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A matristica latino-americana comega a ser reconhecida? Ana Maria Bidegain/Maria Clara Bingemer Este artigo é um trabalho a duas vozes: a primeira parte abor- dara o problema a partir de uma perspectiva histérica; a segunda articularé uma reflexdo teolégica. A primeira parte foi elaborada por uma historiadora, a segunda por uma tedloga. A tematica abor dada é nova e complexa e exige uma leitura interdisciplinar. Ainda que as mulheres-maes da Igreja latino-americana a construam hi séculos junto com os homens, ainda é dificil reconhecer o lugar de las. Este artigo apoiado na experiéncia tenta apontar alguns marcos que abram a discussao. 1. As raizes histéricas da matristica A matristica é uma tematica dificil e polémica. Para muitos pode parecer um problema falso, uma invencdo sem fundamento hist6rico real. E que a tradicdo da Igreja arquivou sobretudo as zes greco-latinas daqueles influentes eclesidsticos, os Pais da lore Deveriamos entao escavar na tradigéo, a posteriori, um poss c4non alternativo de mulheres construtoras da Igreja? Sabemos au? muitas grandes vozes femininas estao ai, mas outras se perder definitivamente’. Para 0 caso especifico da América Latina, 0 discernimento sobre a possivel matristica autéctone correria o risco de configt Tar-se como uma analogia de segundo grau, uma vez que 05 7 des bispos do século XVI’ e os proeminentes bispos de Medellin ¢ hers 1.D.G.R. KELLER, Oasis of Wisdom: The Worlds of the Fathers and Mol Collegeville, Minnesota 2005. 2. E, DUSSEL, El episcopado latinoamericano y la liberacién de los 1620), Mexico 1979. pobres (150+ Puebla estariam representados como a analogia de primeiro grau dos Pais da Igreja universal dos séculos quarto e quinto. Uma alter- nativa mais critica e fecunda excluiria de antemao a légica caudilista ¢ patriarcal que aflora na categoria tradicional “Pai da Igreja”. A fi- gura patristica classica é a de um vardo sabio, santo e versado em graméatica que fala de sua catedra, com 0 aval do poder institucional (a lgreia, em muitos casos tanto em oposicao polémica a seus cole- 85 tedlogos como aqueles que combatem como hereges, como sendo ele 0 tinico que busca definir os critérios ultimos da catolici- (ale, Este padrao de sabio normativo passa inclusive 4 modernida- dectitica e € 0 modelo discernivel em figuras como Descartes, Kant ¢Hegel. Seria muito dificil encontrar casos concretos de mulheres {ue encarnem este modelo. A categoria de doutores da Igreja, que indui figuras posteriores ao século VIII, foi mais inclusiva que a pa- "slica, pelo menos desde a nomeago concedida a Teresa de Avila Pel papa Paulo VI (1975): dos 33 doutores, trés sao mulheres: Te- "sade Avila, Catarina de Sena e Teresinha de Lisieux. No entanto, afgura dos doutores também nao éa mais idonea para representar Scontribuicao eclesial das novas igrejas nascidas da expansao colo- Nil do cristianismo. Tanto na tradicdo fundacional como no presente, as mulheres ‘rslés trabalharam em colaboragéo com outras e outros, em hori- “ons consensuais, Tanto o pensamento teolégico como o traba- bo ecesial das mulheres cristas latino-americanas tem sido inter- vo, relacional, dialogico e comunitario, o que pode favorecer ‘ata tendéncia ao anonimato. Essa modalidade de trabalho pode plicar uma das causas da grande disparidade entre o trabalho que “eam e fazem as mulheres na Igreja e 0 pouco que foram reco- como edificadoras da comunidade latino-americana. Ou- ‘eselor no qual também se manifesta o que foi exposto antes, € 0 ‘ebalho teoldgico. Desde que ha tedlogas profissionais na América ' tina, seu modus operandi como grupo mostrou claramente esta “ncia. As tedlogas configuram redes de pensamento dialogal, Procuram conhecer-se pessoalmente e compartilhar a vida concre- Bde cada uma, fazem congressos e simpdsios nos quais procuram ‘Snsenso sem deixar de lado objecdes pessoais e perfis criticos ir- ltiveis a uma $6 voz. As antologias de artigos sao um espa¢o Pa” "damatico para entender a dinamica das novas tedlogas, visto que nelas se mostra ao mesmo tempo a vontade de consenso e a grande variedade de vozes originais. A partir desta constatac&o, perce- be-se claramente que o cénon feminino parte de um substrato hu- mano historicamente configurado como diferente. Embora haja grandes figuras, com vozes claras, fortes e profundas, nao é o caso de isolé-las ou monumentaliza-las, quando 0 que urge é destacar que mesmo quando sua voz nao foi arquivada nem seu trabalho reco- nhecido, a mulher crista levou sobre si uma porgado majoritaria do trabalho eclesial na América Latina. Apesar das objecdes que expusemos acima, achamos impor- tante expor o caso singular de Sor Juana Inés de la Cruz, considera- da por alguns autores como uma genuina mae da Igreja latino-ameri- cana no sentido classico’. Sor Juana foi reconhecida como a priv meira pensadora feminista das Américas’. Destaca-se seu trabalho teoldgico, discernivel dentro de géneros formalmente nao teolégi- cos como a poesia, o drama ea carta. Seus temas mais relevantes incluem sua meditacdo sobre o lugar da mulher crista como tal na igreja e na economia da salvagéo, a mulher como sujeito de conhe- cimento e de aco pastoral e como educadora. Seu método e estilo colocam em relevo a relacao entre a beleza e os mistérios cristaos, © que causou a valorizagdo, por parte de intérpretes modernos, de sua contribuigao para a estética teolégica. O trabalho de Sor duana antecipou muitos gestos caracteristicos da teologia feminista lati- no-americana. Sua erudigao autodidatica permitiu-lhe apropriar-se do marco conceitual abstrato ocidental e de seus problemas, mas também soube subverté-los criativamente e ultrapassa-los para po- der explorar realidades ainda nao pensadas nem nomeadas da vida no México. O pensamento teolégico sorjuanista, como 0 de Las Casas e 0 de outras figuras do cristianismo latino-americano, difere de seus equivalentes europeus, na medida em que seu texto auxiliar nao é s6a filosofia, mas sobretudo a experiéncia historica comple xissima de um mundo colonial multiétnico. 3, MA. GONZALEZ, Sor Juana: Beauty and Justice in the Americas, Nova York 2003, 190-197; M.-C. BENASSY-BERLING, Humanisme et religion chez Sor Juana Inés de la Cruz: La femme et la culture au XVII siécle, Paris 1992. 4. B, MELANO COUCH, Sor Juana Ines de la Cruz: The First Women Theolas! an of the Americas, Filadélfia 1985. 98 [706] Nao obstante, a perspectiva que valoriza como fundamental a grande producdo doutrinal e a teologia escrita é de per si excluden- te para o caso latino-americano por muitas razGes. Na construgao da Igreja na regiao destacou-se mais a praxis pastoral e a criativida- de associada 4 luta cotidiana pela vida do que as grandes sinteses teolégicas. Nao é preciso deixar de lado a perspectiva logocéntrica ocidental para encontrar séculos de trabalho criativo por parte das cristas latino-americanas. As mulheres constituem a grande maio- tia dos cristéos comprometidos na América Latina e foram de fato agentes primordiais na edificacdo das igrejas locais. Tanto no pas- sado colonial como no presente, nas paréquias, miss6es e comuni- dades de base, prevaleceu o trabalho pastoral da mulher. Em areas sem padres (0 que foi e é comum na regio, sobretudo em areas rurais), algumas mulheres assumiram as fungées de parocas (excluindo a ce- lebraco completa dos sacramentos)’. A mulher negra e indigena praticou uma espécie de teologia caseira e de importancia vital para a compreensao da fé, dirigida a pessoas étnica e culturalmente distin- tas do europeu branco. Mas também as mulheres brancas, de qual- quer condico social, tém sido o centro religioso doméstico. Como primeira catequista, as maes tornaram concreta a mensagem crista ara seus filhos, a partir de horizontes simbdlicos e éticos compreen- siveis, inculturados. Mas este processo complexo nao esteve relega- do s6 ao plano doméstico e a educagao religiosa das criangas. As mulheres trabalharam muito também como catequistas, animadoras da fé, ambientadoras de espacos de culto. No periodo colonial e bar- toco, as mulheres desenvolveram paraliturgias inculturadas que nutri- ram a fé popular de pessoas de certa forma afastadas da liturgia ofici- al da Igreja. Era preciso explorar de forma mais sistematica a densida- de crista destas expressées na eclesiogénese latino-americana. Mais do que de ferramentas hermenéuticas, precisamos de sabedoria se- mitica para recuperar os gestos construtores da igreja das mulhe- tes, diante de seus icones, lendas e praticas piedosas. A vida religiosa feminina também foi fundamental no desen- volvimento religioso e social da regiéo. No periodo colonial, os con- ventos exerceram funcées nao s6 espirituais, mas também financei- 4 5. Cf.N. RIVAS, Ellas fueron a anunciarlo. Parroquias animadas por comunida- les religiosas femeninas en Uruguay, Montevideo 2008. 99 [707] ras, educacionais, literarias, artisticas e inclusive culinarias na socie- dade®, Mas foi com a expansdo de congregacées modernas que o trabalho das religiosas chegou a seu momento mais alto na América Latina. O numero de religiosas cresceu muito, ultrapassando noto- riamente o total do clero masculino. As irmas trabalharam em mui- tos setores, religiosos ou nao, desde o ensino e a evangelizacdo de minorias estrangeiras até a organizacao de cooperativas de campo- neses. Em alguns paises, seu trabalho e instituicdes constituiram os eixos centrais do sistema educativo, de satide e de beneficéncia. Por volta de meados do século, as religiosas diversificaram ainda mais seus desempenhos sociais e eclesiais por meio da educacao univer- sitaria e da profissionalizagdo de muitas’. A incorporacao da mulher ao apostolado hierarquico comega em fins do século XIX e principios do século XX, através das con- gregacées religiosas e da convocagéo das mulheres dentro da Acao Catélica. Concomitante a preparagéo do concilio, o desenvolvimen- to do movimento litargico e biblico, a Acdo Catélica especializou sua pratica em diversos ambientes sociais, particularmente entre a juventude, formando movimentos mistos. Este processo chega 4 sua maturidade com a preparacao do Concilio Vaticano II e na pri- meira década depois do mesmo. Em muitos casos, foram as mulhe- res que iniciaram o proceso e/ou tiveram o papel protagonista’. Estas organizaces foram estratégias pastorais basicas, mas as Mu- lheres participaram em muitas outras atividades, de modo que, seja para 0 concilio ou seja para Medellin e Puebla, as mulheres foram agentes fundamentais da mudanga eclesial e sécio-politica. As mu- lheres, tanto religiosas como leigas, tendo conquistado os direitos sociais e politicos, o acesso A educaco universitaria e um maior acesso a diversos campos de trabalho, encontraram mais espa¢os & ferramentas criticas para promover seu trabalho apostélico em di- 6. Ver E. ARENAL/S. SCHLAU, Untold Sisters: Hispanic Nuns in Their Own Words, Albuquerque 1989; A. LAVRIN, Espiritualidad en el claustro novohispano, em Colo- nial Latin American Review 4 (1995/2) 155-179. 7. AM. BIDEGAIN, Vida Religiosa Femenina en América Latina y el Caribe: Me moria Historica 1959-1999, Vol. Il, Bogoté 2003. 8. AM. BIDEGAIN, Otra Lectura Sobre las Relaciones de Hombres y Mujeres en el Catolicismo, em Sociedad y Religién 26-27 (2006), 100 [708] versos meios sociais, e comecar a buscar novos rumos politicos que tornaram possiveis “a construgéo do Reino aqui e agora". Com 0 desenvolvimento da colegialidade episcopal e sua insti- tucionalizacdo, tanto a niveis nacionais como a nivel latino-americano (CELAM), tanto homens leigos como mulheres leigas e religiosas fo- ram chamados a participar em conferéncias, seminarios, coordena- céo de departamentos, direcdo de publicacdes e na qualidade de pe- ritos. Como tais, conseguiram uma influéncia significativa no episco- pado e na organizacao eclesial. No entanto, a teologia como discipli- na continuava restringida ao clero, sendo muitos dos assessores da Acao Catélica os principais tedlogos em Medellin: Gustavo Gutierrez, duan Luis Segundo, Lucio Gera. Na preparagao e no imediato pds- Puebla, as vozes de algumas tedlogas comecaram a ser ouvidas. Nesse contexto também devemos destacar as mudancas favo- raveis A evangelizacao popular que ocorreram na vida religiosa fe- minina. A maioria das irmas latino-americanas foram promotoras entusiastas das reformas propostas pelo Concilio Vaticano Il. Pes- soal e comunitariamente, elas encarnaram o espirito de renovagao da Igreja e o promoveram criativamente entre as pessoas as quais serviam. Nos anos 1960 e 1970, processaram-se mudangas pro- fundas na vida religiosa feminina. Muitas religiosas abandonaram as ordens e congregacées, e outras repensaram sua missa0 na Igreja e na sociedade. Como resultado, muitas renunciaram as instituigoes de elite e se ressituaram em pequenas comunidades, inseridas em bairros populares e em setores camponeses, orientadas para a oo gelizacao e promogao do povo. A partir do horizonte sani le luta didria pela dignidade humana dos pobres, encurtou-se cons! le- tavelmente a distancia entre as irmas consagradas e as mulheres lei- as, as catdlicas e as protestantes. Todas participaram em ata tes movimentos populares e de libertacao, e tambem muitas aan tam como mértires, durante uma das ondas de repressdo mais de- vastadoras em toda uma regiéo geografica®. : : ana, 9. AM, BIDEGAIN, Transformacién de la vida religiosa femenina latina errs: Dela vida centrada en la regia y la clausura a la vida centrada en la mision, em WUITEROTH (ed.), Actores y dimensign en los movimientos sociales latinoamericanos, 1960-1992, Mexico 2006, 95-105, it ssultada aos 10 10. Ver bitp://Wwunw servicioskoinonia,org/martirologio/pagina (connie Oo de agosto de 2009), Cf. tambem P. DEBESSE, Mértires Latinoamericanos de H70¥, 80 do Chile 1991 101 [709] 2. Teologia: a outra face da matristica A teologia feita pelas mulheres na América Latina encontra sua data de nascimento por volta de 1968, quando a Conferéncia de Medellin relia 0 sopro de inesperada primavera do Concilio Vati- cano II na chave de inseparabilidade entre antincio evangélico e luta pela justica’. Os trés marcos de Medellin - a tomada de consciéncia de que evangelizar na América Latina suporia uma inclusdo da di- mensao de opressao e injustica presentes no continente; o pensar teoldgico sobre a fé fazendo-se inseparavelmente da anilise da rea- lidade atravessada pela injustica; a aglutinagaéo das bases comunita- tias que liam a conflitividade da vida a luz da Escritura para produzir novos fatos transformadores — abriram caminhos e portas para que a elaboragao do discurso teolégico encontrasse um novo sujeito como ponto de partida: os pobres e marginalizados do continente. Assim, nos anos 1970, as mulheres latino-americanas come- garam a aventurar-se pelos meandros do trabalho teolégico, a par- tir da forte interpelacdo dos pobres e da opcao por eles que se vai coagulando na Igreja latino-americana. A teologia latino-americana, a partir da perspectiva da mulher, nasce inseparavel da opcao pelos pobres, que é constitutiva de sua configuracéo™. Para estas pionei- ras, um desejo impossivel de contentar e que, maior do que elas mesmas, as levava a ousar 0 impossivel: aventurar-se num mundo até agora habitado por homens e, em sua quase totalidade, clérigos celibatarios. As mulheres que pretendiam fazer teologia nesse momento inicial tinham seus olhos voltados para a realidade dos pobres e per- cebiam que a teologia comecava a ser feita em estreito didlogo com as ciéncias sociais. Comecavam a perceber também um fendmeno que mais tarde se consolidou com o nome de “feminizagao da po- breza”. E foi assim que uma nova solidariedade comegou a existir na AL: a das mulheres tedlogas com as mulheres pobres das bases comunitarias. As primeiras se autocompreenderam como porta-vozes ____L1, Discordamos aqui da periodizacao feita por M.C. DE FREITAS em sua introdu ao a Género e Teologia. Interpelacées e perspectivas, So Paulo 2003, 24-25. 12. Cf. S. SUAIDEN, Questdes contemporaneas para a teologia ~ Provocagées sob a otica de género, em SOTER (org,), Género e Teologia. Interpelacées e perspectivas. S80 Paulo 2003, 147 7 " pense 102 {710} das Ultimas e responsaveis pela recuperacao de seus direitos. Os en- contros de mulheres tedlogas e pastoralistas, em progressao revela- dora e fecunda, foram mostrando um rosto coletivo de paixao e compromisso pela luta pela justica inseparavel da construgao do Reino de Deus”. Ecuménicos desde o comeco, esses encontros fizeram as ted- logas latino-americanas comegar a viver - além da aliangca com as mulheres da base — uma fecunda interacao entre catélicas e protes- tantes, o que significou um enriquecimento mutuo que construia bases sdlidas para um futuro. Nos anos 1990, as tedlogas latino-americanas sentiram o im- pacto da queda das utopias e a crise da Teologia da Libertagao (TdL) que foi seu berco, com o absoluto predominio das questdes sdcio-econd- mico-politicas como eixo de didlogo e fundamentacao. Tiveram de vi- ver a dor dos fatos e tentar ressituar seu enfoque e seu método de fa- zer teologia. Foi o que fizeram, fiéis a intuigéo primordial de que fé e justica andam juntas e sido inseparaveis; mas criativas para compre- ender que uma mudanca de época se encontrava em curso e que era Necessario encarar outras areas do saber, como antropologia, filoso- fia e até ciéncia da natureza, a fim de encontrar os interlocutores apropriados para sua reflexdo sobre o dado revelado. Fruto de todo este inicio de caminho foi a disposicao para re- Pensar todos os grandes temas teolgicos a partir da otica da mu- Iher. E 0 que Ivone Gebara identifica como um segundo momento da trajetoria da teologia feminista latino-americana e chamada por ela de “feminizacao dos conceitos teolégicos”™*, A maior presenca das mulheres no espaco de reflexdo académica fez que elas se dedi- cassem a feminizar conceitos teolégicos que continuavam sendo con- Ceitos patriarcais. Buscavam uma teologia com rosto, alma e configu- Yacao de mulher, uma perspectiva feminina da teologia que destaca a Importancia de redescobrir as expressées femininas de Deus. Co- ™eca ai um momento mais fecundo e sélido de publicacdes de mu- 13. Os temas dos encontros ~ que se deram a nivel nacional ¢ latino-americano — dao eaounho desta progressividade de aglutinacéo e organizaco que foi fazendo da comuni- eclsicafeminina um sueto ativo dentro de comunkdade edesial tas, em Hi CE | GEBARA, II Semana Teolbgica ~ Constnuyendo nuestra Teologias Feminis- SILVA go blc28 90 ~ Cuadernos de Estudios setembro de 1993) 71-124, citado por SRL. em hittp://ejesus.com, br/lista/8/conteudo/6250/ (consultado aos 20/02/2008). 103 [711] lheres tedlogas, tentando revisitar e repensar os grandes tratados da teologia dogmatica e da prépria Biblia, a partir de sua experién- cia e de seu sentir feminino’*. Essa maneira de pensar e construir um discurso teolégico a partir do ser mulher encontra uma legitimidade e aceitacao positiva na comunidade teolégica. As revistas, periédicos e editoriais que pu- blicam teologia abriram suas portas e as mulheres comecaram a ser li das, recebidas e discutidas na comunidade teolégica como um todo!®. A maneira de nomear essa etapa do processo evitava a palavra “fe- minismo” ou “feminista” por desejar distanciar-se do tom reivindica- tivo e antagénico da teologia feita em outras latitudes. Dava-se prefe- réncia a expressdes como “teologia a partir da otica da mulher” ou “teologia feita por mulheres”, ou “teologia a partir da mulher””. Esse modo de fazer teologia permanece até os nossos dias. Apesar disto, a teologia feminista latino-americana teve de enfrentar, a partir da segunda metade dos anos 1990, alguns desa- fios importantes. O processo de maturidade pelo qual teve de pas sar devido as interpelacées da histéria e da cultura, obrigou-a a re- visar alguns de seus pressupostos. E um deles foi dar-se conta de que devia superar o descompasso existente entre a marcha acelera- da da teologia feminista feita em outras latitudes ou ainda entre a re- flexdo feminista feita aqui em outras areas do saber. E a conviccdo de que o feminismo, as teorias de género e a teologia feminista ja nao poderiam ser ignorados e que urgia tomé-los a sério™. 15. Seria longo citar todas as publicacées que se inserem nesta etapa. Ocupariamos muito espaco neste artigo, além de corermos o risco de esquecer nomes e obras importan- tes, Remetemos, portanto a tese doutoral de M. PILAR AQUINO, Nuestro clamor por la vida, cit., que recolhe exaustivamente esse trabalho e seus frutos. Remetemos também 20 €X- ‘traordinario trabalho feito por E. Tamez. Digno de notar é igualmente o trabalho que ha varios anos ver realizando 0 programa Teologanda da Argentina (cf. www.teologanda.com.ar) e que abrange nao somente este periodo da historia da teologia feminina na AL, mas que busca fa zer um mapeamento mais completo da mesma, 16. Sao dessa epoca a publicacao de artigos e livros de tedlogas como N.C. Correia Pinto, A.M. Tepedino, T. Cavalcanti, M.T. Porcile, ete 17. Cf., por exemplo, a publicagéo coordenada por M. BRANDAO, Teologia na ti ca da mulher, Rio de Janeiro 1990. 18. Cf. M.C. DE FREITAS, art. cit., 23. Cf. também os trabalhos de M.J. ROSADO- NUNES sobre género e religido, género e teologia em suas aulas na PUC de Sao Paulo e suas publicacdes na Revista de Estudos Feministas. 104 [712] Nessa etapa entdo nés tedlogas fomos desafiadas a recolocar as questdes da identidade feminina, da antropologia, da cosmolo- gia e da teologia que sustentam o discurso patriarcal. A teologia fe- minista supde uma mudanga radical néo somente na maneira de pensar o dado da Revelagao e o texto das Escrituras, mas também e no menos na forma de pensar o mundo, as relacées entre as pes soas, com a natureza e a divindade. Tornou-se claro para as novas geraces de tedlogas, que nao era possivel uma teologia de remendos, de reciclagem do antigo, sem dar lugar ao parto do novo que ansiava por conhecer a luz. Ja nao se tratava de uma teologia a partir da ética ou da perspectiva da mulher, apresentada como acréscimo ou como capitulo a parte da teologia oficial, feita até agora pelos tedlogos homens, mas de um questionamento de fundo ao conjunto da teologia dominante, patri- arcal e machista’®. E sobretudo seguiram os passos de sua pertenga primordial, a TdL”. Enquanto a TdL expandia o leque de seu interesse para ou- tros temas que n&éo eram somente os estritamente s6cio-econd- mico-politicos, e comegava a trabalhar sobre ecologia, cultura, crise damodemidade, género, raca e etnia, a teologia feminista latino-ameri- cana encontrava na perspectiva de género um Angulo mais adequa- do a partir do qual construir sua reflexdo e seu discurso. Ou seja, Nao se perderia em nada a perspectiva de inclusdo dos que estao a Margem da sociedade e do progresso. Ao contrario, essa problema- tica seguia, mais do que nunca talvez, desafiando e interpelando a teologia. Os pobres que constituiam os sujeitos teolégicos por exce- lencia da teologia latino-americana dos anos 1970 e 1980, agora eram identificados como “excluidos” de todo beneficio trazido ive Progresso e pelo bem-estar. Eles agora tinham e tém rostos mais Cr" versificados que antes e formam um mosaico de riqueza muito maior complexo que desafia a teologia em milltiplas direces. 19. CE. SR. DE Li VA, Teologia feminista latinoamericana, em http://<}e- sus.com.br li ia/B/conteude 6250" eee ies aos 19/02/2008), Ct. tambérn Cae | GEBARA, Entre os limites da filosofia e da teologia feminista, em SOTER (ora), teologia. Interpelacées e perspectivas, Sao Paulo 2003, 153-170. Arriscamos essa interpretaco deixando claro que é @ nossa leitura dos fatos. 105 [713] EEE S'S Ivone Gebara, uma das grandes responsaveis pelas elabora- g6es encontradas nessa nova etapa, vai afirmar que “A TdL, que Oferece uma visdo mais coletiva de Deus e enfatiza a natureza social do pecado, nao alterou a antropologia e a cosmologia patriarcais nas quais se baseia 0 cristianismo””’. Com isso, entendemos que a autora quer dizer que a luta pela libertagdo sécio-econémico-politica com a qual a TdL pretendia colaborar com a contribuicdo de uma pa- lavra especifica e diferente, nao contemplou nem alcancou com seu esforco outras exclusées, igualmente necessitadas de libertacao, como, por exemplo, a opressao da mulher, a exclusao sexual e de género, assim como as exclusées raciais e étnicas. Por conseguinte, seria necessario um novo passo, um salto de qualidade em outra direcdo, a fim de conseguir essa libertacao pela qual espera a metade da humanidade. Assim é que Ivone Ge- bara definira o salto que a teologia feminista est& disposta a dar: “fa- lar de Deus e da questéo do género é fazer uma dupla afirmacao: em primeiro lugar, é afirmar que o que dizemos de Deus esta ligado a nossas experiéncias histéricas, 4 nossa vivéncia; depois, que nos- sa propria ideia de Deus, assim como nossa relacdo com ele/ela ou com seu mistério, vem marcada pelo que chamamos... construgdo social e cultural do género””. Assim também se da toda a abertura da area ecofeminista que € assumida a nivel do continente. Na América Latina ainda sao Poucas as tedlogas que tem uma producdo digna de notar-se em cha- ve ecofeminista”’. Contudo, a abertura ea atencéo a essa nova area interdisciplinar de reflexéo permitiu a teologia feminista latino-ame- ricana dialogar com toda a reflexdo ambiental: com a filosofia, as ciéncias sociais, o direito ambiental, etc. Toda a reflexdio sobre a eco- logia em relacéo com os direitos da terra e da natureza vem entrelaca- da com a reflexo sobre os direitos da mulher enquanto forma de Opressao ainda vigente e presente na sociedade e na Igreja. Na me- dida em que 0 ecofeminismo significa o fim de todas as formas de dominacao, a teologia néo pode estar fora dele. E nela, a teologia 21.1. GEBARA, Teologia Cosmica: Ecofeminismo e Panenteismo, em Folha Mu ther, Projeto Sofia: Muther, Teologia e Cidadania, ISER 8 (1994) 70-75. toda eooo nae Rompendo o siléncio: uma fenomenologia feminista do mal, Pe- 23.Cl. sobretudo I. GEBARA, Teologia Ecofeminista, Sdo Paulo 1988 106 [714] ————— eae feminista, que continua sendo feita na chave da libertacac, de todas. as formas de opressao e luta por direitos nao respeitados A palavra “empoderamento” (empowerment) entrou recente mente no universo teoldgico feminista latino-americano e parece ter vindo para ficar. Quando se fala de delegar poder, capacitar para atuar com mais autoridade, descentralizar, nao se pode deixar de pensar na mulher. Dar poder a mulher vem sendo um fato na so ciedade, e as ciéncias humanas e sociais refletiram e derani voz a este fato™. A teologia feminista em todas as latitudes. inclusive na Ameri ca Latina, também volta sua atencdo para essa categoria. incorpo rando-a em seu pensar e seu discurso"”. Falar teologicamente de poder, empoderar, dar poder, etc., implicara necessariamente falar da questéo da mulher, de abrirhe espacos na Igreja e vai tocar na dificil e delicada questao dos ministérios eclesiais O novo paradigma eclesial que substitui uma Igreja centrada na contraposic¢ao clero-laicato por uma comunidade constantemen- te reinventada e redimensionada pelos carismas ¢ ministérios, abun- dantemente suscitados pelo Espirito em seu meio. vai permitir as Tene de hoje encontrar espaco para caminhar no desejo e na el ‘etivacdo de um real e maior servico ao povo de Deus. Na década de 1980, quando jé amadureciam os frutos do Conciio Vaticano Il e a Igreja da América Latina assimilava em Paco Profundidade as conclusées das Conferéncias de Medellin e rag lees comesaram efetivamente a atrever-se a contes- vele eletiva dole eclesial que clamava por uma presenca mais visi- las, religi a Junto do povo de Deus. Foi assim que muitas de- ” Feligiosas ou leigas, foram assumindo progressivamente diver- 42, e IDI logy. Feminism and Religion, Nova York 1990. EM, Gaia and God A Feminist Theology of Earth Healing, Nova York fr influéncia nas tod! : oricemas. Cl. lo, Mandrégora, 6 (2000), t. sobre pi ill latino-americanas. Cf. por (ed), Poles Sot o. re baement a Dratica de servico social, em ©. BARATA 7 por Tiéncia das mutho feed teu de L. ETSUKO TOMITA, Corpo e cotidiano: a expe $40 na América Latina, PUC/SP, sos ministérios nas comunidades. Desde a coordenacao das comu- nidades até as celebracées litlrgicas da Palavra, foram incontaveis 0s servicos prestados por estas mulheres, a frente de comunidades, vivendo um modelo de igreja em que o poder era mais livremente compartilhado e as decisées tomadas de forma mais conjunta e co- legiadamente Para isso, certamente sera proveitoso aprofundar-se num tema que parece crescer paulatinamente dentro da teologia feminista lati- no-americana: o resgate das testemunhas historicas que iluminam © caminho, desentranhar a teologia contida em suas vidas, expe- riéncias e pensamentos. Cada vez mais se encontram tedlogas (e tedlogos) que escolhem como campo de sua reflexdo as biografias e escritos de grandes misticas de outros tempos e de hoje, maravilhas da irrupcao do Espirito de Deus na histéria, sempre subversivas em relacao ao estabelecido, entrando constantemente em conflito com uma instituigéo que muitas vezes lhes restringe o carisma e a expe riéncia, mas trazendo ‘inclusive a essa instituicéo a novidade do Es- Pirito que nunca se repete. E certamente uma maneira de “empoderar” as mulheres tor- nar cada vez mais conhecidos esses paradigmas pessoais que, 4 partir de uma profunda e radical experiéncia do divino, visibilizam a liberdade soberana e sempre inventiva do poder de Deus que cria @ recria sem cessar 0 mundo e a humanidade. Fazer uma teologia de testemunhas, em vez de uma teologia de textos, pode ser um rico desafio para a teologia feminista latino-americana, em sua tentativa de resgatar os direitos das mulheres invisibilizadas e emudecidas pela opressao da sociedade e de todas as instituigdes. Traducao de Lacia M. Endlich Orth 108 [716] ————————=

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