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8 A ética nas organizagées A ética e a moral: caracteres distintivos ‘Aética é uma disciplina terica, um corpo de conhecimentos, a exemplo das disciplinas como a biologia, a medicina, a economia, a engenharia, a sociologia, 0 direito, a psicologia ou a astronomia. Trata-se de uma investi- gacio sistematica de abrangéncia enciclopédica, de uma ciéncia social que torna inteligfveis os eventos sociais que implicam escolhas entre o bem e ‘o mal. Vale dizer: é conhecimento dos fatos morais. Nessas condigées, qual é a chave de decifragao da Etica? Ela diz respeito ao impacto que agentes sociais provocam uns sobre os outros em fungio de suas decisdes e ages. Expliquemos: ao decidir e ao agir, o agente respeita ‘os interesses dos outros ou os desrespeita, os beneficia ou os prejudica? Eis 0 foco de interesse dos estudos éticos. Evidéncias nesse sentido podem ser conferidas no cotidiano sem dar margem a subjetividade. Por exemplo: segurar o elevador para papear, enquanto vizinhos aguardam a vez, leva em conta os interesses deles ou, ao contrario, os afeta negativamente? A resposta é ébvia. A Etica estuda fatos que afetam objetivamente os outros para o bem (efeitos positivos, beneffcios) ou para o mal (efeitos negativos, prejufzos). O que sao entao os fatos morais? Fatos sociais que tém certa especifi- cidade. Qual? A peculiaridade de espelhar posicionamentos que as cole- tividades adotam diante de dados eventos, ou melhor, a particularidade de expressar jufzos de valor. Ora, em virtude das miiltiplas dinamicas histéricas por que passam as coletividades, as posicdes assumidas podem convergir ou divergir entre si. Assim, o que é certo para algumas (por 230 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER exemplo, conferir a homens e mulheres os mesmos direitos) pode ser er- rado para outras (por exemplo, definir as mulheres como seres inferiores cujo destino inelutavel é servir os homens). De maneira que os fatos morais sdo relativos no tempo e no espago. ‘Afinal, sio fendmenos histérico-reais, a saber, empiricos e singulares. Nao € esse absolutamente o caso dos conceitos cientificos que expressam juizos de realidade, s4o universais e unfvocos, traduzem recorréncias entre os fendmenos porque resgatam padrées ou conjuntos de regularidades, dizem respeito a generalidades abstrato-formais, sao testdveis e, mais, permitem fazer previsdes com relativo grau de acurdcia. Em decorrén- cia —e fazendo referéncia ao exemplo acima —, o conceito de género feminino nao muda em fungo das épocas ou dos lugares, pois enfeixa propriedades comuns a todas as mulheres, uma das duas subdivisées da espécie Homo sapiens. Ocorre que nao é esse o entendimento do senso comum. No dia a dia, © termo ética assume variadas acepgées que provocam mal-entendidos e tornam 0 conceito opaco ¢ invertebrado. A confusao maior diz respeito A identificagdo da ética com seu objeto de estudo. E qual é este? A moralidade, os fenémenos morais, os fatos sociais regulados por normas morais ou submetidos a avaliagdes morais.’ Naturalmente, tanto as regras de comportamento como os juizos sobre 0 bem e o mal, o certo ¢ 0 errado, o legitimo e 0 ilegftimo, sAo socialmente convencionados e partilhados. Esses padrées morais correspondem a fend- menos histéricos que distinguem, prima facie, os bons dos maus costumes. Sao, pois, padrées culturais. Quando se alega aos quatro ventos que tal ou qual decisao nao se coa- duna com “minha ética” ou com a “ética de minha empresa”, a referéncia é clara: o agente esta dizendo que a decisao nao encontra respaldo no sistema de normas morais que pauta o seu comportamento ou o da empresa a qual pertence. Isso equivale a dizer: a moral adotada pelo agente, ou o cédigo de conduta que norteia os modos de agir e de pensar praticados. Alias, nao se fala comumente da “ética dos médicos” ou da “ética dos advogados” referindo-se ao cédigo de conduta profissional desses especialistas? Ou seja: confunde-se Etica (corpo de conhecimentos) com cédigos de deveres, sistemas de normas morais ou morais determinadas. Equivale a confundir os conhecimentos da medicina com as doengas que ela estuda, reduzir a ciéncia médica A tuberculose ou ao cancer que ela trata. Ou ainda: equivale a tomar a psicologia pelos sofrimentos psfquicos 8. A ética nas organizacées que ela observa e sobre os quais procura intervir; ou igualar o direito as leis que examina ou ajuda a elaborar; a engenharia as obras que projeta ¢ executa; a economia aos fendmenos da produgio, das transagées comerciais ou das operagées financeiras que investiga; a ciéncia politica as relacées de poder que analisa. Ao tornar equivalentes a ética (conhecimento dos fatos morais) e os sistemas normativos histéricos (morais), o senso comum procede a uma lesa-majestade conceitual e a um desperdicio vocabular.? E pior ainda: inviabiliza a constituigéo de uma ciéncia da moral. E posstvel rastrear na etimologia raz6es atenuantes para esse baralha- mento que a forca do uso consagra. Etica vem do grego — ethos — que significa carater distintivo, disposigdo, modo de ser adquirido; enquanto moral vem do latim — mos ou mores — costumes, maneiras de agir, nor- mas adquiridas por habito. Ambas as categorias referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade, a obrigagées sociais e, por conseguinte, a fendmenos de natureza histérica; nado ao resultado de reflexdes ou investigagées sistematicas. Eis af, portanto, um terreno fértil para que os dois termos sejam tratados como sinénimos. A falta de distingio, todavia, vai além da equivaléncia estabelecida entre a ética e a moral: costuma-se também dizer que tal ou qual sujeito € “ético”, tal ou qual organizacio é “ética”. A acepcao do conceito, aqui, remete a “boa conduta” ou a um valor cultural especifico que orienta as pessoas corretas — significa integridade, seriedade ou probidade. Mas 0 que é ser fntegro? E ser um sujeito de bem, de cardter, decente e confidvel. cidade e que, além de obedecer as leis, respeita o préximo. Nesta segunda acepgio de senso comum, a Etica se converte em adjetivo, uma vez que a integridade qualifica o agente social que pratica os “bons costumes”, semeia confianga ao seu redor e angaria credibilidade pessoal.’ De modo que a pecha de “falta de ética” significa falta de escripulos, quebra de confianca ou lesio ao bem comum. Cabe lembrar, entio, que a integridade pessoal contrasta com o oportunismo interesseiro, da mesma forma que a integridade publica se contrapée A corrupgio ou a apropriagao de bens organizacionais em proveito préprio. Afora a etimologia, vale perguntar: por que ocorrem tais confusdes sem4nticas? Muitas razées poderiam ser alinhadas. No contexto brasileiro, encontramos um denominador comum: 0 termo moral foi em boa parte desmoralizado ou seu uso tornou-se rangoso. Um motivo curioso, de some- nos importancia e quase folclérico, poderia ser citado. Durante 0 regime er alguém que se conduz com honestidade, lealdade, idoneidade, vera- 232 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER autoritario-militar, cursos de educagdo moral e cfvica foram introduzidos, visando a formar o caréter das criangas ¢ dos jovens.* Os ensinamentos, embora edificantes, foram considerados em geral enfadonhos, ufanistas e pouco eficazes. Quando consultados a respeito da matéria, os alunos que se pretendia moldar exibiam um misto de desinteresse e de galhofa. Em poucos anos, a disciplina deixou de ser levada a sério, tornando-se motivo de pilhéria, o que desvirtuou os objetivos de sua instituigéo. Outra razio pela qual se evita o termo moral tem rafzes multicente- narias: os pafses latinos expéem aos olhos mais avisados uma duplicidade moral A semelhanga da dupla face de Janus — um sistema de normas mo- rais para uso piiblico, de caréter oficial, e um sistema para uso privado, de cardter oficioso.’ Um dos efeitos mais diretos dessa hibridez € 0 falso moralismo ou o moralismo hipécrita. Enquanto as manifestagées ptiblicas dos agentes sociais sao enfaticamente escrupulosas, num claro tributo ao rigorismo, as observagées tecidas no circulo intimo sao laxistas e entoam hinos a leniéncia moral ¢ a um cinismo rasteiro que incentiva a adogao de condutas transgressoras.* Vive-se, assim, na mais absoluta ambiguidade — roupa limpa por fora, roupa suja por baixo. A ambivaléncia moral brasileira O mapa dessa ambivaléncia engloba indiscriminadamente da Franga a Peninsula Ibérica, da Itélia 4 América Latina, e suas causas histéricas podem ser resumidas, apesar de algumas serem especificas dos paises do Novo Mundo: = A disjungao entre a doutrina catélica — hostil A acumulagio de riqueza e enaltecedora da pobreza — e algumas praticas clericais, excessivamente pragmiaticas, contribuiu para a praga da moralidade casuistica, da permissividade nos costumes e daquilo que se pode- ria denominar de “esquizonomia” (dissociagao entre o di fazer); = Osistema de colonizagio de exploragio’ e o transoceanismo (cabeca € coragao voltados para a metrépole) promoveram um vale-tudo predatério, movido pela ansia de enriquecimento rapido e facil. Isso se deu em consonancia com padrées de conduta patrimonialistas que confundiam os interesses ptiblicos com os interesses privados e constituiram uma dualidade social que segmentou a populagio Zen € 0 a 8. A ética nas organizagées 233 em “gente distinta”, portadora de privilégios e em “gente simples”, destituida de direitos; = A unido entre Igreja e Estado, vigente até a primeira Constituigéo republicana, levou a uma falta de distingao entre a Fé e o Império, entre o sagrado e 0 profano, e isso confundiu as lealdades dos fiéis e dos stiditos, mesclou clero e funcionalismo ptiblico numa intricada rede; = O sincretismo religioso ¢ cultural, em consonancia com o autori- tarismo vigente, submeteu a populacio a relagdes de dependéncia, ao adotar o mecanismo da invocagao a entidades mediadoras entre os mundos sobrenatural e natural, as esferas publica e privada. A intermediagao — apenas os iniciados poderiam fazer a travessia — converteu-se entao em paradigma institucional e cabia a padres e coronéis do Brasil rural, santos e padrinhos, anjos e despachantes, orixds e cabos eleitorais, espiritos e médiuns, “nossas senhoras” e “cavalos”; = A Justiga morosa, seu funcionamento pouco transparente ¢ a impu- nidade proverbial levaram Aguas ao moinho da desconexio classica entre o pats formal e o pats real; = A voracidade tributéria e as regulamentagées sufocantes de um Estado burocratico e cartorial provocaram contrapartidas de deso- bediéncia civil — a sonegacio fiscal generalizada, 0 contrabando endémico ¢ o recorrente desrespeito a lei, além de motivar rebelides coloniais.” Essa situac4o bifronte, cujas 4ncoras estao langadas no perfodo colo- nial, resulta e se sedimenta em dois cdigos de conduta, de maneira que as duas morais brasileiras abrangem toda a populagao, daf seu cardter macrossocial. Elas formam vasos que nao se comunicam, porque guardam matérias qualitativamente distintas, francamente discrepantes, para nao dizer opostas: = A moral da integridade, oficial e publica, celebra a inteireza, confor- ma um cédigo de natureza altrufsta e universalista (que interessa a todos) e orienta as pessoas a terem “cardter” ou “vergonha na cara”, aserem decentes e dignas. Como primeira moral, ela é ensinada nas escolas e nas igrejas, é difundida nos tribunais e na midia mais res- ponsfvel e faz a apologia da virtude (“seja uma pessoa de bem!”); 734 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER = A moral do oportunismo, oficiosa e clandestina, celebra a malfcia, trama um cédigo de natureza egoista e particularista (que prejudica outros) € orienta as pessoas a tirar proveito, lhes ensina a serem. manhosas e a cuidarem exclusivamente de si sem se importar com as consequéncias sobre os outros. Como segunda moral, é difundida a boca pequena pelos intimos ¢ pelos sabichées, ¢ faz a apologia da esperteza (“leve vantagem em tudo!”). Ao promover o triunfo da conveniéncia interesseira, justifica os muitos jeitinhos, as ages entre amigos, os arranjos paralegais e as praticas dissimuladas." Essa dupla mensagem tem efeitos dramaticos sobre o imagindrio coletivo: gera grave imbréglio moral; desorganiza os mapas cognitivos; bloqueia a reflexao; esteriliza a capacidade de explicar ou tornar inteligivel a contradigéo entre condutas; dissemina uma hipocrisia renitente que se traduz por um perverso jogo de faz de conta. Alias, quem de nés nao repara no esforco geral em camuflar o que se urde e se faz 4 socapa? Quem de nés nao percebe o empenho em disfargar a evidente incongruéncia entre as falas emitidas em ptblico e os atos praticados sorrateiramente? Apenas os ingénuos escapam a esse tormento. Onde reside entao 0 drama? No disfarce que se aceita com naturalidade e na cumplicidade jamais confessada, que resultam no deboche do velho adagio: “me engana que eu gosto”. Hé, é claro, um risco de descolamento da realidade, pois, de tanto fazer de conta, de tanto fingir, a simulagio e a dissimulagao podem vir a prevalecer, deixando de valer as ag6es efetivas dos atores."' Pior ainda: pode levar a crer que, como ninguém presta, a probidade poderia ser desprezada. O que sobraria entio? A necessidade de fazer as coisas “custe o que custar”, o segredo do chavo surrado daqueles politicos matreiros do “rouba, mas faz”, gente que nao se incomoda em confessar que nao é “santa”. Essa hibridez moral carrega em si um alto custo social. De um lado, contribui para reforcar a generalizada desconfianca em relacao aos “estra- nhos”, agrava o risco moral que suspeita da boa-fé das contrapartes nos negécios. Para compensar o desgaste, cria-se entéo uma zona de reftigio, e as relag6es pessoais se convertem em porto seguro.” Isso ocorre em detrimento da isengao e da impessoalidade das relagdes entre cidadaos, prejudica a competitividade das empresas ao tornar mais caros os custos de transac4o (aumentam os juros e os prémios das apélices de seguros), relega a segundo plano as relagées profissionais e a meritocracia. De outra parte, 8. A ética nas organizacées 235 a ambivaléncia moral consolida a tradicao de uma cultura civica pouco desenvolvida — fruto da fragilidade institucional e da timida cooperagao coletiva — e, na auséncia de vigilancia cidad4, facilita a proliferacao de praticas malandras, reforga o velho patrimonialismo com sua apropriagio privada dos recursos ptiblicos. Posto isso, cabe insistir: quando é que um fato social assume caréter moral, isto é, torna-se objeto de estudo da Etica? Quando impacta os outros de forma positiva ou negativa. Agora, e embora o senso comum identifique moral e bons costumes, a existéncia de normas oportunistas de conduta nos pajses latinos fazem com que “maus costumes” também sejam morais! Reconhecer isso é essencial para entender a problemética dessa duplicidade moral, gelatinosa e perturbadora. Pois, dramaticamente, 0 oportunismo nao é mero desvio das normas morais oficiais, mas conjunto articulado de justificagées para os malfeitos. Afinal, os costumes tipificados como “imorais” pelos canones piiblicos da integridade s4o considerados socialmente aceitaveis do ponto de vista privado, ainda que, por pudor ou por manha, nao saiam das sombras da intimidade ou da érbita dos “pequenos comités”. Basta citar 0s muitos usos e costumes sociais, cuja in- tensidade, recorréncia e banalidade sao de todos conhecidos." Os padrées culturais oportunistas fazem parte do cotidiano e se inspiram pela maxima “defenda o seu ¢ deixe de ser bobo”.'* Todavia, eles nao eliminam de vez os padrées {ntegros. E como sabemos disso? Porque, se 0 oportunismo fosse generalizado e ocorresse o tempo todo, ninguém levaria vantagem: as espertezas se neutralizariam mutuamente. Convivem as turras, portanto, uma moral “idealista” (a da integri- dade) e uma moral “funcional” (a do oportunismo), ambas amplamente difundidas e ambas contraditérias. Decorre daf uma venenosa confusio das mentes.'’ E, nao obstante um clamor por “ética” ecoe em toda parte, +h tamanha plasticidade das condutas e ha tanto gosto pelos mais variados casufsmos, que todos ficam o tempo todo em alerta, com medo de alguém “[hes passar a perna”. Nas mais comezinhas atividades do dia a dia, os brasileiros ficam 4 mercé de dilemas a serem resolvidos: afinal, como agir? A quem se deve lealdade? Quais interesses devem ser respeitados: os interesses pessoais, grupais e gerais, de cardter universalista (que nao lesam ninguém), ou os interesses pessoais e grupais, de carter particularista (que, embora nos beneficiem, prejudicam outros)? O que vale: ter senso de interdependén- cia ou olhar exclusivamente para o préprio umbigo? Esses conflitos de 236 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER valores traduzem conflitos de interesses e revelam ao comum dos mortais a relatividade das normas morais. Por fim, é importante nao confundir as normas jurfdicas ou as dis- posigdes legais com as normas morais. E bem verdade que ambos os tipos de normas regulamentam as relagées sociais, postulam condutas obrigatérias, assumem a forma de imperativos e visam a garantir a coe- sao social. Entretanto, enquanto as normas morais exigem uma adeséo imaginéria que se transforma em coagao interna aos agentes, as normas juridicas sio cumpridas haja ou nao adeso. E por qué? Porque funcio- nam, sobretudo, com base na coergao externa. As primeiras tiram seu substrato do princfpio da legitimidade; as segundas tiram seu substrato do princfpio da legalidade. Em resumo, as normas morais dizem respeito 4 dimensao simbélicocul- tural da realidade social e animam as relacées de saber. As normas juridicas, por sua vez, dizem respeito a dimensio politico-juridica da realidade social e expressam as relagées de poder. A diferenga essencial fica clara ao compa- rar o cédigo de conduta da Alta Administragao Federal, de natureza ética ¢ simbélica, com o cédigo de transito, de natureza jurfdica e politica. Estabelecer com precisao essa distingo nao constitui preciosismo aca- démico, pois permite desmistificar uma tendéncia corrente que tem tornado sinénimos a moralidade e a legalidade. Ora, nem tudo que é legal ¢ ipso facto moral e vice-versa. Aliés, uma simples combinatéria pode elucidar a questao a contento. Tomemos por parametros as leis brasileiras atuais e a moral brasileira ptiblica (nao a oficiosa). Assim, fatos sociais podem ser: = Legais e morais, tal como o treinamento de funciondrios patrocinado por uma empresa ow a ceriménia de um casamento religioso; = Legais e imorais, tal como a falta de corregio pelo governo da tabela do Imposto de Renda por anos a fio, sob a alegagio de que atualiz-la seria reintroduzir o instituto da correg4o monetéria, ou a validago da candidatura de politicos a cargos eleitorais, processados por improbidade administrativas" = Ilegais e morais, tal como o desrespeito ao sinal vermelho de ma- drugada nas grandes cidades, pelo receio que os motoristas tém de serem assaltados, ou o fato de alguém apostar no jogo do bicho, mesmo sendo uma contravengao — esses fatos, embora ilegais, po- dem ser comentados em ptiblico sem que isso denigra a reputagao das pessoas; a 8. A ética nas organizagées 27 = Ilegais ¢ imorais, tal como 0 tréfico de drogas ow as fraudes em licitagées ptiblicas. Infere-se disso tudo que os cédigos juridicos categorizam as condutas em termos do que é permitido (autorizado) e do que é proibido (vedado), enquanto os cédigos morais categorizam as condutas em termos do que & certo (esperado) ¢ do que é errado (inaceitavel). Ademais, a legalidade sanciona os agentes por coagio (punigio), enquanto a moralidade os san- ciona por censura (constrangimento moral). Diferentes, ainda, sao os cédigos de boas maneiras — a etiqueta so- cial da boa educagao —, j4 que estabelecem as condutas convenientes € as inconvenientes, as apropriadas e as inapropriadas, as oportunas ¢ as inoportunas. Ou seja: nao cabe tampouco confundir moral e deferéncias, moral e protocolos adotados em ocasiées formais. Feita essa limpeza de terreno, voltemos ao objeto de estudo da ética: © que vém a ser as morais que conferem moralidade a determinados fatos sociais? Sao: = Cédigos que padronizam e normalizam os costumes sociais; = Pautas de conduta que validam algumas decisées e acdes e estigma- tizam outras, fruto de convengées socialmente constitufdas; = Sistemas de normas simbélicas, discursos de justificagio"” que residem no coragio das ideologias e, portanto, das culturas orga- nizacionais; = Ferramentas de reprodugio social que asseguram a previsibilidade dos comportamentos, ao ensinar aos agentes a melhor forma de agir; = Mecanismos de controle social que zelam pelo cumprimento das expectativas sociais e operam por meio de sangées;"* = Discursos com abrangéncias diversas: macrossociais ou gerais quando recobrem sociedades inclusivas (uma civilizagio ou um pais deter- minado); mesossociais ou setoriais quando s4o professadas por uma classe social, uma categoria social ou um setor social especffico; e microssociais ou organizacionais quando dizem respeito a uma organizacao particular.'” Por pulsarem como micleos vivos das ideologias, as morais expressam interesses coletivos. Por isso é que cada coletividade se empenha em tornar hegeménica sua moral peculiar.” Na sociedade feudal, por exemplo, havia 238 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER uma moral da nobreza cavalheiresca, de cunho aristocratico e estamen- tal; outra do clero secular e das ordens monisticas, de cunho religioso e também estamental; outra das corporagées de offcio, e outra ainda das universidades, ambas de cunho corporativo. Isso para nio falar das morais dos guetos — por exemplo, da moral judaica ou da moral cigana. Trocado em mitidos: para cada estamento, etnia ou corporagao existia um cédigo moral. Mas isso néo significa que nao existisse uma moral catélica que permeava e se sobrepunha a todas as outras. Como moral geral, ela dava © tom as demais morais (setoriais e organizacionais) que teciam variagdes em torno do tema maior. Dito de outra forma, toda coletividade tende a desenvolver uma moral propria, um cédigo de conduta proprio, um sistema de normas simbélicas que serve de eixo ¢ orienta seus membros. E isso a despeito das morais especificas As quais eles aderem e que espelham suas diferentes pertencas de classe, de categorias sociais ou de organizacées. Toda moral é assim coletiva: traduz padrées culturais socialmente construfdos ¢ definidos; regula as relagdes de convivéncia social; preside as decisdes e as agdes que ‘os agentes adotam; pauta condutas que identificam seus agentes e que sao também esperadas pelos demais membros da coletividade. Por isso é que nao faz sentido falar de moral pessoal, como se os sistemas normativos fossem produtos de uma cozinha idiossincrética," nem cabe especular quanto A possibilidade de existir uma sociedade exclusivamente constitufda por egofstas empedernidos. Por qué? Por ser uma impossibilidade pritica: tal situagao nega os lagos de sociabilidade indispensaveis para a existéncia humana, implica a auséncia de uma rede minima de relagées de confianga, reduz toda “sociedade” a um aglomerado informe ¢ desconjuntado de unidades singulares. Em suma, supe um despropésito nao s6 tedrico, mas empirico. Para fechar o raciocinio e entender de vez o que vem a ser a moralida- de, vamos rever os fatos sociais destituidos de contetido moral. Deslocar uma pedra no caminho com o pé, por brincadeira, néo tem valor moral, pois é um fato que nao esta sujeito & incidéncia ou ao policiamento de alguma norma ou avaliagio moral, porque nao afeta os outros para 0 bem ou para o mal. Nesse sentido, é um fato neutro, um fato amoral.” Agora, arremessar uma pedra sobre pedestres ou sobre um vefculo que esteja de passagem é uma acdo imoral. Por qué? Porque pée em risco a vida dos pedestres ou dos ocupantes do vefculo, provoca efeitos negativos 8. A ética nas organizacées 239 sobre eles. Ademais — ¢ ja num outro plano -, 0 ato é ilegal, uma vez que infringe leis que visam a preservar a integridade fisica das pessoas e viola © instituto da propriedade privada (0 veiculo, que é um bem, poderia ser danificado). A ética como ciéncia social Recapitulando, a ética nao se confunde com a moral como induzem erroneamente as expressées consagradas ética catélica, protestante, li- beral, socialista, ou ainda, ética dos negécios. A razao é simples: a ética um corpo universal de conhecimentos, enquanto a moral é relativa no tempo e¢ no espaco. Nao ha “ética” crista, comunista ou seja 14 o que for o adjetivo, 4 medida que esses fenémenos situam-se em dado lugar e tem natureza histérica; ao passo que o estatuto da ética é tedrico e corresponde a generalidades abstratas e formais.” A ética: = E uma investigagao sistematica sobre a moralidade, um corpo de conhecimentos; = Tem por propésito tornar inteligiveis os fenémenos morais, os siste- mas normativos ou os cédigos morais que as coletividades elaboram e divulgam; = Estuda a diversidade moral ¢ seus fundamentos histéricos; = Contextualiza as escolhas que os agentes fazem em situagées con- cretas; = Verifica se as opgdes estabelecidas se coadunam com os padrées morais ou os transgridem; = Formula um conjunto de ferramentas de andlise de aplicagao uni- versal; = Fica no mesmo plano ocupado pelas chamadas disciplinas sistemé- ticas e produz conceitos do mais alto nivel de abstragao (conceitos gerais);* « Distingue-se, por isso mesmo, das morais histéricas que imbuem as coletividades.> Ao ser aplicado as morais, 0 conhecimento ético capta os fundamen- tos das tomadas de decisio, nao importa o Ambito em que se processem — geral, setorial, organizacional ou interpessoal. De maneira que seria a1 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER mais apropriado falar de ética aplicada ao catolicismo, protestantismo, liberalismo, socialismo, ou aplicada aos negécios. Nesta altura da exposicao, é importante saber que, na sua origem entre os gregos antigos, a ética fazia parte da filosofia. Sempre refletiu sobre a melhor maneira de viver, sobre “o dever ser” ou os ideais morais. Este viés prescritivo converteu a ética filoséfica em fonte inestimavel de sermées religiosos, 8 medida que ela avalia os costumes, convalida-os ou reprova-os, diz quais ages sociais so moralmente vilidas e quais no 0 sao. De fato, a ética filoséfica corresponde a um discurso racional de base especulativa e consiste em produzir evidéncias doutrindrias, quer dizer, retéricas, que prescindem de provas empiricas.”* Pois tende a estabelecer princfpios constantes e universalmente vdlidos de condugao da vida. No final do século XIX, porém, e como desdobramento da sociolo- gia, desenvolveu-se novo enfoque: a ética cientifica. Esta estuda “o que é”, a moralidade como fenédmeno objetivo. Assim, de forma diametral- mente oposta 4 abordagem filoséfica que ainda mantém sua hegemonia intelectual, produz uma bateria de conceitos cientificos — universais, abstrato-formais, testaveis — capazes de dar conta da realidade especifica dos fenémenos morais. Porque aborda os fatos morais e as normas morais que as coletividades consideram vilidas, sem prejulgar ou sequer julgar, mas com o propésito de contextualiz4-las e de explicar sua razo de ser. Articula, sobretudo, um discurso demonstrativo de base empirica. Configuram-se, assim, dois enfoques: = A filosofia da moral, prescritiva e normativa, que se esforca em apreender pressupostos morais universais, atemporais e transcen- dentes. Trata-se de uma elaborada reflexio cujos produtos sio juizos de valor, avaliagées ou apreciacées destinadas a inspirar os homens, malgrado as contingéncias de lugar e de tempo; = Aciéncia da moral, descritiva e explicativa, que centra sua aten¢ao no conhecimento sociolégico dos fatos sociais que afetam objetivamente os agentes para o bem ou para o mal. Trata-se de uma investigagao metédica que observa, descreve e explica a ocorréncia dos fatos morais, capta suas regularidades, demonstra seus fundamentos e produz juizos de realidade. Vejamos um exemplo de anilise, a partir de um enfoque cientifico, Na Europa medieval, antes da Reforma Protestante, toda aquisi¢ao de riquezas 8. A ética nas organizacées acima do estritamente necessdrio para atender As préprias necessidades era considerada um excesso que pertencia a sociedade. O excedente econémico devia ser entregue A Igreja Catélica, pois a ela cabia distribuir beneficios e fornecer servigos aos necessitados por meio de suas obras pias, j4 que res- pondia pelo ensino, assim como pela satide da populacio e pela assisténcia social. Nenhum homem tinha direito a uma recompensa econémica, a nao ser que se empenhasse num trabalho socialmente ttil. O fim da atividade produtiva consistia em oferecer bens e servicos 4 comunidade e em capa- citar cada pessoa a viver com conforto e seguranca. O processo econémico no podia facultar a quem quer que fosse a oportunidade de enriquecer as custas dos outros. Todas as atividades deviam ter por propésito a maior gloria de Deus (ad majoram Dei gloriam). Todo negécio que visava ao lucro era essencialmente imoral, e o valor de um bem devia ser igual a seu prego de producao, donde o principio do “prego justo”. Artesdos e comerciantes deviam cobrar tao 6 0 necessdrio para se ressarcirem dos préprios custos, e a especulagao era considerada indigna, porque nada produzia. Rotulava-se 0 empréstimo a juros como sendo usura e quem 0 praticava incorria em pecado grave, porque significava receber proventos sem investir trabalho, num claro abuso cometido contra os tomadores dos empréstimos. De maneira que as economias feudal, mercantile artesanal da Idade Média subordinavam-se A ideologia religiosa catélica e, logo, A moral cristé medieval. Por quais razdes? Duas: a posigao estratégica ocupada pelo aparelho clerical e 0 empenho deste em estabelecer um monopilio ideolégico sobre os agentes econémicos. Em outros termos, concebia-se a aquisig4o de riqueza como um jogo de soma zero, resultado de atos moralmente suspeitos e condendveis. Todo lucro tendia a ser visto como exploragao, ganancia e extors4o, e ndo como justa troca, daf a adjetivagao como turpe lucrum.”’ Nessas condigées, a economia mercantil nao podia prosperar e seus agentes resumiam-se aos parias do sistema — drabes e judeus.* A legitimagao do lucro capitalista 6 veio a ser feita pelo protestantismo, com especial destaque para o calvi- nismo, que justificou a acumulagao de dinheiro e santificou o lucro como agradaveis a Deus e como sinais presumidos de salvagdo. Mas somente 0 advento do capitalismo como sistema socioeconémico — a partir da Re- volugao Industrial — mostrou a utilidade das fungées do capital e permitiu postular o lucro como justa recompensa pelos servigos prestados.”” Ora, qual questao-chave est4 subjacente a essas observagées? A acumu- lacdo de riqueza e a obtencao do lucro foram legitimadas por uma moral 242 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER particular (a protestante) e nao por aquela que manteve a hegemonia durante séculos (a moral catélica). Isso indica que entre as morais travam- -se embates, da mesma maneira que ocorre entre as ideologias polfticas e econémicas. Ou melhor: ha contendas entre os agentes coletivos cujos interesses objetivos sao traduzidos por esses idedrios. De um lado, o clero catélico que se apropriava de excedentes para se manter e para financiar atividades de assisténcia social, e que legitimava o fato com a vontade de Deus; de outro lado, a burguesia mercantile a burguesia manufatureira, ansiosas para se livrar das peias ideolégicas que impediam a acumulagio do capital, e cujas praticas o protestantismo iria legitimar. A relevancia dos ativos intangiveis Reponta para os olhares prevenidos a importancia estratégica que os ativos imateriais adquiriram na sociedade da informagao e na economia do conhecimento. De fato, nao se define mais o valor das empresas apenas ¢ tao somente pelo peso de seus ativos materiais — capital fisico ¢ capital financeiro. Mas computam-se também os ativos intangiveis: 0 capital in- telectual’* bem como o capital de reputagio.*? Em muitos casos, os ativos intangiveis chegam a valer mais do que os ativos tangiveis, notadamente no setor de servicos. Daf o imenso cuidado que se tem — ou que se deveria ter — com a preservacdo, ampliagdo e consolidago dos bens imateriais. ‘A experiéncia, ali4s, demonstra que um deslize significativo no ambito moral basta para pér em risco esse patriménio, sobretudo da parte mais sensivel que é a reputagao. O que é a reputacio? O conceito que uma coletividade atribui a uma organizacao ou um individuo, a percepcio ptiblica construfda ao longo do tempo, um componente-chave da autoridade moral que se conquista a duras penas. Em termos correntes, corresponde ao prestigio, 4 fama, ao renome, A consideragio ou ao respeito de que se desfruta. E possivel estabelecer uma analogia entre um filme e a reputagdo, ao apanhar o movimento ¢ a dinamica que aquele implica. Em contrapartida, a ima- gem de uma empresa lembra uma fotografia, o lado estatico ou o corte instantaneo. Numa remissao a gestalt, a imagem faz as vezes de figura, ao passo que a reputagao constitui o fundo sobre o qual se projeta a imagem. Valor intangivel, a reputacao se incorpora aos produtos e servigos como relagio de confianca sedimentada no decurso dos anos ou como credibi- lidade publica. Cabedal moral, a reputagao estabelece uma relagao direta 8. A ética nas organizacées 243 com o valor patrimonial da organizagao, da mesma forma que o capital intelectual: quanto maior for esse cabedal, maior ser o valor patrimonial ¢ quanto menor for, menor ser4 o valor patrimonial. Numa economia capitalista, qual é 0 objetivo dos negécios? Gerar valor econémico e agreg4-lo aos ativos. Para tanto, os empreendedores devem desenvolver produtos ou servigos que atendam a necessidades de mercado e sejam solviveis. Somente assim haveré realizado de lucros. Caso os artigos ou servigos sejam excelentes, porém caros demais, os clientes potenciais tendero a se afastar; ao revés, caso os artigos ou servicos sejam inadequa- dos, ainda que tenham pregos acessiveis, os clientes também tenderao a nao adquiri-los. Nessas circunstancias, o capital investido — capital de isco — ser perdido, De outra parte, nao basta que os empreendedores desenvolvam valores de troca atraentes e economicamente vidveis, Precisam atentar para outro fato crucial: os clientes nao compram apenas bens ou servigos pelos seus atributos, qualidades ou precos; compram ao mesmo tempo as promes- sas de beneficio que eles embutem ou as expectativas que os acompanham. Dito de outra forma, os produtos ou servigos nao so adquiridos apenas pelas necessidades materiais que preenchem, mas também pelas associagdes imagindrias que satisfazem — emogées despertadas, estilos de vida propa- lados, sonhos provocados, valores culturais expressos, prestigio almejado. Nao so comprados em estado bruto, sendo conjugados com elaboragées mentais, fabulagées que seus consumidores se aprazem em cultivar. Vamos exemplificar: quem vai comer um Big Mac no McDonald’s nao escolhe essa rede internacional de lanchonetes exclusivamente pela qualidade de seus produtos. Procura igualmente rapidez no atendimento (os sanduiches estao prontos para o consumo), exige higiene (sabe por experiéncia, ou por ouvir dizer, que a manipulacio dos alimentos respeita padrées internacionais) e, sobretudo, requer padronizagao dos produtos (em qualquer uma das dezenas de milhares de lanchonetes espalhadas pelo mundo, o hambiirguer segue a mesmfssima receita). Se uma dessas expectativas deixar de ser satisfeita de forma recorrente, o negécio po- deria se descaracterizar, perder félego e até ir 4 faléncia. Se houver filas e tempo de espera no atendimento, o cliente poderd preferir a lanchonete da esquina; se houver falta de higiene, o cliente poder dirigir-se ao car- rinho de cachorro-quente plantado na calgada; se houver hambtirgueres com sabores variados, em fungio da desigual habilidade do “chapeiro”, o cliente poder eleger o trailer de lanches estacionado na praca, lugar em que informard as suas preferéncias diretamente ao dono. 1 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER De forma simétrica, quem compra um vefculo Volkswagen conta com © baixo custo de manutengao, a robustez do carro e um bom valor de re- venda. Quem compra uma motocicleta Harley-Davidson sabe muito bem que paga caro por algo que o diferencia do comum dos mortais: ele nio 0 faz porque deseja apenas possuir um vefculo de alto rendimento (existem motocicletas japonesas que sao admiraveis concorrentes); sonha desfrutar a vida no comando de um {cone atemporal da cultura norte-americana; quer participar do maior clube de fidelidade de motos do planeta, uma verdadeira confraria. Em conclusdo: seria insensato pdr esses intangiveis a perder, para nao dizer fatal, tanto para a Volkswagen quanto para a Harley-Davidson. O estreito vinculo entre os fatores intangfveis e a andlise ética pode- ria ser ilustrado com dois casos emblematicos. Em 1984, Gerald Ratner tornou-se presidente da empresa da familia — uma rede de joalherias de 130 lojas — e empenhou-se em reinventar 0 negécio. Decidiu vender joias baratas de baixo padrao e adotou varios recursos de marketing: fez promogées, facilitou pagamentos, converteu seu negécio numa espécie de supermercado. Em oito anos, Ratner construiu um império de 2.500 joalherias no Reino Unido e nos Estados Unidos, com receita anual de £1,2 bilhao e 25 mil funciondrios. Embora fosse incensado pela midia, atraiu sobre sia ira de seus pares que nao o consideravam um auténtico joalhei- ro. Indiferente aos alaridos, expandiu-se comprando seus concorrentes, enquanto jogava duro com seus fornecedores. Em 1991, foi convidado a pronunciar um discurso de 30 minutos a4 mil executivos no Royal Albert Hall. Foi quando ele perpetrou uma piada para tornar mais palataveis suas reflexdes: disse que os brincos que vendia custavam menos do que um sanduiche de camario... E, como que revelando o segredo do negécio, arrematou com uma frase de efeito: qualificou as joias que sua companhia comercializava como completa porcaria (total crap)! Como nao podia deixar de ser, a repercussao foi devastadora. E por qué? Porque Ratner matou o sonho, destruiu a ilusdo do luxo que ele mesmo fomentou. Em decorréncia, os clientes afluiram em peso as lojas para devolver os produ- tos; ninguém o socorreu na crise em fungdo da mA reputac4o angariada junto a seus pares e fornecedores; e seu nome tornou-se sindnimo de gafe empresarial. Ele renunciou a presidéncia da empresa; a rede se desfez, amargando a perda de £500 milhées.” O segundo caso é do conhecimento geral: trata-se da Arthur Andersen, uma das cinco maiores empresas de auditoria externa do mundo, respon- 8. A ética nas organizacées 245 sdvel por uma receita mundial anual de US$9,3 bilhdes em 2001 e que empregava 85 mil pessoas espalhadas em dezenas de paises. Havia sido a auditora da Enron, sétima maior corporacao dos Estados Unidos, por mais de dez anos. A Enron foi 4 bancarrota em 2002 quando foi denun- ciada por manipular balangos contabeis desde 1997. Muito perturbada com 0 ocorrido ¢ no afa de dificultar as acusagées que pesavam contra seu cliente, a Arthur Andersen prontificou-se a eliminar fisicamente e a apagar eletronicamente intimeros documentos comprometedores. Feito © servigo, cobrou por ele, emitindo a competente nota fiscal. Tudo isso foi desvendado durante as investigacées e coincidiu com o escindalo da WorldCom —a segunda maior operadora de telefonia de longa distancia dos Estados Unidos —, que também reconheceu uma fraude monumental de varios bilhdes de délares. Ocorre que a WorldCom também tinha suas contas auditadas pela Arthur Andersen. Resultado: a tradicional empre- sa de auditoria acabou entrando em colapso. Causa? Foi simplesmente boicotada pelos clientes que, sabiamente, nao admitiram associar-se com quem havia conspurcado a prépria reputacao. Apesar de continuar muito competente do ponto de vista profissional, a Arthur Andersen havia dila- pidado seu patriménio moral, a respeitabilidade que era a base essencial de seu negécio. Para quem duvida que existam no Brasil represélias de igual porte, basta lembrar o caso do ex-senador Luiz Estevao: foi o primeito senador cassado por falta de decoro parlamentar em funcio de seu envolvimento num escandalo de superfaturamento (construgao do Tribunal Regional do Trabalho de Sao Paulo). Dono do Grupo OK, que congregava 18 empresas com 4 mil empregados e que faturava R$250 milhées no ano 2000, ficou reduzido em 2003 a uma receita de R$12 milhdes ¢ a 350 empregados, além de ter todos os scus bens mantidos indisponfveis por ordem judi- cial. Em depoimento confessou passar 99% de seu tempo respondendo a processos criminais.>* O poder de fogo dos clientes é ainda mais visivel no caso que envolveu a Botica ao Veado D’Ouro, farmdcia de manipulagao centendria fundada em 1858. A Botica foi acusada de ter falsificado um remédio convencional indicado para o tratamento de cAncer de préstata, pertencente 4 Sche- ring do Brasil. Depois de batida policial, um milhao de comprimidos do Androcur foi encontrado num laboratério de sua propriedade chamado Veafarm. Ocorre que os comprimidos nao continham o princfpio ativo... Dez pacientes que faleceram na época podem ter tido a morte acelerada 41 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER em fungao do placebo. Revelado o fato, a acusagio foi repercutida pela midia c teve efeitos arrasadores sobre a empresa. A clientela nao perdoou 0 descaso, nem a fraude, nem a irresponsabilidade praticamente homici- da: puniu a Botica ao Veado D’Ouro com um eficaz boicote e a empresa entrou em colapso.*’ No contexto contemporanco, trés fatores essenciais se conjugam ¢ conferem a sociedade civil uma invejavel capacidade de retaliar empresas julgadas socialmente irresponséveis: = Acompeti¢ao econémica faculta aos clientes a possibilidade concreta de debandar para o concorrente (voto com a carteira); = Os regimes politicos liberais asseguram aos cidadaos o direito efetivo de recorrer a Justiga e as agéncias de defesa do consumidor; = A midia plural e investigativa, apoiada nas telecomunicagées em tempo real, retine condigées para questionar fatos lesivos 4 popu- lacdo e pode conspurcar ou destruir reputacées. Isso equivale a dizer que os ativos intangiveis encontram-se na depen- déncia de indmeros riscos e pressées. E preciso ressaltar, no entanto, que existem setores que se encontram sob intenso fogo cruzado e se equilibram mais do que outros no fio da navalha — setores para os quais a confianga constitui uma espécie de alicerce. Por exemplo: » As organizagées nao governamentais vivem de doagées e nao podem pér em xeque a confianga publica nelas depositadas = As empresas de auditoria independente vendem respeitabilidade como fonte de legitimagao de seus pareceres; = Os bancos de investimento dependem de confiabilidade para captar ¢ operar recursos financeiros; = Os centros de pesquisa se perpetuam gracas a fidedignidade dos dados que apresentam e dos conhecimentos que geram; # Os laboratérios de medicina diagnéstica supdem necessariamente a acurdcia de seus laudos; # Os profissionais liberais oferecem servigos cujo aval repousa em sua credibilidade. Em fungao disso, a preservacao dos ativos intangiveis exige uma com- petente investigagao ética. Principalmente quando se sabe que deslizes 8. A ética nas organizacées 247 morais tém 0 condao de provocar imensos prejuizos ou até a ruina do empreendimento. Pior ainda quando se sabe que os pendores oportunistas nao s4o apenas tentacées entranhadas no cotidiano, mas constituem tra- digdes que encontram complacéncia e cumplicidade nos cfrculos intimos. Tais incentivos acabam multiplicando os desvios, ao invés de coibi-los, Em consequéncia, toda indefinigao sobre questées sensfveis ou moralmente polémicas por parte das organizagées arrisca pagar amargo pre¢o. O particularismo e 0 universalismo As morais expressam padrées culturais, razio pela qual existem e existiram milhares delas no mundo. Esses padrées sao socialmente con- vencionados e espelham condigées histéricas bem determinadas; sao di- yersos no espaco ¢ dindmicos no tempo. Nao ha, pois, pautas universais ¢ imutdveis como alguns se comprazem em acreditar, nem hd moral eterna como muitas fés religiosas anunciam. Os romanos j4 ensinavam que os costumes mudam com os tempos (o tempora, o mores). Afinal, toda co- letividade cultiva um sistema préprio de normas morais que define, a seu modo, o bem e o mal, o certo € 0 errado, 0 justo € 0 injusto, o legitimo e 0 ilegitimo, as virtudes ¢ os vicios. Uma ilustraco do relativismo cultural pode ser vishumbrada nas visdes comparadas sobre a sexualidade. Os filmes norte-americanos de meados do século passado costumavam ter um final feliz (0 happy end) que consistia no enlace entre os namorados — seu selo era um casto beijo na boca e, logo, o casamento consagrava uma vida harmoniosa para todo o sempre. Sabemos infelizmente que, apesar dos votos solenemente proclamados pe- los noivos no altar — compromissos de fidelidade e de mutuo apoio tanto na bonanga quanto nas agruras da vida —, esse doce futuro nem sempre se da. Atualmente, os filmes norte-americanos fizeram 0 aggiornamento do fecho otimista e substitufram o beijo pelo intercurso sexual. Ora, mais uma vez a realidade € madrasta, a comegar pela incompatibilidade das peles ou pela auséncia de “quimica” entre os parceiros. Contudo, entre © beijo selinho e o erotismo de alcova, que muitos filmes exibem, 0 sexo preservou seu lugar de honra na mitologia norte-americana: antes impli- cito, agora quase explicito. Mudou apenas a forma de encaré-lo, fruto da liberalizagao dos costumes. Bem diversa é a mensagem que passam os programas de auditério no Brasil: mulheres em trajes sum4rios expdem traseiros diante de cameras ae] Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER libertinas e requebram sem pudor. Os movimentos sinuosos ¢ lascivos afastam toda magia ¢ rebaixam a sexualidade a uma sensualidade vulgar. Nao A toa muitas religides cultivam reservas, restrig6es ou até franca hostilidade com relagio ao sexo, apenas abengoado no seio do matriménio ¢ somente para perpetuar a espécie. O que se diria eno dos esquimés que entendiam 0 sexo como uma fungio natural e organica? Ou dos indios bra- sileitos que, origindria e singelamente, o viam como atividade hidica? Assim sendo, como ordenar o aparente caos dos padrées morais? Dis- pondo de instrumentos rigorosos de andlise. A comegar pela separacao das Aguas em duas grandes categorias: acdes morais podem ser universalistas, quer dizer, consensuais porque o bem gerado interessa a todos os seres humanos, ou podem ser particularistas, quer dizer, abusivas porque o bem gerado prejudica outros seres humanos.°* Comecemos pelas ages cometidas por agentes individuais. Muitos confundem egofsmo com a defesa dos interesses pessoais, Trata-se de uma simplificagdo enganosa. A satisfagao do interesse pessoal nem sempre € egofsta. Ser egofsta € ter um amor exclusive ou excessivo de si. Supde comportamentos exclusivistas, egocéntricos, prejudiciais aos interesses alheios. Ora, nada hd de errado em defender interesses pessoais. Proble- matico € quando os interesses dos outros sao afetados para nos beneficiar. Em resumo, hd egofsmo quando a satisfacao dos interesses pessoais se dé em detrimento dos interesses alheios.?” O egofsmo torna-se sociopatico se levado as tiltimas consequéncia Porque a realizacao do interesse pessoal necessita de regras que o limitem: sem moralidade que distinga o certo do errado nao existiriam normas de convivéncia social e deixariam de existir sociedades humanas. E ver- dade que 0 egofsmo pode brotar ocasional e pontualmente. Mas a tese do egoismo generalizado é um contrassenso, & medida que o interesse pessoal ensimesmado, soberano e inconteste no consegue ocupar todos ‘os espacos. Ninguém é plenamente autossuficiente. Ninguém satisfaz as proprias necessidades sem passar pela mediagao dos outros. Ninguém vive 86, apartado de seus semelhantes. Ninguém pode deixar de levar em conta os interesses de outrem em todas e quaisquer circunstancias. E preciso, pois, distinguir egofsmo e autointeresse. Enquanto o primeiro significa realizar interesses pessoais 4 custa ou em detrimento dos outros, o segundo significa que o individuo age de forma benigna sem prejudicar os interesses alheios. Por exemplo, descansar depois da jornada de trabalho, candidatar-se a um emprego, inscrever-se num curso de pés-graduacio, 8. A ética nas organizacées 249 pleitear um aumento salarial, participar de um concurso interno na em- presa... $40 umas tantas agdes que nao prejudicam ninguém, ainda que atendam as necessidades do agente individual e o beneficiem. Em resumo: os interesses pessoais podem realizar-se seja de forma autointeressada (universalist, porque a natureza da agao é consensual ao interessar a todos os seres humanos), seja de forma egofsta (particularista, porque a natureza da aco é abusiva ao prejudicar outros seres humanos). Assim, no é necessariamente preciso atentar contra os interesses dos outros para realizar interesses individuais. E mais ainda: no mais das vezes, a inter- vencio cooperativa dos demais agentes sociais torna-se imprescindivel. Isso nos leva 4 questo do altrufsmo. O altrufsmo postula a necessidade imperiosa de preocupar-se com 0s outros, de ir ao encontro de seus interes- ses e, sobretudo, de nao prejudicé-los. Nao significa apenas, como alguns imaginam, amor desinteressado pelo préximo ou filantropia. Somente o altrufsmo extremado ou puro considera o interesse do pr6éximo como um fim que mereca ages abnegadas e desprendidas. Que agées sao estas? E © caso dos missiondrios que prestam socorro a populacées flageladas, dos voluntarios do Terceiro Setor, dos filantropos e de todos aqueles que doam tempo ou dinheiro, ou ainda que se expéem a riscos em prol da coletivi- dade — bombeiros, salva-vidas, médicos que debelam epidemias, soldados da ONU... Agées de tamanha generosidade, no entanto, nao devem ser entendidas como movimentos unilaterais: o desprendimento no é absoluto, mas relativo, pois os benfeitores ou os doadores recebem em troca se nao reconhecimento social, pelo menos uma gratificacio psicolégica. Quando Adam Smith descreve o paradoxo moral do sistema capitalista em A Riqueza das Nacées,°* ele nao faz 0 elogio do egofsmo exclusivista como alguns, inadvertidamente, interpretam. Mostra como o sistema capitalista funciona com base no autointeresse e nao movido por um af’ egoistico.®” Afinal, a satisfac dos interesses particulares passa pelo atendimento das necessidades dos clientes. Sem o qué, o dispéndio de energia seria initil, os esforgos seriam baldados e o capital perdido. Em outras palavras, exigéncias de mercado conduzem a adogio do senso de interdependéncia. Como o lucro € 0 dinamo do sistema capitalista e visa a obter retorno sobre os investimentos realizados, o autointeresse dos empreendedores os induz a produzir aquilo que o mercado demanda, sob risco de o negécio no prosperar. Nao se trata, por conseguinte, de um interesse egofsta que os move, mas do autointeresse que precisa corres- ponder as expectativas de outros agentes para se realizar. 250 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER Convenhamos, no entanto, que a légica da maximizagio do lucro e a tendéncia a concentragio do capital podem eventualmente privilegiar 0 parcialismo, ou seja, podem conduzir a satisfagao dos interesses empresa- riais 4 custa dos outros. Isso nado quer dizer que todas as empresas sempre deem as costas aos demais agentes.*” Mas o que vem a ser exatamente o parcialismo? Significa que um grupo causa danos aos outros de modo ganancioso e discriminador. Significa satisfazer interesses grupais em detrimento dos interesses alheios ou rea- lizar o bem grupal de forma abusiva, portanto particularista. Exemplos abundam: dar calote em fornecedores, poluir o meio ambiente, desmatar reas de preservacao permanente, sonegar impostos, formar cartéis, cobrar “pedagio” de prestadores de servigos...*! Pior ainda, no parcialismo dormitam tenebrosos deménios. £ fonte de preconceitos (os demais grupos sio sujos, mesquinhos, inferiores outros que tais); base da intolerancia (somos melhores do que aqueles 14); ¢ plataforma do édio (€ preciso livrar-se dessa escéria). E no parcialismo que reside o problema de maior gravidade do ponto de vista ético porque, diferentemente dos individuos, os grupos possuem. cacifes que lhes permitem segregar e até eliminar os “diferentes”. E a partir do discurso de justificagao parcial que derivam as limpezas étnicas, os cam- pos de concentragio, a escravidao em larga escala, as guerras religiosas, as carnificinas entre seitas ou, num registro mais trivial, os confrontos entre torcidas organizada: E vital distinguir, ainda, parcialismo e altrufsmo. Quando hé altruismo ento? Quando o individuo ou o grupo se preocupa com o bem-estar dos outros e age de modo cooperativo e solidério; quando um agente leva em conta os interesses dos outros para nao prejudic4-los. Por exemplo: respeitar os direitos autorais de artistas, intelectuais ou produtores de softwares; denunciar as tentativas de extorsao praticadas por fiscais; nao ocupar os lugares destinados a portadores de deficiéncia, idosos e mulheres gravidas; premiar o desempenho positivo dos colaboradores; nao fumar em recinto fechado para no provocar fumo passivo. Agir de modo altruista significa beneficiar os outros na medida do possfvel, ainda que isso implique algum “custo” (esforco ou contribuigao). Vale dizer, nao se deve ter uma leitura ingénua do altrufsmo. Ninguém, em sa consciéncia, pararia o seu vefculo a meia noite na Marginal do Tieté em Sio Paulo para socorrer uma mulher que acena, na escuridio, diante de um carro encostado. Por que ser4? Por maldade, descaso, indiferenga? 8. A ética nas organizacées Claro que nao. E porque antevé o risco de um assalto. Se quiser ajudar, poderia, isso sim, telefonar para o mimero de emergéncia da Policia Militar. Seria um gesto altrufsta, além de prudente. Nao se deve tampouco imaginar 0 altrufsmo como uma via de mao tinica: a prdtica é uma via de duas maos; trata-se de uma relacao biunfvoca em que ambas as partes se beneficiam de algum modo. Quem se der a0 trabalho de telefonar para o nimero 190 para alertar a Policia a respeito da mulher que se encontra parada na Marginal saber que agiu como cidadio ¢ ficard com isso satisfeito. Afinal, essa mulher poderia, em outra ocasiao, ser a esposa do motorista, a irma dele ou sua prépria mae, de sorte que ele ficaria grato se outro cidadao vier a tomar essa mesma providéncia. Porque o telefonema corresponde a uma ago cooperativa (atuar juntos) ¢ solidaria (compromisso com 0 outro). Outro caso é o da empresa que capacita tecnicamente seu pessoal. Nao se trata de mero gesto de desprendimento, uma vez que a empresa aumenta com isso a produtividade do negécio, aprimora a qualidade dos produtos, ganha eficiéncia no atendimento, valoriza o préprio capital in- telectual, além de obter outras vantagens motivacionais (melhora do clima organizacional, empenho do pessoal, divida moral para com a empresa). Do ponto de vista dos funciondrios, por sua vez, h4 ganhos indiscutiveis: a maior qualificacao Ihes confere maior empregabilidade, & medida que os torna mais competitivos e os valoriza no mercado de trabalho. O fato & que o altruismo assegura a coesio coletiva pelo senso de interdependéncia. Com efeito, a muiltipla satisfago de interesses € uma vantagem evolutiva do Homo sapiens, como aliés o € de todos os animais gregarios, porque garante maior capacidade de apropriagio e de defesa do espaco vital. Usando, agora, uma expressao consagrada por algumas coletividades e que foi chamada de “regra de ouro”, o altrufsmo corresponde a tratar os outros do mesmo jeito que se espera ser tratado. Um ponto essencial merece agora relevo: hé varios altrufsmos e néo um s6 como acena o senso comum. Cada um dos altrufsmos remete, porém, a interesses especificos, seja & realizagdo do bem grupal, seja realizagao do bem comum. Sublinhemos também: o altrufsmo tem necessariamente carter universalista, pois interessa a todos ¢ nao prejudica ninguém.*? Quando uma empresa faz 0 recall voluntério de produtos defeituo- sos, age de forma altrufsta restrita. Arca com os custos da devolugio ¢ do reparo, reconhece publicamente 0 erro cometido e pede desculpas a 252 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER seus clientes. Este caso nos remete ao altruismo restrito que corresponde a praticas de apoio miituo que beneficiam um grupo ou alguns grupos. Tanto pode ser praticado pelo 22 Setor (0 lucrativo), como pelo 12 Setor (0 pablico) e 0 32 Setor (o voluntério). O beneficio grupal nao prejudica os interesses alheios e reforga os lagos de afinidade existentes entre os membros do grupo ou dos grupos envolvidos. O bem gerado é restrito, porque nao abarca a sociedade como um todo, embora possa provocar reflexos benéficos de amplo espectro. De maneira que a realizacio do bem grupal pode ocorrer de duas maneiras distintas. Uma consensual, uma vez que 0 grupo age de forma benevolente sem prejudicar outros, ¢ isso nos reporta ao altrufsmo restri- to. Outra abusiva, uma vez que o grupo age de forma danosa e prejudica outros, ¢ isso nos reporta ao parcialismo. Ora, esses dois conceitos nos lembram de chofre os dois anteriores, em fungao das simetrias conceituais que apresentam. De fato, um indivi- duo realiza bem pessoal seja de maneira autointeressada, seja de maneira egofsta; um grupo realiza bem grupal seja mancira altruista restrita, seja de maneira parcial. Assim, autointeresse e altrufsmo restrito, bem como egofs- moe parcialismo obedecem A mesma légica: consensuais e universalistas os primeiros; abusivos ¢ particularistas os segundos. Contudo—e vale a pena insistir nisso —, nao so conceitos equivalentes, pois realizam interesses de agentes diversos: individuos os primeiros; grupos os segundos. Exempliquemos. Sao praticas altrufstas restritas uma empresa montar um SAC (Servigo de Atendimento ao Cliente) ou financiar cursos de pés-gradu- acio aos executivos (ganham os clientes os colaboradores respectivamente, assim como ganha a propria empresa com os efeitos positivos produzidos). S4o prticas parciais uma empresa vender produtos usados como novos ou cometer espionagem econémica (perdem os clientes ¢ os concorrentes, embora ganhe a empresa). S4o praticas autointeressadas um individuo gozar férias remuneradas em periodo negociado com sua chefia ou aceitar uma promogao (ninguém sai prejudicado, embora o agente se beneficie com isso). Sao praticas egofstas um individuo maquiar as informagées sobre a carreira profissional ou espalhar fofocas maliciosas a respeito de colegas (0 agente se beneficia A custa da empresa, de um lado, e dos colegas, de outro). Nessas circunstancias, quais os efeitos das escolhas feitas pelos agentes? Procuram sempre um bem para si, 0 que é absolutamente natural. Todavia, conseguem obté-lo cometendo mal aos outros por meio de atos egofstas ou parciais, vale dizer, langam mao de praticas abusivas e particularistas. 8. A ética nas organizacées 253 Ou conseguem obté-lo sem prejudicar ninguém e até fazendo bem aos outros, por meio de atos autointeressados ou altruistas, vale dizer, langam mio de praticas consensuais e universalistas. Avangando nessa linha de raciocinio, cabe perguntar-se: 0 que orienta decisées e ages? Valores universalistas orientam praticas que s4o consen- suais, porque obedecem a légica da inclusio: o bem gerado interessa a todos os seres humanos (todo mundo quer desfrutd-lo). Por isso é que o autointeresse ¢ os altrufsmos se pautam pela razdo ética.* Em contrapar- tida, valores particularistas orientam praticas que s4o abusivas, porque obedecem A légica da exclusdo: o bem de uns causa mal a outros seres humanos (poucos se locupletam a custa de muitos). Por isso é que 0 ego- {smo ¢ o parcialismo se pautam pela racionalizagdo antiética.4 Fis entao revisitada a linha de demarcagao que nos permite categorizar universalmente os fatos morais: universalismo versus particularismo, pré- ticas consensuais versus praticas abusivas, raz4o ética versus racionalizagao antiét Um esclarecimento agora se faz necessdrio. Estamos fazendo repetidas referéncias aos altrufsmos, utilizando o plural, mas s6 explicamos 0 con- ceito de altrufsmo restrito. Quais sao os demais altrufsmos? S40 dois e se referem 4 realizagao do bem comum, a saber, visam satisfazer interesses gerais e consistem, por isso mesmo, em préticas consensuais. O altruismo extremado corresponde a praticas em boa parte desinteres- sadas (nao totalmente desinteressadas, pois hd sempre uma contrapartida). Trata-se de sacrificios que benfeitores fazem para ajudar seus semelhantes que se encontram em situag4o emergencial (boas causas) ou para aliviar o sofrimento de necessitados (ajuda humanitéria). Vocagao tipica do 32 Setor, remete a uma espécie de herofsmo moral que pessoas abnegadas adotam em reiterados gestos de desprendimento. De maneira menos arrojada, porém nao menos generosa, também remete aos voluntdrios do Terceiro Setor que o praticam. A partir dos anos 1990, quando a faléncia do Estado, sua hipertrofia e sua incapacidade de atender a demandas sociais especfficas ficaram patentes, um ponto de inflexao na histéria social brasileira ocor- reu — multiplicaram-se as agdes de cooperacio coletiva."* Sao exemplos do altrufsmo extremado: amparar vitimas de fome ou de epidemias; atender feridos em teatro de guerra; doar érgaos; acolher refugiados, doentes, sinistrados ou desamparados; doar invengées, soft- wares ou patentes; oferecer abrigo e cestas de alimentos a populagées flageladas e assim por diante. 254 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER Resta-nos falar do altruismo imparcial, um processo em que se con- jugam os interesses gerais, grupais e pessoais, fundamento primeiro do convivio social. De fato, o altrufsmo imparcial visa a realizac4o de interesses sociais (ambito societério) e corresponde a praticas de interesse geral — vocacio tipica do 12 Setor (piiblico) —, porque diz respeito a produgao de bens ou de servigos ptiblicos. Gera beneficios que sio compartilhados por todos, menos por aqueles que se encontram 4 margem da sociedade (delinquentes ou miserdveis exclufdos pelo mercado). Serve de base & sociabilidade humana, a medida que realiza o bem comum e viabiliza a convivéncia social. Alias, os agentes sociais adotam tais processos nao por razées humanitdrias, mas por motivos essencialmente pragmaticos que se coadunam com os imperativos gregarios. Se nao, vejamos. Peguemos o servico de ambulancia. Primeira pergunta: é de interesse geral que exista? E claro que sim, pois pode salvar vidas. Segunda pergunta: € de interesse do hospital que presta o servigo? Se for um hospital privado, uma prestagio de servigo remunerada; se for um hospital publico, é um servigo que previne maiores complicagées aos pacientes. Terceira pergunta: € de interesse pessoal do paciente transportado? Sem diivida, j4 que pode abreviar seu sofrimento ¢ antecipar graves consequéncias. Conclusa ninguém é contra, todo mundo se beneficia, trata-se de servigo essencial, combinam-se os trés tipos de interesses (gerais, grupais e pessoais). A mesma situagdo se reproduz com as operacées de torres de controle em aeroportos: quem iria, em sa consciéncia, opor-se a sua existéncia? Elas nao asseguram com suas disciplinas a seguranca da populagio circun- vizinha, dos avides em transito e de seus tripulantes e passageiros? Mais ainda: qual passageiro conhece de fato a tripulagio? Raros, para nao dizer. nenhum, Ora, como é possivel que alguém entregue em mios alheias o que tem de mais precioso — a prépria vida? Fagamos aqui algumas suposig6es: os passageiros confiam (consciente ou inconscientemente) no rigor do De- partamento de Aviagao Civil (DAC) que nao autorizaria o funcionamento de companhias aéreas incompetentes. Confiam, ademais, nos programas de manutengio preventiva e corretiva das empresas, em sua capacidade de selecionar e de treinar pilotos habilitados e em seu interesse intrfnseco em. evitar acidentes. Em tltima andlise, os passageiros supdem que os pilotos prezem a prépria vida (quedas de aviao costumam ser fatais), razao pela qual poderiam viajar sossegados... Todas as organizagées que so indispensdveis para o convivio coletivo exercitam o altrufsmo imparcial. E suficiente pensar na relevancia de por- 8. A ética nas organizacées 255 tos, hidrelétricas, bibliotecas piblicas, museus, redes de esgoto, escolas, hospitais, emissoras de radio ou de televisdo, correios, hidrovias, parques, seguranga ptiblica, sepultamento ou cremagao de corpos, operadoras de telefonia ou de gas natural, tribunais de Justica, companhias metrovidrias, ferrovidrias ou de 6nibus, centros de detengio etc.. Nao h4 muito o que pensar para convencer-se de sua centralidade para a existéncia coletiva. Agente social algum deixa de usufruir desses bens e servicos, a nao ser, € claro, os marginalizados. E todos os bens e servigos piblicos representam umas tantas ilustragdes de um fato primario: sem equipamentos de interesse comum, sem mecanismos de regulagao social, sem regras de convivéncia social, a vida em sociedade se inviabiliza.* Sao exemplos de altrufsmo imparcial: o atendimento de pacientes por critérios de urgéncia médica; a proibigdo do fumo em ambiente fechado de uso coletivo; a operag’o do sistema monetario; o abastecimento da popula- do com alimentos e remédios; a proibigo da pesca em tempo de reproducio das espécies (perfodo de defeso); 0 pagamento por servicos ambientais; a diminuigéo do tamanho das embalagens, reduzindo insumos... Isso nos leva a indagar: quais os fundamentos do altrufsmo imparcial? = Aimparcialidade, a medida que todos os interesses sio considerados sem que haja distingao ou discriminagao entre os agentes sociais; » Auniversalidade, uma vez que os processos sao aplicaveis em qual- quer lugar, ou seja, transcendem fronteiras e diferencas; = A equidade, j4 que os efeitos beneficiam a todos igualmente, ainda que proporcionais as necessidades desiguais dos agentes. Feitas essas consideragées, vale a pena consolidar nossas distingdes: = Individuos realizam o bem pessoal exercendo préticas egoistas ou praticas autointeressadas. = Grupos realizam o bem grupal exercendo praticas parciais ou prd- ticas altrufstas restritas. = Coletividades inclusivas (sociedades e humanidade) realizam o bem comum exercendo praticas altrufstas imparciais ou praticas altrufstas extremadas. Em suma, ao agrupar os conceitos, temos praticas abusivas, de carater particularista, e que obedecem A racionalizagao antiética: so elas as praticas 256 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER egofstas e parciais. E temos prdticas consensuais, de carater universalista, ¢ que obedecem a razio ética: sao clas as prdticas autointeressadas ¢ as altrufstas restritas, imparciais e extremadas. Por exemplo, dois alunos de uma importante escola privada paulista- na prestaram vestibular no meio do terceiro ano do ensino médio como “treineiros”. Cada qual entrou numa faculdade de renome. Para viabilizar a inscrig4o, ambos obtiveram o diploma do ensino médio gracas a uma suposta reclassificacao feita por um colégio do Mato Grosso do Sul. Como qualificar esta situagao do ponto de vista cientifico? Trata-se de uma agao egofsta perpetrada pelos alunos, de inicio, pois o beneficio pessoal de cada qual foi obtido & custa de um candidato devidamente habilitado. No se- gundo momento, quando da compra do diploma, houve uma agio parcial, pois o beneficio foi grupal, com varios agentes se locupletando a custa dos candidatos preteridos. Em ambos os momentos, operou uma légica particularista de exclusdo, com base em justificativas que correspondem a racionalizagao antiética. Por exemplo: o diploma do ensino médio é mera formalidade burocratica, demonstramos cabalmente que possuimos os conhecimentos necess4rios para passar no vestibular; obtivemos maiores notas do que os candidatos preteridos; é injusto que a falta de um pape- lucho prejudique quem est4 melhor classificado... O diretor da escola paulistana percebeu a manobra e denunciou o fato 4s autoridades educacionais. Feita a investigacao, o Ministério da Educagao interveio no colégio responsivel pela irregularidade: os diplomas foram invalidados e as matrfculas dos alunos nas faculdades canceladas. Como caracterizar este desdobramento do ponto de vista cientifico? Trata-se de altrufsmo imparcial tanto por parte do MEC como por parte do diretor da escola, porque preservou o bem comum: prevaleceu o respeito As regras, houve punigao do jeitinho, restabeleceu-se o resultado correto ¢ devolve- ram-se as vagas aos candidatos habilitados. Isto 6, adotaram-se praticas que operam sob a légica da inclusao e que correspondem a razio ética. Por fim, um exemplo interessante que versa sobre a doacao de sangue. tese a doagao visa a salvar vidas humanas. Constitui uma pratica altruista extremada quando é feita de forma anénima e gratuita, pois promove o bem para a humanidade. Entretanto, se a doagao for feita mediante pagamento, sob a égide de uma rede clandestina de trafico que comercializa o sangue, trata-se de pritica parcial, uma vez que varios agentes se locupletam em detrimento dos interesses gerais. Agora, se o doador receber um incentivo oferecido publicamente — remissio de um dia de trabalho, lanche, tipagem 8. A ética nas organizacées 237 de sangue, meia entrada em espetdculos ou isengao de taxas de inscrigéo em exames ¢ concursos piiblicos —, a prética é altruista imparcial, j4 que beneficia todos os membros de uma sociedade concreta. Por fim, se a do- agao tiver um endereco certo, seja um parente ou seja um amigo, a pratica permanece altrufsta extremada, pois se trata de um ato humanitdrio (o propésito é socorrer), embora pareca altruista restrita. As teorias éticas e os processos de decisio A voz corrente é a de que, diante de um dilema moral, faz-se uma es- colha entre o bem e o mal. Ocorre que esta forma convencional de pensar pode embutir uma conclusao precipitada: se eu estou fazendo a coisa certa, isso significa que quem se ope a mim esté fazendo a coisa errada... Ora, as duas coisas podem estar certas! Com efeito, o leque das decisées éticas nao se reduz 4 escolha do bem zer, A escolha entre o bem e o mal. E possfvel haver escolha entre dois bens, quer dizer, escolher entre o bem € 0 bem. mais ainda: é possfvel escolher fazer um sacriffcio — “mal necessdrio” — para obter um bem maior, quer dizer, escolher o mal para alcangar o bem. E, finalmente, é possfvel fazer 0 sacrificio do “mal menor” para evitar um para afastar o mal, quer di Figura 16 O leque das decisées éticas “+ Escolha do bem ppara afastar o mal + Escolha entre doisbens Bem/Mal Bem/Bem [™ WwW Mal/Mal Mal/Bem. + Sacrificio do mal ‘menor para evitar um mal maior «= Sacrificio do mal necessério para ‘obter um bern maior 258 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER mal maior, quer dizer, escolher entre o mal e o mal. Eis uma combinatéria que traduz.a extraordindria riqueza das anilises éticas. Vamos dar exemplos de escolhas entre o bem e o bem. Pagar uma divida em dia ou ajudar um amigo necessitado? Denunciar a Receita Federal a empresa na qual se trabalha por maquiar dados de balanco ou recusar-se simplesmente a compactuar e arriscar ser demitido? Apoiar colega que é vitima de assédio moral e perder uma promog¢io certa ou manter-se neutro ¢ obter a promogio que resolver4 as pendéncias financeiras da propria familia? Cursar um MBA exigente ou dedicar 0 escasso tempo livre aos filhos adolescentes? Agora, para entender as questées candentes levantadas pela problemé- tica do “mal necessdrio” e do “mal menor” € preciso remeter-se As teorias éticas. De fato, a semelhanga das demais ciéncias, nao ha uma tinica teoria que ocupe todo o espago da investigagao ética. No campo da sociologia, por exemplo, € possfvel identificar trés grandes matrizes tedricas que sio classicas — a funcionalista, a weberiana e a materialista histérica. Na ciéncia da moral, de igual modo, duas teorias éticas cientificas sao reco- nhecidas —a teoria ética da conviccdo e a teoria ética da responsabilidade. Ambas configuram, em ultima andlise, dois modos radicalmente distintos de tomar decisao.** As teorias éticas legitimam as decisées morais ao fundamenta-las e ao mostrar seus efeitos universalistas. $40 cientfficas, porque a contrapelo da filosofia, s40 um “pensar com provas” trag4o, explicitam os fundamentos sociolégicos tanto estruturais quanto histéricos dos dilemas enfrentados e, por conseguinte, captam o porqué da adocio de tais ou quais cursos de agio. O carter abstrato-formal de seus conceitos confere-lhe a universalidade indispensdvel para que possam ser investidos no conhecimento das intime- ras situagées concretas que emergem em quaisquer tempos e sob quaisquer céus. Por exemplo, o saber da medicina alopatica pode ser investido no conhecimento de quaisquer espécimes de Homo sapiens. Afinal, a biologia humana é uma s6. Da mesma maneira, decisdes éticas existem em quaisquer sociedades humanas, assim como sao universais os dois modos de tomar decisio — o de aplicar convicgées universalistas as polémicas morais (teoria da convicgao) ou o de elaborar solugées universalistas para os problemas morais com base na anilise de riscos (teoria da responsabilidade). Vamos agora distinguir as duas teorias que conferem consisténcia as decisées ¢ as abrigam sob o guarda-chuva da raz4o ética. A teoria ética da constituem discursos de demons- 8. A ética nas organizacées 259 conviccdo obedece a uma mecanica especifica. Ela ensina que, para serem justificadas, as decisées ¢ as agdes devem estrita obediéncia a um proto- colo previamente estipulado, isto é, exigem conformidade a prescrigées ou a virtudes de carater universalista. Vale dizer: as agdes condizem com as obrigacGes? Trata-se entao de cumprir deveres, daf o relativo conforto que a tomada de decisio provoca, uma vez que ela se vale de solugdes consagradas. Por sua vez, a teoria ética da responsabilidade esté animada por outra dinamica. Considera justificadas as decisées e as ages que atingirem fins universalistas, resultados que interessem a todos os seres humanos. A questo que se coloca é: quais as consequéncias presumiveis das aces? Assumem-se riscos calculados obedecendo ao seguinte compasso: as ages cujos maleficios forem maiores do que os beneficios carecem de justifi- cago ética. Em outras palavras, nao basta pretender fins universalistas, é preciso também ter éxito na empreitada; nao basta uma andlise apurada, é indispensdvel que ocorram os efeitos presumtveis sobre os agentes. Trata- -se entao de realizar uma anilise situacional e um célculo racional, donde certa vertigem na tomada de decisdo, uma vez que as incertezas perduram até na fase de implantacao da decisio. Ambas as teorias éticas adotam por pressuposto a realizacao do univer- salismo consensual pelo exercicio de préticas autointeressadas ou altruistas. Por qué? Porque as praticas egofstas ou parciais, como j4 0 vimos, interes- sam exclusivamente a alguns em detrimento de muitos, sem que existam raz6es fundadas para tanto — sejam elas situagdes extremas ou condicgdes de viabilidade pratica —, daf a caréncia de legitimidade ética. A teoria ética da responsabilidade sustenta essa tese, ali4s, com um ra- ciocinio limpido. Vejamos o caso de um navio que esteja afundando e que nao disponha de botes salva-vidas em quantidade suficiente para acolher todos os passageitos e tripulantes.” Nao havendo possibilidades concre- tas de salvar todos (condigées de viabilidade pratica), nao seria legitimo imaginar que coubesse salvar um naémero menor, porém objetivamente possivel? Faz-se o que é factivel fazer nessas circunstancias, de modo a melhor atender o interesse coletivo. Nao se trata, é claro, de privilegiar alguns em detrimento de outros, para nao desembocar no particularismo abusivo. Adota-se entao o mal necessdrio, a saber, comete-se um sacriffcio para alcangar um bem maior. A teoria ética da convicgao defende a tese de outra forma: o que é de interesse geral, salvar alguns ou salvar todos? Obviamente, salvar todos. 601 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER Como nio se pode fazé-lo e nao se pode barganhar com vidas humanas, isto é, decidir quem viverd e quem morrer, o destino de cada qual fica nas maos de Deus ou da sorte.*" Assim sendo, na teoria ética da conviccao, as decisées ¢ as agées con- substanciam pressupostos socialmente definidos e compartilhados, desde que universalistas. Elas aplicam principios ou ideais sine ira et studio (sem raiva ou parcialidade). Se o bem comum nio for realizado, nao vem ao caso: desde que cumpra suas obrigagées, 0 agente nao pode ser responsa- bilizado pelos resultados das ages. No cerne da teoria ética da convicgao opera uma légica formal do tipo “faca o que deve ser feito e aconteca 0 que tiver de acontecer”. Quais s4o ent4o os fatores que entram em linha de conta? A coeréncia entre a ac4o € a intengdo, a pureza das intengées, a estrita consisténcia entre o feito e o socialmente esperado. Por exemplo, se uma menina gravida com quinze anos, depois de ter implorado sem sucesso a ajuda da mie catélica para realizar um aborto (ideia rejeitada como pecado abomindvel), vier a morrer no parto, alguém culparé a mae? De forma alguma. Nem a propria mae se sentiré responsavel. Por que ser? Porque cumpriu o seu dever, deu curso a crengas coletivas amplamente partilhadas, cometeu uma agio virtuosa, levou adiante uma agao racional em relagéo a um valor universalista (nao sacrificar a vida do feto). Se a menina morreu, era seu destino, Deus assim quis, havia chegado sua hora. Nao foi a proibigao do aborto que causou sua morte, foi o parto.*! Na teoria ética da responsabilidade, diferentemente, os propésitos que orientam as decisdes e as agdes, bem como os resultados presumidos, s6 se justificam se gerarem os beneficios prometidos. Cabe ao agente analisar as necessidades e as dificuldades emergentes, assumir riscos calculados e agir com as devidas precaugdes — cometer, pois, uma agio racional em relagao a fins universalistas. Mas nao s6: precisa necessariamente chegar 4s metas pretendidas, isto é, executar corretamente as providéncias cabiveis. No cerne da teoria ética da responsabilidade opera uma légica pratica do tipo “faca o que for necessdrio para que ocorram efeitos benéficos”. Entram em linha de conta a presungo da certeza ¢ a eficdcia do resultado.” Por exemplo, suponhamos que a menina gravida nio tivesse pedido ajuda A mae dela, pois sabia de antem4o que a resposta seria negativa. E supo- nhamos ainda que ela tivesse recorrido ao pai e este tivesse patrocinado o aborto da crianga nao desejada. Como ficaria a situagao se a menina viesse a falecer no aborto? Nao ha diivida: o pai seria considerado responsavel pelo falecimento. Ele responderia por todas as consequéncias negativas 8. A ética nas organizacées da ag4o; nao poderia amparar-se nas justificativas que os padrées cultu- rais conferem; ficaria em campo aberto, submetido ao fogo cruzado das criticas e das sangées. Em suma, estaria desemparado ou, na melhor das hipéteses, contaria com a solidariedade de poucos amigos. Isso nos motiva a investigar os modos de tomar decisao que as duas teo- rias éticas nos revelam. O famoso romance A Escolha de Sofia de William Styron nos servird de plataforma para tal incursao. Durante a Segunda Guerra Mundial, a jovem e bela Sofia Zawistowska, catélica, filha de um professor de direito e mae de dois filhos, teve o marido 0 pai mortos na Poldnia invadida pelas tropas alemas. Depois de presa ao traficar carne, foi mandada para o campo de concentragio de Auschwitz com os dois filhos —um menino e uma menina. Na fila de triagem, depois do desembarque, um oficial alemao se interessou por ela, elogiando sua beleza e dizendo-lhe cruamente que gostaria de dormir com ela. Logo depois quis saber se era comunista e, na sequéncia, se era judia. Diante da dupla negativa, propés salvar-lhe a vida e a de uma crianga, desde que ela escolhesse entre as duas aquela que seria salva ¢ aquela que seria sacrificada... Ou seja: caso nao escolhesse, morreriam as duas criangas; caso escolhesse uma delas, a outra sobreviveria. Em panico, refém de uma situacao extrema, Sofia recusou-se a decidir. Irado, o oficial mandou arrastar as duas criangas para a fila da camara de gs. Foi quando Sofia, em prantos, escolheu a filha... que foi morta. O oficial cumpriu sua promessa, preservando a vida dela ea do filho. O que ocorreu nessa hist6ria? Sofia fez uma escolha, ainda que em desespero de causa. Adotou o caminho da anélise das circunstancias, da relacg4o custo-beneffcio. Optou pelo menor dos males, porque tentar salvar a vida de uma crianga é um fim de carter universalista. Fez uma andlise de riscos. Temos assim, diante de nés, algumas das chaves de decifragao da teoria da responsabilidade. Em franco contraste, a teoria ética da convicg4o é um corpo de pres- crigGes absolutas, dogméticas, iluminadas pela pureza doutrinaria de seus imperativos . As obrigacées morais que esta teoria inspira assumem feigées incondicionais e unfvocas. Sua mdxima é “tudo ou nada”, 4 semelhanga dos programas de tolerancia zero. Alias, todas as morais ou sistemas nor- mativos que a invocam reproduzem esse modo de obrar. Qual é entao seu mecanismo-chave? O das distingSes qualitativas, indissociavelmente opostas e articuladas: o bom e o mau, o branco e 0 preto, o sim e 0 nao, © certo e 0 etrado, 0 virtuoso € 0 vicioso, o fiel e o infiel. Cumpre aos 262 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER agentes fazerem escolhas entre termos bindrios, categorias insertas em dicotomias inconcilidveis, componentes de binémios maniqueistas. O ar- gumento trivial de que a teoria se vale é: nado existe meia gravidez! Nessa visdo inteiriga, os alicerces do mundo sao unidades discretas: inexistem meios termos, zonas cinzentas, matizes. Assim, no caso de Sofia, ela nao deveria ter escolhido, nao poderia ter transigido com a vida da filha, Deus € quem decide quanto a isso. Deveria ter langado 0 repto, sim: ou os dois vivem ou os dois morrem! E eu com elas! Nao o fez. Diferente foi o caso de um soldado alemao, vitima de um dilema assemelhado durante a Segunda Guerra Mundial. Estavamos em 1944 e, enquanto as tropas estavam em retirada na Itdlia Setentrional, um oficial foi morto por guerrilheiros italianos (partigiani). O comandante alemao ficou furioso e quis dar uma ligao exemplar: ordenou a seus soldados que prendessem a esmo vinte civis na aldeia mais préxima. Trazidos sua presenga, mandou executd-los. Acontece que, antes do fuzilamento, um dos soldados — piedoso e comprometido com os valores cristios — assinalou ao comandante que matar vinte homens para vingar um nico oficial parecia um tanto desproporcional. O comandante refletiu e disse ao soldado: “esté bem, escolha um deles e fuzile-o!”. Por razdes de consciéncia, 0 soldado nao ousou escolher. Logo depois, os vinte civis foram fuzilados. Decorridos cinquenta anos, esse mesmo homem ainda sofria com a decisio que tomou, embora nenhum tribunal o culpasse. Pensava que se tivesse tido a coragem de escolher e se tivesse assumido a responsabilidade de matar um infeliz, dezenove inocentes nao teriam perdido a vida...°° Mas a decisio que ele havia adotado se enquadra na rigida mecanica da teoria ética da conviccao. Ele se refugiara, quisesse ele ou nao, sob as asas protetoras de um idealismo que nado mede consequéncias. Aplicara aos prisioneiros italianos aquilo que ele julgou ser seu dever, uma postura imperativa que derivava de suas convicgées cristés — nao matar, que é um valor universalista. Seu procedimento havia sido dedutivo: procurara em um relance qual seria a solugéo 4 charada que seu superior Ihe havia langado e a identificara num dos dez mandamentos divinos.** Dito de outra forma, a teoria ética da convit = Consiste em aplicar pressupostos éticos as situagées concretas que apresentem dilemas, em pingar na consciéncia moral dos agentes as convicgées assimiladas no processo de socializacio; 8. A ética nas organizacées 263 « Eumateoria que repousa em certezas ¢ em imperativos categéricos —verdadeiro repertério de respostas acabadas ¢ verdades absolu- tas, como se fosse um vade mécum de mandamentos, prescrigées, preceitos, ordenacées, normas, obrigacées, ditames, determinacdes ou deveres de natureza universalista;*® = Opera como processo de decisio dedutivo, uma vez que se vale de preceitos definidos ex ante; = Prescreve aos agentes que observem cédigos universalistas que sua consciéncia introjetou (fruto dos padrées morais da sociedade em que vivem), lhes determina estrita obediéncia aos ditames morais ¢ exige rigorosa conformidade as regras sociais. A teoria ética da responsabilidade, diversamente: = Consiste em realizar uma andlise situacional e um cAlculo racional: configura, assim, uma anilise de riscos; = Forga os agentes a procurar respostas que facultem resultados bené- ficos de carter universalista, ou seja, orienta agdes que maximizem beneffcios (produzam resultados objetivamente positivos) e minimi- zem maleffcios (evitem resultados objetivamente negativos); = Inspira-se pela maxima da utilidade (decisdes e agGes se justificam eticamente se forem capazes de maximizar 0 bem para o maior muimero possivel de pessoas) ou pela maxima da eficdcia (decisées e agées se justificam eticamente se forem capazes, em situagées extre- mas, de fazer 0 maximo de bem As pessoas objetivamente possiveis de beneficiar); « Eum processo de reflexdo indutivo — ex post — e os riscos assu- midos sao calculados; = Parte do pressuposto de que as soluges nao existem a priori, mas precisam ser construfdas, como se fosse uma obra em aberto, cujas ameagas e oportunidades merecem ser ponderadas num esforgo incessante que exige maturidade ¢ competéncia estratégica. Um caso relativamente recente pode ilustrar o embate entre as duas teorias éticas: trata-se da decisdo quanto a interrupgao da gestagio de feto anencefilico. Por nao possuirem cérebro, os fetos nao tém chance de viver: morrem dentro do titero ou poucas horas apés o parto. A teoria ética da responsa- We] Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER bilidade concorda que é preciso conceder as maes o direito de interromper agravidez, enquanto a teoria ética da convicgao se opée a tal, pelo menos na visio da Igreja Catélica e de muitas nagées islamicas que qualificam o aborto como assassinato.*” As vertentes das duas teorias éticas Cabe alertar, no entanto, que as respostas a dilemas ou a questées eti- camente polémicas nao sao tinicas ou uniformes, nem mesmo no caso da teoria ética da conviccao. E bem verdade que ela tem um modo préprio de tomar deciséo, um algoritmo ou um método formal que consiste em aplicar prescrigées universalistas. Mas as decisées podem ser mdltiplas e divergir na esséncia, dependendo dos valores culturais que estejam em jogo. Pois, como todo corpo de conhecimentos abstratoformais, a teoria da convicgéo funciona como uma gramatica: ela supée certas regras de procedimento, nao define a substancia histérica ou axiolégica dos pre- ceitos, embora respeite sempre a légica inclusiva do universalismo. Isso significa que o contetido dos deveres a serem observados adquire impor- tancia maitiscula. Veja-se 0 caso de uma crianga exangue, internada em situagio de emergéncia num hospital. Estamos em meados dos 1990. O médico de plantao lhe receita uma urgente transfusao de sangue em fungao do risco de morte. De forma surpreendente, os pais da crianga se opdem A prescrigao do médico ¢ se declaram ‘Testemunhas de Jeova. Depois de argumentar inutilmente, o médico consulta seus pares. A equipe médica é sondada as pressas e decide salvar a vida do paciente. Apoia-se em qué? No juramento de Hipécrates, chave de seu cédigo profissional de conduta, que prescreve que o médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em beneficio do paciente. Ora, pais e médicos se escoram no mesmo modo de tomar decisao que ateoria da conviccao utiliza. Porém, embora universalistas, os valores que 0s guiam s4o diferentes. De uma parte, os pais consideram fundamental que sua fé seja respeitada, porquanto a transfusao de sangue apartaria seu filho da comunidade religiosa 4 qual pertence e, por isso, vetam a proposta. De outra parte, os médicos sustentam que nao realizar a transfusao constituiria um atentado a razdo de ser da medicina — zelar pela vida humana e atuar sempre em beneficio do paciente. Estabelece-se, assim, um evidente con- flito de valores, embora o modo de proceder seja o mesmo. Ou seja: para 8. A ética nas organizacées 265 dirimir polémicas, dilemas, dividas, aplicam-se mandamentos superiores; mas, no caso, as decisées acabam sendo opostas. Fica mais uma vez claro 0 quao importante é nao confundir o nfvel abstrato-formal das duas teorias e o nfvel histérico-real dos fenémenos morais. Uma coisa € navegar no espago sideral dos conceitos gerais, outra coisa radicalmente diversa é mergulhar por inteiro nas 4guas terrenas dos valores ou dos propésitos concretos. Uma coisa so os conhecimentos universais, outra coisa so os balizamentos morais singulares. A confusio comumente feita entre as morais hist6ricas (dos povos, classes, categorias sociais, organizagées) e o corpo de conhecimentos das teorias éticas faz com que se caia num relativismo exacerbado e inconsequente. Quando isso ocorre, a “ética”, assimilada a uma moral particular, fica na dependéncia das inclinagées de cada qual, balanga ao sabor dos padrées culturais ¢ faz escoar pelo ralo os critérios objetivos que sao imprescindiveis para a andlise cientifica. A teoria ética da convicgdo é uma ética dos deveres universalistas, da conformidade a preceitos previamente definidos ou da observancia de virtudes.** Ela preceitua que principios ou ideais devam pautar as decisées e as acées. De modo que ela abriga duas vertentes: = Ade principio, que normas atualizam, obedecendo & maxima “res- peite as regras universalistas haja o que houver”, pois ganham todos pelo respeito aos principios; « A da esperanca, que valores especificam, seguindo a m4xima “o ideal universalista antes de tudo”, pois ganham todos pelo triunfo dos ideais. A teoria ética da convicgao indica ainda que o arcabougo axiolégico acha-se inculcado nas consciéncias individuais: “Fago algo porque € um mandamento e devo cumprir minhas obrigagées”. No entanto, como as consciéncias nao existem no vacuo, de onde provém as mensagens que foram captadas ¢ assimiladas pelos agentes? Das varias agéncias de con- trole social: as tradicionais, como a familia, a comunidade local, a escola, a igreja, embora estejam perdendo vigor nas regides mais densamente urbanizadas; e as mais modernas, em franco processo de fortalecimento, tais como as empresas, o mercado, a mfdia e o Estado. Por sua vez, a teoria da responsabilidade é uma ética dos resultados, do célculo racional e dos riscos. Seu processo de legitimagio centra-se ee] Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER na realizagio de interesses universalistas e nao na satisfagao de interesses particularistas ou facciosos. Orienta os agentes a analisar 0 contexto ou as citcunstancias em que os dilemas se processam; os conduz a avaliar a relagio custo-beneficio e a ponderar as implicagdes que oportunidades e ameagas ensejam. Tudo isso a luz de propésitos universalistas — nunca ser demais insistir nesse ponto. De modo que a teoria da responsabilidade abriga também duas vertentes: = Ada finalidade que justifica decisées e ages em fungao da bondade dos fins, guiada pela maxima “realize fins universalistas custe o que for necessdrio”, pois ganham as pessoas objetivamente possiveis; = Autilitarista que justifica decisées e ages a partir de um jogo coletivo de soma positiva, norteada pela maxima “faca 0 maximo de bem para o maior ntimero”, pois mais gente sai ganhando. O agente entao pensa da seguinte forma: “Faco algo porque é o menor dos males ou porque gera o bem maior para todos”. ‘Assim sendo, apés muitos embates ¢ polémicas histéricas, é possivel colher intimeros exemplos de politicas e medidas tomadas segundo o processo decisério da teoria ética da responsabilidade. Sao eles “males necessdrios” para obter-se o bem geral, ou “males menores” para que sejam evitados males maiores. Vamos comegar com casos de “mal necessdrio”: = Provedores de Internet retém dados de usudrios e os entregam a policia a fim de combater 0 terrorismo ou o crime organizado: a quebra da privacidade é um mal necess4rio para que se obtenham in- formagées valiosas para prevenir graves ameacas ao bem comum. = A delagio premiada: o abrandamento da pena e até a anistia do acusado sio males necessirios para desvendar esquemas criminosos e para identificar de forma circunstanciada quem participou dos delitos. = Aadigao de iodo no sal: corre-se o risco de um possivel excesso que cause tireoidite autoimune, mas é um mal necessdrio para prevenir © bécio em adultos ¢ 0 cretinismo em criangas. = Os agrotéxicos e os pesticidas na agricultura: o impacto negativo sobre a satide e o meio ambiente s4o males necessarios para produzir alimentos em larga escala e controlar as pragas. 8. A ética nas organizacées 267 = Submeter-se a aplicagao de Raios X: a radiagao, perniciosa quando reiterada, é um mal necessdrio para diagnosticar fraturas, tumores, cAncer ¢ doengas dsseas. = Colocar conservantes nos alimentos enlatado: sdo males necessdrios para que sejam preservados contra a deterio- ragdo no transporte e no armazenamento. = Abater reses infectadas pela doenca da vaca louca e eliminar aves contaminadas pela gripe avidria: os prejuizos financeiros que os proprietarios sofrem sao males necessdrios para conter epidemias. = Usar fotocopiadoras: a nocividade dos raios laser e do negro de fumo do toner séo males necessdrios para ganhar eficiéncia e rapidez no campo administrativo. = A fluoragao da 4gua potavel: os possiveis erros de dosagem € 0 risco de fluorose sio males necessérios para prevenir e reduzir a incidéncia de caries dentarias na populagao. = A construgao de hidrelétricas: as 4reas inundadas, os moradores deslocados, a fauna e a flora afetados sao males necessdrios para gerar energia limpa. = Instalar reatores nucleares para gerar energia elétrica: o lixo nuclear € 0 risco de contaminagao radioativa sao males necessérios para obter eletricidade sem emitir gases de efeito estufa, chuva dcida ou destruigio da camada de oz6nio. = Aplicar a energia nuclear em diagnéstico e tratamento de intimeras doengas (medicina); irradiar alimentos para conservar alimentos e produzir sementes (agricultura); verificar a qualidade de equipamen- tos ¢ esterilizar materiais médicos e cirtirgicos (indtistria); monitorar poluentes e identificar recursos aquiferos (meio ambiente): 0 risco de contaminagdo é um mal necessdrio para obter ganhos em eficiéncia e produtividade com a utilizagéo de técnicas avangadas. seus efeitos nocivos A teoria ética da responsabilidade também se vale do processo decis6- rio que assume o “mal menor” para evitar um mal maior. Vejamos alguns exemplos: = Escolher um paciente entre outros para ocupar a tinica vaga dispo- nivel na UTI constitui um mal menor (procura-se salvar a pessoa objetivamente possfvel), pois os demais pacientes podem morrer, mas evita-se que todos morram (mal maior). ee] Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER = O rodizio de carros em dias alternados constitui um mal menor, pois causa transtorno aos motoristas atingidos pela medida, mas ameniza-se a enormidade dos congestionamentos (mal maior). = Triar feridos em hospitais de campanha constitui um mal menor, uma vez que os nao escolhidos tém grandes chances de vir a falecer, mas evita-se que muito mais soldados morram, caso um ou outro paciente grave monopolizasse a atengao da equipa cirtirgica (mal maior). «= Demitir funcionérios para aliviar custos em empresa que passa por graves dificuldades constitui um mal menor, pois os dispensados vio encarar o drama do desemprego, mas evita-se a faléncia da em- presa com a consequente extingdo de todos os postos de trabalho existentes (mal maior). = Dar preferéncia ao atendimento de idosos, gestantes, portadores de deficiéncia e mulheres com crianga de colo constitui um mal menor, pois desrespeita-se a ordem de chegada, mas evita-se agravar os desgastes fisicos que pessoas com dificuldades sofrem em longas filas (mal maior). = Autoridade ministerial negar na mfdia a iminente desvaloriza da moeda constitui um mal menor, por tratar-se de mentira civica (pode ser desmascarada, é claro, quando do langamento de um pacote), porque evita-se especulago no mercado, lesiva ao bem comum (mal maior). « Usar a “pflula do dia seguinte” que dificulta a fecundagao constitui um mal menor, pois existem contraindicagées ¢ efeitos colaterais, mas evita-se a gestagao de uma crianga indesejada (mal maior). = Escolher o paciente que terd o figado transplantado por critérios médicos constitui um mal menor, o de nao seguir a ordem de ins- crigao, mas evitam-se mais falecimentos (males maiores). 0 Veremos agora situagées que podem ser lidas de ambas as maneiras: como mal menor para evitar mal maior ou como mal necessério para obter um bem maior: = Ouso de remédios, em fungao dos efeitos colaterais e das reages adversas (remédio é um veneno que deve ser corretamente receitado e deve ser tomado na dose certa), mas evita-se doenga grave (mal maior) ou combate-se a doenca para obter a cura (bem maior). a 8. A ética nas organizagées 269 = As vacinas obrigatérias contra doengas contagiosas, em fungao das picadas e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas, mas evita-se a contaminac¢ao da populagao e os surtos epidémicos (males maiores) ou busca-se manter saud4vel a populagio (bem maior). = A derrubada de avides intrusos e suspeitos que entram no espago aéreo ese recusam a aterrissar, em fungao da perda de vidas, mas evitam-se os riscos de ataque terrorista ou de contrabando de drogas e armas (males maiores) ou garante-se a seguranga do pafs (bem maior). = As cirurgias invasivas, em fungao dos riscos da anestesia, das infec- 6es hospitalares e da eventual impericia do médico, mas evita-se 0 risco de morte ou de graves complicagées (males maiores) ou visa-se 4 plena recuperacao do paciente (bem maior). = O furto famélico em caso de calamidade natural, em fungio do atentado a propriedade privada, mas evita-se a mortandade da po- pulagao (mal maior) ou salvam-se vidas (bem maior). Apreciados esses exemplos, vé-se que grande parte das decisées es- tratégicas, nos planos politico e empresarial, se inspira na teoria ética da responsabilidade. E queira-se ou nio, implica 0 aceite de certa dose de “mal”. Ora, isso remete diretamente a um agudo debate em torno do uso dos meios: ser4 que certos fins justificam 0 uso de meios condendveis ou “jmpuros”? Duas concepgées aqui se contrapdem: a pureza dos meios versus a justeza dos fins. Na primeira concepgao, somente a pureza dos meios legitima as ages, ou seja, cabe “fazer certas as coisas” sem se preocupar com as consequéncias. Na segunda concepgio, a justeza dos fins legitima os meios adotados, ‘ou seja, cabe “fazer as coisas certas” porque boas consequéncias sao in- dispensaveis. Nessa toada, Albert Camus sentenciou de forma lapidar: “Sao os meios que justificam os fins”. Em paralelo, e de forma contundente, Hannah Arendt, profundamente inquieta com as atrocidades dos totalitarismos, alertou: “Aqueles que escolhem o mal menor esquecem rapidamente que escolheram o mal. O argumento do ‘mal menor’ é um dos mecanismos embutidos na maquinaria do terror e da criminalidade”. Assim, e em tese, a teoria ética da conviccdo recusa os meios que impliquem langar mao do mal. Em contrapartida, a teoria ética da responsabilidade aceita o mal que realiza mais bem ou que evita mal maior. 270 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER Contrapéem-se desse modo uma posigao idealista que considera que os fins nao justificam os meios, pois cometer algum mal compromete 0 bem que se quer, e uma posigio realista que considera que, embora meios puros sejam desejaveis, nem sempre sio possiveis, pois a realidade mostra que h4 males que vém para o bem. A dor, por exemplo, é um mal ttil, uma vez que é um sinal de alerta para que se tome uma atitude saneadora. Em fungao disso, cabe uma importante ponderagao: embora a teoria da convicgio reivindique 0 monopélio da defesa do uso de “meios pu- ros”, nao se pode deixar de ressaltar que foram utilizados muitos meios implacdveis em nome de princfpios e de ideais. Basta lembrar as torturas e os autos de fé procedidos pela Inquisig4o durante séculos e os atentados terroristas cometidos por fundamentalistas mugulmanos nos dias atuais (carros-bomba, homens-bomba, avides-bomba). Essa constatagao, no en- tanto, nao resolve a questdo. Uma tentativa para tanto consistiria em procurar legitimar o uso dos meios, principalmente por aqueles que sofrem suas consequéncias. $6 que precisaria ter por base, ¢ necessariamente, a macroperpectiva da huma- nidade. Afinal, muitas crueldades inomindveis foram amplamente justifi- cadas em Ambitos nacionais.? Em consequéncia, seria preciso conceber e consagrar algumas salvaguardas para assegurar o respeito aos direitos do menor ntimero e para evitar impericias técnicas. Sem 0 qué, poderfamos resvalar para os abusos insanos de que o século XX foi tao prédigo. A estruturagéo dos processos decisérios Vejamos agora como se estrutura 0 processo decisério da teoria ética da conviccSo. Ele obedece a quatro etapas: 1. A formulacao do problema ou a questdo a resolver. Por exemplo, no caso da crianga exangue das Testemunhas de Jeov4, a equipe médica considera que hd urgente necessidade de transfundir sangue ou soro sanguineo. O problema consiste entao em saber: realiza-se ou no o procedimento? 2. Aaplicagio de conviccées universalistas. No exemplo, o imperativo impele os médicos a realizar o procedimento (o principio que se aplica reza: “a vida € sagrada”), ainda que, para os pais, isso seja visto como aberracio (0 principio que se aplica reza: “cabe respeitar a liberdade de crenga”); 8. A ética nas organizacées 3. A identificago dos meios opcionais com adogio de solugées puras. No exemplo, a imediata transfusao é a medida que se impée para os médicos, depois de realizada a competente andlise do tipo sangui- neo ¢ da compatibilidade do sangue a ser transfundido, malgrado a negativa dos pais que defendem a nao efetivagao do procedimento, porque isso fere sua crenga religiosa — s4o contra a transfusado por mais que ela seja tecnicamente recomendavel; 4. A tomada de decisio deve se conformar a deveres previamente fixados. No exemplo, a transfusio de sangue deve ser realizada por coadunar-se perfeitamente com o princ{pio-chave do cédigo profis- sional médico ¢ o seré — é preciso cumprir seu dever -, a despeito da oposigao dos pais — é preciso respeitar a vontade de Deus. Em outras palavras, toda decisao sob a égide da teoria ética da con- viccdo conduz a um mergulho na consciéncia moral, a uma aplicacao de prescrigdes coletivamente sancionadas, desde que revestidas de cardter universalista. Estas podem ser princfpios que normas traduzem em termos operacionais ou ser ideais que valores também traduzem.* Figura 17 A decisdo convicta: cumprimento de dever Norma moral: padrao de conduta Universalista Principio: ditame ‘moral, preceito Esperanga: ideal, ‘causa, aspiragao apperfeigao Valor cultural: ‘Age-se de acordo preferéncia 1m deveres Universalista “ O proceso decisério da teoria ética da responsabilidade, por sua vez, € bem mais complexo. Implica sete etapas no processo de decisao, além de exigir cautelas na fase de implantagao: 272 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER 1. A formulagao do problema ou a questo a resolver. Por exemplo, no caso da crianga das Testemunhas de Jeova, a equipe médica considera que hé urgente necessidade de transfundir sangue ou soro sanguineo. Problema: realiza-se ou nao o procedimento? 2. A andlise das circunstancias ou o estudo do contexto. No exemplo, a crianca esta exangue e pode morrer a qualquer hora, mas os pais se op6em ao procedimento porque sao Testemunhas de Jeova; 3. A definigao de fins universalistas. No exemplo, tentar salvar a vida da crianga um fim louvavel, de cardter universalista; 4. A identificacao de meios opcionais ou de solugdes seguras e eficazes. No exemplo, a imediata transfusao, tomadas as precaugées técnicas (anilise do sangue, existéncia de sangue compativel, esterilizacao dos instrumentos, equipamentos em ordem), é uma medida plenamente apropriada; A anidlise da relagio custo-beneficio com a competente busca da eficiéncia. No exemplo, ainda que os pais se oponham a uma solu- ¢4o que contrarie suas crengas religiosas, a situagéo é emergencial e uma vida pode ser salva; 6. A anilise de riscos ou a ponderagdo dos fatores em jogo No exemplo, o procedimento é altamente testado, os pais nado podem impedir a decisio médica no momento atual por ser uma quest4o de vida e morte. Mais tarde, porém, poderdo eventualmente retaliar os médicos e o hospital, mas, em contrapartida, os médicos deixam. de incorrer em omissao de socorro do ponto de vista legal; 7. A decisao € tomada, depois de sopesada e amparada por um con- junto de salvaguardas que visam a prevenir impericias ou injusticas. No exemplo, se nio houver transfuso, a crianca pode morrer, de modo que o procedimento seré realizado e os médicos assumem a responsabilidade pelo feito. Depois de tomada a decisao, o processo de execugao deve ainda ter em vista: = O curso de acao deve buscar a efetividade. No exemplo, aplica-se a transfusio com zelo e competéncia; = Aefetivacao das consequéncias reais da acéo ocorre num ambiente de incertezas ¢ elas precisam ser administradas. No exemplo, embo- raa crianga tenha sido salva, os pais fazem um escandalo e podem processar o hospital; 8. A ética nas organizacées 273 = A legitimidade ética depende da eficdcia das salvaguardas e, em Uiltima instancia, supde que se obtenham resultados positivos (se nao, perde-se a legitimidade). No exemplo, a opiniao ptiblica apoia a transfusio e confere respaldo a equipe médica, desde que tenham utilizado as melhores técnicas disponiveis para salvar a crianca. Em outras palavras, toda decisao sob a égide da teoria ética da res- ponsabilidade supée uma elaborada anilise situacional. Esta passa pelo conhecimento das circunstancias, da relagao custo-beneficio, dos fins pretendidos e dos meios disponiveis e culmina numa cuidadosa andlise dos riscos envolvidos. Com qual propésito? A montagem de cenérios alternativos, a ponderagao de suas consequéncias presumiveis e, sobretu- do, a adogao de um conjunto de salvaguardas indispensaveis, tais como pesquisas preliminares, testes prévios, ensaios e checagens, tendo sempre em vista 0 respeito devido aos direitos do menor ntimero. Somente ent4o, e depois de avaliadas as vantagens e as desvantagens de cada cenério, a decisao serd tomada. O processo sé se conclui com a transformacao da decisao em fato, isto &,com sua implantagio num ambiente de incertezas . Se os resultados forem socialmente titeis e tenham base universalista, as chances de legitimagao Figura 18 A decisdo responsdvel: consequencialista Anélise das circunstancias Relagio custo-beneficio Consequéncias Anilisederiseos, == > provaveis e salvaguardas Escolha do melhor cendrio universalista 274 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER serao enormes; caso contrdrio, os agentes ficarao sem legitimidade ética, ao capricho de ventos e trovoadas. Vamos exemplificar com a invasio do Iraque pelo governo norte- -americano de George W. Bush, ocorrida em 2003. A justificagao ética para o ataque repousava na presungio de que o regime ditatorial de Saddam Hussein dispunha de armas de destruigao em massa, a contra- pelo das buscas infrutiferas e dos esforgos baldados de uma comissao de inspegao patrocinada pela ONU. Muitos paises, em particular a Franga ea Alemanha, se opunham A intervengao. Em consequéncia, os Estados Unidos no obtiveram respaldo por parte do Conselho de Seguranga da ONU. A despeito disso, e malgrado o clamor de macigas manifestagdes de rua ocorridas em muitas nagdes, uma coalizao anglo-americana invadiu © Iraque. As armas que haviam servido de pretexto, todavia, nao foram achadas. Se as tivesse encontrado, a coalizao justificaria sua aco preven- tiva como uma operacio que salvou a humanidade da sanha de inimigos obscurantistas e teria obtido legitimidade ética! Ocorre que, passados poucos meses, a culpa da ineficiéncia foi langada sem muita ceriménia sobre os servicos secretos de informagao. E o presidente Bush mudou © eixo de seu discurso. Advogou que, com ou sem armas quimicas ou biolégicas, a intervengao militar havia sido util para defender os direitos humanos e para instalar um regime democratico no Iraque — fato que iluminaria o Oriente Médio pelas suas virtudes e que serviria de efeito demonstracio... A manobra nao obteve respaldo mundial nem se revestiu de legitimidade ética, porque os acontecimentos do Iraque nao confir- maram os prognésticos do presidente americano. Alias, em 2004, uma série de fotos publicadas na mfdia internacio- nal jogou por terra esse segundo argumento: eram retratos de seguidos abusos praticados contra detentos iraquianos na prisao de Abu Ghraib, masmorra do antigo regime iraquiano. Segundo os depoimentos de sol- dados americanos incriminados, ordens superiores lhes foram dadas para “amaciar” os presos antes dos interrogatérios. Ainda que pudessem ser vistas como alegacées da defesa, ficou patente que os oficiais em comando nao desconheciam boa parte do que estava acontecendo. O fato é que a credibilidade do governo Bush ficou mais uma vez comprometida.” E isso teve dois graves efeitos: alimentou um sentimento antiamericano até em paises tradicionalmente aliados como o Reino Unido e alienou boa parte do apoio internacional que os Estados Unidos haviam recebido depois miamero de inimigos e reduziu o ntimero de aliados. Os movimentos de 8. A ética nas organizacées 275 insurgentes recrudesceram, convertendo o territério invadido num terreno ideal para operagées terroristas. O Iraque se tornou uma regiao de enorme inseguranga. E 0 caos estabelecido no pais influiu de forma decisiva para © desgaste politico dos Estados Unidos no plano internacional, ao mesmo tempo em que as represdlias promovidas por grupos extremistas islami- cos se tornaram aterradoras.% Ganhou corpo entao um sinistro paralelo com a Guerra do Vietna, quando a perda da batalha simbélica, no inicio dos anos 1970, foi minando o moral das tropas combatentes. De fato, a legitimidade ética havia ido pelos ares, com a clara impressao de que a guerra tinha sido desnecesséria.* Um erro critico cometido pela administragao Bush foi nao ter percebido que o terrorismo é um método, nao um fim em si mesmo. De maneira que o conflito travado com os fundamentalistas mugulmanos é um conflito ide- olégico, nao militar, O terrorismo é um meio usado para fazer proselitismo, pois, antes de tudo, os radicais islamicos participam de um movimento intelectual de cunho ideolégico. A doutrinagao integrista levada a efeito nas mesquitas ¢ nas madrassas (escolas religiosas) forma e recruta levas sempre renovadas de futuros combatentes. Esses soldados da fé nao tém. territérios a defender, nao precisam vencer batalhas classicas; sua guerra se processa no terreno das mentes e ocorre em tempo real, via satélite. 0 dilema que dai resulta poderia ser resumido em termos catastrofistas: ou © Ocidente se mobiliza para uma longa contraofensiva ideolgica, ou a noite teolégica pode se abater sobre o século XXI. A teoria da derrogagéo A rigidez maniquefsta da teoria ética da conviccao, em tese, nao da guarida a razées de Estado ou a real politik que, em situagées extremas, a teoria ética da responsabilidade justifica.* Todavia, quando o rigor deontolégico é colocado em xeque, entra em jogo a chamada “teoria da derrogacdo”. Esta capitula exceg6es; encontra-se presente nos tratados de teologia moral para uso dos confessores; est4 consolidada nos sistemas juridicos (lex specialis derogat generali).° Em outras palavras, ressalvas ircunstancias excepcionais: matar em legitima defesa; nao falar a verdade para um doente incurdvel; um revoluciondrio mentir a seus captores para acobertar companheiros e nio revelar seus esconderijos. No estado de necessidade, igualmente, a violagao da ordem moral se justificaria como nos casos do furto famélico, as normas morais s4o autorizadas em 276 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER do confinamento de doentes contagiosos e da suspensao de direitos em estado de sitio.” Ou, ainda, se socorrendo da extrema ratio (extrema razao) de Estado: durante uma invasao estrangeira ou durante uma guerra civil, proceder a condenagées ao exilio, confiscos, massacres e atos de forga. HA outras excegdes abertas pela teoria da conviccdo que merecem registro, situagdes em que os agentes se rendem ao realismo diante dos padrées culturais vigentes. A primeira é quando se incorporam aos cédigos profissionais deveres mais rigidos do que as exigéncias morais dominantes — por exemplo, n4o aceitar agrados nem sequer brindes em circunstancia alguma, embora a praxe seja complacente a esse respeito. A segunda, ao contrario, é quando os profissionais ficam isentos de deveres impraticd- veis, como aquele de dizer a verdade — caso do médico frente a paciente que tem doenca incurdvel. Isso para nao falar do préprio exercicio da politica que muitos consideram uma atividade amoral, enquanto outros a véem como algo que se opée 2 moral comum. Afinal, ages moralmente reprovaveis sao adotadas no 4mbito politico, embora sejam requeridas pela natureza intrinseca da atividade.® Por exemplo, omitir informagées para nao causar panico na populagao; no concordar com anilises negativas sobre a situag4o econémica ou politica para nao desestimular os cidadaos endo contribuir para as profecias autorrealizaveis; nao revelar os acertos de bastidores com parlamentares para obter a maioria necessdria A apro- vagio de projetos de lei. Ora dirdo alguns: ainda que de forma envergonhada, isso tudo nao destoa do modo dogmatico que caracteriza a tomada de decisao da teoria ética da convicc40? Nao diz respeito — e sem contorgées intelectuais — ao modo de proceder da teoria ética da responsabilidade? Como analisar as derrogagées? As excegées a regra ¢ os estados de necessidade parecem deslocar a teoria da convicgio (fundada no rigor dos deveres) em diregao A teoria da responsabilidade (fundada na racionalidade dos fins). Em contrapartida, quando a teoria da responsabilidade normaliza decisées universalistas ou, quando torna rotineiras decisées por meio de normas praticas, ela também parece se deslocar em direc4o & teoria da 0. Detecta-se af um duplo movimento: convi = As derrogacées indo no sentido de atropelar e desfigurar a esséncia proceder mais afeito a uma corrente da teoria da responsabilidade chamada “utilitarista da norma”; a 8. A ética nas organizagées aT =O processo de codificagao de orientagées estabelecidas pelos para- metros da teoria da responsabilidade, por sua vez, indo no sentido de dispensar reflexées prévias e de fixar diretrizes imperativas, & semelhanga da teoria da convicgao. Vale a pena esclarecer agora que a vertente utilitarista da teoria da responsabilidade abriga duas correntes: = Outilitarismo da agao focaliza as consequéncias de cada acdo singular e calcula a utilidade social dela; * O utilitarismo da norma focaliza as consequéncias que a adogio generalizada de uma determinada norma geraria e calcula a utilidade social de accité-la ou de rejeité-la.”” Assim, o utilitarismo da norma se contrapée ao utilitarismo da agao por discordar de decisdes que nao possam ser transformadas em normas gerais. Mesmo que tais decisées sejam alegadamente tomadas em prol da coletividade. Ou, melhor dizendo, tendo em vista salvaguardar os direitos do menor mimero, aconselha a adotar um conjunto de impedimentos in- contorndveis. Por exemplo, seria poss{vel justificar o uso de dez bebés como cobaias para descobrir a cura para a sindrome da morte infantil repentina que mata 10.000 bebés por ano? O utilitarismo da acdo responderd que sim, o utilitarismo da norma dir4 que nao, porque afirma que esse tipo de decisio nao pode ser transformado em norma geral. Como converter o sacrificio de alguns em op¢o sistematica? Que tipo de sociedade seria esta em que tal orientagdo se tornasse regra? Ela ignoraria o direito a vida, tornaria as pessoas inseguras, instalaria um regime de medo. O utilitarismo da norma prop6e entao o “principio do dano”: os agentes podem fazer tudo o que quiserem até o limite de nao prejudicar outrem. Vejamos mais ilustragdes. As correntes se dividem diante da seguinte indagaga que impediriam a matanga de centenas de pessoas? O utilitarismo da nor- ma dird que nao (essa decisio ndo pode ser convertida em norma geral), enquanto o utilitarismo da ago e a vertente da finalidade dirdo que sim € pertinente torturar um prisioneiro para obter informagées (apesar da barbarie representada pela tortura, centenas de vidas merecem ser preservadas). E possfvel comer a carne humana de defuntos em situagdo extrema de fome, como no caso do avido uruguaio que caiu nos Andes?”" As duas 278 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER correntes utilitaristas, assim como a vertente da finalidade, dirao que sim. Uma vez que nio houve dano a ninguém (os passageiros estavam mortos) e que a vida de muitos dependia dessa providéncia, a quebra do tabu da antropofagia se justifica (essa decisio pode ser convertida em norma geral). E aceitavel que um destacado governante, ferido & bala e que precisa de transplante de coragio e pulmées, seja salvo usando como doador um morador de rua até entao mantido vivo na UTI gragas a aparelhos? Sobre- tudo quando se sabe que nao existem doadores disponiveis e compativeis a nao ser ele? O utilitarismo da ago e a vertente da finalidade dirao que sim, o utilitarismo da norma dir4 que nao. Os primeiros dirao que, havendo certeza médica de que o morador de rua ird morrer em poucos dias, as consequéncias do transplante produzirio maior utilidade social. O segundo dird que nao se pode permitir que hospitais matem seus pacientes para doar érgaos, pois a confianca coletiva nos hospitais ficaré minada se tal providéncia fosse convertida em norma. Em funcdo disso tudo, ha fundadas raz6es para questionar os fins advogados pelo utilitarismo da acao: seriam eles universalistas? Nao estarfamos implantando uma espécie de totalitarismo moral em beneffcio do maior ntimero? De qualquer forma, é importante constatar que existem tentagées para que se derive de um lado para 0 outro das duas teorias éticas. A clivagem entre as duas teorias, entretanto, nao deve ficar obscurecida, como podem induzir as ponderagées que acabaram de ser tecidas. E as raz6es para tal sio simples. As derrogacées podem perfeitamente decorrer da teoria ética da convic¢do, se todas as excegées as regras forem claras e previamente definidas. Pois permanecerao partes de um repertério de deveres a ser aplicado com rigor. De forma simétrica, as codificagées procedidas pelos utilitaristas da norma podem perfeitamente sintonizar-se com a teoria ética da responsa- bilidade desde que todas as reflexdes que as fundamentam estiverem clara ¢ explicitamente definidas. Pois permanecerao sujeitas a revisao critica e, a exemplo das cléusulas pétreas constitucionais, desde que seja estabele- cido um consenso em torno de quais vedacdes deverio ser observadas nas tomadas de decisio (como, por exemplo, a salvaguarda dos direitos do menor ntimero). Afinal, adotar a teoria da responsabilidade nao significa proibir-se de usar principios e ideais numa anilise situacional. $6 que esses permanecem nao sendo a chave da decisio — so apenas elementos constitutivos do processo. a 8. A ética nas organizagées a9 Por fim, é importante frisar que quaisquer vertentes e correntes da teoria da responsabilidade se assemelham aos empréstimos bancérios, & medida que exigem precaugées, cautelas e garantias para evitar imperfcias e minimizar os riscos incorridos. E mais: 0 critério diltimo de avaliagao continua sendo a consecucao de resultados universalistas, em contraposi¢ao A coeréncia entre intengSo e ado da teoria da conviccao. Isso, contudo, nio resolve a pendéncia crucial que consiste em saber se a maximizagio dos beneficios e a minimizagio dos maleficios para a coletividade passam ‘ou nao pelo respeito aos direitos de minorias eventuais. Sem uma precisa definigdo nesse sentido, a linha diviséria entre o que obedece a razio ética (a realizagao de interesses universalistas que interessem a todos) e 0 que obedece A racionalizagao antiética (a realizagao de interesses particularistas que prejudicam outros) ficar4 baralhada. Um grande perigo ronda, alids, a adogio da teoria ética da responsabi- lidade: trata-se da racionalizagao particularista. Ela falsifica a teoria com falsas razées, efetiva andlises deficientes ou usa sofismas, distorce e mascara praticas antiéticas. De um modo geral, confunde casuismos particularistas com fins universalistas em que poucos se beneficiam em situagdes que nao sio extremas ou que nao sio “escolhas de Sofia”. £ a armadilha da “legitimidade moral” que confissées religiosas, ideo- logias politicas, doutrinas econdmicas ou credos empresariais conferem. Tome-se o caso dos homens-bomba fundamentalistas: homenageados como heréis ou mArtires por suas comunidades locais, desfrutam de legitimidade moral, mas nao de legitimidade ética, pois, do frio ponto de vista cientifi- co, trata-se de terroristas (matam indiscriminadamente civis). Nada ha de universalista na causa deles, nem hd obediéncia A razdo ética. Em outras palavras, freios, contrapesos e muito discernimento tornam- -se indispensveis para evitar que quaisquer vertentes éticas se convertam em ferramentas justificadoras de decisdes cujas implicagdes podem ser atrozes. A histéria do século passado ensinou que as justificagées morais tanto podem se transformar em embustes abusivos em maos oportunistas como em armas letais em maos totalitdrias. Notas 1. f preciso sublinhar que nem todos os fatos sociais se revestem de um cardter moral: hé um sem- niimero de fatos neutros, portanto amorais, tal como pentear os cabelos, andar na rua, almocar, ler um jornal, ir ao trabalho ou ao supermercado, tomar banho, rir de uma piada, fazer contas, participar de um partida de futebol, assistir a um filme, telefonar para um amigo ete. Contudo, se 280 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER 2, 10. nu. 2. 1B. esses eventos ou seus desdobramentos vierem a afetar outrem, se nao observarem ou transgredirem normas que regem o que é considerado socialmente bom ou mau, muda seu estatuto: passam a ser fatos morais. Por exemplo, assistir a um filme pornogeafico no computador da empresa, 20 lado de colegas do sexo feminino, nao & amoral, ¢ imoral. Por qué? Porque fere regeas de carder moral, que sio corporativa ¢ socialmente estabelecidas. No tocante a empresa, trata-se de uso inapropriado de equipamento; quanto as colegas, elas podem se sentir constrangidas, para nao dizer ofendidas e até mesmo assediadas moralmente Na prépria literatura sociol6gica, costuma-se também entender por dominio moral a superestrutura social ou, mais especificamente, a dimensio simbélica do espaco social. Fala-se entdo da esfera moral da sociedade em contraste com sua base material ou econdmica. Essas assercdes valem, mutatis mutandis, para as organizagoes. A educacio moral e civica foi introduzida em 1969, em carter obrigatério, como disciplina ou pratica educativa, Tinha por finalidade oficial “a preservacio do espftito religioso, da dignidade da pessoa humana, dos valores espirituais ¢éticos, do aprimoramento do carter, da compreensio dos deveres civicos, com obediéncia & lei es instituigdes nacionais”. Embora emblemitica entre os latinos, a pluralidade de morais encontra-se tanto entre os gregos politeistas quanto entre os hindus, em fungio da rfgida separagio em castas (cada qual com seu dharma). A duplicidade moral também existe entre os chineses contemporaneos, em funcio do re~ sgime politico totalitério: 0 que se diz ou pensa em piiblico nao € o que se faz e pensa & socapa. Situagio to bem retratada pela famosa frase: “faga o que eu digo, nao faa o que eu fago” € que acaba com o dissabor de verificar que as pessoas que foram admoestadas, longe de seguir 0 conselho, preferem mirar-se no exemplo e superar o mestre A Igreja Catélica chegou a possuir um tergo das terras ardveis na [dade Média. A ostentagio de sua riqueza contrastou com 0 voto de pobreza das ordens mendicantes como a dos Agostinhos, Dominicanos, Franciscanos, Minimos ¢ das Carmelitas, Estas tinham por inspiragio, entre outras, uma passagem do Evangelho em que Cristo instrufa seus apéstolos sobre o modo de ir pelo mundo, “sem tiinicas, sem bastao, sem sandilias, sem provisées, sem dinheiro no bolso ...”. ‘Também utilizado em toda a América Latina, nas Antilhas e no sul das coldnias inglesas da Amé- rica do Norte, em contraponto com o sistema de colonizagio de povoamento que prevalecen no norte das colénias norte-americanas ¢ no sul do Brasil. O sistema de exploracio se assentou na grande propriedade rural (latifindio ou plantation), na produgio monocultora e padronizada para exportaco (economia extrovertida e complementar da europeia) ¢ no trabalho compulsério (escravidao ou outras formas de servidio). A sociedade resultante foi aristocritica e patriarcal, com arraigadas bases oligarquicas e autoritarias e se caracterizou por um declarado racismo e atitudes generalizadamente discriminat6rias. A configuracao do sistema de povoamento, em contraste, & de pequena propriedade familiar, policultura veltada para o consumo interno e trabalho livre. A sociedade, neste caso, foi mais aberta e tolerante e nela floresceram organizacées da sociedade civil, com fortes propensdes & cooperagio coletiva, ‘Ver do autor Etica Empresarial (Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008, 3* edigio revista ¢ atua- lizada, pp. 63-77) Para uma anilise pormenorizada das morais brasileiras, ver Idem, pp. 79-102. Estes, como muitos politicos, fingem ser o que nao sio, impedem ser tomados pelo que sfo ¢ do mostras que nio so 0 que sio. As relagées pessoais ou paroquiais, consubstanciadas em lagos de parentesco, compadrio, afini- dade, amizade, vizinhanca, coleguismo ou camaradagem, sempre foram determinantes no Brasil tradicional. O networking norte-americano é uma rede de contatos de carster profissional que no garante a seus membros algum trunfo em relagio aos préprios méritos. Difere das relagées pessoais brasileiras que conformam uma rede de compadrio, isto é, que se articulam com base ra patronagem (o famoso “QI”, quem indica), patrocinadora de favoritismos, nepotismos, pri- Vilégios € abusos. ‘Afora os intimeros casos de suborno, concussio ¢ corrupcio é interessante lembrar ilustracées pincadas ao acaso: milhdes de pessoas compram regularmente no mercado informal aplicativos piratas, rel6gios clonados, roupas de grfe falsficadas, imitagdes de tEnis; muitos médicos ou dentistas no dio recibo ou nota fiscal pelos servigos prestados; espertalhées dao gorjetas ao oh 8. A ética nas organizagées 2 14. 15, 16. 17. 18, 19, 20. 21, 22. 23. 24, 25. maitre para obter uma mesa, furando a filas motoristas subornam guardas rodo\ rios para nao serem multados ou batem em outro carro no estacionamento, indo simplesmente embora sem deixar recado; despachantes dao “caixinhas” a funciondrios piblicos para que cumpram suas obrigagdes com celeridade (sio as “taxas de urgéncia”) ou para que “quebrem galhos” (s4o as “taxas de sucesso”); estudantes colam para passar de ano ou se valem do grupo de estudo ao qual pertencem para assinar trabalhos dos quais nao participaram; feirantes poem frutas vistosas no topo da caixa, escondendo aquelas que esto batidas; compradores e vendedores de iméveis no registram no cartério o verdadeiro valor da transagéo para burlar o fisco ¢ desovar “di- nheiro frio”; “fominhas” trafegam no acostamento de rodovias apinhadas na volta de feriados prolongados; restaurantes majoram as notas fiscais como cortesia para que seus clientes levem vantagem em sua prestagio de contas; criadores de gado dao sal © égua a seu rebanko antes de chegar ao mercado, porque vendem as cabecas por peso; frigorificos “turbinam” o peso de frangos, injetando 4gua no peito dos animais imediatamente antes de congelé-los; e assim por diante. Por sua vez, aqueles que respeitam as normas da moral da integridade sio tachados de trouxas, otérios, crédulos, bocés, caretas, panacas, poetas, babacas, inocentes, Caxias. Ou seja: sujeitos que “marcam bobeira”. E ‘itil ndo confundir 0 oportunismo com o senso de oportunidade. O primeiro diz respeito a tirar vantagens pessoais dos outros e a subordinar princfpios ou compromissos sociais a interesses menores ou mesquinhos, quando nao escusos. O segundo significa habilidade em rastrear boas ocasides em negécios ou na vida, sem o propésito de lesar os outros. A chave didética para diferenciar fatos morais integros de fatos morais oportunistas encontra-se na difusio piblica: aquilo que nao se pode comentar abertamente (com excecio dos segredos de Estado, de negécio € profissionais) ou que nao se pode divulgar de forma transparente € oportunista. ‘A Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010 e decorrente da mobilizagio de mais dois milhdes de brasileiros que assinaram o projeto de “iniciativa popular”, teve sua aplicagao adiada pelo Supremo ‘Tribunal Federal para 2012 e deverd, em tese, sanar essa excrescéncia. Weber, Max. Ensaios de sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, s/d., pp. 309-315, ¢ Le Savant... pp. 166-167. Os comportamentos si socialmente sancionados: de forma positiva, quando esto em conso- nancia com as expectativas coletivas; de forma negativa, quando dissentem ou transgridem as normas vigentes, Um dos caminhos proficuos para conhecer a moral de uma organizagio — nem que seja do ponto de vista retérico — é investigar as ideologias politica e econémica que seus membros professam. Com quais propésitos? Captar os parametros considerados ideais, descobrir que opinam os agentes, apanhar o frascado prevalecente. Mas para aferir se tais pensamentos sio de fato levados aefeito € preciso observar as praticas reais, mapear com precisio aquilo que efetivamente vem sendo feito na ¢ pela organizacio. Cabe analisar, sobretudo, os modos de tomar decisio e os interesses que eles beneficiam ou contrariam. Além de serem padrées culturais, as morais acabam também expressando relacdes de forga, uma vex que os agentes coletivos procuram legitimar seu poder por meio delas. Osagentes individnais sio portadores de morais claboradas, partilhadas c difundidas coletivamente, embora as vivenciem “pessoalmente”. E isso Ihes dé a falsa impressio de que a moral é sé deles ou fruto exclusivo das préprias reflexdes. Costuma-se também confundir amoralidade com imoralidade, uma vez que a auséncia de quali- ficacio moral é interpretada como “auséncia de moral” e nao como neutralidade. ‘Nessa mesma linha, escreve Angele Kremer-Marieti: “A moral est marcada com o selo da histéria presente ¢ passada, enquanto a ética é uma disciplina tedrica, relativa ao pensamento” (Kremer- Marietti, Angéle. A fica. Campinas: Papirus, 1989, p. 7). Toda generalidade abstrata e formal se expressa, assim, num plano anistérico. Por exemplo, a Sociologia Geral, a Psicologia Geral, a Biologia Geral ou a Quimica Geral. Para a anilise e a distingio dos niveis de abstragio conceitual, ver Srour, Robert Henry. Classes, Regimes..., pp. 28-37. As morais constituem fendmenos de mais densa saturagio histérica: tanto € que se pode falar da moral da IBM do Brasil, da Petrobras, do Banco Itai, da OAB, da CNBB, 282 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER da CUT, do Pio de Agticar, da Fundagio Abring assim por diante, em um periodo datado e ‘num lugar preciso. 26. Escreve Wilhem Dilthey sobre a ética filos6fica: “Toda filosofia auténtica deve deduzir de seus conhecimentos tedricos os principios da conduta de vida do individuo e da orientagio da socie- dade” (Sistema da Etica. Sao Paulo: icone, 1994, p. 13). 27. Qualquer cobiga, a velhissima auri sacra fames (a avidez. sagrada pelo ouro) que a tantos povos enfeitigou, era assim abominada. 28. Os judeus, colocados & margem da sociedade medieval crista, tinham uma situagio juridica pre- céria e nao podiam ser proprietarios de terras ou desempenhar profissdes legais. Sobreviviam nos intersticios do sistema econdmico, fato que os direcionou para a expansio do capital comercial nas Idades Média ¢ Moderna: fizeram empréstimos a pessoas modestas e financiaram grandes Estados para que pudessem suprir suas necessidades, emitir moeda, levar a cabo suas guerras e fundar col6nias; desenvolveram o comércio de mercadorias através de pequenas lojas, do comércio ambulante ¢ do tréfico com produtos rurais; dedicaram-se ao comércio de valores por atacado, a0 cimbio de moedas, ao crédito e aos negécios bancérios. Max Weber escreveu: “Como povo paria, os judeus conservavam a dupla moral que toda comunidade aplica originariamente na vida econémica. O que se rechaga veementemente ‘entre irmios’ é permitido com os estranhos.” Os estrangeiros eram vistos como “inimigos” e deles se podia cobrar juros (0 que nao se fazi entre judeus), além de poder tirar proveito dos erros que cometessem (Weber, Max. Economia y sociedad..., pp. 475-484). 29, Weber, Max. A ética protestante € 0 espirito do capitalismo. Sao Paulo: Pioncira, 1967. 30. Constituem o capital intelectual as habilidades técnicas dos colaboradores, 0 nivel de escolari- dade formal do pessoal ¢ seu grau de informagao sobre o mercado, as competéncias gerenciais, as patentes registradas, as inovacSes promovidas pela érea de pesquisa e desenvolvimento — em suma, a “inteligéncia organizacional”. 31. O capital de reputagio é formado pela qualidade das relagdes mantidas com os ptiblicos de inte~ resse (goodwill) c pelo valor das marcas da empresa (brand equity) 32. http://www:businesszone.co.ukjitem/173378, E curioso saber que ele ja vinha fazendo comentérios semelhantes em outros discursos hé pelo menos cinco anos, porém em féruns menos expressivos e sem a presenga da midia nacional. 33, Frank, Robert e Pacelle, Mitchell. “Presidente da Andersen pede demissio. Firma tenta vender ativos nos EUA’, The Wall Street Journal Americas, publicado pelo O Estado de S. Paulo, 27 de marco de 2002, B14; Cohen, David. “Andersen, em consultas”, Revista EXAME, pp. 14-165 Brown, Ken e Bryan-Low, Cassell. “Andersen uma sombra de si mesma”, The Wall Street Jour- nal Américas, publicado pelo OESP, 30 de abril de 2002, B16. Bloomberg. “Andersen eliminou documentos da Enron”, Gazeta Mercantil, 11 de janeiro de 2002, p. A-8. 34. O superfaturamento atingiu pelo menos R$169 milhdes. Uma semana depois de sua cassacao, 0 ex-senador ainda comentou, num rasgo de sinceridade: “Nao sou santo. Nenhum quadro de santo se sustenta na parede para uma pessoa que ganhow 1 bilh3o de reais em quatro anos.” (Revista Veja, 5 de julho de 2000), 35. Conte, Carla, “Juiz decreta prisio de sécio da Botica”, Folha de S. Paulo, 10 de novembro de 1998. Berton, Patricia. “Veado D’Ouro faz reestruturagio”, Gazeta Mercantil, 29 de abril de 1999. 36. Ao largo de uma leitura antropocéntrica que confere aos seres humanos 0 monopslio da conside- ragio moral ou da dignidade dos “seres morais”, poderfamos dizer que os macacos antropéides, 0 animais com sistema nervoso central ¢ até ecossistemas ou todo o planeta também merecem ter consideracao moral. Isso nos levaria a substituir a expressio “seres humanos” por seres vivos. Mas esta € uma polémica ainda em curse. 37. Bis alguns exemplos entre milhares possiveis: estacionar em fila dupla é egofsta, portanto par ticularista, porque prejudica a fluidez do transito, mas estacionar em lugar permitido leva em conta os interesses alheios, ¢ €, portanto, universalista, interessa a todos, porque contribui para que os demais motoristas possam deslocar-se para seus afazeres; colocar um vaso de plantas para receber insolacio na beirada de uma janela do décimo andar é particularista (egoista), porque no leva em conta 0 risco de cair e matar alguém, enquanto colocar vaso na sacada, afastando. deliberadamente o perigo anterior é universalista (leva em conta os interesses alheios); jogar um oh 8. A ética nas organizagées 283 38, 39, 40. 41 42. 43. 44, 45, mago vazio de cigarros na rua, ao invés de procurar uma lixeira, é particularista (egoista), porque a rua é de todos e a responsabilidade de nao sujé-la também, mas guardar 0 maco no bolso e colocé-lo conscientemente no lixo de casa ou do escritério é universalista; ocupar uma vaga no estacionamento do supermercado e avangar na faixa amarela da vaga ao lado, impedindo que outro veiculo estacione, é particularista (egoista), a0 passo que estacionar respeitando as devidas distancias ¢ universalista; buzinar em tineis lotados € egoista; tocar mésicas bem alto & noite ou de madrugada num bairro adormecido é egoista; deixar 4gua estagnada em pratos sob os vasos de plantas, sabendo do risco de proliferarem as larvas da dengue, é egofsta; segurar o elevador num prédio para jogar conversa fora com uns amigos, em detrimento dos condéminos que aguardam a vez de descer ou subir, é particularista; jogar entulhos em reas piiblicas ajardinadas € particularista “Nao é da benevoléncia do agougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar nosso jantar, mas da observancia que eles tém do préprio interesse. Nés apelamos nfo & sua humani- dade, mas a seu amor-préprio, ¢ jamais falamos a eles de nossas necessidades, mas das vantagens que eles terao.” ). Nao esquecamos que Adam Smith cra um filésofo moral. Escreveu A Teoria Etica dos Sentimentos Morais que versa sobre a cooperagio entre os homens. £ fundamental nao confundir o egofsmo que remete As agdes ¢ aos interesses do individuo ¢ 0 parcialismo que remete as ages ¢ aos interesses do grupo, embora ambos os conceitos digam respeito a praticas exclusivistas e abusivas Em edicées anteriores, utilizamos o conceito de “altruismo parcial” que substituimos posterior- mente por parcialismo (ver do autor Casos de Etica Empresarial (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011), por causa da confusio que a mengio ao alteufsmo gerava. O conceito anterior fazia sentido rigo- rosamente quando se tem em mente a cumplicidade e a lei do siléncio que existem, por exemplo, entre os membros de empresas que utilizam aplicativos piratas ou que tém caixa 2, ou ainda, entre os membros de uma gangue mafiosa, O defeito manifesto do conceito, segundo leitores ¢ alunos que ficavam incomodados, era de que a mengio ao altrufsmo nao era exclusivamente positiva: tinha uma natureza contraditéria ao valer tanto para 6 bem como para o mal... O que 0 autor considerava virtude era visto como deficiéncia, dai a alteracéo. Cabe anotar uma excegio a regra de “nao prejudicar os outros”. O individuo que fere o bandido que invadiu seu lar reage em autodefesa; uma empresa que denuncia o concorrente que pratica dumping também reage em autodefesa. Nos dois casos, a reacio (ou o revide) provoca danos aos transgressores, porém nao deixa de ser legitima. Afinal, quem violou os espagos alheios foram 0 bandido com seus propésitos hostis, de um lado, ea empresa que pretende eliminar a concorréncia ¢ dominar o mercado, de outro. Por terem assumido riscos, pagam o prego de sua agressio. No primeiro caso, a reagio € de autointeresse, portanto universalista, no segundo caso, a reagio € altruista restrita, ou seja, igualmente universalista como veremos logo a seguit. Valores universalistas no Brasil atual sio, por exemplo: integridade, justica, dignidade, liberdade, idoneidade, competéncia, privacidade, solidariedade, equidade, pluralidade, isengao, confianga, imparcialidade, reciprocidade, honestidade, impessoalidade, individualidade, veracidade, diligén- cia, coeréncia, mérito, efetividade, prudéncia, transparéncia, credibilidade... E importante sublinhar que os valores mudam historicamente, porém a légica universalista permanece a mesma. Valores particularistas no Brasil atual so, por exemplo: oportunismo, esperteza, manha, gandncia, alicia, caradurismo, mesquinharia, jeitinho, labia, permissividade, desconfianga, malandragem, egotismo, pessoalidade, leniéncia, favorecimento, hipocrisia, artimanha, matreirice para sonegar, subornar, fraudar, contrabandear, falsificar... £ importante assinalar que tais valores jamais sio assumidos em piblico, mas cultivados as escondidas porque se chocam com a moral publica E importante salientar que centenas de milhares de organizacées nao governamentais operam no Brasil, envolvendo dezenas de milhdes de voluntérios que prestam servicos pitblicos da mais alta relevincia. O desvirtuamento eventual das finalidades das ONGs ocorrido nos itimos anos & um capitulo lamentavel da malversacio dos recursos puiblicos operada por sujeitos inescrupulosos ou por militantes que transformaram essas organizagées em fontes de financiamento de atividades partidérias. Alids, € bom que se diga que, das 340 mil ONGs existentes no Brasil em 2010, 99,49 784 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER 46. 47. 48. 49, nio recebiam dinheiro do governo federal (Laura Diniz, “Quem paga o pato sio as boas.. ONGs.” Revista VEJA, 9 de novembro de 2011), © contraponto entre razao ética e racionalizagio antiética, ou entre universalismo consensual ¢ particularismo abusivo, tem carter meramente classificatério e no constitui uma prescri¢io valorativa entre o que é “bom” ¢ o que é “mau” & moda dos juizos de valor. Isso é feito A se- methanga dos conceitos de externalidades positivas ou negativas em economia, de eletricidade positiva e negativa em fisica, de corpo saudavel e doente em medicina, de aliados e inimigos em ciéncia politica, de comportamento social e antissocial em psicologia, de processos de cooperacio € de competigio em sociologia, de ato Icitoe ilfcito em direito etc. So dicotomias que nao si0 dogmas, mandamentos ou preceitos, mas ferramentas conceituais para apreender a realidade. Ver a nota 4 do Capitulo precedente sobre os bens piiblicos. Max Weber, em sua obra seminal Le Savant et le Politique conceitua: “Toda atividade orientada segunda a ética pode estar subordinada a duas maximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas. Ela pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convie- cio. Isso nio quer dizer que a ética da convicgio esteja desprovida de responsabilidade e a ética da responsabilidade de convicgio. Nao se trata disso. Contudo, ha uma oposicio abissal entre a atitude de quem age segundo as maximas da ética da conviccio — em linguagem religiosa diria- mos: “O cristio faz seu dever e no que diz respeito ao resultado da acio remete-se a Deus” —, ¢ aatitude de quem age segundo a ética da responsabilidade que diz: “Havemos de prestar contas das consequéncias previstveis dos nossos atos” (p. 172). Mais adiante, Weber adverte mais uma vez: “Nao é possivel conciliar a ética da conviegio e a ética da responsabilidade...” (p. 175). O Titanic, por exemplo, naufragou em 1912. Caso seus botes fossem utilizados em sua capacidade maxima, eles poderiam abrigar 1.300 pessoas. Ocorre que havia 2.223 passageiros e tripulantes. Era primeira viagem, faltava experiéncia ¢ o panico atrapalhou as manobras. Ao fim ¢ ao cabo, foram salvas apenas 706 pessoas. O que seria sensato fazer: nao utilizar os botes, j& que nem todos caberiam? Alguns dados, porém, lancam uma nédoa sobre a decisio adotada: dos 329 passageiros da 1* classe salvaram-se 60,5%; dos 285 passageiros da 2* classe salvaram-se 41,79%: dos passageiros da 3* classe salvaram-se 24,5%; e dos 899 tripulantes salvaram-se 23,8%... (http! pt-wikipedia.org/wiki/RMS_Titanic#Conclus.C3.BSes_dos_relat.C3.B3rios_de_inqu.C3.A9rito) De fato, 0 acesso aos botes nao obedeceu a critérios igualitérios, pois a escolha de quem iria morrer cou de quem iria sobreviver foi determinada pela discriminagio social. Vale dizer, a decisio acabou assumindo caréter particularista A nio ser que se apele para a teoria da derrogagio (ver o t6pico logo adiante), abrindo uma excecio A regra, Sé que essa medida deveria ser previamente pactuada e nao poderia ser fruto de casuismo. £ 0 caso do capitao que tem por obrigagio mandar usar os botes salva-vidas. Ou, como diz o ditado popular: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ver Norberto Bobbio. Teoria ética geral da politica: a filosofia politica e as ligdes dos cléssicos. Rio de Janeiro, Campus, 2000, pp. 174-175 (livro organizado por Michelangelo Bovero). Leisinger, Klaus M. e Schmitt, Karin. Etica Empresarial; responsabilidade global e gerenciamento moderno. Petrépolis: Vozes, 2001, p. 120 |. Mesmo usando uma das excegdes & regra que a teologia moral catélica admite — matar em le- ‘gftima defesa na guerra —, ele nao tinha onde se amparar, pois o que Ihe foi proposto era levar a cabo uma execucio sumaria, - O agente se dobra is injungdes ¢ usa expressdes tais como “tenho que, devo, cumpre-me, eabeme, preciso, sou obrigado a, nio posso deixar de, obedeco a, impae-se, exige-se, é imprescindivel, € indispensdvel, é praxe fazer, manda a tradicio...”; 0 agente cumpre os deveres universalistas que sio expectativas coletivas, faz aquilo que todos esperam que ele faga e age em fungio do dover pelo dever. - O agente raciocina ¢ usa expressées tais como “faz. sentido, vale a pena, almejo, pretendo conseguir, objetivo, é sensato, sibio, inteligente, consequent, tecnicamente vidvel, consistente, responsi vel..”; 0 agente projeta metas de interesse coletivo, visa a realizar o bem comum, o bem grupal ou o bem pessoal, sempre de cardter universalista, ¢ assume a responsabilidade nao s6 por aquilo que faz, mas também pelo éxito do empreendimento. oh 8. A ética nas organizagées 285 57, 59. © Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, um conselho consultivo da Presidéncia da Repiblica brasileira, aprovou resolugio em favor do direito da mulher a abortar feto sem cére- bro, contra o tinico voto contrario do procurador-geral da Repiiblica, Claudio Fonteles, catdlico fervoroso que defendeu a tese de que o direito a vida € atemporal. Disse: “Nao importa 0 tempo de vida que o feto anencefalico terd ¢ sim que se trata de uma vida.” De outro lado, o jurista Luis Roberto Barroso, autor da aco junto ao Supremo ‘Iribunal Federal, comparou a obrigatoriedade de manter a gravide nessas condigdes a um ato de tortura da mae. Afirmou: “As leis no podem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou & fé de quem quer que seja.” (Vannildo Mendes € Maringela Gallucci. “Conselho defende aborto de feto sem cérebro”, © Estado de S.Paulo, 20 de agosto de 2004) Sobre a liminar do STF que concedeu o direito a0 aborto, a Confederagio Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou em nota: “A vida é sempre um dom de Deus ¢ deve ser respeitada, desde o seu inicio até o seu fim natural. Nao temos o direito de tirar a vida de ninguém.” (Simone Iwasso, “Brasil é 4o no ranking de nascidos sem cérebro”, O Estado de S.Paulo, 18 de julho de 2004) Em contraposicéo, a médica geneticista Dafne Horovitz, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clinica, explicou: “O feto nao tem cérebro, ou tem apenas uma pequena parte dele. O restante do tecido fica exposto, sem protecio do cranio ou da pele. Cerca de 50% morrem dentro do titero; os outros 50% morrem quase sempre minutos apés 0 parto. Raramente resistem até 12 horas. Em todos os casos € 100% fatal.” (Simone Iwasso. “Especialistas rejeitam vincular anencefalia a aborto”, O Estado de S.Paulo, 8 de agosto de 2004) . Ha uma corrente denominada “ética das virtudes”, abordagem dominante até o Tuminismo, que tem sua origem em Aristételes e que foi rctomada nos anos 1950 (notadamente por Elisabeth Anscombe). Essa corrente afiema que: a) a base das normas morais esté nas virtudes ou nos tra- cos de cariter julgados como moralmente valiosos; b) toda pessoa precisa dessas virtudes para realizar-se como ser humano, Em vez de ser uma teoria da agio correta, essa corrente indaga: guais os tracos de carster que definem uma pessoa moralmente boa ou uma pessoa admiravel? E um pensamento que pretende superar a corrente deontolégica que sentencia que a justificagao moral da agio decorre de sua correcio intrinseca. E também aspira a transcender a corrente tele- olégica que confere justficagio moral as aces que promovem resultados universalistas. Trata-se de uma leitura estreitamente fundada na perspectiva do individuo, em oposigao a perspectiva do ato coletivamente esperado ou de suas consequéncias socialmente siteis. Em suma, 6 uma ética do carter, das intengdes corretas. Os fatores relevantes sio intra-individuais: tracos de carater, motivagées, desejos, emogées, disposigées subjetivas. Ora, alm de depender de pressupostos filoséficos — ou seja, de ilagées discutiveis —, essa corrente implica um controverso processo das intencdes, uma vez que os objetos da avaliagio moral deixam de ser os atos externos obser- vaveis e passam a ser as motivagdes internas dos agentes. E mais: ela acaba abrindo o flanco para ‘uma leitura que autoriza a “falicia das macis boas e das macis podres”, como se os homens se dividissem desde 0 nascimento em gente boa e em gente mé, o que resvala num reducionismo de senso comum (ver a esse respeito do autor, Etica Empresarial, pp. 1-5), Na nossa leitura, essa corrente acaba tendo de se inscrever na agenda da ética da conviccao, ainda que postule ser uma terceira via, pois as virtudes pressupostas nada mais sio sendo valores operantes e socialmente definidos (valores em ago), inculcados pelos agentes individuais ao longo de sua vida. Pois no existem valores, ainda que universalistas, que sejam absolutamente universais: os pr6prios valores que se subordinam a légica universalista (daquilo que interessa a todos os seres humanos) mudam com 0 tempo, sao hist6ricos. Foram assim justificadas aborninacées como as limpezas étnicas, os pogroms, os paredéns, as de- portacées coletivas, as atrocidades contra as populacées civis dos paises invadidos, a discriminagio © perseguigio de minorias, a depuragio dos “elementos contrarrevolucionarios infiltrados” nos Partidos Comunistas, a expropriacio das terras dos kulaks, a caca aos espides ¢ aos traidores da “quinta-coluna”, a repressio em massa dos “inimigos do povo”, o exterminio dos proprietérios fundirios, a eseravizagao e 0 massacre de populagdes citadinas pelo Khmer Vermelho no Camboja, a delacio institucional nos regimes totalitarios, o uso de reféns sociais, os campos de reeducagio moral na China maoista. Todos esses atos e o terror do Estado (meio utilizado) atentam contra 0s direitos humanos e, desse ponto de vista, tampouco seriam respaldados pela teoria ética da responsabilidade. 286 Poder, Cultura e Etica nas Organizacées ELSEVIER 60. 61 62, 63, 64, 65. 66. 67. 68, 69. 70. 71, Essa discussio encontra-se desenvolvida no livro do autor Etica Empresarial, 3* edigio, pp. 204-212. [Nao é impertinente considerar que a teoria da convicgdo se adequa mais a decisées tomadas no Ambito individual do que no Ambito coletivo, ao reverso da teoria da responsabilidade que se presta mais a decisées de abrangéncia coletiva, sem que os dois universos sejam estanques. De outro lado, as légicas que inspiram ambas as teorias também divergem: o sistema da corporacio parece adequar-se melhor & teoria da conviegio (I6gica da protecio) e o sistema do mercado a teoria da responsabilidade (ldgica do risco). .£ interessante lembrar que, na historia dos Estados Unidos, houve outras manipulagdes ou mentiras de Estado. Por exemplo, a destruigéo do encouracado americano “Maine” na Bafa de Havana em 1898 foi o pretexto utilizado para a declaragio de guerra dos Estados Unidos & Espanha. De fato, 0 “Maine” afundou depois de uma violenta explosio, matando 260 homens. A imprensa norte-americana da €poca acusou os espanhis de terem colocado uma mina sob o casco do navio ¢ denunciou sua barbérie, tal como a existéncia de “campos de morte” e até mesmo a pritica da antropofagia... O desfecho da guerra redundou na posterior anexagio de Cuba, Porto Rico, Filipinas e Ilha de Guam. Em 1911, uma comissio que investigava a destruicéo do navio concluiu que ocorreu uma explosio acidental na sala de maquinas. De forma simétrica, em 1964, dois destréeires declararam ter sido atacados no Golfo de Tonquim por torpedos norte-vietnamitas. Usando esses ataques como motivo, o presidente Lyndon B. Johnson ordenou bombardeios de represilia contra o Vietna do Norte ¢ exigiu do Congreso americano uma resolugio que Ihe permitiu envolver o Exército americano no conflito. Foi assim que comecou a Guerra do Vietnd, Mais tarde, em 1975, membros da tripulagio confessaram que o ataque aos destrdieres fora pura invengio... (Ignacio Ramonet. “A maior fraude de todos os tempos”, Le Monde Diplomatique, reproduzido pelo jornal A Tarde, Salvador, 6 de julho de 2003). Ataques de surpresa, suicidios em carros-bomba com dezenas de mortos e feridos, sequestros de reféns, muitos civis, com a degola de alguns deles diante das cameras de televisto, Escreve Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton: “Trinta anos depois do Victné, soldados americanos esto morrendo outra vez.numa guerra que foi vendida sob falsas premissas € cria mais inimigos do que mata” (“Patriotismo ‘A la Rambo”, The New York Times, publicado por O Estado de S.Paulo, 25 de agosto de 2004). Por exemplo, seria sensato que generais colocassem em risco suas tropas revelando seus planos? Caberia que autoridades abrissem o flanco a especulagio antecipando medidas econémicas de impacto? Poderiam empresas tornar piiblicos seus segredos de negécio? Seria inteligente que delegados de policia anunciassem as pistas que vem seguindo em investigagées criminais? Nao faz, sentido algum diré a ética da responsabilidade, ainda que seja necessério langar mio de omissies, subterftigios ou até de mentiras civicas. Com qual justificativa? A de que qualquer uma dessas revelacdes acarretaria imensos prejutzos piiblicos; respectivamente: massacre de tropas, ataques especulativos as finangas do Pais, destruicao de negécios, fuga dos suspeitos. Norberto Bobbio, Op. cit., pp. 186-187. Situagées inevitéveis, no provocadas pelos agentes, como, por exemplo, as calamidades natu: . Norberto Bobbio, Op. cit, pp. 176-194. Seu representante mais conspicuo é Jeremy Bentham. Seu representante mais conspfeuo é John Stuart Mill. ‘Trata-se da histéria dos dezesseis jovens urugnaios cujo avido caiu nos Andes em 1972. Esgotados 0s viveres, optaram pelo canibalismo e saciaram sua fome com a carne congelada dos 29 passa geiros mortos. O fato vazou para a imprensa dois meses ¢ meio depois, quando de seu resgate. A Fepercussio provocou uma comogao mundial. Ao fim ¢ ao cabo, entretanto, os jovens escaparam do estigma do canibalismo, pois a opinio piblica internacional aceitou a quebra do tabu como tum evento inelutavel. Considerou que, em iguais circunstancias, o grosso da humanidade con- tempordnea teria reagido da mesma forma,

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