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SENDAS, VEREDAS Dicionario Nietzsche Os livros publicados por Nietzsche | § 344 mostra que a verdade foi divinizada por raz6es essencial- lente morais, que devern, doravante, ser colocadas em questo. A z desse exemplo importante, pode-se observar que a gaia ciéncia e inscreve, em 1887, num projeto axiolégico de maior envergadu- . Ela vem a designar o estado de espirito de um filésofo que em- reende uma transvaloracao de todos os valores, ou seja, que pre- tende substituir “tudo o que até agora se chamou sagrado” por um ovo ideal, conforme o importante § 382 (livro V) jibliografia SALANSKIS, Emmanuel. Nietzsche. Paris: Les Belles Lettres, 2015. Ca- pitulo 2. Emmanuel Salanskis IM FALAVA ZARATUSTRA. m livro para todos e ninguém (Also sprach Zarathustra. ‘in Buch fiir Alle und Keinen) ss livros publicados por Nietzsche, Assim falava Zaratustra é sem vida o mais controvertido. Diversas sao as leituras que suscita; le ordem variada os trabalhos a que se presta. O leitor sente-se de imediato atraido por uma sucessao de pardbolas que evidenciam o lento estilistico do autor; deixa-se envolver numa teia de imagens niricas que revelam episddios de sua biografia; acaba arrebatado r uma rede de discursos que poem a nu seus experimentos filo- icos. Isso se explica, em parte, pelo estilo que Nietzsche adota esse livro. Ele é duplamente especifico: constitui uma exce¢ao no ntexto da escrita filoséfica em geral e, outra, no conjunto de seus rOprios escritos. Em seus livros, Nietzsche nao hesita em recorrer 0 estilo dissertativo ou polémico, assim como ao aforismo ou a0 ma. Ao fazé-lo, nao tem a intengao de encontrar um meio de ex- a Dicionério Nietzsche press&o que seja adequado nem de lancar-se em experimentagoes. estilisticas. Mas 0 pluralismo de estilos presente em sua obra nao vem privd-la de estrutura nem conferir-Ihe carater indeterminado. Se as estilos que nela se encontram sao plural porque traduzem miultiplas perspectivas e, por conseguinte, exprimem multiplas con- digdes de vida. Nao se poderia, pois, separar as ideias e as diferentes maneiras de enuncid-las, distinguir os contetidos do pensamento e as formas especificas de exprimi-los. Nietzsche compée 0 livro em pouco mais de dois anos. Em ja- neiro de 1883, ele redige a primeira parte; em julho do mesmo ano, asegunda. Em janeiro de 1884, escreve a terceira; em janeiro do ano. seguinte, a quarta. Schmeitzner, seu editor, leva meses para publicar a primeira parte; aceita ainda editar a segunda parte e a terceira jun- tas; recusa-se, categdrico, a publicar a quarta. Dela, Nietzsche cus- tela uma tiragem de quarenta exemplares; nem mesmo dez sao as pessoas a quem pensa envid-los em carater confidencial. A relagéo que Nietzsche estabelece com Assim falava Zaratus- tra transforma-se 4 medida que escreve e publica as diferentes partes: da obra. Em abril de 1883, quando faz aparecer a primeira, ele con- sidera o livro concluido. Em abril de 1884, quando prepara com Peter Gast a edigdo da terceira, entende que esta é a ultima. Em abril do ano seguinte, quando traz a publico a quarta, faz questdo de intitulé-la “Quarta e ultima parte”. Algum tempo depois, renega as trés primei- ras partes e pensa elaborar um novo Zaratustra a partir da quarta, Planeja, ainda, compor a quinta e a sexta mas nao chega a fazé-lo. Até ooutono de 1888 mantém a intencao de concluir 0 livro. Em 1886, quando Fritzsch, o editor de Wagner, negocia com Schmeitzner a compra dos exemplares de suas obras anteriores, o fi- lésofo concorda que reedite as trés primeiras partes de Assim falava Zaratustra num Gnico volume. Exige, porém, que a quarta seja man- tida em segredo. E apenas em 1891, depois da crise de Turim, que: Peter Gast acaba por tornd-la piblica, sem levar em conta a posicao do autor, que, alias, nesse momento ja se acha alheio do que se pas- saa sua volta. Em 1893, 0 editor Naumann encarrega-se da reedigao. do livro e publica, pela primeira vez, as quatro partes de Zaratustra num Gnico volume. Dai resulta que a obra que contou com a concor- \ 80 \ Os livros publicados por Nietzsche | ‘éncia do autor, um livro com trés partes, também foi renegada por ‘Se. Ea obra consagrada pela posteridade, um livro com quatro par- ==5. nao chegou a ser por ele autorizada. As primeiras linhas do prefacio a Assim falava Zaratustra reto- mem ipsis litteris a Ultima segéo da quarta parte de A gaia Ciéncia 1§342). Se nela Nietzsche j4 poe em cena Zaratustra, na pentltima £020, intitulada “O mais pesado dos pesos” (§ 341), expressa pela pnmeira vez em seus escritos 0 pensamento do eterno retorno do mesmo. Publicadas imediatamente antes da redacdo de Assim falava Zoratustra, as duas segdes antecipam o que vird a constituir 0 prota- onista central e a concepcao basica da obra. As diferentes atitudes ‘© protagonista esclarecem o que ele tem a dizer; seu pensamento mais abissal langa luz sobre quem deve anuncié-lo. Alias, € o autor mesmo quem fomece essa chave de leitura em Ecce Homo. Assim falava Zaratustra abre-se com 0 antincio da transforma- 0 por que o protagonista acaba de passar. Durante dez anos, ele wveu na solid&o de sua caverna e de sua montanha, mas seu coragao tansformou-se; ele teve conhecimento da morte de Deus. E para Sertilhar sua sabedoria que Zaratustra desce em direco ao vale. ‘Uma vez na cidade, anuncia ao povo reunido na praga do mercado Que vem ensinar 0 além-do-homem. Se Deus esta morto, sera preci- so substituir a concepgao de homem como uma criatura em relagao 2um Criador pela concepgao de além-do-homem. Durante séculos, ser humano, dilacerado, acreditou ser composto de corpo e alma. Agora, nao mais se definindo em relacdo a divindade, ele deixa de Sustir. Se 0 apogeu da humanidade, seu meio-dia, ocorre quando Gsaparece o dualismo entre mundo verdadeiro e mundo aparente, @ homem que se supera identifica-se com o mundo. Zaratustra apresenta-se como o promotor de uma completa re- wravolta na nossa cultura. Desvalorizando este mundo em nome de ‘Outro, que seria essencial, imutavel e eterno, a cultura socratico-ju- szico-crista revela-se niilista desde a base. E a morte de Deus que pemmitird a Zaratustra fazer a travessia do niilismo. Se os valores en- ‘contraram sua legitimidade no mundo suprassensivel, trata-se agora de eliminar 0 solo a partir do qual foram estabelecidos para engen- rar outros valores. E a morte de Deus que possibilitara a Zaratustra 61 Dicionario Nietzsche preparar a criacdo de valores que estejam em consonancia com esta vida e este mundo. Contra o ressentimento, é preciso lembrar que nao hé vida eterna; é esta vida tal como a vivemos que é eterna. Con- tra o ascetismo, é preciso suprimir 0 além e voltar-se para a Terra. E nao ha afirmacdo mais incondicional da existéncia do que a afirma- Go de que tudo retorna um ntimero infinito de vezes. No decorrer do livro, de anunciador do além-do-homem Zaratustra se converte em mestre do eterno retorno do mesmo. A anilise do titulo e do subtitulo de Assim falava Zaratustra permite esclarecer tanto o protagonista central quanto a concep¢ao basica da obra. Zaratustra fala em circunstancias diversas e de dife- rentes maneiras. Discursa para 0 povo reunido na praca do mercado, dirige-se aos discipulos e, por vezes, a apenas um deles em particu- lar, entretém-se com varias personagens que cruzam 0 seu caminho. Contudo, seria desmedido entender esse falar, também presente no titulo da obra, como mera necessidade de comunicar-se. Zaratustra fala, mas também canta; discursa e monologa; tem interlocutores € volta-se para si mesmo; conversa com seus animais e troca segredos com a vida. E, na maior parte das vezes, o falar esconde mais que 0 calar; 0 siléncio revela mais que as palavras. E assim que fala Zaratustra, “o sem-Deus”, “o porta-voz da vida © porta-voz do sofrimento, 0 porta-voz do circulo”, “o mestre do eter- no retorno”, “o que nao em vao disse a si mesmo: ‘torna-te quem tu és’”. No decorrer do livro, esses sdo os atributos de que ele lanca mao para apresentar-se. Dando-se conta da morte de Deus, Zaratus- tra, “osem-Deus”, suprime 0 solo mesmo a partir do qual se punham os valores. Perfaz assim a travessia do niilismo, indispensdvel ao pro- jeto de transvaloracao dos valores, para chegar a um dionisiaco dizer- sim ao mundo. Falando em favor da vida, do sofrimento e do circulo Zaratustra, “Oo porta-voz da vida, 0 porta-voz do sofrimento, 0 porta- voz do circulo”, aponta a intima relagao entre a vida enquanto vonta- de de poténcia, 0 sofrimento enquanto parte integrante da existéncie € 0 circulo enquanto infinita repeticao de todas as coisas. Assim aceita tudo o que hd de mais terrivel e doloroso mas também de mais ale- gre e exuberante, para traduzir a necessidade dionisfaca de aniquilar e de criar. Anunciando que tudo retorna sem cessar, Zaratustra, “o ar | Os livros publicados por Nietzsche mestre do eterno retorno”, faz cair por terra o dualismo entre mundo. verdadeiro e aparente. Inscreve-se assim de outro modo no mundo € permite que através de si mesmo ele se expresse, para encarnar o carater dionisiaco de toda existéncia. Intimando-se a converter-se no que 6, Zaratustra, “o que nao em vao disse a si mesmo: ‘torna-te quem tu és’”, abraga de modo incondicional o préprio destino. E as- sim assume 0 amor fati, para pér-se dionisiacamente diante da vida. Nos atributos a que ele recorre para apresentar-se, encontram-se os temas centrais da filosofia nietzschiana da maturidade: a superagao do niilismo € 0 projeto de transvaloracao dos valores, 0 conceito de vontade de poténcia e a doutrina do eterno retorno do mesmo, 0 ca- rater dionisiaco da existéncia e a ideia de amor fati. E Zaratustra quem assim fala. Ao contrario do profeta bactrio, gue teria introduzido no mundo os principios de bem e mal, subme- tendo a cosmologia 4 moral, o Zaratustra de Nietzsche quer precisa- mente implodir a dicotomia dos valores para recuperar a inocéncia do -ser. E enquanto uma espécie de alter ego de Nietzsche que ele conta refazer a obra do Zoroastro histérico. Aqui quem fala é Zaratustra, aquele que vem para desvincular metafisica e a moral. E pela necessidade de doar e partilhar que ele la. E fala assim: através de discursos e mondlogos, do canto e so- Dretudo do siléncio. Este é um livro para todos e ninguém. Zaratus- ta comeca discursando para o povo reunido na praca do mercado; termina entretendo-se apenas com si mesmo. Criticando os valores vigentes de sua época, Nietzsche é levado a assumir a condi¢ao de temporaneo. Portanto, enquanto 0 titulo do livro revela seu projeto los6fico, 0 subtitulo traz a luz sua relacao com os leitores. De todas as suas obras, 6 a Assim falava Zaratustra que Nietz- scene atrioui maior importancia. Na correspondéncia, deixa entrever que 0 livro poderia ser visto como uma sinfonia ou uma espécie de pregacdo moral, uma poesia ou um quinto Evangelho; em suma, como algo para 0 qual nao se tem nome. Ele tem ciéncia das mtl- Zplas implicagdes do estilo que adota; bem mais, esta ciente das @ificuldades em encontrar a linguagem que julga adequada para © que tem a dizer. Nesse livro, o autor recusa-se a conferir carater monolitico ao texto; o protagonista nega-se a pdr-se como senhor 63 Dicionario Nietzsche autoritario do discurso. Nenhum dos dois procura constranger seus interlocutores a seguir um itinerario preciso, obrigatério e progra- mado; nenhum dos dois busca, com longos raciocinios e minuciosas demonstracées, convencé-los da pertinéncia de suas ideias. O autor nao expoe doutrinas, nao impée preceitos; o protagonista limita-se a distribuir ensinamentos, partilhar vivéncias. Nao é por acaso que Nietzsche considera que, com 0 seu Zaratustra ofereceu ao ser hu- mano o maior presente que até agora lhe foi dado. Bibliografia MARTON, Scarlett. Assim falava Zaratustra. A obra ao mesmo tempo consagrada e renegada. In: Nietzsche e a arte de decifrar enigmas. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2014, p. 107-134. (Col. Sen- das & Veredas) MARTON, Scarlett. Nietzsche et sa recherche d’interlocuteurs: une ana- lyse du prologue d’Ainsi parlait Zarathoustra. In: DENAT, Céline; WOITLING, Patrick (orgs.). Nietzsche. Un art nouveau du discours. Reims: Epure, 2013, p. 81-101 Scarlett Marton PARA ALEM DE BEM E MAL. Preltidio de uma filosofia do porvir (Jenseits von Gut und Bése. Vorspiel einer Philosophie der Zunkunft) Publicagao que se segue a Assim falava Zaratustra, publicada em 1885, Para além de Bem e Mal, que veio a pliblico em 1886, tem um lugar central no pensamento maduro de Nietzsche. Se em Zara- tustra, por meio de parabolas, o filésofo formula a sua filosofia afir- mativa, em Para além de Bem e Mal, a outra face do mesmo projeto de “Um livro para todos e ninguém”, como deixa entrever em Ecce Homo, 0 fildsofo ensaia meios para dar efetividade a sua filosofia 64

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