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Carlos Guilherme Mota Adriana Lopez HISTORIA DO BRASIL Uma interpretagao Prefacio de Alberto da Costa e Silva editoralll34 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sao Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., 2015 Historia do Brasil: uma interpretagao © Carlos Guilherme Mota ¢ Adriana Lopez, 2015 A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E ILEGAL E CONFIGURA UMA, APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. Edigo conforme 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa. Capa: Bracher & Malta Produgao Gréfica / Julia Mota Projeto grafico e editoracao eletronica: Bracher & Malta Produgao Grdfica Revisio: Litiz Guasco, Cristina Marques, José Teixeira, Ivone Pires Barbosa Groenitz, Ana Beatriz Viana Souto Maior, Felipe Sabino, Maristela Nobrega, Marta Lticia Tasso io Paulo), CIP - Brasil. Catalogagio-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Mota, Carlos Guilherme MB71h Histéria do Brasil: uma interpretagio Carlos Guilherme Mota e Adriana Lope; pre de Alberto da Costa e Silva — 2016 (5* Edigio). 1.136 p, ISBN 978-85-7326-592-7 1, Brasil - Historia. 1. Lopez, Adriana, I, Silva, Alberto da Costa e. IIL Titulo, CdD - 981 Ny PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 14 A sociedade colonial: afirmagao e ocaso “Via-se a Liberdade Americana Que arrastando enormissimas cadeias Suspira, ¢ os olhos ¢ a inclinada testa Nem levanta, de humilde e de medrosa, Tem diante riquissimo tributo, Brilhante pedraria, ¢ prata, e ouro, Funesto prego por que compra os ferros.” Basilio da Gama, 1766! A sociedade colonial, como fez notar o historiador portugués Vitorino Magalhiies Godinho, é a “sociedade do Antigo Regime, que na esfera politi- ca corresponde 4 monarquia absoluta, nasce com as viagens de descobrimen- to e fixagao além-mar e entra em convulsao, para em boa parte morrer, no final do século XVIII ¢ nas revolugées liberais do primeiro terco do XIX”2 Se, para a metrépole portuguesa, a definigdo do historiador é perfeita- mente valida, no mundo colonial portugués ela deve ser matizada, pois 0 quadro social sofreu, desde o inicio, algumas alteragdes profundas, com a presenga (¢ muitas vezes com a resisténcia) dos nativos e, pouco depois, com a migragao forgada, em massa, de escravos negros africanos — contingen- tes sociais de variadissima ordem étnica cultural e mental, nem sempre dé- ceis e “enquadraveis” nas molduras do antigo sistema colonial, como se sabe. E vale notar que até os dias atuais persistem muitos tragos de estruturas ' Basilio da Gama, O Uraguai, Canto V. Disponivel em: www.biblio.com.br/con- teudo/basiliodagama/uraguai.html. Acesso em: 18/2/2008. O autor nasceu em Tiraden- tes, MG, em 1741, e morreu em Lisboa, em 1795 > Cf. o subcapitulo “Estratificagao social e discriminagdes”, em Vitorino Magalhaes Godinho, Estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, Atcidia, 1975, 2° ed. cor- rigida e ampliada, pp. 71 A sociedade colonial: afirmagio ¢ ocaso 2 PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.696/2003 Va stitucionais e mentais plasmadas naquele periodo his- econémico-sociais, i torico, resistindo as tentativas de reforma e revolucdo ocorridas nos séculos XIX e XX. Pois bem, j4 nos primérdios da colonizagao, Martim Afonso de Sousa pusera tudo “em boa ordem de justica”, ao fundar a vila de Sao Vicente em 1532. Dessa forma, instaurou o primeiro governo municipal no longinquo Atlantico Sul. Na condigao de comandante militar, tinha autoridade plena para julgar casos civis ¢ criminais — exceto quando a aco envolvia “fidal- gos” — e distribuir cargos para exercer a justiga na terra. Dois anos mais tarde, ao criar o regime de capitanias hereditari troca da lealdade dos donatarios, a monarquia abriu mao do poder de julgar 0s stiditos, Mas privilégios ¢ poder nao foram suficientes para vencer a re- sisténcia dos nativos ¢ a inépcia de muitos donatérios. A alguns faltou capi- tal para colonizar, a outros a capacidade de administrar a justiga entre os colonos. Aj residia, em ultima instdncia, a esséncia do poder da monarquia durante o Antigo Regime. em Camaras Municipais Com a fundagao das primeiras vilas, os donatarios transplantaram pa- ra o Atlantico Sul uma instituigdo que existia em Portugal desde 1504: 0 governo municipal. A Camara Municipal, também chamada de Concelho Municipal, era formada por até seis vereadores, dois juizes ordinarios — juizes sem instrugao formal em direito — e um procurador. Além desses, havia oficiais que auxiliavam os trabalhos. O escrivao anotava as sessées e era responsavel pela redagao das atas. O tesoureiro administrava as financas. As Camaras Municipais cuidavam de assuntos essencialmente locais, como a construgao e manutengao de estradas, obras ptiblicas e de defesa, organizacao da milicia e regulamentagao de praticas comerciais e de trabalho. Os almotacés, inspetores de mercados, tinham por dever fiscalizar a qualidade dos produtos, das balangas e réguas utilizadas pelos comerciantes, a fim de evitar fraudes. Subordinados 4 Camara, havia também oficiais que nao tinham direito de voto, entre eles 0 juiz dos 6rfaos. Sob sua autoridade, geriam-se os bens dos érfaos e das vitivas. No grupo dos oficiais subordinados, contavam ou porta-bandeira, que as vezes fazia o papel do escrivao; 0 porteiro, que também: o alferes, 212 Histéria do Brasil: uma interpretagio PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.698/2003. frequentemente cuidava dos arquivos da Camara; ¢ 0 carcereiro, pois o edi- ficio da Camara era também a cadeia, As vilas mais populosas eram servidas pelos funcionarios jé citados ¢, ainda, um vereador de obras, e da defesa militar, Os oficiais da C: encarregado das construgdes e obras piiblicas Amara eram eleitos de trés em trés anos por meio de listas triplices claboradas pelos “homens bons” da vila. Estes eram, sempre, 0s mais ricos ¢ poderosos — os proprietarios de terras e de “negros”, fossem estes “da terra” ou da Africa. Um juiz da Coroa — o juiz de fora — super- visionava a eleigao das Camaras Municipais, Algumas Camaras tinham a presenga de representantes dos trabalha- dores. Cada grémio ou corporagéo de trabalhadores de determinado ramo elegia seus representantes para a Camara, cujas reunides, geralmente, ocor- riam duas vezes por semana. ATRIBUIGOES DAS CAMARAS A Camara supervisionava a distribuigio e o arrendamento das terras municipais e comunais. Langava e cobrava taxas municipais, fixava 0 preco de venda de muitos produtos ¢ provisdes, concedia licengas aos vendedores ambulantes ¢ verificava a qualidade de seus produtos, Concedia licencas Para construgio ¢ garantia a manutengao de pontes, estradas, cadeia e demais obras ptiblicas. A Camara também regulamentava os feriados piiblicos e as procissées religiosas. E cuidava do policiamento da cidade e das diretrizes gerais da satide publica. Para realizar essas tarefas, a Camara contava com a receita provenien- te das rendas cobradas sobre as propriedades municipais, dos impostos lan- cados sobre certos produtos alimentares, e das multas aplicadas pelos almo- tacés aos vendedores sem licenga ou aqueles que roubavam no peso. No dia a dia, 0 que hoje chamarfamos de “satide publica” era administrado pelas irmandades leigas, tais como a Santa Casa de Misericérdia, financiada pelos colonos mais abastados. Os vereadores e os juizes nao recebiam saldrios. Mesmo assim, manti- nham certos privilégios enquanto exerciam 0 cargo. Nao podiam ser presos arbitrariamente, estavam dispensados de prestar servigo militar, nao eram obrigados a alojar soldados nem terem suas carrogas e cavalos confiscados para uso da Coroa. E, mais importante ainda, podiam enviar correspondén- cia diretamente ao rei. A sociedade coloni: afirmagiio e ocaso 213 PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. LONGE DAS VISTAS DO REI As imensas distancias que separavam Portugal da Provincia de Santa Cruz eram percorridas pelos veleiros. Nas estagdes propicias, se os ventos fossem favoraveis, a viagem de ida durava no minimo de dois a trés meses —tal era uma medida do tempo das comunicagées na época. Do Rio de Janeiro e das “capitanias de baixo”, a viagem costumava demorar pelo me- nos um més a mais. Os obstaculos fisicos e a precariedade das comunicagées deixaram uma larga margem de autonomia para as Camaras. Por outro lado, foram elas as responsaveis pela implantagao da infraestrutura urbana, como resume o historiador paulistano Nestor Goulart Reis Filho: “Entre os encargos transferidos aos cuidados dos donatarios e colonos, figuravam com destaque as tarefas correspondentes a instalacdo da rede urbana. Livrava-se a Coroa da maior parte dos énus da colonizagao do novo territdrio, inclusive no que se refere 4 fundacio de vilas e cidades. A grande maioria dos nicleos urba- 0 foi nos instalados nos dois primeiros séculos da coloniza pelo esforgo e interesse dos colonos e donatarios, com o estimulo da Metropole, mas sem a participagao direta desta.”? As Camaras eram responsaveis pela alimentagdo, manutengdo e vestud- rio das guarnicées militares, e pela manutengdo das fortificagées ¢ equipa- mentos costeiros de defesa contra piratas. Na maioria das vezes, viviam endividadas — gastavam mais do que podiam em festas religiosas e, frequen- temente, concediam empréstimos extraordinarios solicitados pela Coroa. Isso explica por que a realizacdo e manutengao das obras piiblicas eram sempre precarias. UMA ARISTOCRACIA NATIVA Das regides mais remotas ¢ inacessiveis aos agitados portos das capita- nias do Norte, as Camaras serviam ao interesse dos potentados locais, gran- des proprietarios de terras e de gente cativa. 3 Nestor Goulart Reis Filho, Evolugao urbana do Brasil (1500-1720), Sao Paulo, Pini, 2000, 2° ed., pp. 19-20. 214 Historia do Brasil: uma interpretagio PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. Em Pernambuco, até a ocupagao holandesa, em 1630, 05 Albuquerque Coelho mantiveram praticamente intactas suas prerrogativas de donatarios. No Rio de Janeiro, os sobrinhos de Mem de Sa governaram a capitania du- rante quase um século até a expulsio do governador Salvador Correia de Sé, em 1661, depois de uma revolta popular. Antes disso, porém, o cla Correia de Sa prosperou e participou ativamente do contrabando de cativos africans para o porto de Buenos Aires em troca da prata peruana, atividade vedada 0s stiditos portugueses. Na remota vila de Sao Paulo, no planalto de Piratininga, em mais de uma oportunidade, a Camara armou “bandeiras” ao sertio para prear in- dios, atividade proibida pela Coroa a partir de 1570 e abominada pelo bra- Go espiritual da monarquia, a poderosa Companhia de Jesus. Quanto mais longe do rei, mais distante a lei. Completavam esse quadro o nepotismo — 0 emprego de parentes — e a venalidade dos funcio: rios reais. Durante todo o period colonial, as Camaras foram simbolo e expresso do prestigio, da influéncia e do poder dos potentados locais. A justiga do rei: 0 ouvidor-geral Antes da instalagio do governo-geral, havia cerca de 16 vilas e povoa- dos de colonos portugueses no litoral do Atlantico Sul. Com a fundagao da cidade de Salvador, na capitania da Bahia, a monarquia pretendia coordenar as ages militares e administrativas das capitanias e povoagées da colénia. Por outro lado, era sua intengao reduzir os privilégios cedidos aos governa- dores, entre eles, o de julgar os stiditos, visto que os donatarios controlavam todas as instancias da Justiga e estavam isentos das visitas dos corregedores, espécie de inspetores de Justica. Com o governador-geral, desembarcaram na baja de Todos os Santos um provedor-mor, encarregado de fiscalizar as financas do rei, e um ouvidor- -geral, que assumia a administragao da Justica. Este magistrado frequente- mente acumulou as fungdes do provedor-mor e tornou-se 0 verdadeiro res- ponsavel pela fiscalizagao dos interesses da Coroa na colénia. Em alguns casos, como o de Martim Leitao, cuja crueldade na perseguigdo aos nativos potiguares e franceses valeu-lhe a conquista da Paraiba, os ouvidores eram a mao armada do rei a servigo da conquista. A sociedade colonial: afirmac 10 € ocaso 215 PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2008. ‘Tantas fungGes acabaram por assoberbar os magistrados. O cargo so- brepunha-se a estrutura j existente de magistrados municipais e de ouvido- res nomeados pelos donatarios, motivo pelo qual o sistema judicidrio da colénia era confuso e ineficaz, e os réus aguardavam anos nas masmorras € calaboucos antes de ouvir a sentenga. A principal atribuigéo do ouvidor- -geral era visitar — e fiscalizar — as capitanias e servir de intermediario entre os ouvidores locais e a Casa de Suplicacao, principal tribunal de ape- lacdo, sediado em Lisboa. Quem havia sido membro da Casa de Suplicagao e exercera 0 cargo de conselheiro do rei fora Mem de SA, o terceiro governador-geral, um mem- bro da classe dos “letrados”, a burocracia profissional dos magistrados, formada na Universidade de Coimbra. Durante seu governo, a Coroa revo- gou de forma permanente o direito de isengao de visitagao. A partir de entao, o governador-geral péde visitar as capitanias e ampliar o controle da monar- quia sobre suas posses americanas. As leis promulgadas pela Coroa valiam apenas para os stiditos euro- peus, Os indios viviam a margem da ordem judicial e contavam apenas com a protecao dos jesuitas. A partir de 1560, criou-se 0 cargo de “mamposteiro”. Este funcionario velava pela liberdade dos indigenas, motivo de frequentes disputas entre os magistrados da Coroa e as Camaras Municipais. FUNCIONARIOS DO REI: NASCIDOS PARA MANDAR Quem eram esses servidores de que se valia a monarquia para impor sua soberania no Atlantico Sul? Em sua marcha centralizadora, a realeza havia criado milhares de cargos e cooptado a nobreza com governangas € conquistas. Afinal, os nobres eram parentes do rei; em certo sentido, seus pares, Orgulhosos e altaneiros, acreditavam ter nascido para mandar. Repre- sentavam a Coroa nas cortes da Europa e nas colénias. Integravam os con- selhos do rei. Ao longo do século XVI, a monarquia houve por bem assessorar-se, cada vez mais, com os integrantes de uma burocracia profissional, a dos magistrados egressos dos cursos de direito da Universidade de Coimbra. Nas palavras do historiador Stuart B. Schwartz: “Um observador do século XVII constatou que uma mistura de ‘letrados’ e nobreza titulada produziria as melhores decisdes de conselho. Achava que 0s ‘letrados’ sabiam demais e intelectualiza- 216 Historia do Brasil: uma interpretagio PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. ‘isas ao ponto de impossibilitar a ago; a aristocracia, os ‘idiotas’, agia com rapidez, mas frequentemente sem sabedoria.”* Enquanto o reino permaneceu independente, todos os cargos da buro- cracia foram preenchidos por portugueses. Com a uniao ibérica, os colonos natives comegaram a ter um quinhao dos cargos da burocracia real. Du- rante a crise do século XVII, um longo perfodo de retragdo econdmica, a monarquia criou oportunidades de sobrevivéncia para fidalgos destituidos, preadores indigentes e velhas vitivas. Mais uma vez, 0 objetivo era garantir a fidelidade desses setores sociais. O cargo piiblico suscitava o mesmo fascinio na nobreza tradicional ¢ na burocracia profissional dos “letrados” — era considerado fonte de pres- tigio social. A monarquia tirava vantagem da disputa entre esses grupos e aproveitava para consolidar seu papel de arbitro supremo. O “ESTAMENTO BUROCRATICO” “Diga-se que a classe politica ¢ a nomenklatura estio no lugar do nome proprio ¢ certo, que circula na filosofia e na ciéncia politica desde Hegel e Max Weber: 0 nome estamento.” Raymundo Faoro’ Embora tenha faltado lembrar que também na obra de Karl Marx foi utilizado 0 conceito de estamento, ele tornou-se muito titil para a compreen- so da historia da formagao social e politica do Brasil. Se examinarmos mais de perto a administragao colonial, notaremos que a burocracia da magistratura formava um grupo reduzido de funcionarios especializados. Os “letrados” ocuparam, talvez, apenas 400 cargos durante os dois primeiros séculos da colonizagao. Esse “estamento burocratico”, descrito em pormenores pelo historiador gaticho Raymundo Faoro, passou a formar um corpo semiauténomo e autoperpetuante, com geragées suce- dendo-se a servigo da Coroa. 4 Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil: The High Court of Bahia and Its Judges, 1609-1751, Berkeley, University of California Press, 1973, p. 69, tradugdo de Adriana Lopez. 5 Raymundo Faoro, “O plano indefinido”, IstoE, Sao Paulo, 9/6/1993, p. 31. A sociedade colonial: afirmagao e ocaso 217 PUGRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.895/2003. O principal pré-requisito para ingressar na carreira era possuir um di- ploma de Direito Candnico ou de Direito Civil da Universidade de Coimbra. No Colégio de Sao Paulo da Universidade, os jesuitas enfatizavam, em suas lic6es, que a magistratura era uma criago da monarquia e que aqueles in- vestidos no cargo deviam submissao total 4 Coroa. Eram funcionarios da Coroa, nao funciondrios piblicos. Deviam sua existéncia 4 monarquia e eram os guardiaes do sistema. Todos os magistrados tinham de passar pelo crivo de Coimbra, mesmo aqueles que nasciam na colénia. Outro requisito era a “pureza de sangue”. O candidato ao cargo — € seus ancestrais — nao podia ser descendente de “mouro, mulato, judeu, cristAo-novo ou qualquer outra raga infecta”, declaravam as normas de ad- missao. Também estavam excluidos aqueles cujos avés exerceram trabalhos manuais ¢ atividades de comércio. A monarquia queria garantir os servicos de uma burocracia profissional competente, de origem social relativamente homogénea, cuja ortodoxia religiosa e politica pudesse ser comprovade ‘As ORDENAGOES FILIPINAS Com a uniao entre as coroas de Portugal e Espanha, em 1580, 0 reino manteve suas leis, costumes, 6rgdos administrativos e integridade territorial. Para assessorar o rei Filipe II, criaram-se, em Lisboa, um Conselho de Por- -rei, Por mais que o acordo ratificado pelas Cortes de tugal e 0 cargo de vi Tomar, em 1581, garantisse autonomia a Justiga do reino, ela tornou-se objeto de tentativas de reforma. O resultado mais visivel desse proceso foi a revisio da legislagao vigente em Portugal — as Ordenagdes Manuelinas de 1504 e 1521 —ea promulgacao de um novo cédigo de leis, as Ordenagées Filipinas (1603). A RELAGAO DA BAHIA Antes disso, porém, na colénia era evidente que o sistema de apelagao & Casa de Suplicagao retardava as decisdes da Justiga e tornava 0 processo ilizar os processos judiciais, criou-se um tribu- moroso. Em 1588, visando a; nal em Salvador, a Relagao, cujo modelo era a Casa de Suplicagao de Lisboa. Mas ventos e tempestades impediram a chegada dos desembargadores deste primeiro tribunal, e o projeto ficou engavetado. No entanto, acabaram por ser atendidas as queixas constantes das Ca- maras Municipais contra abusos cometidos pelos governadores e pelo ouvi- 218 Histéria do Brasil: uma interpretagio PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. dor-geral. Em 1609, implantava-se a Relagdo da Bahia. Com os dez desem- bargadores do primeiro tribunal da terra, vieram centenas de funciondrios Menores, praticamente sem qualquer outra fungao que no a de garantir a lealdade ao rei. No inicio do século XIX, as vésperas da Independéncia, o senhor de engenho inglés Henry Koster fez a seguinte descrigao desse “estamento”: “O numero de funcionarios civis e militares é enorme; int- meros inspetores sem objeto a inspecionar, um sem-fim de coronéis sem regimentos para comandar, juizes para dirigir cada ramo da administracao, por menor que seja, servigos que podem ser feitos por duas ou trés pessoas. Os vencimentos aumentaram, 0 povo esta oprimido, e 0 Estado nao colhe beneficio algum.”® Na colénia, a presenga de um grupo de “letrados” tinha por objetivo zelar pelos réditos da Coroa, os contratos do dizimo e os impostos sobre o agticar e os escravos africanos, com os quais se pagava a burocracia colonial. Um dos desembargadores era juiz da Coroa e da fazenda, e sua principal missao era coibir o contrabando crescente entre o Brasil e a América espa- nhola, especialmente a troca de escravos angolanos pela prata de Potosi. Os desembargadores da Relacao formaram, ao fim de um processo, uma classe separada dentro das elites coloniais. Mesmo assim, alguns se envolve- ram no negécio do trafico de escravos, outros adquiriram sesmarias e torna- ram-se lavradores e senhores de engenho. Apesar da proibicao, desembarga- dores da Relagdo acabaram por casar com mulheres da terra, geralmente ligadas 4 acucarocracia local, tanto da Bahia como de Pernambuco. A nobreza da terra — os grandes proprietarios de terras e de cativos — logo procurou firmar uma alianga com a magistratura, com a intengao de proteger seus interesses. Essa aproximagao foi, até certo ponto, bem-sucedi- da, pois os senhores de engenho conseguiram, em caso de endividamento, evitar o arresto de partes de seu patriménio, argumentando que o engenho era um todo, Terras, caldeiras, equipamentos e escravaria nado podiam ser vendidos separadamente. Promulgada pela primeira vez em 1636, a lei proi- bindo o embargo dos engenhos em partes foi ratificada em 1673, 1681, 1686, 1690 e 1700 na Bahia. © Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife, Secretaria de Educagio ¢ Cultura do Governo do Estado de Pernambuco, 1978, p. 54. A sociedade colonial; afirmagio ocaso 219 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. A Santa Casa de Misericérdia Outra instituicao portuguesa transplantada para o império colonial foi a Santa Casa de Miseric6rdia. Entidade implantada com a Camara local, era uma irmandade de caridade, cuja principal tarefa era cuidar dos cristaos menos favorecidos: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, visitar os doentes e presos, dar abrigo a todos os viajan- tes, resgatar os cativos e enterrar os mortos em “campo santo”. Em alguns locais, a Santa Casa de Misericérdia mantinha hospitais que ainda hoje levam o nome de Santa Casa. A agao da irmandade limitava-se a comunidade crista, j4 incluindo ai os escravos. Administrada pelos senhores locais, mantinha alto padrao de eficiéncia e honestidade. O patriménio da irmandade vinha de doagées de bens deixados em seu nome. Legavam-se propriedades e escravos, bens iméveis, terrenos urbanos. Os escravos legados eram libertados depois de um certo tempo. Durante a maior parte do perio- do colonial, a Santa Casa de Misericérdia cuidou dos pobres e necessitados, e dos “vadios”. A Misericérdia funcionava também como banco: pagava herangas em varios lugares do império e emprestava dinheiro. Chegou a ser a maior cre- dora dos senhores de engenho do Recéncavo baiano. Os governadores ser- viam-se dos cofres da Misericérdia em caso de emergéncia. “Em 1660, cerca de um sexto da renda dos beneditinos era derivado de juros sobre empréstimos. Irmandades como a Ordem Terceira de Sao Francisco, a Ordem Terceira do Carmo e outras também eram credoras. O Convento de Santa Clara do Desterro, das Carmelitas Descalgas, era outra fonte de fundos, porém a mais importante dessas instituigdes emprestadoras na Bahia era a irman- dade beneficente da Misericordia, que, sozinha, respondeu por mais de um quarto do crédito concedido [...]. A Miseric6rdia in- cluia entre seus mutudrios algumas das pessoas mais abastadas e influentes da capitania, muitas das quais eram também confrades da prépria instituigao e frequentemente membros de seu conselho diretivo.”” 7 Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenbos ¢ escravos na sociedade colonial (1550-1835), Sao Paulo, Companhia das Letras/CNPq, 1988, p. 180. 220 Historia do Brasil: uma interpretagio PUGRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. Essas instituigées — as Camaras, o governo-geral ea Santa Casa de Misericérdia — foram os pilares da coloniza do portuguesa na América. Com a Igreja, foram os agentes responsaveis pela consolidacdo da ordem colonial. Indios “mansos” e “arredios” Em paginas anteriores, ja fizemos notar que, em 1500, quando chega ram os primeiros europeus, os habitantes do litoral eram comunidades de aborigines semissedentarios que nao conhec! m escrita nem metais. Enquan- to esses europeus mantiveram feitorias para obter o pau-brasil, as relagdes com 0s indigenas foram relativamente pacificas. Durante as primeiras trés décadas do século XVI, “lancados” e naufra- g05 curopeus uniram-se a mulheres da terra. Os filhos mesticos dessas unides foram a primeira matriz do povoamento colonial. Eram stiditos do rei de Portugal e cristaos, pelo menos em teoria. Na realidade, intermediavam o contato entre as duas culturas. Nos locais em que esse processo ocorreu — em Sao Vicente, na baia de Todos os Santos e em Pernambuco — o estabe- lecimento de micleos de povoamento europeus foi mais bem-sucedido, apesar da acirrada concorréncia de franceses, que também deixaram d mestiga em todo o litoral da terra do Brasil. As relagées entre indigenas e europeus mudaram quando os portugue- ses resolveram apossar-se das terras dos nativos. A concessio de capitanias hereditarias e 0 estabelecimento do governo-geral alteraram 0 quadro dessas relacdes. endéncia A criaga 10 de micleos de povoamento estaveis no litoral do continente americano nao ocorreu de forma pacifica. Os indios reagiram violentamente a presenca cada vez maior de colonos europeus, Nao queriam perder suas terras, nem estavam dispostos a admitir a presenca de estranhos em seus territérios, Além disso, os europeus obrigavam-nos a trabalhar em suas lavouras. Muitos indios morreram ou foram escravizados pelos portugueses. Outros se submeteram a dominagao dos conquistadores, em busca de protegao con- tra tribos inimigas. Outros fugiram para o interior do continente, a procura de refigio nas matas. Havia, para os portugueses, dois tipos de indios: os “mansos”, al- deados e aculturados; ¢ os “indios arredios”, aqueles que lutavam para man- A sociedade colonial: afirmagio e ocaso 221 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003, ter seus costumes e sua liberdade. A politica indigenista adotada pela Coroa permitia a escravizacao dos nativos em caso de “guerra justa”, isto é&em caso de rebeldia. Aqueles que se deixaram ficar, premidos pela fome ou acos- sados por inimigos ferozes, permaneceram nas aldeias administradas pelos jesuitas e outras ordens religiosas. Durante mais de 80 anos, forneceram alimentos e mao de obra assalariada para os primeiros engenhos e vilas do litoral. Uma grande parte dos que mantiveram contato com os europeus mor- reu vitimada por doencas a que nao eram imunes. Na década de 1560, gran- des epidemias de variola e sarampo dizimaram a maioria dos indios que vi- viam em contato proximo com os europeus. Outros sucumbiram sob o peso do trabalho. A consolidagio da con- quista e a implantagao da agroindiistria do agiicar exigiam cada vez mais trabalhadores. As epidemias e as fugas, além da baixa produtividade dos nativos, induziram os colonos europeus a recorrer ao trafico de cativos afri- canos para suprir a demanda crescente de mao de obra dos engenhos. Imigragao forgada de cativos africanos ‘A maioria dos africanos obrigados a imigrar para este lado do Atlanti- co Sul provinha de sociedades que se dedicavam a agricultura intensiva ¢ a criagao de gado. A maior parte deles conhecia a metalurgia. Essas habilida- des garantiram-lhes um status superior ao do nativo americano na socie- dade colonial. Além disso, a produtividade dos cativos africanos era consi- derada trés vezes maior do que a dos indios. Por conseguinte, o prego de um escravo africano também era trés vezes maior que o do nativo americano escravizado. A partir da segunda década do século XVII, 0s cativos africanos torna- ram-se a maioria da forga de trabalho dos engenhos do litoral do Nordeste (Paraiba, Pernambuco e Bahia). Todos os servigos manuais e bragais eram sdos ¢ artifices da colénia tinham executados por escravos negros. Até os art “seus negros” para fazer o trabalho. 222 Histéria do Brasil: uma interpretagao PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. Centro e periferia No limiar do século XVII, portanto, existiam dois tipos de sociedade nas reas em que os europeus haviam criado colénias de povoamento. No Nordeste — onde existiam cada vez mais engenhos, ¢ os portos fervilhavam por causa da atividade comercial resultante da exportacio de agticar —, a populagio de origem portuguesa aumentou significativamente. Nessas areas, realizou-se com sucesso a transferéncia de instituigdes ibéricas, tais como as Camaras Municipais, a Relagio e a igreja. Em 1600, as areas produtoras de agticar contavam com aproximadamente 100 mil habitantes, com uma parcela significativa de mulheres europeias ¢ cerca de 30 mil escra- vos af nos. Estes e seus descendentes afro-americanos ¢ mesticos torna- ram-se a maioria da populagio. Nas areas marginais da colonizagao — Amazénia e capitanias “de bai- xo” —, a presenca europeia era visivelmente menor. Nessas regides, ligadas de forma secundaria aos grandes centros exportadores do litoral, a presenga de cativos africanos e de mulheres europeias era rara e quase inexistente. Os padroes de cultura material e social estavam mais proximos da matriz ind{- gena. O idioma falado pela maioria da populagao era a “lingua geral”, nao © portugués. Eram ténues e distantes os lacos que garantiam a submissio dessas areas As autoridades metropolitanas, ¢ 0s colonos, ai, viviam em con- flito cotidiano com a Companhia de Jesus € sua missio de “proteger” os indigenas. Segundo Stuart Schwartz: “A organizacio social variava, entio, conforme a época ¢ 0 lugar, assim como variava o numero relativo de europeus, africa- nos e pessoas indigenas de origens diversas. Isso tinha um efeito particular na posigio social das pessoas de origem mista. A mu- danga no status dos mestigos ¢ dos mamelucos ocorreu devido & mudanga no relacionamento entre portugueses ¢ indios, e devido as transformagées ocorridas dentro da propria sociedade colonial. Na medida em que a ameaga dos indios diminuiu, a importancia do papel desempenhado pelos mestigos, enquanto mediadores e tradutores, também diminuiu nas areas mais povoadas das capi- tanias do litoral. Nestas, 0 status dos mestigos declinou. Nos lu- gares onde uma economia vibrante, baseada no agicar, na mine- ragdo e no cultivo do algodao se desenvolveu, ¢ onde o fluxo cons- tante de imigrantes europeus, a grande corrente de imigrantes A sociedade colonial: afirmagio e oca 50, 223 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003, forgados africanos, e o eventual desenvolvimento de instituig6es europeias civis ¢ religiosas, assim como a reproducao de hierar- quias sociais baseadas em padrées europeus se consolidaram, 0 papel desempenhado pelos mestigos tendia a permanecer cada vez mais reduzido. Na medida em que continuavam a ser reconhecidos como diferentes dos escravos africanos ou dos negros, havia, nio obstante, uma tendéncia a outorgar um status comum a todas as pessoas de origem mista. Além disso, os mesticos passaram a ser, cada vez mais, separados e diferenciados da sociedade branca Essa mudanga constituiu um segundo estagio no processo de inte- gracao dos mestigos 4 sociedade colonial.”* A SOCIEDADE DO AGUCAR O engenho foi a instituigao social central da vida colonial nas capitanias do Nordeste. O plantio da cana e sua transformagao em agticar branco e mascavo exigiam uma grande quantidade de capital e crédito, além de habi- lidades especificas, Havia, além dos senhores de engenho e dos escravos, uma parcela de trabalhadores livres assalariados: ferreiros, carpinteiros, tanoeiros, ar. Nos eitos e no enge- pedreiros e artifices dedicados a preparagao do a nho, propriamente, cativos africanos trabalhavam sem cessar durante os meses da colheita. No topo da hierarquia social, estava o senhor de engenho, cujo poder e prestigio eram quase absolutos. Com 0 passar do tempo, a elite dos senho- res de engenho tornou-se uma espécie de “nobreza da terra”, um estamento que exercia 0 poder politico, social e econdmico, Eram-lhes concedidas pa- tentes militares, e eles exerciam, em suas propriedades e mesmo fora delas, © monopélio da violéncia. Controlavam as instituigdes municipais € usavam- -nas em beneficio proprio. Com incentivos fiscais e outros privilégios, tais como a isengao do em- bargo dos bens para honrar dividas, a Coroa garantia a supremacia desse segmento social. O carater mercantil do empreendimento do plantio da cana eda produgao de agucar e seu vinculo com o mercado europeu transforma- a ® Stuart B. Schwartz, “Gente da terra braziliense da nas¢io’. Pensando o Brasi construgao de um povo”, em Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem incompleta (1500- 2000): a experiéncia brasileira, vol. 1, Formagao: historias, Sio Paulo, Editora Senac, 2000, 2* ed., pp. 113-4. 224 Hist6ria do Brasil: uma interpretagio PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. vam o senhor de engenho numa espécie de empresdrio moderno, dependen- te de uma rede de crédito e distribuigao. A residéncia do senhor de engenho, a casa -grande, era 0 foco da vida social. A familia patriarcal inclufa parentes distantes, afilhados ¢ dependen- tes, escravos, criados domésticos, ¢ os filhos ilegitimos nascidos na casa- -grande. Ja os agregados recebiam tratamento diferenciado segundo o status de cada um. Esses agrupamentos familiares ampliados entrelacavam-se formavam verdadeiros clas de proprietarios, ligados por meio de casamentos € associ A maioria dessas redes de familias patriarcais aliadas — ou hostis, con- forme 0 caso — apresentava atitudes e comportamentos semelhantes. Os. homens detinham poder quase absoluto sobre os demais membros da comu- nidade. As mulheres eram submetidas ao recato e A obediéncia, embora tenha havido algumas poucas mulheres proprietarias que comandavam a adminis- tracao de suas terras. A escravidao africana permeava o trabalho e as relagdes entre as pessoas, criando estruturas e padrées sociais especificos. No século XVII, um tergo dos senhores de engenho era de portugueses, e um tergo era constituido da primeira geracao nascida na colénia. Vale notar que havia certa mobilidade na classe dos senhores de engenho, nao sendo ela uma categoria estatica e fechada: comerciantes ¢ magistrados en- dinheirados compravam engenhos de senhores falidos, outros ascendiam a classe por meio do casamento. Os lavradores de cana, aqueles que nao possuiam capital suficiente para construir um engenho, provinham da mesma classe dos senhores de engenho e aspiravam a essa posigio social. Em terras préprias ou arrendadas, cultivavam cana, que depois era moida nos engenhos, Nessa classe, havia desde gente rica até pequenos lavradores. Em todo caso, também eram pro- prietarios de escravos. E mantinham uma relacdo de cooperagio e conflito com os senhores de engenho, aos quais entregavam a cana para moer. A sombra da casa-grande, na categoria dos homens livres, estavam incluidos ainda os assalariados e profissionais especializados, tais como fei- tores, capatazes e gerentes, além dos artesdos mencionados anteriormente. A presenga de escravos, entretanto, era responsavel pelos baixos saldrios pagos a esses profissionais livres. Conforme a dimensio do empreendimento, © engenho contava também com um advogado, um capelio e um médico, ou “cirurgiao-barbeiro”, como era chamado entao. Também 0 cultivo do tabaco atraia uma classe de produtores, mas me- nos abastada que a dos senhores de engenho ea dos lavradores. A dimensao A sociedade colonial: afirmagio e ocaso 225 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003 | les e a quantidade de escravos empregados na cultura desse das propriedad s do que as dos engenhos e das lavouras de cana. género eram menore: MERCADORES E MASCATES Dos comerciantes ricos da metrépole, os principais eram os atacadistas, aqueles que exportavam vinho, cobre, ferro e tecidos para a col6énia e de la importavam acticar, tabaco e couros. Esses mercadores, também chamados de “homens de negécios”, formavam parcerias de curta duragao com outros comerciantes e capitalistas. Geralmente, contavam com agentes comissiona- dos que cuidavam de seus negécios nos portos coloniais. Em meados do século XVII, uma parcela da classe dos comerciantes ricos estabeleceu-se nos portos coloniais. E af procuravam diversificar suas atividades por meio de casamentos com membros da “nobreza da terra”. ‘Apesar desse vinculo com os produtores, a maioria deles ainda era de origem portuguesa. O proprio termo “mercadores” era sindnimo de portugueses. A relacao entre estes ¢ os produtores nem sempre foi cordial. Muitos senhores deviam dinheiro e viviam sob a pressao dos comerciantes credores. Na coldnia, o mercador “de sobrado” ocupava um escalio mais alto comparativamente ao mercador “de loja”. A esses tiltimos, a “nobreza da terra” chamava respectivamente de “mascates”, pois a origem de sua rique- za havia sido, muitas vezes, 0 comércio ambulante. BUuROCRATAS E IMIGRANTES Durante o século XVI, houve um fluxo acentuado de imigrantes por- tugueses para a coldnia. Isso explica por que cerca de dois tergos dos arteséos € quase todos os comerciantes presentes nos territ6rios americanos eram portugueses. A eles se juntavam os membros da burocracia, governadores, juizes e advogados, além de soldados e marinheiros. “Devido A importancia da religiao na vida cotidiana, organi- zacbes como as irmandades leigas podiam proporcionar uma visio da sociedade portuguesa ¢ da busca de posicao e reconhecimento dentro dela. Certos grupos ou profissGes costumavam concentrar- -se em determinadas irmandades, embora houvesse variagGes re- gionais em suas preferéncias. A Ordem Terceira de Sao Francisco era, na Bahia, a preferida dos produtores agricolas aristocratas, 226 Histéria do Brasil: uma interpretagao PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.696/2003. que usavam a proibigao do ingresso de cristios-novos como forma de deixar de fora os mercadores. Estes, por sua vez, preferiam a Ordem Terceira dos Carmelitas. Ja em Recife os mercadores con- trolavam de tal maneira a Ordem Terceira de Sao Francisco, que os produtores agricolas eram obrigados a pagar o dobro da taxa de ingresso para serem admitidos como irmdos. Os artesdos tam- bém tinham suas confrarias preferidas, de menos prestigio que as dos grandes produtores agricolas e mercadores, mas que propor- cionavam uma certa identidade corporativa.”” “PARDOS” E DESTITU[DOS A categoria dos homens livres nao era formada apenas pelos brancos europeus. Havia também os mesti¢os, ou “pardos”, pessoas que nao perten- ciam as elites coloniais e nao eram escravos. Este segmento exercia atividades marginais, que nao exigiam muito capital. Nesse meio houve aqueles que se tornaram pequenos fazendeiros. Outros, trabalhadores assalariados, vende- dores ambulantes, donos de tabernas e artesaos. A estrutura de terras e a concentragao destas nas maos de poucos im- pediram o surgimento de uma classe de pequenos proprietarios. Nas terras pouco produtivas e marginais, mas ainda sob o dominio do senhor de enge- nho, homens livres negros, mulatos ¢ brancos pobres prestavam servicos como vaqueiros e lenhadores, ¢ cultivavam rogas de mantimentos. Em caso de guerra — como se deu durante a ocupagao holandesa —, formavam o grosso da tropa. Em tempos de paz, sobre eles pesava 0 odioso recrutamen- to. Apesar de serem livres, a maioria destes individuos nao tinha acesso 4 propriedade nem recursos para comprar escravos, principal medida de rique- za na col6nia. Como a maior parte do trabalho rural e urbano era realizada por es- cravos, muitos homens livres destituidos nao tinham onde trabalhar, nem contavam com um meio de vida garantido, A presenca desses individuos ti- nha como principal caracteristica a fluidez, a instabilidade e a realizacao de trabalho incerto e tempordrio. Henry Koster, referindo-se 4 situagio dos homens livres que encontrou durante sua residéncia em Pernambuco no inicio do século XIX, deixou o seguinte testemunho: “A posigdo que essas 9 Stuart B. Schwartz ¢ James Lockhart, A América Latina na época colonial, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 2002, p. 278. A sociedade color |: afirmagio e ocaso 227 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003 pessoas ocupam nessas terras é insegura, ¢ essa inseguranga constitui um dos grandes elementos do poder que um latifundidrio desfruta entre seus moradores”." No final do periodo colonial, esse grupo de pessoas tornou-se cada vez mais numeroso e passou a formar uma parcela crescente da populagao co- lonial, Eram os “vadios” e delinquentes, gente que nao tinha lugar definido na sociedade de senhores e escravos, vista como ameaga permanente a ordem social da colénia. ‘Assim como os degredados do inicio da colonizagao, muitos desses individuos participaram das entradas e bandeiras, as expedigées que devas- saram os sertdes. No caso de serem prisioneiros, trocavam sua pena por uma expedigao arriscada. Havia aqueles que se tornavam “bugreiros” (cagadores de indios), ou “capitaes-do-mato” (cacgadores de escravos fugitivos). Duran- te o século XVIII, foram mandados para servir nos presidios, estabelecimen- tos localizados nas “conquistas”, as fronteiras mais remotas. Muitas vezes, eram recrutados para construir obras publicas, prisdes e estradas, além de trabalharem nas lavouras dos presidios. Visava-se conter o banditismo e climinar potenciais ameagas 4 ordem social. A policia privada e os exércitos particulares dos potentados sempre contaram com um ntimero significativo de homens livres destituidos, que acabaram por tornar-se jagungos. Os mais turbulentos fugiam para lugares distantes, longe do brago da lei. A SOCIEDADE DAS MINAS A principal caracteristica da sociedade dos primeiros tempos da mine- ragao foi a fluidez. Na regiao das minas, nas primeiras décadas do século XVIII, havia muitos escravos e poucas mulheres europeias, motivo pelo qual a maioria das uniées — entre homens brancos e mulheres negras e pardas, escravas ¢ libertas — dava-se fora da instituigaéo do casamento. Em 1804, ou seja, muito depois do auge do ciclo da mineragio, apenas um terco das unides na regidio era legal. ‘Assim como ocorreu em outras areas da colénia, a populacio mulata cresceu rapidamente nas minas em razao da alta taxa de alforria. Em 1740, o mimero de mulatos e brancos era aproximadamente o mesmo. 1 Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, cit., p. 344. 228 Histéria do Brasil: uma interpretagao PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. No que diz respeito aos escravos, os mineradores preferiam os prove- nientes da Costa da Mina, pois alguns ja conheciam as técnicas ¢ estavam habituados ao trabalho de mineragdo. Os cativos africanos perfaziam mais da metade da populacao nas cidades e vilas de Minas Gerais. A intensidade da vida urbana na regio das minas criou uma situagio sem precedentes na colénia. A formagio do cla patriarcal nao se deu nos mesmos moldes que nas lavouras e fazendas de criagio de gado do Norte Nordeste do Brasil. A figura do senhor de escravos também existiu nas mi- nas, mas seu poder foi ofuscado pela proximidade da presenga dos adminis- tradores enviados pela Coroa. Por outro lado, conforme dissemos anteriormente, os quilombos proli- feraram ali mais do que em qualquer outra regio da colénia. A acao dos quilombolas foi constante nas reas de mineragio, e a preocupagio com sua presenga manifestou-se nos documentos oficiais emitidos pelas autoridades metropolitanas ¢ coloniais. Ocaso colonial No fim do século XVIII, constata-se um aumento significativo da po- pula 10 colonial. Em 1816, as vésperas da Independéncia, segundo calculo do historiador Hélio Vianna,'! a populagao do Brasil chegara aos 3.358.500 habitantes, sendo 1.428.500 pessoas livres, 0 que incluia negros e pardos forros, e 1.930.000 escravos. A populagao escrava formava mais da metade dos habitantes da colé- nia. O desequilibrio entre os sexos — importavam-se mais homens do que mulheres —, o trabalho extenuante nas lavouras e nas minas e a libertagao de mulheres e criangas so fatores que parecem ter contribuido para que a taxa de crescimento vegetativo da populagao escrava se mantivesse negativa € se continuasse a importar mao de obra. Por causa da miscigenacdo e das alforrias, o grupo que mais cresceu foi © da populagao livre de cor, Essa parcela da populagdo — aproximadamen- te 40% do total — apresentou altas taxas de natalidade e mortalidade. Gran- de parte dos lares era chefiada por mulheres. Estas — gracas ao pequeno comércio ambulante: a venda de alimentos nos tabuleiros e nas quitandas '! Hélio Vianna, Hist6ria do Brasil, Sio Paulo, Melhoramentos, 1967, p. 220. A sociedade colonial: afirmagao e¢ ocaso 229 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. nos mercados de bairro — sustentavam a casa ¢ criavam os filhos de unides nao legalizadas. Sobre © papel social, politico e institucional da Misericérdia ¢ das ir- mandades, e considerando com ironia a dimensio étnica, 0 historiador Charles Boxer pontuou: “Enquanto a Misericérdia se preocupava com a caridade em favor de um grupo muito vasto de pobres e necessitados, as outras irmandades leigas ou confrarias das varias ordens religiosas res- tringiam na generalidade as atividades caritativas aos seus pr6prios membros ¢ suas respectivas familias. O estatuto social destas Ir mandades (Tercidrias, ou Ordens Terceiras, como também eram chamadas) variava desde aquelas em que a categoria de membro estava limitada a brancos ‘puros’ de boas familias até aquelas que eram sobretudo constituidas por negros. As confrarias brancas mais exclusivas construiram igrejas maravilhosas e salas de Ca- mara com retratos dos membros com perucas cuja opuléncia apa- ratosa levou um visitante francés contemporaneo a perguntar se nao se tratava de ‘uma espécie de Jockey Club religioso’. [...] A composicao destas Irmandades era feita em termos raciais, tendo 0s brancos, negros e mulatos as suas respectivas confrarias. Ha- via algumas que nao faziam qualquer distingao de classe ou cor, que aceitavam tanto escravos como homens livres; mas as ir- mandades de escravos ou homens livres negros tinham geralmen- te um branco como tesoureiro, como estava especificado nos seus estatutos,” !? 2 Charles R. Boxer, O império colonial portugués (1415-1825), Lisboa, Edigdes 70, 1981, 2° ed., pp. 280-1. 230 Hist6ria do Brasil: uma interpretagaio PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LE! 9,610/1998 E LEI 10.695/2003.

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