-Lamadrid, Nexos (México), XI, 126, junho de 41988, pp. 16-17. Ct. Jan Vansina, Oral tradition study in historical methodology, Harmondsworth, Penguin, 1973; Paul Thompson, The voice of the past Oral histor, Londres, Oxford University Press, 1978. gee ees 17

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