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res Pe eres Seen Ses ee erent ei ee ae eee Ena eee eee 3 on : |_|" IMAGEN PODE MATAR? 2)" Marie-lose wonezain |, = aareaE Toa = Lm aa z ee ef rmmene FTI Sf ere I> = }Hossneanwacroonveinn Marie-José Mondzain A imagem pode matar? ‘Avtar: Morte José Monciotn ‘Taal: 4 Imagem Pode Motar? “Titulo exginal: "image peutelleruer? “Traduio:Susoma Moucinko Revisie: Daniela Ageatinho Director de colecge: José. Broganca de Miranda ‘Nova Vows, Limited, 1 digo (2009) Apartado 4352 1503-008 Lisboa info @Gnovavega:mailpt -wwrwnovavege.pt Imagem da capa: Fow do incéntio nas torres gémeat do World Trade Cemter (II de Setembro de 2061) Paginasao electinica: Ramo de Ouro ISBN: 978-972.600.908.9 Depesito legal n° 295417109 IMapressio eacabammento: 4 Favtead Letras, Ea © ano 2000 foi acolhido com todas as fes- tividades planctatias que a introdugdo do eris- tianismo no mundo merece. Que festejava o planeta nesse dia? O triunfo do Ovidente cristo através da hegemonia do seu calendério? Num certo sentido, era isso mesmo, embora seja pre- ciso saber de que se glori.cava nessa ocasifo 0 nosso mundo, nfio tendo ele a minima religiosi dade. A introdugto de um reino, o da imagem. Por uma espécie de artificio tautolégico foi no cor que pudemos assistir ao jubilo mundial. A partitha de uma emogdo internacional esteve bem a altura da ambigdo ecuménica da Igreja. A imagem triunfou ao longo dos séculos ¢ todos celebraram 0 dominio incontestado do visivel e dos especticulos, em toda a sua legitimidade, Com efeito, a revolugdo cristl € a primeira ¢ ‘nica doutrina monoteista a ter feito da imagem cembiema do seu podere o instrumento de todas ‘as suas conguistas. Persuadiu todos os poderes, de Este a Oeste, de que aquele que se apodera das visibilidades ¢ senhor do reino e organiza Marie Joe Mosdaia © policiamento dos olhares. Uma tal revelagdo desferiu um golpe no livro, do qual se decretou a fragilidade e a lentido, quando comparadas & gloria imediata visivel da encarnagiio e da res- surrei¢do da imagem do Pai. Daqui em diante, cremos, aprendemos, informamos e transmit mos através da imagem. O medo dos simula- cros deu ugar ao culto das imitagdes. Instala-se aguilo a que podemos chamar uma iconoeracia. A festa foi de curta duracfio, um grande abalo se preparava. A111 de Setembro de 2001, foi desferido o maior dos golpes contra este império do visivel, servidor de todas as formas modernas do poder ‘conjugado da economia e dos seus icones. Vindos do cée como anjos exterminadores, dois avides 1 abatem as torres da dominagao. Este foi um crime real, com vitimas de came e sangue, a0 nivel, no seu horror, dos maiores assassinatos cometidos pelas ditaduras. No mesmo minuto, 0 assunto foi tratado em termos visuais, misturando, na maior desorientagfo, o visivel e o invisivel, a realidade ea ficgao, oluto real ea invencibilidade dos simbolos. © inimigo tinha organizado um especticulo aterrador. Num certo sentido, a0 ‘massacrar tantas homens, ao abater estas torres, © primeiro espectaculo histérico da morte da imagem na imagem da morte. O imprevisivel juntou-se ao infigurdvel e foi preciso enterrar os ‘imagen pode malar? 7 cadveres com toda a rapidez ¢ manter o discurso do triunfo e da ressurrei¢ao. O presidente dos Estados Unidos anunciou um jejum das ima- gens: nada de mortes no ect&, depuractio dos programas televisivos © cinematogrificos, invisi- bilidade dos combates. O visivel entrava em crise, Aastiicia maquiavélica do agressor provinha do facto de este pertencer a uma cultura anicénica, ‘que tinha destruido alguns meses antes 0s idolos em Bamyén, e que oferecia Aidolatria do inimigo ‘ocidentalum especticulo: odasua vulnerabilidade, por via dos seus simbolos, ¢ o de um adversério invisivel que difunde, por sua vez, a sua propria imagem como a de um icone redentor, a imagem do Salvador cristo. O terror engendrado por um sofisma politico revelava a extraordinaria per- versidade do dispositive de agressaio. 0 criminoso iconoclasta dava claras provas do seu perfeito conhecimento ¢ da sua total conformidade com o mundo que destruia, Moldando-se a figura do inimigo, ele obrigou-o a desaparecer ou a re~ compor a sua imagem numa nova distribuigao de poderes. A crise ai esté, dela se fez uma guerra, 0 eérebro do massacre continuou, ilocalizavel, a sua vida subterrinea, © 08 agredidos procuram ‘um novo léxico visual para exibir a vinganga, E ent&o que ouvimos vozes, sugerindo que ‘um tal crime foi prefigurado, sendo mesmo ins- pirado, pelos ecris hollywoodianos dos filmes 8 Marie José Mornin de catastrofes. Eis a imagem no banco dos réus, acusada de originar o crime. Os managers da comunicagio decidiram censurar a violéncia dos filmes ¢ modificar os seus programas, Este foi © tinico dominio onde, infelizmente, sem raz40, a América se sentiu confusamente responsével pelos ataques que soften. Se a andlise das causas de um tal drama chegar um dia & maturidade, nfio seré certamente por causa de imagens que devemos estabelecer responsabilidades! Se nos limitarmos a esta explicagdo, aceitaremos ficar prisioneiros do sofisma mortifero que é 0 do préprio terrorismo: o islao contra a cristandade, 0 Oriente contra o Ocidente, o choque de culturas incompativeis... O reino da imagem implicaré sempre a morte do outro. Omen objectivo nfo € 0 de fazer um trabalho explicativo, mas apenas o de compreender o que éuma imagem, asrelagdes que ela mantém coma violéncia eas possibilidades que actualmente lhe restam de oferecer liberdade a uma comunidade nao criminosa. E, pois, unicamente da imagem. que se tratard, a fim de compreender que nela se joga, sem davida, o lugar que atribuimos a0 outro. Mas para isso énecessirio entendermo-nos sobre o que é uma imagem. Esta breve reflexto far-se-4 em trés etapas: a da encamagho, a da in- porporgeio e a da personificagio, Estas etapas ‘comrespondem 4 andlise da imagem na sua relagio ‘imagem pode mane? ° com ovisivel, A andlise do visivel na sua aparigsio cespecifica no ecrd, a anlise da aparica0 dos compos no cori na sua relago com o lugar criado para o espectador. Este trajecto esth longe de esgotar a questo da violéncia e vou tentar abordar a violéncia do vistvel, ndo em termos de conteiido, ‘mas em termos de dispositive. Como partilhar um espago através de uma relago conium com o invisivel? IA violenta historia das imagens Quem recusaria hoje ver na imagem 0 ins- trumento de um poder sobre os corpos € 05 es- /piritos? Este poder, concebido durante vinte séculos de cristianismo como libertador e reden- tor, é actualmente suspeito de ser o instrumento de estratégias alienantes e dominadoras. Consi- deramos ento que a imagem “leva-ao-crime”, na medida em que qualquer homicidio parece ter encontrado o seu modelo nas ficgdes difundidas | nos ecris. Os culpados dfio-na comoresponsivel, | ‘Mas quem sio os culpados? Aqueles que matam. ouaqueles que produzem edifundem as imagens? Ora, culpabilidade e responsabilidade sio termos, | que s6 sdio atribuiveis a pessoas, munca a coisas. Eas imagens sfo coisas, Abandonemos estaestra- rif retorica. Se queremos atribuir 4s imagens ‘um estatuto singular entre as coisas, dizendo que clas sao, ao mesmo tempo ¢ cnigmaticamente, coisas e no coisas, ento que assim seja, mas sero elas, por isso, pessoas? Coisas endo coisas oscilam antes numa irrealidade singular que diti- cilmente, ntar a sua responsabilidade, a Maie-Joat Mondzain ‘No entanto, é sem divida assim que ¢ preciso encarar a imagem na sua realidade sensivel ¢ nas ies ficcionais; é necessério admitir que elas se encontram a meio caminho entre as. coisas eos sonhos, num entre-mundo, num quase- mundo, onde talvez se joguem as nossas depen- “Heneaeca oan bends, Pensa a imagem ‘Segundo esta perspectiva permite interrogar 0 paradoxo da sua insignificincia e dos seus po- deres. Para aprender esta estranha situagao que faz de to pouco, isto é,a imagem, uma questio de primeira grandeza, a liberdade, é necessério. percorrer um pouco a sua histéria na palavra e nos gestos dos homens que a produzem. Pois a imagem nao existe seno no fio dos gestos e das. palavras, tanto daqueles que a qualificam e a constroem, como daqueles que a desqualificam ea destroem. O desejo de mostrar induz uma necessidade de fazer e no 0 desejo inevitivel de fazer fazer. No pensava Aristételes que, pelo contratio, o espectéculo da violencia suspendia toda a passagem ao acto? Terao as coisas mu- \ dado? Ha mais de dez séculos, os pensadores cris- tos da imagem foram os primeiros na historia ocidental a fazer da imagem uma problemética filoséfics e politica. Ora proibida, ora celebrada, de cada vez com igual violéacia, a imagem foi, assim, desde o inicio, uma questo passional. imagem poe mater? 1B Esta ambivaléncia do visivel esta longe de ser nova, pois trata-se do estado de coisas na apa- rigdo material de uma imaterialidade. Tal foi 0 sentido da epgamaciio que deu carne ¢ corpo a uma imagem, atribuindo-Ihe, ao mesmo tempo, ‘poder de conduzir & invisibilidade do seu mo- delo divino, Com a encarnapfo, uma nova defi- nigo de imagem entrou na cultura greco-latina, tendo-se tomado a matriz ivénica de todas as vi- sibilidades partilhadas. Construiu-se um mundo comurn que definia a sua cultura como uma ges- {80 articulada e simultinea do invisivel e do visivel. A imagem tornou-se paixdo. Designar a vida da imagem do Pai, isto 6, a de Cristo, pela palavra Paixdo esti em perfeita adequagio com © esquema icénico. A Paixdo de Cristo, ow seja, a Paixiio da imagem, joge-se na imagem da Paixao. uma travessia nas trevas até ao triunfo final. A histéria da encamagio € a lenda da propria ‘imagem. Mas hoje junte-se-lhe uma estranha inquietagio: a Torga da imagem estaria em levar- [HOS a imitar, € 0 contetido narrativo da imagem podia assim exerver directamente uma violencia, na medida em que faz fazer. Acusada de fazer ‘Wey, doravante € acusada de fazer fazer. Se aquilo ‘que parece ser um problema novo oculta as ori- gens duas vezes milenarias da questo, tal deve- -se, essenciaimente, a duas razdes. A primeira remete para uma simples constatacdo: os actos 6 Marie-Tosé Mendzaie organizaclo por leis que permitam avaliar a norma ea sua transgressio. Este juizo pronuncia-se sobre um dispéndio de energia e denuncia o ¢x- ‘cesso. A violéneia é portanto forga em demasia ou mal empregue ¢ reconhece-se esse excesso através dos seus efeitos negativas, quando estes lesan dois principios que fundam a comuni- dade: a vida e a liberdade de cada um. A viol&n- cia implica, portanto, a existéncia de sujeitos E porque a imagem é traiada como um su- jeito que ela é suspeita de poder abusar da sua ‘oténcia. Comegam aqui os deslizes ¢ os mal- “-entendidos. Com efeito, cada um de nés tem coma violéneia, enquanto forga, uma conivéncia, uma relagdo, uma familiaridade que ndo sio alheias 4 definigdo da propria vida. Uma paz sem. forga assemelha-se & morte, ¢ a forca da vida constr6i-se a partir das reservas da violéncia. Quem diz reserva, diz reoursos ¢ extracedes. Dito de outro modo, ¢ na capacidade de ser violento que € preciso buscar a forga para nfo o ser. A vio- éncia seria ent&o poténcia antes de ser ou nao Vive gragas a0 efeito de uma economia comple- xa e muitas vezes contradit6ria entre as forgas que o habitam — forgas que, 20 mesmo tempo, © ameagam e mantém. A forca dos movimentos que nos animam deriva de uma experiéncia vivi- da antes mesmo de ser submetida a julgamento. imagem pode matar? in No espaco de uma coabitagao, a violéncia é, & partida, negociada. Sera necessério suprimir a violéneia, seré isso mesmo possivel, ou seré preciso, antes, considerar as condigées de sua transformagio no seio da comunidade? Quando a violéncia surge brutalmente, sem mediaga ° ela no é0 indice da forca mas da fraqueza, Esta violéncia é destrutiva, produz uma dupla ex- clusio, a do violento ea da vitimna, aplicando-se tanto ao suicidio quanto 20 assassinio; existe ‘uma outra violéncia, articulada com a primeira, a violencia fusional onde o sujeito se pode abis- mar e desaparecer na voracidade unificadora do Todo, Em ambos os casos, 0 aniquilamento most vo ab saeco t A questo é, entiio, ade saber em que é que as produgdes visuais induziriam uma paixdo homicida cu um aniquilamento fusional. Estaré © visfvel ao servigo de uma irrupgdio massiva da violencia dos desejos ou serd ele susceptivel de tratamento simbélico? Dito de outra forma, é a ‘imagem uma forga nfo mediatizével pela palavra ou, pelo contrério, énela que se joga primordial- mente a coabitagdo dos desejos? O visivel afecta-nos na medida em que se relaciona com a poténcia do desejo € nos impele a encontrar simultaneemente 0s meios para amar ou odiar, Toda a visibilidade leva os espititos e os corpos a manter com tais violéncias uma relagio ou 1e Marie-Toré Mondzain construtiva ou destrutiva, Era precisamente nisto que pensava Aristételes quando inscrevia 0 es- pecticulo tragico num programa de tratamento simbélico da violéncia passional. O desejo de matar ¢ 0 medo de morrer poclem arruinat todo 9 projecto de construgiio de um espago social onde nunea poderdo coabitar os mortos € os assassinos em poténcia que somos. Fazer ver € fazer ouvir as palavras parecia ser, para Aristé- teles, o nico meio de tomar a vida em comum possivel a pessoas enredadas nos seus desejos ¢ nos seus temnores. Mas ele privilegiava 0 texto € a narrativa, duvidando em contrapartida dos poderes simbélicos do especticulo. Hesitava quando estava em questo o visivel. Hoje, no podemos duvidar do dom{nio do visivel sobre as paixdes e do que isso implica para a comunida- de, isto é politicamente. Incumbe-nos saber onde ecomoa violéncia das nossas imagens ira gevar a forga de que necessitamos para vivermos em comum, Assim, ummesmo assunio pode ser figu- rado seja sob uma forma que ameaga a liberdade, seja sob uma forma que a constitui, A imagem da virtude ou a da beleza podem gerar violén- cia, Foi o caso dos filmes nazis que exaltavam a perfeigio atiana e se alimentavam da fusto de todos no ddio do outro. Visibilidades sem pa- lavra, alimentadas por um discurso ensurdece- dor. imagem pode mtr? 1» Quando se diz de uma imagem que cla é violenta, esté-se a sugerir que esta pode agir di- rectamente sobre um sujeito, & margem de toda a mediagdo da linguagem. Tal significa que se vai abandonar 0 campo das produgdes simbé- Jicas para abordar o campo menos palpavel da influéncia quase hipnética da perda do real, da alucinagdo colectiva ou do delitio privado. Isto significa que se iré privilcgiar os movimentos co- _mtinicados pela imagem e nfo pelo seu contetido figurativo. A questo que se coloca entdo é a de distinguir, de entre as produgées visiveis, as que se dirigem as pulstes destrutivas e fusionais ¢ as que estdio encarregnes de libertar o espectador de ‘uma tal pressdo mortifera, tanto para si quanto para a comunidade. Se fizermos economia de um tal questio~ namento, continuaremos a tomnar a imagem res- ponsével, nao pelo que ela faz, mas por aquilo que levaria a fazer. Dito de outro modo, diante do tribunal da razio ¢ da moral, ela encontrar- -se-ia inocente de crimes que no cometeu, salvo se considerarmos que aqueles que os cometem perderama faculdade de julgare agir livremente or causa dela. Trata-se entdo do juizo e da sua liberdade, Esta ¢ uma questi capital na refiexio sobre a censura das imagens, Supondo que a imagem induz passividade, como pode ela levar a cometer um acto? Se, pelo 20 MarieJose Mondszin contrrio, coloco a hipétese de que no a recebo passivamenie, a imagem deixa de estarna origem dos mens actos, mas sim eu mesma, enquanto sujeito livre da minha acgdo. Logo, se existe crime, ele no ¢ cometido pela imagem mas pela mio que o perpetrou. Nao podemos sair desta contradigio e deste embarago sendo estudando metodicamente a imagem, a sua forga ¢ os seus excessos, ¢ colocando a nés préprios um certo niimero de questfes a seu respeito. S¢ este teaba- Iho permit tirar conclusdes acerca da natureza da ligagdo entre o que vemos e 0 que fazemos, E de certa maneira uma interrogag’o sobre 0 caricter performativo da imagem, com apequena diferenga, mas que ¢ importante, de que no nos interrogamos acerca do que a imagem faz, mas do que ela faz fazer. Pode a imagem matar, pode uma imagem levar a matar? E possivel atribuir-[he uma rea~ lidacle tal que possamos dizé-la culpada ou res- ponsavel pelos crimes ¢ delitos que, enquanto objecto, ela nfio pode ter cometido? De que acto uma imagem capaz? Objecto sem corpo, sem mio, sem vontade, pode ela agit como a magia de uma influéncia? Ouvir historias de lobos aju- dou-nos a dar forma aos medos e aos fantasmas indiziveis que povoam os nossos pesadelos, ou seja, a superi-los. Tero as alegorias edificantes ‘imagem pode matar? a da virtude ¢ do patriotismo produzido wm mundo virtuoso c patriola, terd a desconstrugao do rosto de Dora Maar, por Picasso, suscitado o retalha- ‘mento camniceito de um ser amado? Nao? Entfo por que desfrutam certas imagens do privilégio singular de setem nis itesistiveis do que ov- tras? Estes icones do medo ¢ do prazer de ver nada fazem que suscite a sua imitagao, O proble- ma diz respeito, portanto, & natureza intrinseca da imagem e nfo ao seu contetido narrativo ou referencial. A historia da violéncia é comple- tamente dissocidvel das imagens, desde que sc dissocie também nelas o destino do jutzo critica eda palavra, ou seja, aquilo que tem a ver como lugar dos nossos corpos € do nosso pensamento no encontro com esses objectos. Sé a palavra tem efeito sobre a economia dos nossos desejos e isto, especificamente, no mundo visual, onde temos demasiada tendéncia a acreditar que © sujeito falante emudece. Mas serd isto verdadeiramente ‘uma tendéncia? Nao serd antes uma estratégia de sujeicao? O siléncio aparente das imagens nao quer emudecer-nos. De uma maneira geral, uma imagem nfio quer fazer-nos calar, assim como a visto de uma cadeira ndo nos impde que nos sentemos. O visivel, por sis6, nfo da ordens. En- fo quem as dé? De que forma o genuilexério exige que nos ajoethemos? 26 Marie-José Mondzain sua propria armadilha, a da identificagaio. A vio~ léncia da imagem desencadeia-se quando esta permite a identificagao do infiguravel no visivel. ‘O que equivale a dizer quea imagem s6 se susten- tana dissemelhanga, na distincia entre o visivele osujeito doolhar. Mas serd esta distancia visivel? Se.o fosse, deixaria de ser distancia. Existe entéo no acto de ver um “gesto” invistvel que consti- tuia distincia do ver. Talvez seja instituido pela voz. Para compreender qual 0 poder da imagem niio basta dizer que-cla ¢ sempre imagem de qual- quer coisa, mas também compreender que aquilo que faz dela uma imagem Ihe é substancialmente estranho. Toda a imagem ¢ imagem de um outro, ‘mesmo no auto-retrato. Este diferencial 6 0 da simbolizacdo, abrindo um abismo intransponivel relativamente & incorporagao de uma presenca substancial e fatal. O paganisto grego cruza-se aqui com 0 monotefsmo, tanto o biblico quanto ‘© mugulmano, Todos partem da conviegtio de que um certo face-a-face mata ¢ que, para que a figuragao seja possivel, é necessario fazer um sucrificio, fazer o lute de uma presenga identi- ficatoria, Se o doente etiope se cura é porque a imagem inverieu 0 processo identificatério, transformando-o em operagdo de libertagio. Foi {sto que ocoreuro sacrificio cristico, pois aquele que é a imagem visivel do Pai infigurével abrin rage pode matar? a caminho a todas as imagens, segundo um modo redentor, ao tomar-se aquilo que menos se lhe assemelha: um morto. Mas o que constitui 0 elo entre visivel e invisivel é ume homonimia. Onome dado pela voz aquilo queé visto desigaa, ao mesmo tempo, 0 que se deixa ver e 0 que se propée invisivelmente ao olhat. Ba gestio das paixdes ¢ da voz no seio do visivel, necessiria 4 construg%o de uma comuni- dade, que o pensamento cristo reconheceu, hi ja dez,séculos atris, como a verdadeira interroga- 40. Foi este quem primeiramente instaurou uma legitimidade da imagem, no s6 por a libertar do seu poder mortifero e confusional, mas por the conferir um poder salvador ¢ mesmo redentor. Nao s6 a imagem é visivel e o face-a-face nfo mata, como a imagem opera uma purificagio das trevas. Nao é mais a palavra tragica dos Gregos, mas sim a imagem que apazigua a vio- ‘Téncia de todas as nossas paixOes. $6 a imagem pode encamar; é esta a principal contribuigao do pensamento cristo. A imagem ndo é um signo entre outros; ela tem um poder especifico, o de fazer ver, de por em cena formas, espagos e cor- ‘pos que oferece ao olhar. J4 que a encamacto cristica nao é mais do que o tornar-se visivel do rosto de Deus, a encamagio é apenas 0 fazer-se imagem do infiguravel. Encarnar é isso mesmo, € tomnar-se uma imagem e, muito precisamente, 2% Maro Joos Moz invisivel no vistvel. A doutrina que o eristianismo edificou em torno do icone é esta, sendo que a prética das imagens sagradas aa maior parte das, ‘vezes se reuniv ao arsenal comunitério da pro- paganda e da publicidade. Estas imagens esto em correspondéncia com os critérios covdenados outros contextos da idolatria substancialista, ‘A dupla interpretagio da titima Ceia pro- uz, enquanto ritual de incorporagio, o corpo institucional, ao passo que, enquanto memorial de encamagiio, a imagem distribui substitutos simbdlicos que esto numa disténcia intranspo- rivel relativamente ao visivel. O pio e 0 vinho emnada se assemelham a divindade. A patavra é performativa, éela que instaure umn duplo regime para a comunidade, o da iconicidade de uma auséncia ¢ o da comunhio na presenga. No caso icénico, a pessoe do filho encama na imagem independentemente dz sua substincia, logo da sua pessoa real. O seu corpo foi sacrificada para inaugurar o reino da imagem imortal. A pessoa, neste caso, ndo pode ser objecto de uma perso- nificagio, mas ¢ sujeito de uma encamagéo que se finda no sacrificio do compo, no seu Gesapa- recimento. Inversamente, a sittagdo do corpo na eucaristia permite 4 incorporacao institucional reclamar a personificagaio de Cristo no corpo da Igreja. A eucaristia impde ao sujeito uma idenlificago que 0 cinde de toda a alteridade & vinsgem pode mater? » 1 absorve na substancia de um corpo imagind~ rio, de que ele &, ao mesmo tempo, 0 todo e a parte. E esta a base de todos os tratamentos da imagem no mode fusional. No caso do icone, as formas materiais da sua manifestapo no estio destinadas & transubstanciagdo, mas sim 4 ‘tvansfiguragao do olhar, No caso da comunhfo, o vis{vel produz um contrato de pertenga que gera incluso e exclusto. Podemos produzir a corpunidade sem fusionar? Viver em comum no éviver como um. Doravante, 0 vistvel 0 invisivel estardio em crise nesta tensdo. Esta ctise nfo cessa de dila- corar a propria Igreja, de tal modo que as con- testagdes a0 poder eclesidstico foram sempre acompanhadas de debates violentos, quer sobre a imagem, quer sobre a eucaristia. A Reforma, a0 contestar a autoridade pontifical, nio podia deixar de denunciar a traigdo da encamagao na idolatria das visibilidades cultuais que fundavam. a incorporagao institucional. Constatando que 0 reino das imagens se tinha colocado inteiramente a0 servigo da Igreja visivel, os teformadores pre- tendiam restabelecer 0 regime do invisivel ea autoridade do Livro e da Palavra. Ao mesmo tempo, os artistas desenvolviam um mundo ieé- nico fiel & livre inconsisténcia das imagens ¢ rebelde 8 qualquer incorporagio institucional. ‘Aarte rompia com a Igreja para permanecer fiel 20 Marie Jon Mondarin a encamagao imaginétia do invisivel. A imagem, rio cedeu nem 20s iddlatras, nem aos iconoclas- tas, Ela traga, irredutivel, o seu préprio caminho Tonge dos policiamentos que a controlam ou que acondenam. A manifestago da verdade implica a encar- nagdo da palavra na carne das imagens. A ima- gem torna-se uma construgZo humana ¢ aquilo que funda o valor desta construgiio ndo se on contra fora do visivel, sendo-Ihe, antes, imanente. O invisivel, na imagem, é da ordem da palavra. A imagem niio produz nenhuma evidéncia, ne- nhuma verdade, e s6 pode mostrar o que é pro- duzido pelo olhar que Ihe diigimos. A imagem alcanga a sua visibilidade na relagdo que se es- tabelece entre aqueles que a produzem e aqueles que olham, Enquanto imagem ela nada revela. Se mostra deliberadamente qualquer coisa, ela comunica, deixa de manifestar a sua natureza de imagem, isto é, a expectativa de um olhar. E por isso que, no lugar de invisfvel, talvez devéssemos falar de “no visto”, daquilo que aguarda um sentido proveniente do debate da comunidade, Tal decisio sobre o sentido supde que.a imagem é, j8de si, fundamentalmente indecisa ¢ indecidivel. (Os Padres foram os primeiros a consciencializar- ~se de que a fé se alicerga no olhar. A encarnagao da imagem 6, para Paulo, uma visibilidade enig- itica; ela pe em cena a similitude de um refiexo ‘a immager pode evans? } ISS num espelho vazio, pois a substincia divina no é visivel. Nao existe visto substancial, no existe visio do sentido apenas pelos olhos. Em vez de um face-a-face, uma obliquidade definitiva que acothe a falha do othar, que nunca vera o que mais deseja ver: Deus. E por isso mesmo que ‘os homens continuam a desejar e, portanto, a produzir imagens. E desta forma que se coloca a ‘questio do poder da imagem. Ela pode, no fim de contas, continuar a encamar o descjo sem nunca © satisfazer, como pode perfeitamente pretender saturar 0 olho e negar toda a liberdade. Distingo, ~ sstica (imagerie) ou simples cteve na visibilidade sem ser visivel. A forga da imagem provém do desejo de ver, ado visivel da sua caipacidade de ocultar, de constraira distancia entre 0 que € dado a ver ¢ 0 objecto do desejo. Semi desejo de ver ni hé imagem, mesmo se 0 objecto deste desejo nfo é sendo o proprio olhar. Lemibro as palavras de Lacan: “Na nossa relacao com as coisas, tal como é constituida pela via da visio e ordenada na figura da representagdo, algo desliza, passa ¢ se transmite de etapa em etapa, para ai ser sempre, em algum grau, iludido. E a isto que se chama olhat.”" "5 Lacan, Le Séminaire, Live XI: Les Quate Concepts Fonds ova de ia Peychonalse, chap. X, Seu, 1973. 2 Marie José Mondsain E surpreendente ver como a psicandlise Teencontrou a prodigiosa intuigao patristica de Gregorio de Nisa, um dos mais brilhantes Capa- décios. Ele diz.o seguinte: quando Moisés mani- festou a Deus 0 seu desejo de o ver, Deus aceitou satisfaz6-lo, mas em trompe l'oeil, de modo a que 0 Gesejo de Moisés se mantivesse sempre vivo, porque Deus precisa de ser desejado. E esse de- sejo jamais € saciado. Cito Gregorio de Nisa: “A procura audaciosa da alma que sobe a montanha do desejo ¢ a de jamais usufruir pelos espelhos ¢ pelos reflexos, mas face-a-face. (...) A voz de Deus concede aguilo que é pedido, recusando-o 0 mesmo tempo, oferecendo em poucas pala- vvras umn abismo de pensamento. Com efeito, Deus munca se mostraria ao seu serve enquanto tal, pois esta visto esgotaria o desejo daquele que vé. E nisto que consiste a verdadeira visio de Deus: que aquele que ergue os olhos para ele jamais deine de o desejar.”? #8 armadilha do olhar. Se insisto nesta di- mensio da invisibilidade da imagem no singu- lar para melhor a afficular com o desejo, com esse desejo de ver que, em toda a imagem, deve sempre deixar o desejo incumprido. A invisibili- dade no designa nenhum além, fora do alcan- ce, uma transcendéncia, uma ideia platénica, 4 Me de Moise, 1 wad J. Danilo, Sources Chréienes, m1 bis, p. 257 2263 1 age pode tater? A invisibilidade patristica, e a da nossa moderni- dado, 6 a da eli jo de ver, E € porque nds somos fe “i invisibilidade do objecto do desejo que a ‘nossa prépria imagem se toma, assim, objecto de uma falta infinita para um desejo infinito. Deus nifo é mais do que o nome do nosso desejo de ver a nossa similitude. Similitude que se farta per- petuamente & visdo. Por isso, Deus revelou-se de costas a Moisés, estando este anichado na con- cavidade de um rochedo, A gruta da revelagio deceptiva corzesponde, em sentido inverso, & caverna platénica, onde a sombra das coisas incitava a que delas se afastassem. Na perspec- tiva crista, a gruta é o presépio do visivel, ofere- cido aos olhos que se abrem. O invistvel habita 0 visivel; tudo passa pelo ver, no pelos olhos, mas pela escute da palavra, modificando a sua apreensdo. Contudo, enquanto instituigao temporal que" quer adguirir um poder e conservi-lo, a Igreja agiu como todos os ditadores, prodwzindo visi- Dilidades programéticas, feitas para comunicar uma mensagem univoca. Assim, a imagética, (imagerie) serve as operagées de incorporagao, a imagem € absorvida como uma substéncia com a qual o incorporado se identifica, com a qual se unde, sem réplica ¢ sem palavra, Estas imagens acompanharam as conquistas, fizeram reinar os aM Marie-owe Mondain mais terriveis siléncios, impuseram as mais d5- ceis submissdes, reduzindo todas as objecpdes. ‘Chamamos-Ihe a Biblia dos iletrados. Ela estabe- lecou um império, o seu império sobre as emo- ges. Numa palavra, ela privou, pouco a pouco, as criaturas de todo 0 pensemento, de toda a li- erdade que elas imaginavam ter recebido do criador pela graga de uma similitude, # aqui que seside 0 paradoxe critico, Bevidente que o império visual a que esta- ‘mos hoje em dia submetidos se nos apresenta de maneira violenta, numa tenso entre um pensa- _mento da encamagio ¢ estratégias de incorpora- 40. Se aceitarmos as breves reflexes prece- dentes, é ento necessério admitir que a relaggo entre a violéncia eo visivel diz respeito, no as, imagens da violéncia, nem a violéncia propria das imagens, mas 4 violéneia cometida contra, © pensamento e a palavra, no espectécuto das visibilidades. Vista deste angulo, a questo da nsura toma-se um falso problema que nos faz cotter 0 risco de uma recaida numa ditadura das, paixdes, onde decidimos que existem boas ¢ més ‘imagens em fungdio do seu contetido. E isto, en- to, um convite neo-iconoclasta a abster-se da imagem para escaparmos as ditaduras? Seria um decreto de abstinéncia que lesaria 0 conjunto das operagdes imagindrias e, consequentemente, imagem pode mater? seria uma outra forma de anular toda a liberdade. A ligtlo patristica é fecunda, no sentide em que ela propée uma construgio do othar pela palavra, a fim de dar a cada um a liberdade do seu dis- cernimento. Seré necessirio conchuis, inversa- mente, que tudo 0 que é visivel é neutro e que € tarefa de cada um produzir ou nio sentido? Nao, visto ter ficado estabelecido que o regime da imagem ¢ por natureza passional e que no po- derfamos, 2 este titulo, qualificar como neutro, aguilo que aos toca e que nos deve tocar. No Gominio da arte, verificamos que, ao longo dos séculos, se constituem juizos criticos que distin- ‘guem ¢rednem aquito que ¢é costumeiro chamar- ‘mos obras-primas. Este conjunto dispar de ob- Jectos tem em comuma oferta de uma liberdade, adcagao de um sentido que nunca é determinado, nunca é omesmo, sendo sempre fragil. Existem entdo objectos que resistem A erosdo necros- santa das apropriagdes idélatras, Estas produgSes ‘tm tanto mais autoridade quanto nada as esgo- ta, como se elas escapassem para sempre a toda aatribuigdo de sentido, Flas assumem plouamen- te uma espécie de atopia que confere a sua mor- talidade uma aparéneia de etemnidade. Eles fun- cionam como as encamages de uma liberdade incerta e sem fim. Blas sto reais, sem serem por isso identificdveis com a matéria na qual apare- cem, nem com © programa que elas executam, % Maci-Fo Monde nem as circunstincias que as encomenda, Blas io reise, no entanto, livres de toda a realidade. FiegGes, semelhangas, figuras ineonsistentes de uma questo bem real: dar ao desejo a fruigo de um inapaziguamento, : Contudo, eles podem também ser, no fim de contas, facilmente propostas 20 consumo passivo nos lugates cultuais ¢ culturais onde 0 consumo dos seus cadéveres embalsamados 28 vota a gula colectiva. As imagens, como todas as obras, podem ser violentadas, privadas da sua forga. As formas institucionais do academismo terdo matado mais de uma obra-prima. Muitas liberdades st massacradas nos encontros f2- Thados da escolaridade com os mais elevados objectos, Assim vio as imagens. Nao saber ini- ciat um olhar 8 sti propria paixdo de ver, no poder construir uina cultura do olhar, eis onde comeca 2 verdadeira violéncia relativamente Aqueles que entregtmos, desarmados, A voraci- dade das visibilidades. Compete entio Aqueles que fazem imagens construir lugar daquele que vé, e aqueles que fazem ver as imagens serem os primeiros a conhecer as vias desta construgao, A imagem exige uma gestdo nova e singular da palavra entre squeles que cruzam os sens olhares na partitha das imagens, ‘A questio da violénecia das imagens coloca- -se entfo de uma forma imnprevista. Mais ainda, imagem pode tata? 3 ela desdobra-se: existem formas de visibilidade que mantém os sujeitos nas trevas das identifi- cages mortiferas, enquanto que outras imagens, que podem estar cheias de contetidos igualmente violentos, permitem construir sentido, evitando toda a confusto? E necessério distinguir entre ‘boas © més imagens, nfo a partir do seu con- teido, visto que a imagem do mal pode curar, ‘mas da simbolizago que elas induzem? Colocer assim a questfio permite compreender por que azo a imagem da virtude nfo toma ninguém virtuoso, assim como a do crime néo faz de nin- guém criminoso. Todo o produtor de imagens que deseja obter uma resposta incontrolivel a uma estimulagdo do desejo utiliza imagens que mantém o espectador numa inaptidio simbélica. Esta éa violéncia do visivel, desde que participe nos dispositivos identificatérios e fusionais. Eis a raaiio por que é melhor distinguir, no corago do visual, as imagens das visibilidades, em fun- do das estratégias que atribuem, ou nfo, um lugar a0 espectador onde ele se possa mover. Fore do movimento, a imagem oferece-se a0 consumo ao modo da comunhéo. A propaganda © a publicidade que se oferecem ao consumo indiferenciado so miquinas de produgo de violéneia mesmo quando vendem a felicidade e a virtude. A violencia do visivel nfo.tem outro fandamento seno a aboligao, intencional ou | i . luntetinans | tmnt » | i ‘fo, do pensamento ¢ do juizo. Kis a razao por realizador. Dizemos realizador, de forma alta- que, face & emosfo provocada pelas imagens, mente enigmética, quando o teatro prefere falar isto é, face ao movimento que elas provocam, de encenagio, A cena no eer provém, por isso, € imperativo analisar 0 regime passional que j de uma estranha atopia propria da realizagio de elas instauram e o lugar que elas criam para ‘um espago irreal, O ecriindo é um espago ficticio ‘aqueles a quem se dirigem, A critica da imagem 4 ¢ 6 olugar da ficefo, Ele é o lugar das operagdes finds-se numa gestio politica das paixées peia 4 ficcionais. © nascimento dos ecris instalouno comunidade, Hla nunca deveria ser um tribunal espago social um dispositivo to enigmatico | de depuracaio moral dos contedidos que colocaria como a imagem que cle toma manifesta. Ele é fim ao exercicio de liberdade do olhar. duplo, na medida em que nfo revela os corpos. | reais e todas as condigGes materiais da rodagem. A nova situagao das visibilidades deriva Ele € 0 tecido de uma eliséo e, porque suporta do facto de, depois da invengao do cinema ¢ da imagens, ele 60 tecido de uma sparigio. O ecrit televisfo, um fiuxo considerdvel e sempre cres- , participe, portanto, em primeiro grau, da defini- cente de visibilidades servir simultaneamente 0 | cdo da prépria imagem. Toda a recepego visual undo da arte eo do consume. O dispositive dos sobre un eerd tem lugar numa espécie de atopia ects gerou uma redistribuigdio dos poderes do fugitiva, o tempo da visto ou da projecgdo, Este visivel e do invisivel, um novo dado na gestio niio-lugar existe no espago social. Ea partirdele | a encamacdo e da incorporagdo no ecra. Antes que se orguniza 0 espegodosespectadores, lugar | de abordar especificamente o destino da palavra uma boa distincia, mas em escuridao relativa, em certos filmes que usarei como exemplo, & tendendo estes abolir distincia real dos corpos. | necessirio peniser na fungao singular do ecra. 4 em relegdo ao eer, ¢ dos compos dos espectado- Falar de ecra parece colocar, & primeira vista, res entre eles. Portanto, no espago colectivo, tem ‘um espago de separagio, sento mesmo de ocul- lugar algo em que se joga, ao mesmo tempo, a tagdo do visivel. Produzir um efeito de eer pode comunidade do especticulo ¢a solidio da visto. significar esconder. Porém, os nossos ecras sio Aomesmo tempo, distribuern-se os lugares onde Iugares de aparigSo das imagens. O ceri é, 20 cada um experimentard as emogdes singulares i ‘mesmo tempo, um espago real e 2 condigéo de que as imagens vfo provocar. Algo de ritual e de desrealizagio daquilo que € produzido por um politico esté em jogo, dado que esta conjungzo ” Mari Dost Mondasin ‘iio produz. nenhuma visto comum, Cada um, ‘no seu lugar, percebe os signos visiveis, sonoros ¢ narrativos, de tal modo que, no fim do espec~ ticulo, a questo € apenas a de saber o que foi partilhado. Uma experiéncia de fuséo ou uma perturbagtio dos sentidos? Para o saber, sera preciso perguntar a cada um o que viu ou bastaré analisar a coisa vista para definir os seus efeitos sobre todos? Dito de outro modo, a natureza da visio depende da qualidade do olhar dos sujeitos que olham ou da qualidade do objecto que foi dado a ver? Nao existe uma resposta univoca a esta questo. Se a construgii do olhar é um dever politico, ento quando esta construgao existe, todo o especticulo é medido pela liberdade que concede. Mas quem constréi o olhar excepto aquele que di a ver? i preciso entéo reconhecer que o produtor da imagera do ecra ¢ responsé- vel por esta construgio, Por corsequéncia, cada espectaculo coloca em jogo a liberdade do es- pectador em fungao do lugar que The é atribuido face ao ecrd pelo cineaste ou videasta. Quanto ‘mais este lugar for construido no respeito pelas distincias, mais os espectadores estarao aptos a responder, por seu turno, com uma liberdade critica no funcionamento emocional do visivel. E sem diividanestes termos que é nocessario abor- dar a educagao dos olhares, Uma erianga pode ver tudo sod condigdo de ter a possibilidade de ncgere pode malar! a cconstruir o seu lugar de espectador. Porém, este ‘ugar leva tempo a consinur. E por isso forgoso concluir que uma erianga néo pode ver tudo se no for apoiada pela palavra daqueles que veer com ela e que devem eles mesmos, também, ter aprendido a ver. A imagem no é um esperanto acessivela todose a cad um. A imagem enguanto objecto passional ¢ sempre violenta: résta saber que forga ou fraqueza retiramos dela. A violéncia deumai foie quando ela nfo despoja & espectador do sev lugar de sucito falante, Ver Om 05 Outros, eis a questio, j& que vernos sem- presés e s6 partilhamos 0 que escapa a vista, Eo que se tece invisivelmente entre 08 corpos que ‘véem ¢ a3 imagens vistes que constitu a Wattia eum sentido partithado, de uma escolha Sobre 0 destino das paixdes que nos atravessam. 1850 Joga-se no eerd mas ndio € visivel nele. A atopia dda imagem no corapo das visibilidades encarre- ga-se de produzir o invisivel, 0 que todos dizem {er visto e que 0 visivel nfio mostrou. Uma sala de cinema € uma verdadeira sala de espera. No fundo, estou a dizer que 0 assessino sempre um homem jé motto, Aristételes dirige- -se a cidadaos bem vivas, Ele pensou que 0 ¢s- pectéculo tragico era o espaco de passagem do sofrido (pathos) a sua partilha simbdlica {/ogos). A passagern ao acto, isto & quando nfo nos re metemos mais aos actores carregados do Jogos a Maci-fose Mendzaln cénico, é portanto uma oscilagao, no no real mas na ficgdo, O criminoso torna-se actor numa rea~ lidade que ele cré reversivel. E por causa dos novos dispositivos técnicos, 0s ceri, que a imagem muda de natureza ¢ de sentido, que ela nfo tem de modo algum o mes- moeftito que aleangavano teatro ouna pintura? E preciso acusar 0 utensilio ou o uso que dele feito pelo comércio das visibilidades, pelos ico- nocratas da programagdo? Nao é 0 utensilio usado como um instrumento de alucinagio con- fusional, de destealizaglo, que priva o espectador de toda a distancia, preservancio a sua capacida- de critica? A questo do ectd, eis o que determi- ‘na 0 nosso mundo; foi o ecrdi que deu lugar a um dispositivo sem precedentes na constituigao do imaginirio, ao produzir efeitos fusionais © con- fusionais. O ecra cria uma nova liturgia onde se jogam as novas transubstanciagdes: o verbo fez se corpo, a imagem perdeu a sua carne, O ecrd ‘nstaura uma nova relago entre a mimesis ¢ a fics. Ser4 preciso repetir esta coisa trivial, dent, de qhe O28 BF Tima cena? E mes- mo o contrério dé uma cena. O realizador, como estranhamente o chamemos, no é um encenadot. Toda a arte dos graudes cineastas ou grandes vi- deastas supée, hoje, uta consciéncia piena desta alterago do espaco para os corpos, da respon- sabilidade que daqui resulta e, portanto, daquilo ‘imagem pode mata? 4 que 0s obriga a encontrar uma eserita ficcional, isto, o equivalente no ecra do que foram as cos- tas de Deus para Moisés: qualquer coisa que se esconde na visibilidade. Qual é a nova jogada do imagindrio quando existe o eerie, nesie cera, tum fhuxo que jf nao cuida do tratamento da dis- tincia? A boa distincia on o lugar do espectador € uma questio politica, A violéncia reside na violagdo sistemética da distinc. Esta violago resulta das estratégias espectaculares que mis- turam voluntariamente, ou nfo, a distingao dos espagos e dos corpos para produzir um continuo confuso onde se perde toda a probabilidade de alteridade. A violéncia do ecr comega quando cele nito produz.jé 0 efeito de ect, quando deixa de ser constituido como plano de inscrisio de uma visibilidade & espera de sentido, Aquilo que Se cola aos olhos nao € visto, aquilo que se cola as orelhas no ¢ ouvido; é apenas na distancia que se mede a opartunidade oferecida aos olhos es orelhas de ver e ouvir qualquer coisa, Num livto de 1970, de Koenig © Dixon, intitulado Ateneo, as criangas estao a olhar?, conta-se a segninte histérie: cinco criangas, na auséncia dos seus pais, matam um dia a sua baby-sitter cujo incessante ir-e-vir se interpunha frequentemente entre eles e o ecrd de televisto. 2 Lae Koenig e Petr L, Droz, The Chikiher dre Watching, "Nova lorgut, Babantize Bonk, 197. (do T) 4“ MaciJooé Mondeo Livres dela, mas ainda a bragos com oseu aman- te mexicano, tém também de acabar com ele, precipitando-o de uma falésia no seu carro. Vou passar por cima dos pormenores. A histéria des- crevee desenrolar de um assassinato perpretado sefenamente por mitidos. Supondo que a hipétese sobre a qual asseata o romance tem alguma vali- dade, a historia parece indicar esta perda da rea~ lidade na indistingzio dos espagos, dos corpos do especticulo. No caso dos pequenos monstros do romance, ndo existe 0 minimo acesso 2 uma distincia. O eet nfo produz efeito de ecrd, é a baby-sirrer que se interpoe como cera ao proprio ecr3. 6 o real que é preciso matar e, no mesmo movimento, nfo se consegue mati-lo realmente. Estes eoras, que perderam o seu efeito de ect’, suscitam uma espécie de vertigem especular onde o sujeito que otha perde, precisamente, a sua qualidade de espectador, numa indetermi- nago que 0 absorve. Esta confusdio néo para de aumentar no coméreio dos cbjectos destinados a perpetuar a relagdo desreslizante das coisas. ‘Hoje, as criangas so convidadas a apertar a mao deum Mickey gigante e a coabitarno seu quarto ‘com todas os simulaeros mercantis que invader oespago doméstico, escolare lidico, Un mundo Ge fantasmas de peluche e de plistico prolonga, ‘dos ccras, toma higar entre 2s coisas na crescen- te indistingdo entre a presenga das coisas e dos imagem pode maa? 45 compos. O visivel tece uma tela compacta onde o vazio ea distincia sio absorvidos pelo mercado das coisas, criadas para colmatar todas as faltas, A baby-sitter,encantada com a tranquilidade das criangos em frente do cord, faria melhor se fosse una baby-talker, em vez de uma baby-sitter, sentada sobre essa tranquilidade, O que é violento & amanipulagio dos compos reduzidos ao sitenciar do pensamento, fora de qualquer alteridade, Nunca os homens sto tio sés como quando funcionam como Um, A mistura doméstica ou piblica de espectadores produz, no mesmo movimento, a comunhlo ea exctusio (a excomunicagiio). Bis 9 problema maior, colo- cado pelo uso dos ecriis na construgiio de uma comunidade que se debate com as suas paixdes, Opoder quer sempre controlaro amore ddioe, 1a medida em que a emogiio visual tem relagdes, com estas paixdes, o dispositive que mostra, a forma escolida para mostrar, o lugar atribuldo voz, o risco apanhado num enquadramento, ‘uma montagem, s40, por isso, gestos politicos onde se compromete o destino do espectador relativamente sua liberdade. A censure, através dos seus decretos, nunca se podera fazer substi- tuir & educagdo do olhar e a exigéncia ética das produgies. Mas, diremos, quando a pomografia existe, ¢ necessdrio tomar uma posigo, A ques- do sera, talvez, a de que sendo a pomografia “6 Marie-lot Monon um mercado lucrative, quem esté disposto a re- nunciara ele? crime € 0 scx0 sio experiéncias reais que, Gurante muito tempo, deram Ingar a obras de arto que nfo ttansformémos em merea- dorias. O dinheiro tomou-se na forma moderna da transubstanciagSo cormunitiria, Face a esta situagdo, as instituigées s6 po- dem defender a censura, a qual sabstitui a forea dda palavra trocada pela violénoie de um discur- so autoritirio que decide o que é bom ou mau para o compo da comunidade. Isto assemelhia-se as rearas de bigicae distribuidas em tempos de epidemia incontrclivel. Protegemo-nos de um mal que no atacamos, Esta politica de satde por isolamento sé pode levar a uma auséncia genera- lizada das defesas inmunitirias, Cada qual tomado singularmente na sua liberdade é pensado como avitima inevitivel de todos os males, como se © disourso comunititio fosse mais importante do que o pensamento e a pulavre de cada um, A censura estabelece a fiaqueza de cada um ea forga do todo, Podemos comparar as reacyGes catélicas & protestantes ao langamento do filme 4 Ultima ‘entagdo de Cristo. A autoridade catélica de- clarou: “Nao vimos o filme de Martin Scorsese, A Ultima Tentacdo de Cristo. Tgnorarios 0 va- Jor artistico desta obre, Contudo, protestamos antecipadamente contra a sua difusdo. Porque? ‘imagem pode rata? ” Porque querer trazer ao ecr, com 0 poder rea- lista da imagem, o romance de Kazantzakis € j& ‘uma ofensa & liberdade espiritusl de milhbes de homens ¢ mulheres diseipulos de Cristo.” Re- cusamos ver, dispensamos julgar, defendemos 0 paradoxo de confrolarem nome da liberdade! As autoridades protestantes declareram aa mesma cocasito: “Nenhuma apreciagio critica de uma obra deve fndar-se sobre o rumor e nfo pode ser oportunarente cxpressa sem que ela tenha sido vista e compreendida,” Os pastores desoja- ‘vam que existissem conversas ¢ debates sobre uum objecto que € preciso ver para dele se poder falar e do qual é preciso falar para julgar. B feita confianga a palavra dada. O visivel nfo mata no campo de uma palavra sempre activa. Se a violéncia surge no falhango e impos- sibilidade de toda a mediagao, que lugar ocupa imagem em relago as mediages? Toda a am- bignidade dos aotuais questionamentos sobre o tema das imagens surge de um contra-senso, de uma falsa evidéncia relativamente a0 tenno media, Porque umm objecto ¢ dito mediatico, isto é, pro- duzido por técnicas de comunicagao, imagina- ‘mos ingenvamente que ele esté na mediaglo e, 20 ‘mesmo tempo, atribuimos-The um valor simbi- tico. Fabricamos mesmo wma ciéneia desta me- diagdo reduzindo-a a estratégias e a técnicas de comunicagao, Isto é esquecer que a caracteristica «8 Mavi-José Monde fandamental da imagem é a sua imediaticidade, a sua resisténcia primitive & mediagao. Ganhi- mos o hébito de chamat mediitico a tudo 0 que se dirige a um piblico por via de um canal ¢ deduzimos que tudo ¢ canalizavel. A imagem no 0 é. Ela ultrapassa largamente o canal e vai invadir pelos seus prOprios artificios os corpos € os espiritos que os nossos canalizadores eréem

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