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As Fortunas d’O Cortesdo Peter Burke Durante a Renascenga, O cortesao foi lido por razdes muito diferentes. Ele foi tratado como um guia de conduta da época, nao para os valores de uma época passada. Se 0s leitores ‘modernos tendem a destacar as passagens sobre comport mento cortés ou sobre o “homem universal”, 0§ Teitores do’ século XVI quase sempre marcavam as piadas ou as instr .g6es sobre equitacio, A distancia entre os dois tipos de leitura tornou-se cada vez mais fascinante .. Os inocentes critics ram-no por ser efnico demais, e os einicos, por ser inocente: ‘demais. Ele tem sido visto como idealistae pragmitico, sérioe frivolo, Embora o texto em si tenha sido estudado de forma bastante cuidadosa nos titimos anos na yertdade, ele quase foi enterrado sob uma massa de comentérios ~, seus leitores’ ‘até agora receberam muito menos atengiio, No entanto, neste censaio,eles ocupargio oprimeiro plano, Dae Ln As Fortunas d’O Corteséo AS FORTUNAS D’O CORTESAO FUNDACAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva DiretonPesidente Jos® Casilho Marques Neto Assesor Edt Jézio Hemani Bom fim Gutiere Consetho Edtoral Académico “Aguinaldo José Gongalves, ‘Anna Maria Martine: Coréa ‘Antonio Carlos Massabnit Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinat Faysto Forest ‘José Ribeiro Janior Jose Robert Ferreira Roberto Kracnkel Eilar Beet Tullo ¥. Kawasa uloras Asistntes Maria Aparecda F. M. Bussoloti Maria Dolores Prades PETER BURKE AS FORTUNAS D’O CORTESAO A RECEPCAO EUROPEIA A O CORTESAO DE CASTIGLIONE Tradugao de Alvaro Hattnher Za SP Funoagaa Copyrighe © 1995 by Pete Burke, Polity Press & Blackwell ‘Tilo original em inglés: The Forunes ofthe Courier ‘The European Reception of Castslione's Conariane. Copyright © 1997 da taducio brasileira: Fundagio Edizora da UNESP (FEU) Av. Rio Branco, 1210 (01206-904 - Sao Paulo - SP Tel/Fax: (011) 223.9560, Dados Incernacionals de Catalogacéo na Publicacto (C12) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Burke, Peer As forunas 'O contesios a rexepsio européia 2 O contsio de Castplone/ Peer Burke; tadusso de Abnro Hatmher. ~ $io Paulo: Editors do Universidade Esmdual Paulista, 1997, - (Biblioteca basics) ‘Tilo original: The Fortunes of the Courier Bibliogaia ISBN 8571391459 1. Castiglione, Baldassare conde, 14781529. 2. Cul - Hisiva 3, Renaseenga - Inia [Til 974361 cop 940 indices para catilogo sisters 1, Europa: Cultura: Histéria 940 wd 31 si” 67 SUMARIO Prefacio e agradecimentos Capieulo 1 Tradic&o € recepco Capitulo 2 O cortesio em sua época Capitulo 3 O cortesao na Ilia Capitulo 4 O comesdo traduzido Capitulo 5 cortesdo imitado Capitulo 6 O contesdo criticado Capitulo 7 O comtesao redivivo Capitulo 8 O contesdo na cultura européia 179 Apéndice 1 Edigdes d’O contesae, 15281850 185 Apéndice 2 Leitores dO cortesdo antes de 1700 203 Bibliografia 225 Indice remissivo Relagio das ilustracoes 1 Rafael, Retrato de Baldassare Castiglione, c. 1517. Louvre, cliché dos Musées Nationaux, Paris. 2 Rubens, Retrato de Baldassare Castiglione, c. 1620. Courtauld Instioute Galeries, Londres. 3. Rembrandt, Baldassare Castiglione, desenho segundo retrato de Rafael, c. 1639. Graphische Sammlung Albertina, Viena. 4 Fra Simone Ferri, desenho da corte de Urbino, manuscrito do inicio do século XVI. Foto: Biblioteca Vaticana. (Entre paginas 144 145) : PREFACIO E AGRADECIMENTOS Desde que o li pela primeira vez, no final da década de 1950, 0 Cortegiano, ou O corteséo, de Castiglione, tem sido um de meus livros favoritos. Na época eu o li na condicao de aluno de Oxford, cursando uma disciplina especial sobre a Renascenca italiana, de uma forma historicista, como um texto que representava esse movimento. Sem davida é por esse motivo que o dislogo foi republicado e tradusido com tanta freqiiéncia no século passado, na Iuilia a partit dos anos 1880 e, no mundo de lingua inglesa, a partir de 1900, no qual ja apareceu em edigdes Everyman, Doubleday Anchor Book e Penguin Classic. Por outro lado, durante a propria Renascenga, esse livro foi lido por razées muito diferentes. Ele foi tratado como um guia de condura da poca, nao para os valores de uma época passada, Se os leitores modernos tendem a destacar as pastagens sobre comportamento cortés ou sobre 0 “homem universal", 0s leitores do século XVI quase sempre marcavam as piadas ou as instrycdes sobre equitaedo. A distincia entre os dois tipos de leitura tornou-se cada vez mais fascinante. Minha intencio aqui € entender o hiato entre as leituras historicistae pragmatica, sem, contudo, fechéslo, uma intencio que se complica pelo fato de O cortesdo j ter sido interpretado de diversas maneiras. Os inocentes criticaramno por ser cinico demais, ¢ os einicos, por ser inocente demas. Ele tem sido visto como idealista e pragmatico, sério e frivolo. Embora o texto em si tenha sido estudado de forma bastante cuidadosa nos tltimos anos - na verdade, ele quase foi enterrado sob uma massa de comentirios ~ seus 8 PETER BURKE leitores até agora receberam muito menos atengio. No entanto, neste censaio, eles ocupardo o primeito plano. Escrevi este trabalho primordialmente para as pessoas que jd conhe- cem e admiram O cortesdo e que gostariam de saber mais sobre seu contexto, mas esforceime ao maximo para tornélo inteligivel para aqueles leitores para quem Castiglione é pouco mais do que um nome, ra esperanca de que se sintam atraidos por seu livro. Visto que o texto foi publicado em tantas edigdes, ele serd citado nao pelas paginas, mas por livro e capitulo (seguindo a numeragio dos capitulos na edigdo de 1884, que se tornou canénica). Os clissicos gregos e latinos serio citados da mesma maneira. A nao set onde mencionado, as tradugées para 0 inglés so de minha autoria, e a ortografia foi atualizada nas citagies, exceto no nome do proprio conde Baldassare, que ocorre em tantas -vatiagdes pitorescas no periodo. Os retratos de Castiglione foram incluidos no s6 como decoracio, mas também como um paralelo visual a recep¢io do texto. Ao escrever um estudo como este, que pretende investigar as reagées € tespostas de leitores espalhados por uma parte considerivel do globo 2.um tinico livro, 0 auror naturalmente acumulou muitas dividas,e seria bastante descortés no as reconhecer. Derek Brewer examinou minucio- semente 0 capitulo 2, com os olhos agucados de um especialista em literatura medieval, e Virginia Cox fer criticas construtivas dos capitulos sobre a Itilia. Por conselhos, referéncias, separatas, livros ¢ todo o tipo de ajuda, sou grato a Jim Amelang, Catherine Bates; Donna Bohanan; Maria Lucia PallaresBurke; Richard Bushman; Daniele Fiorentino; Teodoro Hampe; Frieda Heijkoop; Manfred Hina; Harald Isee; Marc Jacobs; Kurt Johannesson; Bent JuelJensen; Gabor Klaniczay;o falecido Tibor Klaniczay; Dilwyn Knox; Thomas Krogh; Jiti Kropdcely J. M. Laspéras; Elizabeth Leedham-Green; Antoni Maczak Brian McGuin- ness; Carmela Nocera; Stephen Orgel; Herman Roodenburg; Elena Santiago; David R. Smith; John Stevens; Gyorgi E. Szdnyis Dora ‘Thomton; Dalibor Vesely; John Woodhouse; os bibliotecirios de cinco escolas de Cambridge - Emmanuel, Jesus, King’s, St. Catharine's Trinity. A todos eles, meus sinceros agradecimentos. Agradeco também a0 Getty Center em Los Angeles por me oferecer 2 oportunidade de escrever livzo lé, muito embora eu nao tenha podido aceitar a oferta. Eu teria adorado poder discutir este ensaio com Sir John Hale, que incentivou minha entrada no campo dos estudos renascentis- AS FORTUNAS D’O CORTESAO ° tas, e sobre quem um de meus alunos certa vez observou que entendia O cortesao melhor ao velo acender um cigarro do que comparecendo a qualquer conferéncia. Exte ensaio desenvolveuse com base em uma palestra apresentada sob diversas formas em Budapeste, Cambridge, Canberra, Clermont. Ferrand, Constanca, Edinburgo, Gotenburgo, Londres, New Haven, Oslo, Oxford, Paris, Princeton, Warwick e Wolfenbatel. E adequado que um estudo sobre didlogo tenha se desenvolvido durante um dislogo, eque um livro sobreas reacées a Castiglione eva, em si, muitos reagdes construtivas dessas diversas audincias. Ele é dedicado & pessoa que mais influencia meu proprio comportamento, minha esposa Maria Licia. CAPITULO 1 TRADIGAO E RECEPCAO Na dedicatoria da traducio do livro que publicou em 1724, Robert Samber escreveu que “O cortesdo era grande demais para ficar confinado nos estreitos limites da Iti... e ndo era suficiente que fosse lido, amado ¢ admirado pelas mais célebres cortes do Universo, a menos que, para que ele se tornasse mais familiar a elas, vestissern-no de forma adequada cada pais”. De maneira semelhante, 0 eérico politico Sir Ernest Barker certa ver observou que “seria um estudo fascinante examinar de forma comparada as diferentes tinturas nacionais” do ideal de Castiglione.’ Este ensaio é uma tentativa de responder a esses desafios. Seu principal objetivo é reconstrair os significados locais e pessoais de um movimento internacional, valendo-se de minicias bibliogrificas e socio- logicas para responder a questées mais amplas. Enfatizarei os elementos ‘no texto de Castiglione que mais atrairam seus leitores, ou que o fizeram por mais tempo, em especial a discussio sobre graca e sprexcatura, tentando, ao mesmo tempo, evitar reduzir a multiformidade do didlogo, a moda de alguns de seus editores do século XVI, a algumas proposisdes simples. petiodo no qual o livro se concentra & basicamente 0 primeiro século apés a publicacdo de O cortesdo em 1528, embora os ultimos 1 Barker, 1948, p.143. Nio esti daro se ele conhecia estudos anteriores nesse campo; Toldo, 1900; Schrinner, 1939; Krebs, 19401942. a PETER BURKE capitulos discutam referéncias ao texto em periodos posteriores. A drea da qual me ocupo é fundamentalmente a Europa, apesar de referéncias ocasionais a leitores mais distantes, da India as Américas. Minha cstratégia foi a de me concentrarem leitores fora da Itilia, porque, quanto ‘maior a distincia em relacio ao ambiente cultural do autor, mais clara é a revelagio do processo de recepcio ativa. Embora ndo fosse essa a intengao original, encontre¢me dedicando especial atengo & recep¢a0 de Castiglione na Inglaterra, e espero que o exame atento de uma dnica cultura, mais ou menos pela perspectiva de seu interior, compense os perigos inerentes a qualquer pesquisa internacional ampla. ‘A amplitude é necesséria porque espero ter feito uma pequena contribuic&o ao entendimento da “europeizacdo da Europa”; em outras palavras, a integragio gradual da cultura européia a0 longo dos séculos.? Tentarei, portanto, olhar para além d’O cortesdo, usando 0 texto como um estudo de caso para explorar trés tépicos mais amplos: a recepeao da Renascenca fora da Itilia, a histéria do livro e a histéria de sistemas de valores. A recepgio da Renascenca Desde a época de Civiligation of the Renaissance in Italy (1860), de Jacob Burckhardt, se ndo antes, os historiadores tém estudado esse periodo como uma época de atitudes varidvels em relacZo a0 “eu” e aos outros. Burckhardt caracterizou .a nova tendéncia como “o desen- volvimento do individual”, notando a rivalidade ea autoconscigncia entre 6s artistas e escritores do periodo, o que se revela, por exemplo, em seus auto-retratos e autobiografias. Mais recentemente, a énfase mudou. Seguindo o exemplo de estucos como o de Erving Goffman sobre 0 que ele chamou “a apresentacao do eu na vida cotidiana”, figuras eminentes da Renascenca, como o impe: rador Maximiliano e Thomas More, foram estudadas da perspectiva de sua auto-apresentagdo, de seu “estilo pessoal” ou Selbststilisierung.? Esses estudos sabre as grandes figuras suscitam a questo sobre seu exemplo 2 Bardler, 1993, p.269.91. 3 Burckhardt, 1860; Goffman, 1956; Burger, 1963; Greenblas, 1980. ‘AS FORTUNAS D'O CORTESAO B ser ou no amplamente seguido na época. O didlogo de Castiglione se parece muito com um guia de estilo pessoal, e portanto pode set interessante investigar as reages a ele na Renascenca, nfo s6 na Itilia, mas também no exterior. Essa questio sobre as reagdes tem implicagdes mais amplas: As explicagées tradicionais sobre a difusio da Renascenca quase sempre ‘mostram-na como um progresso triunfal por toda a Europa, no qual um pais apds 0 outro sucumbiu 20 fascinio de Leonardo, Rafael, Michelan- elo, Pico della Mirandola, Ariosto, Maquiavel e outros importantes artistas, escritores e pensadores.! Existem duas fraquezas bésicas em explicacoes desse tipo. A primeira é a suposigio de que apenas os italianos eram ativos e criativos nessa época, enquanto 08 outros europeus eram passivos, meros recipientes de “influéncia”, um termo originalmente astrolégico que, com freqdéncia, tem sido empregado de forma bastante acritica pelos historiadores intelectuais.5 O interesse demonstrado por alguns italianos no século XV por pinturas vindas dos Paises Baixos mostra que eles, no minimo, percebiam a originalidade de artistas estrangeiros. A segunda fraqueza na historia convencional da difusdo da Renas- cenca ¢ identificar aquilo que foi “recebido” com aquilo que foi “dado”, Embora o termo “tradi¢éo” originalmente significasse “legar”, é di negar que freqientemente ocorrem mudangas durante a transmissio de conceitos, priticas e valores. As tradicdes si constantemente transfor madas, reinterpretadas ou reconstruidas ~ seja essa reconstrucio consci- cente ou nao ~ para se adaptarem a seus novos ambientes espaciais ou temporais. A tradicSo clissica, por exemplo, foi reconstruida dessa forma na Idade Média. Os herdis homéricos, como Aquiles, foram transforma- dos em cavaleiros, 0 poeta Virgilio virou um necromante, Jupiter (de vez em quando) tornouse um académico, Mercirio virou um bispo, ¢ assim por diante.$ Se mudamos nosso foco das tradugdes para os individuos, quase sempre 08 encontraremos praticando uma forma de bricolage; em outras palavras, escolhendo com base na cultura que os rodeia qualquer coisa 4 Burke, 1987. 5 Mornes, 1910, p.449.50; f. Skinner, 1969, p45. 6 Warburg, 1932; Seznec, 1940. 4 PETER BURKE ‘que considerem atraente, relevante ou util, assimilandoa (consciente ou inconscientemente) aquilo que jé possuem. Alguns individuos sao mais atraidos pelo ex6tico do que outros, mas todos eles domesticam suas descobertas por meio de um processo de reinterpretagio ¢ recontextua- lizagio. Em outras palavras, leitores, ouvintes e observadores so apro- priadores e adaptadores ativos, em ver de receptores passivos.! Devesse acrescentar que a apropriacio que praticam nao é aleatsria, ‘mas possui uma Logica propria. Essa ldgica da apropriagao é freqitente- ‘mente partilhada por um grupo social, que pode, portanto, ser descrito como uma “comunidade interpretativa", ou, as vezes, como uma “comu- nidade textual” na qual um livro é usado como um guia para os ppensamentos e arbes do grupo.® Essas noges de comunidade podem ser enganadoras, mas é igualmente dificil trabalhar sem elas. Elas sd0 perigosas na medida em que nos levam a esquecer ou a minimizar as diferengas individuais de opiniéo, mas continuam a ser indispensaveis para nos lembrarem sobre aquilo que é partilhado. Esse processo constante de reinterpretagio e recontextualizagio, em um sentido, desgasta a tradic&o, mas, em outro, cle a mantém ao garantir que cla continue a atender as necessidades de grupos diferentes. Se, pot alguma ra2Zo, esse processo de reinterpretacdo gradual é obstrudo, uma pressdo por mudaneas ou “reformas” mais radicais pode comecat a se desenvolver. © movimento cultural a0 que chamamos “Reforma”, por exemplo, é um caso ilustrativo notivel de uma reinterpretagdo radical de uma tradicio crist3. s Decorre do argumento apresentado fos pardgrafos anteriores ~ um argumento que necessitaria de um livro muito mais extenso para ser adequadamente corroborado ~ que a distingdo convencional enme “invengio” ¢ “difuséo” deveria ser vista como uma diferenga em grat, em vez de uma diferenca de tipo. A invengdo em si é mais bem vista ‘como um proceso de adaptaro criativa - a prensa tipogrifica como uma adaptacdo da prensa de lagar, 0 romance como uma adaptagao do épico, ‘assim por diante. Dessa forma, no caso da Renascen¢a, pode ser itil abandonar a ideia de uma simples “influéncia” ou “disseminacio” de novas idéias ¢ 7 De Cemenu, 1980; Charter, 1987, 8 Fish, 1980, p.145, p.17L2 eres Stock, 1983, 88240. [AS FORTUNAS D'O CORTESAO 15 imagens originadas em Florenca, perguntandose, em vez disso, quais os “usos” que a Itilia pode ter tido para escritores, académicos e artistas em outras partes da Europa, qual era a logica de suas apropriagdes, e por que e em que medida as novas formas ou idéias italianas foram assimiladas na vida cotidiana e nas tradigdes nativas, da arquitetura gotica a flosofia escoldstica. Para responder a todas essas pergunias & necessério estudar as maneiras pelaé quais os receptores interpretavam. aquilo que viam, ouviam ou liam. Temos que prestar atencio em sta “schemata” perceptiva.? Temos que nos preocupar com aquilo que 60 teéricos da literatura passaram a chamar seus “horizontes da expec- tativa”. 9 [Em suma, 0s historiadores culturais tém algo a ganhar ao assimilar © conceito, ainda um tanto exético, de “recepgio”, usandoo para modificar a nogdo tradicional de tradigao. Na verdade, a palavra, se no ‘© conceito, nao deveria soar de forma totalmente estranha aqueles que estudam a Renascenga, uma vez que o termo Rezeption foi usado pela primeira ver para descrever a difuséo do humanismo e do direito romano nna Europa dos séculos XV e XVI. De qualquer forma, o debate renascen- tista sobre @ natureza da imitacéo literdria (ver mais adiante, p.95-100) ‘ocupavase de uma das questbes fundamentals da teoria da recepgao, ou seja, a da compatibilidade entre tradico e inovagio. O estudo da recepgao de textos suscita alguns problemas importan- tes. Um historiador ativo comuim estaria sendo imprudente a0 tomar partido nas controvérsias atuais no campo da teoria literdria, especial ‘mente a0 se manifestar sobre a questio puramente metafisica sobre significado essencial ou verdadeiro de um texto residir ou no na mente docriador, na obra em si mesma (que gradualmente revela seu significado no decorrer do tempo) ou nas respostas a seus leitores.!" Ainda assim, existe poucas dividas sobre a relevincia da teoria da recepcio (pelo fato de ela ocuparse de um process temporal) para o trabalho dos historiadores culturais em geral ¢, em especial, para aqueles que se dedicam & historia do livro, 9 Warburg, 1932; Gombrich, 1960. 10 Gaciamer, 1960; Jauss, 1974. 11 Jou, 1974; Fish, 1980. 6 PETER BURKE A historia do livro Na condigéo de uma abordagem autoconsciente da histéria cultural, a historia do livro desenvolveu-se na Franca na década de 1960, embora, como ocorre com freqiiéncia, cla ja existisse muito antes de ser batizada. Dois exemplos do ano de 1910 podem nos alertar para o fato de que a atual geragao de historiadores estava longe de ser a primeira a se interessar pelo assunto. Daniel Mornet realizou um estudo quantitative dos acervos de 500 bibliotecas francesas entre 1750 ¢ 1780, ¢ Caroline Ruut Rees concentrou sua atengio nas notas marginais de ura tinico leitor elisabeano, Gabriel Harvey, um nome que se repetiré nestas péginas.!2 Os estudiosos de Maquiavel, em particular, ha muito se preocupam comavariedade de reacdes& sua obradentroe fora da Itdia, na Inglaterra, na Franca, na Espanha ¢ em outros lugares. Eles dedicaram especial atencao As reagbes hostis & sua famosa obra O principe, & proscricdo & queima do livro, por exemplo, e as acusagées de vilania e “atefsmo” contra seu autor. Ao que parece, em alguns contextos do século XVI, Maquiavel foi denunciado nao por si s6 (ou no apenas por isso), mas ‘como.um simbolo da influéncia italiana na Inglaterra, Franca ou Polénia, ‘ou como uma forma indireta de atacar 0 governante ~ Catarina de Medici, por exemplo. No entanto, a condenacio do autor nao impediu que teéricos politicos mais ortodoxos adotassem algumas das idéias de Maquiavel, que eles, precavidos, atribuiam a um escritor mais antigo, Ticito, e ndo a um moderno.! Algumas teagSes estrangeiras a O cortesdo seguiram 0 mesmo modelo, como veremos. Como sugerem esses exemplos, existem diversas abordagens posst- veis para a histéria do livro, variedades de historia cultural que atrairam muitos estudiosos na ultima década.! Uma dessas abordagens concen- trase nas edigdes, sua geografia e cronologia, e nas modificacées do texto original fetas por organizadores e editores. Outra enfoca as traducées, adaptagdes e imitagbes do texto original. Uma terceird abordagem envolve 12 Moret, 1910; RoutsRees, 1910. 13 Toffanin, 1921; Meinecke, 1924; Blernick, 1958; Malarceyk, 1962; Raab, 1964; rocaci, 1965; Thuaus 1966. 114 Darnton, 1986; MeKensie, 19 Charter, 1987 [AS FORTUNAS D'O CORTESAO " 2 investigacio de cépias especificas em busca de sublinhados e notas marginais que revelem as reagbes de leitores individuais.¥ Com 0 surgimento da historia da recepeio, observou-se recentemente, a5 notas marginais tomaram-se fundamentais.16 Por fim, hi 0 estudo de catilogos de bibliotecas, carélogos de leiloes, inventirios ¢ listas de assinaptes a fim de se descobrir que tipos de pessoas estavam inieressadas em um livro especifico. Todos esses quatro métodos serio utilizados em algum onto deste ensaio, Todos ajudam a preencher a lacuna entre os grandes livros do passado e as “mentalidades” - os habitos de pensamento ou de pressuposigdes técitas ~ de seu periodo. Tentei levar a tiltima abordagem urn pouco além do costumeiro, por ‘meio de uma prosopografia ou biografiacoletiva de 328 possives leitores de O cortesdo nos séculos XVI e XVII, que se encontram listados no Apéndice 2. Tendo em vista que serio feitas referéncias a essa lista em mais de uma ocasido, os problemas suscitados por essa abordagem deve ser discutidos, ainda que brevemente. Como geralmente acontece com a historia da leitura, as fontes ~ inventitios de bibliotecas, por exemplo ~ nos dizem muito mais sobre proprietitios do que sobre leitores. Nao se pode presumir que todo dono de um determinado livro o tena lido de fato. Oito nomes da lista séo de livreiros. Para piorar as coisas, as bibliotecas mais bem documentadas so geralmente as maiores, ¢, como bem o sabem alguns leitores, quanto mator a biblioteca, menor a probabilidade de que o proptietirio esteja familiarizado com seu contetido. © professor dinamarqués Peder Scave nius, por exemplo, que seré discutido no capitulo 8, possuia nao s6 a primeira edicéo de O cortesdo, mas também outros seis mil livros. A familia Colbert, em especial o famoso Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luts XIV, ¢ seu filho, o marqués de Seignelay, possuiam mais de 18 mil livros, o que reduz a importincia da cépia de O cortesao em italiano que se encontrava entre cles. Algins dos proprietitios que serio discutidos aqui terdo herdado suas bibliotecas em ver de as terem formado para si préprios. Jaime VI €1 pode ter tido tanto interesse pelo O cortesto quanto sua mae, Maria, rainha da Escécia, mas duvido que se deva dar muita importincia ao fato 15 Leonard, 1949; Brunner, 1956; Chevalier, 1976; Jardine & Graffon, 1990. 16 Jackson, 1992-1993. 18 PETER BURKE de Castiglione estar presente na biblioteca do advogado inglés Sir Edward Coke, uma ver que a maioria de seus livros italianos vieram da colegio do cortesio Sir Christopher Hatton. © mesmo se aplica a um padre de Besancon no século XVII, Jean-Baptiste Boisot, que havia adquirido a biblioteca do Cardeal Granvelle.!” ‘Apesar desses problemas, é posstvel chegar a algumas conclusdes. ‘Um dos aspectos mais interessantes que surgem dessa pesquisa, © que seri discutido com detalhes no capitulo 8, & 2 importincia das redes de leitores, amigos e conhecidos que passain 0 texto uns para os outros. Em ‘outras palavras, embora 2 longo prazo a imprensa ajudasse a diminuir 0 papel dos grupos em comunicacio direta na difustio de informacoes, tais grupos ainda influenciavam ~ ¢ certamente continuam a influenciar - a escolha dos livros a serem lidos e, talvez, até mesmo a maneira pela qual suas mensagens so percebidas ¢ interpretadas. Dois exemplos esclare- ccem esse aspecto em especial. Discuss0es sobre o cortesio perfeito inspiradas pelo livro foram registradas pelo escritor lombardo Matteo Bandello e pelo inglés Thomas Nashe. Passamos da representagio feita ‘por Castiglione de uma discussio para a discussio de uma representaggo (aque, por sua ver, fora representada em forma impressa).® Esses exem- pls, junto com as tedes de leitores discutidas no capitulo 8, nos lembram de que um sistema de comunicagdo oral subjaz a circulagio de textos impressos. No entanto, antes de estudarmos a sobrevida de O cortesdo, seré til examinar 0 corteséo diante de O tortesdp, uma ver que o livro surgi daquilo que, com freqiiéncia, € chamado “discurso” (que ele também ajudou a formar), uma unidade mais abrangente ¢ indistinta do que as proposigdes oi idéias nas quais os historiadores intelectuais cosaumavam concentrar suas atengdes.!9 Um discurso pode ser descrito como um conjunto de idéias ou proposigdes, mais do que um agrupamento aleatsrio mas menos do que um sistema légico. O discurso especifico, ou a série de discursos que serlo estudados na préxima se¢4o ocupava'se do comportamento na sociedade. 17 Momet, 1910, p.452; Hassal, 1950, Jolly, 1988-1992, vil, p469. 18 Bandelo, 1554, livo I n57; Nashe, 1589, Dedicatbra 19 Foucault, 1969, 1971. AS FORTUNAS D'0 CORTESAO 9 A historia dos sistemas de valores (Os historiadores da cultura tém freqiientemente enfatizado a impor- tincia do estudo dos “ideais da vida”, como os chamou o historiador holandés Johan Huizinga, ou “padrdes culturais”, “sistemas de valores” ou o “imaginario social”, para usar as formulacées mais recentes de Georges Duby ¢ de outros estudiosos franceses.” Devese notar que “valor” é um termo mais amplo do que “moral”. Ele ndo esti confinado a regras que se supe serem moralmente unificadoras, mas se estende para regras sociais ou questbes de gosto. O cortesdo faz parte de uma série de descrigdes ou codificagdes famo- sas desses valores que podem ser encontradas nas obras dos escritores ocidentais desde a Grécia Antiga. E dessa forma que ele aparece, talvez néo da forma proeminente que deveria, no famoso relato sobre “processo civilizador” feito pelo socidlogo Norbert Elias, que dedicou dois volumes substanciais a descricio e explicacio do surgimento do autocontrole no Ocidente.?! Da mesma forma que outros livros sobre conduta, 0 didlogo de Castiglione pode ser estudado como um tipo de indicador que revela os ideais de vida do passado, sob a condigéo de que seja dedicada atencéo & forma pela qual os leitores interpretavam os textos e reagiam a eles. Para tracar a histéria dos ideais europeus de vida no espaco de umas poucas paginas, sera necessério enfocar palavras-chave, sejam elas mais bem consideradas, segundo a descricio de um estudioso da literatura, “palavras da moda” (Modeworte), ou aquilo que o historiador Reinhard Koselleck chama “conceitos fundamentais” (Gnundbegriffe) E dificil, quando no impossivel, traduzir essas palavras, eisso na Um importante romancista contemporineo, com experiéncia pessoal em duas culturas, aconselha a seus leitores: “Para descobrir uma sociedade, lhe para suas palavras intradusiveis” Na Grécia Antiga, uma dessas palavras intraduziveis era areté, que significa, mais ou menos, “exceléncia". A areté de um cavalo era corret 20 Huiings, 1915; Duby, 1968, 1972, 1978. 21 Bis, 1939, 22 Wiliams, 1976; Weise, 1936; Koselleck, 1972; Brunner et al., 19721990. 23 Rushdie, 1983, p.140. 0 PETER BURKE rapidamente ea de um homem, ser corajoso, respeitado, amar a honra. Ohomem que possulsse mais areté era aristos, de onde deriva “aristocra- cia’, literalmente “0 governo dos melhores"; na pritica, © governo de ‘uma nobreza hereditiria. Esse ideal de exceléncia foi exemplificado por Aquiles e os outros herdis da Ilfada de Homero, e 0 poema, por sua vez, foi tratado como exemplar. Homero era considerado 0 educador da Grécia, ea Ilfada era estudada nas escolas da Grécia ¢ Roma antigas exa- tamente em virtude dos valores que se acreditava que inculeasse nos jo- vens."* Quando Ottaviano Fregoso, um das interlocutores em O cortesiio, afirma que Homero descrevia Aquiles como um heréi exemplar (4.47), ele se apoiava em uma extensa tradigao. Centenas de anos mais tarde, no século IVa. C..,0 filésofo Aristételes declarou seus ideais em sua obra Erica, ou melhor, os ideais de sua época, visto que ele afirmava se manter préximo s opiniGes recebidas acerca desses assuntos.5 A semelhanca entre o ideal de magnanimidade (rnegalopsychia) descrito em Aristételes e 0 comportamento de Aquiles (digamos) ou de Heitor sera bastante ébvia. O homem magnanimo ou grandioso demonstra ter orgulho de sua superioridade em relacio 20s ‘outros. Ele é corajoso e liberal. Na verdade, ele pratica a “magnificéncia” (megaloprepeia), definida como 0 gasto adequado de grandes somas em dinheiro. Deixando por um momento os altos patamares da filosofia, Aristételes também nos diz que um homem grandioso manitém sua dignidade caminhando lentamente e falando em vor baixa.2* Por outro lado, a énfase dada pér Aristoteles& phronesis (“prudéncia” ou “inteligincia pritica”) e autocontrole (sophrosyne, termo tradi- cionalmente traduzido como “temperanca”) tem mais a ver com Ulisses do que com Aquiles, a passo que o destaque que confere a doutrina do justo meiotermo é nitidamente ndo homérica. A coragem € definida como, ‘um meiotermo entre a imprudéncia ea covardia, a generosidade como um meio-termo entre a extravagincia e a parciménia, e assim por diante. ‘Aristoteles estava tentando alcancar um equilibrio entre forcas opostas no interior de uma tradicio ética ja fendida por conilitos. 24 Joeger, 19331945, el, p.5,9, 11,35; Marrou, 1948, p.1623; Bonner, 1977, p.2125. 25 Loyd, 1967, »-206 26 Arisuiteles, 1926, 4.3.34. [AS FORTUNAS D'0 CORTESAO u ‘Um outro texto grego merece ser mencionado aqui em razio de sua importncia para Castiglione (na verdade, para os humanistas da Renas- cenga em geral). A obra de Xenofonte, Ciropédia, ou “A educacdo de Ciro", apresentava Ciro, rei da Pérsia, como um exemplo das virtudes reais e aristocraticas, notivel autocontrol, recato (aids, mais literalmente “pudor”) e decoro (ewkosmia). Também se diz sobre Ciro que ele teria desencorajado os nobres persas a cuspir ou a assoar o nariz em publico, e queos teria incentivado a usar sapatos altos, a maquiar 0 rosto e, acima de tudo, a passar seu tempo prestando servicos & sua corte.” Apesar de sua admiracio pela cultura grega, os patricios da Republica Romana na época de Cicero nao aprenderam todos os seus valores com Homero. O ideal expresso no livro de Cicero “Sobre os deveres” (De officis), uma obra sobre educacio moral dedicada a seu filho e, presumi- velmente, destinada a leitores da classe alta, é muito mais flexivel. A énfase recai naquilo que o autor chama decorum; em outras palavras, a adaptacio de comportamento social, incluindo postura e gesticulacio, as circunstincias e estilo de vida, genus vitae, O decoro implica autocontrole, controle da razdo sobreas paixdes, ¢ também implica a autoconsciéncia, especialmente a consciente abstencio de extremos, tais como andar de maneira répida ou lenta demais, ou portarse de forma “branda” ou “efeminada”, por um lado, ou “dura” ou “grosseira” (rustcus), por outro.” . Esse ideal aristotélico de um meio-termo justo recebeu sua formulagio mais precisa na obra Orator de Cicero, em que o autor recomendava 0 que chamava um tipo de “negligéncia estudada” (neglegentia diligns), na qual o orador ocultava suas habilidades para dar a audiéncia a impressio de que ele nao estava usando retérica de forma alguma, mas estava mais preocupado com as idéias do que com as palavras escolhidas para expres- sélas. No século seguinte, 0 romano espanhol Quinuiliano apresentaria 405 oradores um conselho semelhante acerca da espontaneidade simula da Tendo em vista que falar em piblico com os gestos adequados era ‘uma das formas mais espetaculares de auro-apresentacdo para os romanos adultos ¢ do sexo masculino da classe dominante, 0s conselhos dados a oradores nos dizem muito sobre o comportamento ideal dessa época. 21 Xenofonte, 1914; cf. Juger, 19331945, vll, p.15681. 28 Cicero, 1913, 1.27, 1.32, 1.356. 29 Cicero, 1939, p23; Quintliano 1921-1922, vll, 112.47; ef Ramage, 1973, ps n PETER BURKE E claro que seria bastante insensato considerar qualquer um desses textos “a” expressdo da cultura antiga romana. As recomendagdes de Cicero para aquilo que seus proprios contemporaneos chamavam “ur- banidade" (wrbanitas) segue um curso intermediario entre a filosofia ‘moral séria (exemplificada por Séneca) ¢ 0 aconselhamento mundano do poeta vidio. ‘Seneca enfatiza aquilo que chama “constincia” (constancia), uma virtude resultante de rigorosa autodisciplina (Cicero também havia recomendado essa virtude, mas lhe dera menos destaque). Segundo ‘Séneca, o homem sébio deveria ser capaz de resistir a0 acoite do destino da mesma forma que uma grande arvore resiste aos ventos, ou uma rocha as ondas. Séneca pensava em uma paz de espirito interior (tranquillitas animi), mas seu conselho as veres tem sido interpretado como a recomendagio de um comportamento externo impassivel earistocratico. O termo “estoicismo”, que originalmente descrevia a escola floséfica a qual Seneca pertencia, sofreu, é claro, uma redefinicgo semelhante em termos de softimento sem queixa, impassibilidade e assim por diante.* Ovidio apresenta uma viséo bastante diferente do mundo da classe dominante romana, e seu tom é propositadamente frivolo e cinico, como de Séneca era moral e sério. No entanto, ele também enfatiza a calma ‘ea negligéncia que revelam a autoconfianca. Por exemplo, Ovidio diz ao jovem que pretende ser ber-sucedido na “arte” do amor a usar uma toga limpa, a apresentar um bor corte de cabelo ¢ a manter as unhas limpas, ‘mas ~ a0 contririo dos nobres na dorte de Ciro, descritos anteriormente a ndo dar excessiva importancia a sua aparéncia: “Uma aparéncia casual cai bem nos homens” (forma viros neglecta decet). As mulheres jovens S80 aconselhadas contra homens que se importam em demasia com o proprio cabelo. Mais uma vez, embora as mulheres sejam aconselhadas a buscar a elegancia (munditia) nos menores detalhes de sua ttlete, em sua forma de andar, por exemplo, ¢ na maneira de ri, a elas também é dito que “a arte produs a ilusio de espontaneidade” (ars casum simula). Como diz a frase bastante citada, “o objetivo da arte nao é esconder a arte" (ays est celare artem).?? 30 Ramage, 1973, p.52, 56, 28, 102. 31 Seneco, 1917-1925. 32 Ovidio, 1929, 1.508; 3.155, 281-4, 2989, 433-4 cf. Ramage, 1973. [AS FORTUNAS D'O CORTESAO B Apesar das diferencas de rom, propésito e geracio, os trés autores romanos reconhecidamente participam da mesma cultura da classe alt, ¢ todos os trés mantiveram-se como guias influentes do comportamento no decorrer dos séculos. ‘No inicio da [dade Média, a tradicao romana de bom comportamen- to foi reconstrutda para uso do clero. O texto fundamental nesse processo de reconstrugio foi escrito por Santo Ambrésio, bispo de Milao, que aconselhava seus sacerdotes a demonstrarem recato (literalmente “pu- dor", verecundia) em todos os seus gestos. Como sugere seu titulo, De officits clercorum, o tratado de Ambrésio era essencialmente uma rees- critura de Cicero, seguindo seu modelo em muitos aspectos, at¢ mesmo no conselho sobre como andar nas ruas ~ nem muito répido nem muito lento. As regras das primeiras comunidades monasticas também dedicaram atencio a0 comportamento em piblico, & mesa e também no interior da igreja, advertindo os monges a néo chegar tarde para as refeigées, a no conversar & mesa, a néo olhar para os lados, a nfo beber com avider ou de forma barulhenta e a nao apreciat aquilo que estivessem comendo. ; em outras palavras, um autocon- trole que jd estivera associado a0 exército romano, mas que agora adquiria um significado religioso.%* No século XIL, um conjunto de tratados sugere que uma atencio cada ver maior estava sendo dedicada a0 bom compor- taménto, incluindo postura e gesticulagio. Os textos dirigidos a0 clero incluem On Clerical Discipline [Sobre a disciplina clerical], de Petrus Alfonsi, e On the Education of Novices [Sobre a educagao dos novos), de Hugh de Saint-Vietor, ambos desenvolvendo um pouco mais as idéias de Ambrésio e dos primeiros autores mondsticos.} Segundo nos con- tam, havia uma “enorme disponibilidade" dos tratados de Ambrésio de Cicero “nas bibliotecas monssticas e das catedrais do periodo” > © ponto era comer “com disciplina’ Max Weber certa vez descreveu a ascensio daquilo que chamou de “ética protestante” como a secularizagao do acetismo. © mesmo pode ser dito a respeito de “disciplina” na Idade Média. O termo disciplina, 33 Ambrésio, 1984, p.131-2. 34 Pachomius, 1845, n.31-3; Isola, 1851, n.20: ef Nichols, 1985, p.31; Knox, 1991. 35 Nicholls, 1985, p.16, 368; Schmia, 1990. 36 Jaeger, 1985, p-119. a PETER BURKE anteriormente aplicado ao autocontrole dos monges e de outros grupos religiosos, foi secularizado (ou mais exatamente, ressecularizado) ¢ adap- tado para descrever comportamento refinado entre a laicdade.” Por volta do século XII, se nao antes, uma parte da laicidade também ‘vai comecat a se preocupar com as regras de bom comportamento. Foi ‘mals ou menos nessa época que as leis da “cavalaria” foram formuladas ‘em prol de um grupo social relativamente novo, os cavaleiros, um cédigo de conduta que Ihes disia como se comportar dentro e fora do campo de batalha e aconselhava a demonstrar cleméncia com um inimigo derrotado, por exemplo, ¢ a tratar as mulheres com respeito. O ideal da cavalaria foi elaborado de maneira mais vivida, novivel e persuasiva nas chamadas chansons de geste, 0s equivalentes medievais da Tada, nas quais os. herdis, como Rolando, Ogier, 0 Dinamarqués, Renaud de Montauban e o Cid, tomam:se notiveis por sua “bravura”, uma combinagéo de coragem, habilidade e lideranga, algo ndo muito distante da arete homérica.*® Da mesma forma que Aquiles, esses herdis ‘mostram-se hipersensiveis quanto as criticas 4 sua reputacio. Esse aspecto € mostrado de maneira especialmente clara no épico do Cid, um poema {que é organizado em tomo do tema da perdae recuperacio da honra do herdi. Um historiador medieval certa vez observou secamente que “é impossivel ser cavalheitesco sem um cavalo” 3? Nomes de cavalos, € também os de seus cavaleitos, so recorrentes nas chansons de geste. O cavalo de Rolando, Veillantf, por gxemplo; o Babieca de Cid, ou Bayard, ‘© maravilhoso cavalo que carrega os quatro irmios Aymon, rebeldes contra Carlos Magno, a seu refigio na floresta das Ardenas. Da mesma forma que a palavra “cavalaria” em inglés (chivaln) deriva de cheval, 0 ideal de vida que ela resumia era essencialmente tinico para um cavaleiro, a0 mesmo tempo soldado da cavalaria e um cavalheiro (caballera). Os herdis das chansons de geste eram notiveis pela coragem, mas no pelo autocontrole ou por seu refinamento. Eles lembravam ledes, ou a imagem medieval dos ledes, ficeis de serem irritados mas dificeis de serem acalmados. Um tema recorrente nesses épicos ¢ o de uma 37 Ibider, p-129s, 38 Le Genii, 1955; Keen, 1984, 39 Denholm -Young, apud White, 1962, p38. AS FORTUNAS D'O CORTESKO a discussao violenta em torno de um jogo de xadrez. No entanto, no decorrer da Idade Média, os valores da cavalaria foram gradualmente complementados por uma qualidade menos militarista, ou um conjunto de qualidades, que incluta “boas maneiras” e, especialmente, “cortesia”, Cortesia tem tanto a ver com cortes quanto cavalatia tem com cavalos. Nada foi dito até agora sobfe as cortes, ¢ existe um bom motivo para isso. O papel do “cortesao” nao existia na Grécia de Homero ou na Roma de Cicero. Arist6teles passou algum tempo na corte de Filipe da Macedénia, Platdo na de Dionisio de Siracusa, e Séneca na de Nero, tmas eles no eram cortestos no sentido medieval ou renascentista do termo, muito embora Castiglione fica Otaviano Fregoso descrever Plato ¢ Atisuételes exatamente dessa maneira (4.47).!° A cortesia tem sido descrita como uma “invengio” medieval.*t No sentido mais forte do termo “invencéo”, essa afirmagdo pode ser contes- tada pelos estudiosos das tradigdes clissicas ou clericais de civilidade. No entanto, como jé vimos (p.14),é impossivel agar uma distingio nitida entre “invencéo” e “adaptacao”. De fat, foi durante a dade Média, talvez em tomo do século XII, que 0 comportamento na corte se tomou um ‘modelo para o de outras pessoas, e a corte tornouse um espaco, lugar ou ambiente fundamental naquilo que Elias chama “processo civiliza dor". © termo curialitas, “cortesia", definido por um escritor como “nobreza de modos", entrou no latim na passagem do século XI para ox. Foi a esse novo ambiente, o da corte, que 0 vocabulétio de bom comportamento da Roma Antiga ~ 0 de Ovidio e também o de Cicero ~ foi adaptado a partir do séeulo XII. “Corresia’, associada a amor e também a boas maneitas, opunhase a villania, da mesma forma que surbanitas opusera-se a rusticitas. Estava associado a “medida” (no proven: cal dos trovadores, misura), um sentido de discriggo que levava um individuo a evitar os excessos ¢ a buscar o meiotermo, um conceito fundamental no sistema cortesio, da mesma forma que o decoro havia sido no de Cicero. Um cavaleiro também deveria ser notivel por sua 40 Sorensen, 1977, Al Brewer, 1966, p54 42 Bias, 1939, 1969, 43 Latham, 1965; Gana, 1986, 46 PETER BURKE ealdade, sua generosidade (largesse) e sua franqueza (franchise). Também. dele se exigia que fosse “letrado” (litreratus), em outras palavras, que fosse capaz de compor versos ¢ entender latim.4* Esse novo ideal néo era compartlhado por todas as elites européias. Hlavia uma tradigio clerical de critica & corte como um local de corrupsio moral, critica a qual voltaremos no capitulo 6. Mesmo assim, o ideal cortesio difundiu-se por boa parte da Buropa por meio da poesia dos trovadores e pelo “romance cortesio” (roman courtois), historias escritas sobre cavaleitos, para cavaleiros e, nfo de maneira infrequente, por cavaleiros (os exemplos de Wolfram von Eschenbach e Sir Thomas Malory, entre outros, mostram que o "cavaleiroletrado” ndo era um ideal irreal). Esse novo género literdrio revela a fusdo ou, mais exatamente, a sistura instivel de cavalaria com cortesia, os valores do campo de batalha com os da corte. A agdo acontecia tendo como pano de fundo as cortes, idealizadas de Carlos Magno e do rei Areur, que eram apresentados como 9s cavaleitos exemplares, “bravos e corteses” (preu et courtois). Esses romances representam tm testemufho eloqiente da tentativa de domes: ticar o guerreiro, de domar o ledo. As aventuras em busca das quais partiam os herdis eram elaboradas para testar se eles possuiam ou néo as qualidades de um bom cavaleiro nos dois ambientes. Exemplos surpreendentes de romance cortesio dos séculos XII e XII so o Perceval, de Chrétien de Troyes, ¢ 0 Parzival de Wolfram von Eschenbach - talvez os primeiros exemplos de Bildungsroman na historia ocidental -, nos quais 0 heréi crejce érfio em uma floresta e, portanto, tem tudo a aprender quando encontra‘pela primeira vex 0 mundo dos cavaleiros ¢ das damas. ‘No poema de Wolfram, por exemplo, o jovem Parzival é instruido sobre como filat ¢ como gastar seu dinheiro, sendo aconselhado a ‘mostrat cleméncia nas batalhas, a ndo enganar as mulheres e a lavar as ‘mos e o rosto apés retirar a armadura. Dessa forma, o garoto selvagem é"domado”. O que ele aprende é “moderacao”. Em outra passagem do poema, um escudeiro declara que nunca havia ouvido qualquer homem fer elogiado “se junto & sua coragem nao havia a verdadeira cortesia” Sit Gawain, em especial, é apresentado como um cavaleiro que exempli fica esse ideal 4 Jaeger 1985. 45 Woltam, 1927, segdes 1703, 344, 631 etc 'AS FORTUNAS D’O CORTESAO n ‘Uma caracteristica nova e importante do sistema de valores associado & comtesia era a de que ele se aplicava a ambos os sexos. As mulheres eram virtualmiente invisiveis nas chansons de geste. Por sua ves, no romance cortesfo, como na propria corte, as mulheres tiveram papéis importantes, Matie de Champagne foi a patrona de Chrétien de Troyes, € a propria Marie de France compés romances. Os textos expressavam ideais para mulheres ¢ também para os cavaleiros, e inham muito a dizer sobre as relacdes entre os sexos. Proeminente entre esses ideais era 0 do amor cortesio. A obra de Ovidio, Arte de amar, estava sendo estudada ‘mais uma vez. Duas traduc6es livres do texto foram feitas na Franga do século XIII, eo poeta Garin Lo Brun baseavase em Ovidio em suas instudes 4s damas sobre sua toilet, sua conduta e seu comportamento em relacto a seus amantes, enfatizando a necessidade de cortesia.¥6 O contraste entre a chanson de geste tradicional ¢ © novo romance cortesio pode se tornar mais nitido se examinarmos alguns dos perso: nagens no herdicos, cuja recusa em reconhecer os ideais subjacentes as historias Ihes dé ainda maior énfase. Na Cancéo de Rolando, o maior dos vildos € 0 traidor, Ganelon. Nos romances de Chrétien de Troyes © ‘Wolfram von Eschenbach, 0 tipo de comportamento a ser evitado é ilustrado pelo cavaleiro descortés, Sir Kay, que zomba de seus colegas ¢ até mesmo bate em uma dama. O romance cortesto agradava 4 nobreza por toda a Europa. Na Iuilia, por exemplo, a fusio de caiulleriae cortesia pode ser exemplificada pela reescritura feita por Ludovico Ariosto da historia de Rolando em seu poema épico Orlando Furioso, publicado pela primeira vez em 1516. Desde o inicio Ariosto declara sua intenelo de escrever sobre o amor sobre a guerra, sobre cavaleitos ¢ damas (Le donne, i cavallier, 'arme, gli amori) ¢ também sobre cortesia. © modelo de Ariosto dessa qualidade €0 cavaleiro Leon, filho do imperador Constantino, cujo ato supremo. de cortesia ¢ entregar a dama Bradamante a seu rival Ruggiero.” ‘Na Espanha; os romances de cavalaria parecem ter sido especialmen- te populares no inicio do século XVI, com pelo menos 157 edicdes entre 1501 e 1550. Amadis de Gaula, o hersi de um romance com 0 mesmo 46 Bomstein, 1983, p.3841; Lo Brun, 1889, versos 372, 412, 457-60 et. 47 Ariost, 1516; cf Vallone, 1955. 48 Chevalier, 1976, p67, 8 PETER BURKE nome publicado em 1508, era apresentado como um cavaleiro exemplar, sintuoso caballero, conhecido ndo s6 por sua habilidade e coragern nas armas, mas também por possuir “todas as outras boas maneias que um bom cavaleiro deveria ter’. A expressio buenas maneras usada aqui referese nao apenas a esfera daquilo que chamamos “boas maneiras”, mas a um dominio mais amplo, que inclui o amor. Amadis treme 20 ouvir o nome de sua amada, Oriana, e definha de melancolia quando ela o rejeita.® Na Inglaterra, Sir Lancelot era descrito, em Morte D’Arthur de Sir Thomas Malory, como o cavaleiro mais cortés que jé empunhou um escudo, a0 mesmo tempo “o mais implacivel” cavaleiro para seus inimigos mortais e“o mais meigo” que jé se sencou para comer nos sales centre as damas. No entanto, entve todos os cavaleiros da Tévola Redonda, Sir Gawain era o que com maior freqiéncia era apresentado como um homem cortis. No poema inglés do século XIV, Sir Gawain and the Green Knight, vemos a cortesia de Sir Gawain sendo testada.5° O ideal também foi difundido por uma longa série de “livros de cortesia”, em outras palavras tratados que diziam respeito ao comporta- mento correto dos jovens nobres, especialmente & mesa de seu “senhor”, cu seja, 0 chefe da familia e da casa junto a qual se abrigavam. Esses tratados — The Book of Courtesy, Stans Puer ad Mensam, Urbanitatis, The Babees Book, ¢ assim por diante — consistem essencialmente em advertir leitores ou ouvintes contra dormir, soltar gases, cogarse ou cuspir no lugar errado quando sentados a mesa* Entretanto, os tratados também téin algo a dizer sobre os ideais positivos de “cortesia”, “urbanidade” e “civilidade”. Da mesma forma que urbanidade, “civilidade” (civilitas, civilité, civiea) € um termo com origens utbanas ou cfvicas. Jé em uso ocasional a partir do século XI, especialmente em um contexto politico, o termo parece ter adquirido popullaridade com Erasmo, cuja obra De ciuilizate morum puerilium (1530) fazia uma sintese classica dos ideais medievais de disciplina e cortesia. Seu livro foi reimpresso com freqiéncia, sendo tradusido para diversos ‘vernaculos no decorrer do século XVI? 49 Montalvo, 1991, esp. p-240, 252; ef Cacho Blecu 50 Malory, 1954, p.882; Brewer, 1966; Nicholls, 19 51 Furnivall, 1868; Nicholls, 1985, caps.34. 52. Erasmo, 1530; Elias, 1939. 1979. cap. ‘AS FORTUNAS D'O CORTESAO » Erasmo néo era simpatizante da cavalatia, ou de qualquer coisa relacionada & guerra. Da mesma forma que outros humanistas da Renascenga, do florentino Poggio Bracciolini ao valenciano Juan Luis ‘Vives, ele era um eritico dos ideais aristocriticos medievais. Vives, por exemplo, declarou que os romances de cavalaria, como 0 Amadis de Gaula, eram “livros pemiciosos’.® Erasmo era elogiente em suas deniincias da guerra. Para ele, as letras eram tudo e as armas, nada. O valor fundamental dos humanistas era, é claro, a “humanidade” (huma- nitas), que eles entendiam ser uma qualidade que poderia ser ensinada seguindorse um determinado curso de estudos (0s studia humanitatis). Essa qualidade exemplificava a dignidade do homem e sua diferenga em relagio aos animais, que nao falavam e, conseqtientemente, nao tinham a faculdade de distinguir o certo do errado. Por volta do final da Idade Média, entio, a tradiczo clissica de bom comportamento — em si miltipla e no monolitica, como vimos — fora reconstruida diversas vezes em prol de diferentes grupos sociais, em diversos ambientes, em muias partes da Europa. Este capitulo concen- trou-se nos ideais de urbanidade, cavalaria e cortesia, ideais que estavam associados mais intimamente coma cidade, o campo de batalha e a corte. Apesar das tensOes entre essas trés tradicdes, elas influenciaram umas as outras, como vimos, especialmente no final da [dade Média. Todas elas estio presentes, em alguma medida, no Cortegiano de Castiglione, © isso.que o proximo capitulo tentara demonstrat. 53 Vives, 1524, p24. CAPITULO 2 O CORTESAO EM SUA EPOCA ‘Nao ha muito sentido em discutir a recepgao de um texto sem primeiro apresentar uma sua interpretacdo que sirva como base segundo a qual se possa medir os desvios. Essa interpretacio no pode deixar de ser controversa, mas pode evitar ser arbitriria, lvando em consideracio o gtnero literirio 20 qual o texto pertence, a personalidade de seu autor 0 momento de sua produsio. O género Para entendet um texto, temos que nos preocupar no s6 com seu contetido, mas também com sua forma. Castiglione poderia muito bem ter escrito um simples tratado sobre o cortesio se assim 0 quisesse, moderni- zando e ampliando os preceitos dos livros medievais sobre cortesia discutidos rno capitulo anterior. Fle poderia ter expressado suas idéias sob a forma de ‘um romance, permitindo que a moral surgisse no decorter da histbria. No entanto, a forma que Castiglione escolheu foio dislogo, uma forma literéria incomumente flexivel e “aberta", uma “conversagio congelada”, como a chamou certa vez o classicista de Cambridge Lowes Dickinson, na qual diferentes vores que expressam pontos de vista diferentes so ouvidas, sem haver a necessidade de se chegar a quaisquer conclusées definitivas.t A 1 Dickinson, 1951, p-56; Bakthin, 1981, p.259-422; Eco, 1981; Gay; 1966, p.171-2. j 2 PETER BURKE forma era bastante adequada 20 objetivo do auror de confrontar e mediar perspectivas opostas sobre o cortesio ideal, as tenses no interior das tradigdes de urbanidade, cavalaria e cortesia. O didlogo era também, na Itilia do inicio do século XVI, um género da moda. Eclaro ques didlogos haviam sido escrtos no decorrer da ldade Média, ‘O que era inédito na Renascen¢a era o restabelecimento das formas cléssicas do géneto. O termo “forma” tem que ser usado no plural porque diversos tipos de didlogo foram compostos pelos antigos gregos ¢ romanos. Os ‘proprios didlogos de Platio variam entre dois extremos. Alguns so pouco ‘mais do que monélogos feitos por Sdcrates, em que a funedo das outras personagens ¢ a de concordar com o principal interlocutor ou fazeclhe perguntas. Outros didlogos platénicos, em especial Protdgoras e O banquete, sGo mais dramaticos, mais descontraidos e jocosos. A chegada de um_ arasado Alcibiades & fesa acrescenta um toque final de teatro a0 didlogo. A controvérsia ainda rodeia a questio sobre o quiio “abertos” sto 08 dislogos platénicos. Segundo 0 critico russo Mikhail Bakhtin, “a ‘multiplicidade de vores se extingue na idéia". Por outro lado, para 0 pesquisador alemao Wemer Jaeger, pelo menos alguns dos dislogos cexernplificam a crenca de Sécrates de quea virtude nio pode ser ensinada, @ que tudo que se pode esperar — como sugere a famosa imagem do professor como parteira — é ajudar os outros a tirar suas préprias conclusdes. Estudos mais recentes concederam énfase cada vez maior aos diferentes interlocutores nos didlogos de Platio e a necessidade de interpretar seus enunciados em wm contexto? Os didlogos didaticos de Cicero, a Academica, por exemplo, 0 Orator ‘ou os Tusculani (“Discussdes em Tusculum”), seguiam o modelo de Platio.-De fato, as discussoes em Tusculum sio apresentadas como um exemplo do método socritico. Os didlogos eram menos jocosos do que 1 de Platio, mas inclufam personagens individualizadas como Crasso, ‘Antonio ou Varro. Eles também permitiam, que os leitores vissem 08 dois lados das questdes que estavatn sendo discutidas. O satirista yrego Luciano escreveu dislogos ainda mais dramaticos: Charon, por exemplo, (us Didlogosdacortesd, nos quais as idéias expressas importavam menos do que as personagens neles apresentadas. 2 Bakhin, 1929, p.279; Jaeger, 19331945, vil, p.10725, 179. CE Andriev, 1954; Guthrie, 1975, p.5665, 215, 380; Stskes, 1986, cap. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 3 Durante a Renascenga italiana, os didlogos de Platio, Cicero ¢ Luciano foram redescobertos, estudados e imitados, primeito em obras cm latim e, depois, em vernéculo. Humanistas importantes do século XV, como Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini e Lorenzo Valla, expres saram suas idéias sobre ética e politica na forma de didlogos em Jatim, rnos quais os principais papéis eram representados por seus amigos. O dislogo em verndculo parece ter sido considerado menos importante na Itslia do século XV. © Libri della famiglia, de Leonbattista Alberti, cuja maior parte foi escrita nos anos de 1430, nao foi publicado até o século XIX. Foi depois de 1500 que Pietro Bembo inseriu o dislogo em verniculo no mapa literério> Pietro Bembo era um patricio veneziano bem conhecido pot seu entusiasmo pela flosofia de Platio, pelo latim de Cicero ¢ pelo italiano literério “cléssico” baseado na pritica dos trés grandes escritores floren- tinos do século XIV, Petrarca, Bocaccio e, em menor grau, Dante. Ele apresentou suas idéias em dois didlogos em italiano, Asolani (publicado em 1505) e Prose della volgar lingua (1525). A obra Asolani (“Discussbes em Asolo”, seguindo o modelo das “Discussdes em Tusculum” de Cicero), representa uma conversa sobre amor que dura trés dias e envolve trés rapazes e tés mocas no jardim da rainha de Chipre em Asolo, néo muito longe de Veneza. Um dos protagonistas, Perotinno, fala contra 0 amor; outro; Gismondo, féla a favor do amor mundano; 0 terceiro, Lavinello, conclut (como Sécrates em O banquete) a favor de um amor e deuma beleza que sejam espirituais, divinos ou platénicos, ctando as palavras de um eremita que lhe explicou a necessidade de ascensio do mundo visivel para aquele que ¢ invisivel. As trés mulheres, Berenice, Lisa e Sabinetta, no ficam apenas em silencio, mas a elas so dados papéis subordinados. O didlogo nao sé ecoa o Banquete ¢ os Tusculani, mas também o Decameron de Bocaccio, no qual as cem histbrias si emolduradas por uma conversa sobre amor em um grupo de rapazes € mocas num jardim, Em comparagio, Bembo deu & sua Prose della volgar lingua ("Prosa em verndculo”) uma ambientacao interior, em volta da lareira em uma casa veneziana antes € apds o jantar em trés noites sucessivas. O ano 1502. As quatro personagens s30 Carlo Bembo, irmao do autor; Giuliano 3 Dionisow, 1952. Fy PETER BURKE de Medici, um primo do papa Clemente VIl; Frederico Fregoso, um patricio genovés; e o poeta Ercole Strozzi de Ferrara. Carlo, Frederico e Giuliano revezam-se na exposiciio de suas idéias, enquanto o papel de Ercole éo de fazer perguntas embaragosas. Os quatro homens discutem a chamada questione della lingua; em outras palavras, como escrever em bom italiano, ¢, em especial, que modelo imitar ~ a tradicao, a fala das pessoas comuns ou 0 exemplo dos grandes escritores florentinos do passado. Com esses dois didlogos, e também com um outro, menos conhe- cido, que se passa na corte de Urbino, Pietro Bembo forneceu um modelo para Castiglione, que aproveitou algumas das personagens de Bembo, como Frederico Fregoso, Giuliano de Medici ea senhora Emilia, e baseou a fala final em O corteséo, na fala do eremita no final de Asolani, reconhecendo seu débito com elegincia ao fazer do proprio Bembo seu portavor, que, por sua vee, declara sua necessidade de consultar “meu: eremita Lavinello” (4.50)4 Como veremos, Bembo também era um importante membro do circulo social de Castiglione. O autor Baldassare Castiglione nasceu em 1478, portanto sinha cinqdenta anos quando O cortesdo foi publicado. Ele era um nobre da regito de ‘Mantua, no norte da Itilia, onde sua familia possuia uma propriedade. Seguindo costume de sua classg, seu pai mandou o jovem Baldassare para ser criado na corte do flamboyant Lodovico Sforza, em Milao. Ele vvoltou para casa apenas quando seu pai morreu, em 1499, pata se colocar a servico do marqués de Mantua, Francesco Gonzaga. Castiglione serviu como soldado, em campanha no sul da Italia, mas seu relacionamento com 0 marqués tomouse um tanto dificil, e em 1504, a seu proprio pedido, foi transferido para uma outra corte pequena, a dos duques de Urbino. Em Urbino ele foi empregado como diplomata por Guidobaldo di Montefeltro e seu sucessor, Francesco Maria della Rovere. Visitou a Inglaterra e conheceu o rei da Franca em Bolonha. Passou também bastante tempo como embaixador em Roma, cuidando dos interesses do duque de Urbino ¢ do novo marqués de Mantua, Frederico Gonzaga. 4 Florian, 1976, p.3349. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 35 Foi nos anos entre 1513 ¢ 1518, quando estava perto dos quarenta anos, que Castiglione escreveu a maior parte do primeiro esboco de O cortesdo, na thesma época em que seu amigo Bembo estava escrevendo sua Prose, Castiglione pediu conselhos sobre revisao a Bembo, que jé era uma autoridade em assuntos literétios.5 O segundo esboro ele esereveu nna década seguinte, em Roma, no inicio dos anos de 1520. Logo depois, em 1524, Clemente VII enviow-o a Espanha como embaixador papal, ou onde ele acompanhou a corte do imperador Carlos Va Burgos, Valéncia, Madri e outras cidades. Castiglione ainda estava na Espanha no momento do saque de Roma, em 1527, pelas tropas de Carlos V, em outras palavras, uma época de hostilidades abertas, ainda que nao oficialmente declaradas, entre seu novo senhor e © governante junto a quem ele atuava, Quando Alonso de Valdés, um seguidor de Erasmo e um dos secretirios do imperador, escreveu um dislogo no estilo de Luciano, culpando o papa pelo saque de Roma e criticando a corrupelo da Igreja, Castiglione respondeu com uma longa carta de inusitada violencia, acusando (assim reclamou Valdés a Erasmo) nao s6 de falsidade, mas também de heresia, Morreu em Toledo no dia 8 de fevereiro de 1529, pouco depois da publicacio de seu livro em Veneza e de sua escolha pata ser bispo de Avila na Espanha$ Carlos V prestou 2 Castiglione a homenagem de deserevélo, er ‘uma frase bastante citada, como “um dos melhores cavaleicos do mundo” (Cuno de los mejores caballeos del mundo”) frase essa que poderia ter saido das piginas de Amadis de Gaula, nas qusis ocavaleiro Arcalaus é descrito por um eremita como “o melhor cavaleiro do mundo”.” De maneira semelhante, Jacopo Sadoleto, amigo de Castiglione, descreveu-o em uma carta de 1529 como alguém cujas realizagSes, tanto nas armas quanto nas letras, deveriam ser admiradas, ¢ como um homem universal Instruido em todas as artes e formas de conhecimento.* Em uma biografia publicada posteriormente, Castiglione foi descrito como “um exemplo de perfeigio” que os leitores deveriam imitar? 5 La Rocca, 1978, p.3834. 6 Cian, 1951; Carcwright, 1908; Woodhouse, 1978, 638. 7 Montalvo, 1991, 263, 8 Sadler, 1737, vs, p-119, 9 Marliani, 1583, "Aos leores” 36 PETER BURKE Eniretanto, como cortesso, Castiglione parece nfo ter sido um grande sucesso. Ele reve difculdades com pelo menos dois dos principes a quem serviu.20 Sua carreira militar foi indistinta."' Como diplomata, softeu reveses, pelo menos no final de sua carrera. Poder-se.ia até mesmo arriscar a sugestio de que ele morreu em virtude da posigéo insustentivel nna qual o imperador e © papa o haviam colocado. ‘A comparagio que se apresenta nesse momento € com o contempo- raneo de Castiglione, Maquiavel. Este nao foi muito bemsucedido na chancelaria florentina. Passou o tempo organizando uma milicia rural que fugiu quando o exército espanhol chegou, o que provocou a volta dos Medici e que o levou ao exilio na fazenda onde escreveu O prince. Pode nao ser implausivel sugerir que ambos se voltaram para a teoria, para a contemplacio, em compensagao aos desapontamentos na vida ativa, embora Castiglione ainda tivesse motivos para ver a si mesmo como um diplomata bemsucedido no momento em que estava fazendo as revisées finais em seu text. Castiglione teve qualificacdes mais positivas por escrever O cortesdo Ele era um homem instruido, até mesmo para os padrées de sua época — sabia grego e latim. As referéncias no proprio texto mostram a familiaridade do autor com os classicos, em especial as obras de Homero, Platio, Aristoteles, Xenofonte, Plutarco, Cicero, Horicio, Virgilio, Quin- tiliano Ovidio. Entre os escritores modernos, ele fer referéncias, ou ppelo menos alusdes, ndo s6 a Dante, Petrarca e Bocaccio, mas também a Poliziano, Lorenzo, o Magnificoy e a0 neoplatonico Francesco Cattani da Diacceto (1.37). Castiglione também teve experincia em escrever. Em Urbino, aos 28 anos de idade, ele havia colaborado com seu primo Cesare Gonzaga ‘em uma écloga dramética para o Carnaval, escrevendo ¢ atuando em urna peca na qual ninfas e pastores disfarcavam referéncias aos individuos da corte local? Era um poeta consumado em latim ¢ em italiano, e suas obras incluiam uma elegia sobre a morte de Rafael, para quem havia posado para um retrato, por volta de 1517. Da mesma forma que seus amigos Bembo e Rafael, Castiglione participou daquilo que é conhecido 10 Dionisor, 1952. 11 Hae, 1983. 12 Guidi, 1977. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 3 como a “alta” Renascenca, a fase do movimento (centrada em Roma no inicio do século XV1) na qual a maior énfase era dada as regras — fossem clas regras para as artes, para a linguagem ou para o comportamento. E para as regras seguidas pelo cortesdo perfito, ou, mais exataimente, a discussio dessas regras, que devemos nos voltar agora. : O texto Antes que possamos passar a interpretacdo, o texto precisa ser tesumido—ou, de qualquer forma, descrito, uma ver que um verdadeiro didlogo nao se presta a resumo. Tratando O cortesdo como uma pega € nndo como um tratado, é chegado 0 momento de deserever seu cendrio € suas personagens antes de nos voltarmos para aquilo que clas tém a dizer. © cenatio do didlogo ¢ 0 palicio ducal de Urbino, magnifica construgio renascentista que ainda se mantém como na época de Castiglione. O ano € 1507, cerca de seis anos antes de o autor comecar aescrever, mas mais de vinte anos antes de o didlogo ser publicado. Os quatro livros de O cortesdo correspondem a quatro atos de uma pega, quatro noites sucessivas durante as quais a corte que rodeia a duquesa, Elisabetta Gonzaga (0 duque, adoentado, havia se retitado a seus aposentos mais cedo), dedica-se 20 passatempo de discutir as qualidades do corteséo perfeito. Quanto as dramatis personae, ha mais de vinte, um niimero incomu- ‘mente grande para um didlogo (até mesmo O banquete de Platio incluia apenas oito participantes). Para permitir a variedade evitando a frag- mentacao, Castiglione da o papel principal a varios interlocutores que se tevezam, todos eles seus amigos e conhecidos. A tarefa de descrever © cortesao perfeito é primeiro confiada a um nobre de Verona, o conde Lodovico da Canossa, cujo discurso é interrompido pela chegada tardia de Francesco della Rovere, como a de Alcibiades em O banguete. Na segunda noite, Frederico Fregoso, o patricio genovés que recebera um papel na Prose de Bembo, € o principal orador, passando em seguida a 13 Rebhorn, 1978; Arbizzoni, 1983; Clubb, 1983, 14 Rebhorn, 1978, p.1 78. 38 PETER BURKE palavra pata o florentino Bernardo Bibbiena. Na terceira noite, 0 protagonista é Giuliano de Medici (que, da mesma forma que Fregoso, patticipou do dislogo de Bembo). A quarta e ultima sessio ¢ iniciada por Otaviano Fregoso (irméo de Frederico) e concluida por Pietro Bembo — se & que se pode dizer concluida, uma ver que na representacio da discussio esta é interrompida no amanhecer com a intencio de set reromada no dia seguinte Qs protagonistas nfo falam sem pausas; com freqiiéncia sio inter- rompidos e questionados pelos outros participantes, em especial Gasparo Pallavicino, um nobre lombardo que recebe papel de opositor (como Ercole Strozzi na Prose de Bembo). Gasparo acha implausivelaidealizacio do cortestio e da dama da corte, ou, como poderiamos dizer, “utdpica”. ‘A funcio dele é a de trazer a discusséo para niveis mais realistas. Papéis significativos também so representados por Cesare Gonzaga, primo de Castiglione, cujas perguntas e objecdes séo menos importunas; pela propria duquesa Elisabetta; e pela senhora Emilia Pia, que preside & reunido como “representante” de Elisabetta (1.6), exortando os outros a falarem ou a se calarem, Embora nenhuma das mulheres intervenha com freqiéncia ou durante muito tempo no dislogo, quando o fazem mos- tramse eficientes na mudanca de sua diregio.'5 Nas primeiras versbes, do texto, intervengoes sérias também foram dadas a duas outras mulhe res, Constanza Fregosa e Margherita Gonzaga.' Amigos ausentes as vyezes so citados, como no caso das piadas atribuidas a Jacopo Sadoleto ea Rafeel (2.63, 2.76), dando gp didlogo mais ressonancia no préprio circulo do autor. : elo menos algumas das personagens ganham vida como individuos; obrincalhéo Bibbiena, por exemplo, ou 0 zombeteiro Gasparo, que gosta de fazer 0 papel de mis6gino. Com grande habilidade e de uma forma quase sem paralelo nos dislogos renascentistas, Castiglione cria uma atmosfera de entretenimento ao permitir que os participantes provoquem uns aos outros, empenhem-se em apresentar réplicas répidas e expressem suas emogdes, além de aterem-se & questio que esti sendo tratada. Em ‘uma ocasiao, por exemplo, a senhora Emilia quase perde a paciéncia com Bembo (4.50). “Ele disse, rindo” (disse ridendo) ou “tindo, ele 15 1.6, 1.9, 1.3940, 32, 3.4, 3.17, 3.32, 3.60, 3.77, 4.50 ete 16 Guidi, 1980, p.56, n.69. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 39 replicou” (suggiunse ridendo) so expressbes recorrentes no texto (3.7, 3.10, 3.13 etc.). Da mesma forma que Platio, Castiglione consegue ser, ‘20 mesmo tempo, sério e brincalhdo. Como Sécrates, ele se recusa a dar instrugdes diretas. Apesar de algumas passagens didaticas, o tom de seu dislogo ndo esti muito longe de Trabalhos de amor perdidos (digamos) ou Muito barulho por nada. O argumento de que Beatriée e Benedick de Muito barutho derivam de Emilia é Gasparo de Castiglione pode nfo convencer, mas scus didlogos certamente obedecem ao mesmo tom € estilo.!? ‘O contetido, € claro, é muito diferente. Apesar de sua aparéncia de espontaneidade e de livre associacdo, 0 didlogo desenvolvese de uma forma ordenada. A discusso sobre 0 cortesfo perfeito comega com a ‘questio da nobreza (em outras palavras, a importincia do “valor” versus (© nascimento), seguida pela do combate (mais exatamente, as armas versus as letras). A descrigio das habilidades literdrias necessérias a um cortesto perfeito conduz a um debate sobre “a questo da lingua”, ou seja, as vantagens e desvantagens de se falar e escrever em toscano em comparacdo aquelas de uma “linguagem cortesa” hibrida. Mais uma vez, 1 exigéncia de que o cortesdo tenha um born conhecimento das artes visuais se transforma em uma discussio sobre os méritos relatives da pintura contra a escultura. Essas oposigSes bindrias eram, ao mesmo tempo, tradicional e adequadas & forma do didlogo. “Desa forma, o primeiro livro ja havia suscitado quatro grandes problemas socioculturais discutidos na Itilia dessa época. Ele contém poucas surpresas para qualquer um que esteja familiarizado com essas tradicées, além da sugestio do conde Lodovico, apresentada com um tom de desculpas, de que um cortesdo deveria saber desenhar. O segundo livro passa de umn t6pico para outro mais rapidamente, mas tem muito a dizer sobre a arte da conversacio e, mais especificamente, sobre as convengées sobre brincadeiras, com quem e de que maneira 20 cortesio é permitido fazer brincadeiras, se ele quiser demonstrar graca. O terceiro livro ¢ dedicado as qualidades da dama da corte ideal (a donna di palazzo, assim chamada para distinguila da conegiana, ou cortesa). A discussio centra-se nos conhecimentos de literatura, musica pintura necessérios a uma dama da core, além da maneira pela qual 17 Scot, 1901. 40 PETER BURKE cla deveria andar, gesticular, conversar, danar e assim por diante. Esse tépico naturalmente leva a um debate especifico da epoca, sobre os méritos, a igualdade ou “dignidade” das mulheres em comparacdo aos homens. Gasparo Pallavicino argumenta, em seu estilo provocador, que as mulheres sio “um erro da natureza”, enquanto Giuliano de Medici contrapde os exemplos clissicos de realizagSes femininas (Artemisia, Cledpatra, Semiramis et), bem como as modernas Isabella d’Este (3.36) a mainha Isabel da Espanha (3.35). Quando Giuliano afirma que as mulheres podem entender tanto quanto os homens, Cesare Gonzaga declara que a fungio delas é inspirar as realizagSes masculinas e que @ alegria e o esplendor da corte dependem delas (3.3). Esse debate sobre as mulheres recebeu bastante atencio recentemente, por estudiosos ferninistas. Ja foi mostrado que Castiglione havia apresentado uma defesa das mulheres anteriormente, nos anos 15061509, na forma de uma carta a seu amigo Nicold Frisio, a quem mais tarde couberam algumas observagdes misoginas em O cortesdo.!? (O quarto livro, mudando de assunto e de tom de maneira bastante abrupta, aborda o problema da relacio entre 0 cortesio € o principe. (Onaviano Fregoso argumenta que o cortesdo tern de conquistar os favores de seu senhor de forma a poder dar lhe bons conselhos; ele também faz alguns comentirios mordazes sobre a ignorincia e a presuncio dos principes (é preciso lembrar que a personagem que esti falando ¢ um genovés; em outras palavras, um cidadio de uma Replica). No entanto, até o fim da noite, a discussfo retorna para o terna da natureza do amor, ‘0 que possbilita a Pietro Bembd apregentar a palavra final, fazendo um discurso apaixonado em favor do amor espiritual, a medida que a luz da aurora comeca a entrar na sala. No capitulo anterior, a descricso dos instiveis ideais do comporta ‘mento aristocritico dependia de uma anélise das mudancas de vocabu- lirio usadas para descrever 0 comportamento no decorrer dos séculos. O que dizer, entio, do vocabulétio de O cortesda? Quando nos voltamos 40 texto com essa pergunta em mente, € difcil nfo nos surpreendermos ‘com a riqueza da linguagem do autor, com as delicadas nuancas de 16 Bauisti, 1980; Guidi, 1980; Zancan, 1983; Finucei, 1989; Jordan, 1990, p.7685; Benson, 1992, p.7390. 19 Ghinassi, 1967, Apéndice. ‘AS FORTUNAS D'O CORTESAO a significado e com a sutileza das distingdes feitas pelos participantes, em especial no dominio do corpo, sua aparéncia, posturas, gestos e aquilo ‘que 0 socidlogo Pierre Bourdieu (seguindo os tradutores medievais de Aristételes) chama “habitus”; em outras palavras, um estilo especial de comportamento.? Os primeitos tratados italianos sobre comportamen- to, especialmente sobre o comportamento feminino, como o andnimo Decor puellanum e Reggimento e costumi della donna, de Francesco de Barberino, ja haviam discutido a gesticulagio adequada, mas o fizeram de uma forma menos sofisticada e elaborada. O cortesdo foi, 20 mesmo tempo, mais sofisticado do que os livros de conduta desse tipo, e mais concreto do que as discussées floséficas anteriores. Muitos dos termos empregados pelos autores clissicos, medievais ¢ do inicio da Renascenga para descrever o bom comportamento podem ser encontrados em algum momento de O cortesdo. Tanto os homens quanto as mulheres deveriam cultivar a gravta, em outras palavras, a dignidade silenciosa valorizada na Roma de Cicero (2.20, 3.5). O termo “cavalaria” aparece no texto (caualleria, 4.48) e © mesmo acontece com “cortés” (cortese, 2.30, 2.98), ainda que a cortesia, no sentido estrito do termo, receba pouca énfase.”" Gentilezza, ou uma gentil maniera é outro termo medieval de elogio que pode ser encontrado em O cortesdo (2.10, 2.17), seguindo a tradi¢so medieval, esti associado ao servigo das damas 6.73). "Honra” € deserita como necessétia, eos participantes do didlogo condenam aquilo que é “desontoso” (disonesta, 2.23, 3.57). Tanto as damas quanto os cavaleiros devem ter um senso de vergonha (vergogna, 2.22, 3.40), e também um senso de “modéstia” (modestia, 2.21, 3.5). Existem diversas referéncias aprovativas & medigcrita, no em seu signi ficado moderno de “mediocridade”, mas no sentido de seguir o justo meio-termo atistotélico (2.16, 2.41). A generosidade € louvada, € 0 mesmo acontece com a magnanimidade, ao menos para os principes (2.10, 2.30, 4.18). A “urbanidade” ¢ recomendada, da mesma forma que a clegincia, e essas qualidades so comparadas ao comportamento que € “selvitico” (seluatico, 2.43, 3.5), ou “rnistico” (contadinesco, 2.32). A virtude humanista par excellence, a de ser “humano” (umano) também é elogiada mais de uma vez (1.17, 2.30). 20 Bourdieu, 1972, p.7887. 21 Loos, 1955, 173s, 2 PETER BURKE Junto a esses termos tradicionais, encontramos © comportamento em O cortesdo descrito por varias palavras ou grupos de palavras novas. O cortesio ideal deveria ser “afivel”, por exemplo, “amigivel” “agradé- vel” (affabile, amabile, piacevole, 2.20, 2.17, 2.22). Essa qualidade de agradar 0s outros pode ter sido implicada pelo termo tradicional “utba nidade”, mas a implicacio é desenvolvida e enfatizada no texto de Castiglione. Um segundo grupo de palavras amplifica a palavrachave aristotélica “prudéncia”. O cortesdo é aconselhado, por exemplo, a ser “discreto” (discreto, 1.18, 1.22) e até mesmo a empregar “uma certa dissimulagio circunspecta” (una certa awertita dissimulazione, 2.40), embora o termo “Logros” (inganni) seja geralmente usado em um sentido pejorativo pelos diferentes participantes (2.2, 2.40). ‘Um terceiro grupo de termos desenvolve a idia de “modéstia”, em especial no sentido de evitar a ostentagio ou a afetaglo. Portanto, 0 cortesio é aconselhado a ser rimesso,ribosatoe ritenuto em seu compor- tamento (2.19, 2.27, 1.17). O comportamento inclui a aparéncia (lo ‘aspetto), a postura (lo stare) € os gestos (imovimenti) Em todos esses aspectos, as damas ¢ os cavaleitos devem cultivar a “graga” (grazia), um termo pelo qual Castiglione passou a ser identificado aos olhos da posteridade, tal é a importincia da funcdo que realiza no texto. E nesse aspecto que se torna mais dbvia a preocupagdo de Castiglione com a estética e com a ética do comportamento — com a tradicio de Ovidio e também com a tradicio de Avistoreles. Uma das partes da discussao sobre ‘a dama perfeita manrém.se espegialmente préxima de Ovidio (3.50). Graca, ou encanto (chavs, gratia),“era um termo que fora empregado por alguns autores antigos, como Plinio e Quindliano, Entretanto, 0 contexto era geralmente uma discussio sobre literatura ou arte — 0 estilo do pintor grego Apeles, por exemplo. Entre os neoplatdnicos da Renas- cenca, Marsilio Ficino e Pietro Bembo discutiram a ligacio entre graca fe beleza. O primeiro escritor a colocar a graga como centro de uma discussao sobre comportamento foi o préprio Castiglione.” ‘A eraca nos leva ‘agora aquele que é o conceito mais famoso do didlogo: sprereatura. Ele é apresentado como um neologismo. © conde Lodovico da Canossa, explicando a necessidade de se evitar a afetacdo, declara que 0 cortesio deve, “se € que posso me valer de uma palavra 22 Monk, 1944, p-13840. AS FORTUNAS D’O CORTESAO 6 nova, usar em todas as suas acdes uma certa sprezgatura, que oculta a arte e que apresenta aquilo que ¢ feito e dito como se fosse feito sem esforco e virtialmente de maneira impensada” (1.26). Sprezzatura ndo era, em termos lirerais, de forma alguma uma palavra nova, mas sim um novo sentido dado a uma palavra antiga, cujo significado basico era*nao dar valor a”. Um termo mais tradicional que 0 autor usa de vez em quando com alternativa é disineoltura (1.26), “autoconfianga trangia”, a versio italiana da desemboltura atribuida ao heréi cavalheiresco Amadis de Gaula® Entretanto, sprexeatura significa mais do que isso. Ela também envolve a impressio de atuar “de maneira impulsiva” (all"impro- viso, 2.34). Essa espontaneidade planejada ¢ uma versio mais dramatica dda neglegentia diligens que tanto Cicero quanto Ovidio defendiam & sua maneira, como vimos. O homem magnénimo de Aristételes também havia sido descrito, de forma retroativa mas com justiga, como aquele que possui “mais do que um toque de sprezeatura”.4 Apesar desses precedentes, a énfase nessa qualidade em O cortesdo, da mesma forma que a mudanga no sentido da palavra, é nova. © uso desse termo é um entre muitos sinais de um interesse cada ver maior naquilo que Jacob Burckharde chamou “autoconsciéncia” e Erving Goffman, “a apresentacio do eu” ou a arte da “administracio da impressdo” 25 De fato, Castiglione discute a importincia para 0 cortesio de “causar uma boa impressao sobre si mesmo” (dar bona impression di sé), especialmente no que diz respeito “primeira impressio” (2.26, 1.16). Ele tem plena consciéncia de que esti instruindo seus leitores sobre como desempenhar um papel, como “tomnarse outra pessoa”, ou ‘melhor, talver, “colocar uma méscara diferente” (vestirsi un'altra persona) quando a ocasido assim o exige (2.19). © “cortesio” &, em si, esse papel, © qual estava se tornando institucionalizado naquilo que © proprio Castiglione chama de uma “profissao” (2.10); em outras palavras, uma arte ou disciplina (arte e disciplina).6 Dai o fato de ele ter cunhado um ‘outro termo para descrever 0 assunto de seu didlogo: “cortesania” (cortegianfa, 1.12, 1.154). 23 Montalvo, 1991, p.267 24 Barker, 1948, p45. 25 Goffman, 1956. 26 Ghinassi, 1971, ‘“ PETER BURKE proprio autor praticava aquilo que seus personagens pregavam. contesao ¢, ele proprio, uma obra de arte que oculta a arte sob a aparéncia de espontaneidade. Castiglione afirmava t#lo escrito “em uns poucos dias” (I.1.), embora saibamos que ele o reescreveu e 0 desen- vvolveu a0 longo de varios anos. O texto exemplifca a gracaea spreceatura, além de discutir essas qualidades. Algumas de suas idéias mais impor- tantes so apresentacas de maneira casual, como se de passagem. Embora no seja notivel por sua originalidade, o livro é uma sintese admiravel- ‘mente habilidosa das idéias cléssicas, medievais e renascentistas a respeito de om comportamento. Em alguns casos o autor far referéncia explicita ao passado. Ele conhece Platio, Aristoteles e Cicero, e sem duvida espera que seus leitores reconhecam as alusdes. No caso das tradigoes medievais, as referencias séo menos explicit, embora seria realmente estranho se um nobre italiano do norte, da geracso de Castiglione, nao estivesse familiarizado com, pelo menos, alguns romances de cavalaria, entre eles fo Aviadis de Gaula, sobre 0 qual Castiglione incluiu uma referencia G.54)27 O conesdo é mais original na énfase € realce que concede, ‘especialmente, a estética do comportamento, & construcao do self como uma obra de arte, e & dignidade das mulheres (ainda que o espaco reservado a elas permaneca minimo, se comparado aquele dado aos homens).28 Qual é, entio, a mensagem de Castiglione? © propésito declarado pelo autor em seus prefiicios, na forma de cartas a dois amigos, édescrever © cortesdo perfeito.como um modelo para os verdadeiros cortesios. No entanto, esse propésito ¢ ambiguo ou, mais exatamente, paradoxal. O livro anuncia que ensina aquilo que nao pode ser aprendido, a arte de ‘se comportar de maneira naturalmente graciosa. Podemos nos lembrar de Sécrates e de sua crenca de que a virtude ndo pode ser ensinada — pelo menos, ndo direramente. Um segundo paradoxo surge do fato de ‘que as préprias pessoas que deveriam ler o didlogo, as damas bem-nas- cidas e os cavalheiros de plantio nas cortes, supostamente no precisam fazélo. O livro parece ensinar aqueles que ja sabem. A lacuna entre as finalidades aparentes ¢ reais ¢ 0s leitores de O cortesdo € preenchida, ou 21 Giudl, 1978, p61. 28 Williamson, 1947; cf Greenblacy, 1980. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 45 pelo menos forrada, por uma forma divertida de apresentagio que sugere diversio em ver de instrugéo. O cortesGo em seus contextos a Qual era, entio, a intencao do autor ao escrever esse livro? Qual era seu contexto intelectual? Seria prudente usar os dois termos, “intengoes” “contextos", no plural, e tratara obra como “sobredeterminada”, como diria Freud. Muitas das sugestées discutidas pelos estudiosos modernos como se fossem alternativas séo, na verdade, compativeis entre si poderiam muito bem ser combinadas em uma sintese. A ocasiao imediata do didlogo parece tet sido apresentada por Vittoria Colonna, marquesa de Pescara e sobrinha do duque Guidobaldo de Urbino. Foi ela quem aparentemente inceritivou Castiglioneaescrever = ele se referiu em uma carta de 1525 a “ordem implicita’ (tacito commandamenta) dela, uma solicitag seria indelicada, se nao descortés.® , feta por uma dama, cuja recusa Durante 0 processo de escrita, contudo, o autor reagiu a uma série de outros imperativos, internos e externos. Segundo alguns estudiosos, que enfatizam as reflexdes nostilgicas na carta preambular do autor a seu amigo, o bispo de Viseu, a intencéo original dollvro eraa de um exercicio de autobiografia, uma evocacio proustiana de um tempo agora perdido, no qual o autor estava na “flor” de sua juventude; uma tess amigos que haviaim partido e uma adorivel recriacdo da corte de Urbino em 1506, antes que sua tranqiilidade fosse despedacada pela guerra. O tema de ubi sunt recebe consideravel énfase, com referéncias as mortes: de Giuliano de Medici, de Bernardo Bibbiena, de Ottaviano Fregoso e, acima de tudo, de Elisabetta Gonzaga, a duquesa de Urbino. O cortesdo poderia, de fato, ser descrito como o “Livro da duquesa” do autor, um tributo a Elisabetta, de quem elé era mais préximo, mais do quedo duque (afinal, Castiglione era ele priprio meio Gonzaga). Segundo outros estudiosos, escrever O cortesdo foi essencialmente uum ato politico, uma tentativa (como sci ser, malsucedida) de defender 29 Serassi, 17691771, vi, p.167. 30 Cian, 1951, p27. i PETER BURKE. fo ducado de Urbino e sua familia dirigente, 0s Montefeltro, em uma época na qual foram ameacados consecutivamente por dois papas, Jélio I ¢ Lefo X, ambos com a intengéo de obter principados para seus parentes, (05 Della Rovere e os Medici, respectivamente.* O cortesao também precisa ser colocado em outros contextos mais amplos. Uma forma de resuimir as realizacées de seu autor em uma frase seria dizer que ele ajudou a adaptar o humanismo ao mundo da corte, eacorte 20 mundo do humanismo. O humanismo italiano inicial foi o produto das cidadesrepablicas, especialmente Florenca. Ele foi, na famosa expressio do estudioso Hans Baron, um humanismo “civico” 2? Contudo, no infcio do século XVI, a maioria dessas cidadesrepiblicas estava em declinio, A Itélia foi “refeudalizada’, como dizem alguns historiadores. Tanto do ponto de vista politico quanto do cultural, os principados eram cada vez mais importantes. Assim, quando o conde Lodovico da Canossa sugeriu que 0 cortesao ideal deveria ser razoavel ‘mente instruldo “naqueles estudos que chamamos humanidades” (1.44), cle estava construindo uma ponte entre as culturas do nobre € do humanista. Entretanto, 0s prineipadositalianos haviam vencido seu conflito com suas rivais republicanas apenas para enfrentar uma ameara mais séria & sua existéncia. Nascido em 1478, Castiglione tinha 16 anos em 1494, 0 fano em que a Franca invadiu a leila, destruindo o delicado equilibrio depoder entre Milio, Veneza, Florenca, Roma Népoles, transformando a peninsula em um campo de katalha durante mais de sessenta anos, introduzindo novos métodos de guerr’ (que incluiam maior énfase em armas de fogo), e forgando os italianos a perceberem sua fraqueza em relacdo aos estados estrangeiros, especialmente a Franca ea Espanha. Da ‘mesma forma que Maquiavel (nascido em 1469), Ariosto (nascido em 1474) © Guicciardini (nascido em 1483), Castiglione pertencia ao que poderia ser chamado “geracio de 1494”, jovem o bastante para ser ‘marcada para o resto da vida pela experincia da invasdo, da impoténcia militar e da crise politica. Ele testemunhou pessoalmente a entrada dos franceses em Mildo, em 1499, depois de seu antigo senhor, Lodovico Sforza ter sido expulso, expressando sua tristeza com o fato de que uma 31 Loos, 1955; Guidi, 1983. 32 Baron, 1955, 33 Burke, 1972, p.2334. AS FORTUNAS D'O CORTESAO a cidade que recentemente havia abrigado uma corte prospera estava agora cheia de tavernas e cheirando a esterco.# “ Talver fosse 0 caso de se argumentar que apesar de sua aparente setenidade, o didlogo era uma resposta a uma época de crise politica e mudanca social, quando normas supostamente conhecidas tinlfam de set adaptadas e tornadas explicitas. Era uma tentativa de tedefinit a identidade dos nobres italianos em uma época em que seus papéis tradicionais estavam sob ameaca. Suas fungdes e valores militares eram ameagados pela importincia cada ver maior da pélvora, um tema explorado por Ariosto em Orlando Furioso, Quanto ao papel politico da nobreza, ele estava sendo solapado pela ascensio daquilo que os histori adores chamam “monarquia absoluta”. Naoé de admirarque tanto a obra de Ariosto quanto a de Castiglione apresentem um sentido de ironia. Estudada com detalhes, a superficie aparentemente regular do didlo- go revela tragos de amargura, conflito ¢, acima de tudo, ambivaléncia. Sao amargas, por exemplo, as observacées de Lodovico da Canossa sobre a ruina da [tila € o colapso (se nao a morte) da bravura italiana (1.43), ou as observades de Ottaviano Fregoso sobre os atuais principes ‘cormuptos e a falsa imagem que faziam de si mesmos, gragas is multidde de cortestios que os adulavam (4.9), ou 0 reconhecimento pelos irmaos Fregoso de que a “pobre Itilia” havia se tornado presa dos estrangeiros, “de forma tal que pouco testa a serttirado, mas eles ainda néo secansaram de tirar” (2.26, 4.33). E com relacdo a esses estrangeiros, especialmente os franceses € os espanhéis, que a ambivaléncia do didlogo e de seu autor é mais evidente. Por um lado, como bom italiano da Renascenga, Castiglione considera a Itilia o centro da cultura e as outras partes da Europa a periferia, habitadas por “bérbaros", Ele escreveu um soneto em 1503 lamentando © fato de que a Itilia estava sob 0 “jugo birbaro” da Franca ¢ da Espanha.?> Em O cortesdo, os franceses foram caractetizados corio “ignorantes em literatura” (1.43), da mesma forma que o jovem Carlos Vill, que invadiu a Itlia em 1494, foi descrito pelo historiador Guic ardini como virtualmente analfabeto. Por outro lado, apesar de sua inferioridade no dominio das letras, é reconhecida a superioridade desses barbaros sobre os italianos no que 34 Serassi, 1769-1771, vl, p.5; La Rocea, 1978, n6. 35 Guidi, 1982, p.102, 8 PETER BURKE diz respeito as armas. Eles dominam a Itilia. Alguns estrangeiros so elogiados, especialmente principes ¢ princesas, como Francisco I da Franca, Isabel de Espanha ¢ Margarida da Austria. Alguns nobres franceses so descritos como “cortese ceriménia), a0 Passo que um dos participantes descreve os espanhois como “mestres da cortesania” (maestri della cortegianta, 2.21). O proble ‘ma cultural que surge desse contraste entre estrangeiros bons ¢ maus € © da imitagio. Sao os italianos que se vester como os franceses ou os cespanhéis, ou tanto faz? O cortesao deveria aprender espanhol e francés? Fle deveria introduzir palavras francesas ou espanholas em set italiano? Com a chegada da era de Francisco I, seri que os franceses conseguitio imitar as realizagdes italianas nas artes (2.26, 2.27, 1.34, 1.42)? (espontaneamente, sem fixer Essas questies sao, é claro, feitas individualmente pelos participantes do didlogo e, como de costume, sto deixadas sem resposta. Ainda assim, Castiglione nos deixa algumas pistas sobre suas proprias posturas.Jé foi maostrado que o texto d’O cortesdo, na forma publicada em 1528, foi 0 resultado de um processo de escritae reescrita que se estendeu por quase 12 anos (1513-1524). Dois rascunhos do texto sobreviveram, e um estudo detalhado do processo de revisdo revelou diversas mudancas significativas. Por exemplo, os estudiosos mostraram Castiglione, 0 ‘autor, apagandoas referéncias a Franga e inserindo referéncias & Espanha ‘em uma época em que Castiglione, o diplomats, estava defendendo uma alianca entre 0 papa e Carlos V. O autor também concedeu um espago cada ver maior aos nobres, em derrimento das damas e dos cidadios comuns, como 0 escultor Giovan Cristoforo Romano, cuja participagio diminuiu nas sucessivas versdes do texto. Dessa forma, pode ser que as ambigiidades d’O cortesdo no sejam todas intencionais. Por exemplo, as revisées feitas nos anos 1520, quando Castiglione havia passado para uma carreira semiclerical © a necessidade de reforma moral estava sendo discutida, tornaram a obra mais séria com 2 remogdo de algumas piadas e a adigio de um quarto livro, discutindo 0 amor espiritual e o dever do cortesdo de aconselhar seu principe.” A discussdo original scbre odivorcio também fot retirada, talvez porque parecesse pouco diplomatica em uma época na qual 36 Ghinassi, 1967, 1971; Guidi, 1978, 1982; Florian, 1976, p.5067 [37 Ghinassi, 1967, 1971; Ryan, 1972; Woodhouse, 1979. AS FORTUNAS D'O CORTESAO ° Henrique VIII estava tentando abandonar Catarina de Aragio.® Da ‘mesma forma que 0s diversos amigos que retratou em O cortesao, Castiglione havia se adaptado a uma nova época. Bernardo Bibbiena, Frederico Fregoso ¢ Lodovico da Canossa tornaram-se bispos, ¢ Bibbiena e Bebo termi- rnaram seus dias como cardeais. : Uma carreira clerical era, sem. diivida, algo tradicional para os intelectuais, mas alguns desses homens estiveram envolvidos no movi mento para reformar a Igreja a partir de suas estruturas interiores, o que os historiadores hoje chamam “Contra-Reforma”. Frederico Fregoso foi © provivel autor de um comentirio sobre os “Salmos” que expressava tristeza pela confianga depositada nos principes ¢ em seus fevores.° Lodovico da Canossa era amigo de Gianmatreo Giberti, o bispo refor- mador de Verona. Bembo era amigo de outros partidarios da reforma, como Jacopo Sadoleto, outro humanista que se tomnou bispo, edo cardeal inglés Reginald Pole. Castiglione também era amigo de Sadoleto — na verdade, ele havia apresentado a este uma versfo proviséria dO cortesdo em 1518. Em outras palavras, o homem de meiaidade que fora eleito bispo de Avila nao era a mesma pessoa que o jovem que havia servido ao duque de Urbino, e O cortesdo que lemos hoje é diferente, em diversos aspectos importantes, do livro que Castiglione escreveu originalmente. A forma de didlogo e o longo processo de revisio num contexto em constante mudanga produziu entre eles um texto que é ambivalente e ambiguo. Como no caso da Mona Lisa de Leonardo, poderse‘a argumentar que sua polissemia, sua capacidade de prestarse a diferentes interpretacoes, € uma razio essencial para a popularidade do didlogo no decorrer dos séculos.4? Em outros termos, estou inclinado a concordar com aqueles leitores modernos que consideram O cortesto aquilo que, as vezes, é chamado obra “aber”, ou seja, aquela que no sé ambigua, mas 0 é proposita damente, & maneira de uma pesa."® “Sé posso louvar o tipo de cortesio 38 Guidi, 1982, p.105, 111 39 Clough, 1978. 40 Prosper, 1980, p.79-80. 41 La Rocea, 1978, p.383. 42. Boas, 1940. 43 Eco, 1981 50 PETER BURKE que eu mesmo mais aprecio", explicou o conde Lodovico da Canosa no inicio do didlogo. “Nao vou afirmar que o meu é melhor do que o seu” (1.13). Nas palavras de um comentaristaatual, o texto é “um drama de diivida’. As observacées do conde Lodevico podem ser interpretadas ‘nao s6 como um exemplo das boas maneiras cortesis, mas como uma indicagdo para o leitor sobre como interpretar o restante do texto. A forma do dislogo foi explorada pelo autor de maneira tal a deixar as questdes fundamentais em suspense, em vez de articular um consenso.* Foi por esse motivo que dediquei mais espaco a descricao dos diferentes participantes e a0 vocabuldrio que empregaram, do que a um tesumo dos argumentos que apresentaram. Um potente argumento a favor da interpretacio “aberta” chama a atengdo para.s diversas “auto-subversées" do texto.¥# Na verdade, é dificil pensar em qualquer objeco maior apresentada por criticos posteriores que nao seja prevista, em algum momento, por algum dos participantes do didlogo — a idéia de que a sprexeatura, longe de evitar d afetacdo, & simplesmente uma forma de aferacdo, por exemplo (1.27), ou 2 discussto sobre dissimulagéo, que € recomendada por Frederico Fregoso mas condenada por Gaspar Pallavicino (2.40). Dessa forma, 0 dislogo era ‘uma resposta as criticas passadas e futuras as cortes.47 ‘Ainda assim, muitos leitores do século XVI parecem ter visto uma rmensagem clara ¢ especifica no livro, como rentarao mostrar os préximos capitulos. 44 Cox, 1992, caps. 45 Compare com Parisi, 1984, p.862. 46 Greene, 1983, p.61;Rebhorn, 1978, .186. Cf. Guid, 1982, p.99; Quondam, 1980, pT. 47 Kiesel, 1979, p.7788. CAPITULO 3 O CORTESAO NA ITALIA ‘A recepgéo dO conesdio comegou até mesino antes de o texto ser publicado. A partir de 1518, 0 texto, ou algumas de suas partes, passou a circular entre os amigos e conhecidos de Castiglione. Em 1519, por exemplo, um poeta milanés chamado Girolamo Cittadini escreveu a Mario Equicola, secretirio de Isabella d’Este, dizendo que, se houvesse uma oportunidade de ver um exemplar do didlogo, ele “ficatia muito satisfeito por lélo". Um ano mais tarde, um nobre francés em Milao, Odet.de Foix, abordou o marqués de Mantua com um pedido sem Thante. Isso sugere que O conesdo jé era bem conhecido na Lombardia nessa época, pelo menos por fama. De fato, o manuscrito de Castiglione estava circulando ainda mais, desde que’ Vittoria Colonna, que o leu duas vezes em 1524, mandou transcrever o texto sem o conhecimento dele. O aborrecimento do autor com essa traigdo manifestase no preficio do préprio livro e também em sua carta educadamente sarcdstica & marquesa, que fala em “furto” e nos “fragments do pobre Cortesdo” sendo vistos nas maos de varias pessoas ‘em Népoles. Ao contririo de nove outras damas da nobreza que eram conhecidas do autor, Vittoria nfo recebeu um exemplar autografado da. ‘versio impressa? 1 Dani, 1989, p:293, 301; Kolsky, 1991, p.184n. 2 Serassi, 1769-1771, v1, p72; Colonna, 1889, n.19, 34. 3 PETER BURKE Pelos padroes da época, escrever um livro e publicilo era uma atividade um tanto ambigua para um corteséo. A publicacio era associada 20 lucro e também & fama (quando publicou seu didlogo, Castiglione fez ‘oque péde para vender 400 exemplares por conta propria e com alguma vvantager)? Isso tornava a associagZo com as atividades de imprensa algo inadequado para os nobres, pelo menos 20s olhos de alguns contempo- raneos do autor. No século anterior, Federico de Urbino, 0 pai de Guidobaldo e um grande colecionador de manuseritos, teria dito que desprezava livros impressos e que se recusava a télos em sua biblioteca. Esses preconceitos no eram universais. Como vimos, Ariosto publicou seu poema Orlando Furioso em 1516, e Bembo publicou seus didlogos em 1505 e 1525. Ainda assim, publicar um livro nao se encaixava exatamente na imagem do amador aristocrata, o diletante retratado nas paginas d’O cortesdo. O corteséo editado Depois de omar sua decisfo, Castiglione demonstrou considersvel interesse no processo de publicagio. Da mesma forma que seu amigo Bembo, Castiglione dirigiuse a firma de Aldo Manuzio em Veneza, que ainda estava prosperando, apesar da morte de seu fundador em 1515. Essa firma de tipégrafos, ou editores — a distingao entre os dois papéis estava apenas comecando a se desenvolver nessa época — era a mais famosa em Venesa, e Veneza era a cidade mais bem conhecida por seus livros impressos na Europa da época. Pelo fato de estar residindo na Espanha, na corte de Carlos V, Castiglione teve que confiar nos amigos para ver seu livro passar pelas prensas, em especial Bembo (apesar de seus desacordos a respeito da melhor forma da lingua italiana escrita), ¢ Giankatista Ramusio, um empregado civil veneziano mais conhecido por sua edico de uma antologia de relatos de viagens ao redor do mundo.t Em abril de 1528, O cortesdo foi publicado como um belo volume in-félio em tipo romano, em uma edicdo de 1.030 exemplares, trinta deles impressos em papel especial para se tornarem presentes mais 3 Cartwright, 1908, ll, p3735. 4 lider, p.3768. AS FORTUNAS DO CORTESAO 3 impressivos (na verdade, 0 autor planejara dar ndo menos que 130 cexemplares a amigos e parentes). A procura pelo O cortesdo deve ter sido considerivel, pois foi rapidamente reimpresso, a segunda vez sem o local de publicacéo, o que sugere que alguém estava ignorando o privilégio de Aldo (uma lista completa de edigdes encontra-se no Apéndice 1). Cerca de 62 edicoes do texto foram publicadas na Italia nos séculos XVI e XVII; ts ou quatro nas duas primeiras décadas do século XVI, chegando a 13 na década seguinte, mais 13 nos anos 40 desse século, dez nos anos 50 e nove nos anos 60, caindo para quatro na década seguinte, mais quatro durante os anos 80, duas durante os anos 90 e trés na primeira década do século XVII (as tltimas antes de 1733) Dessas 62 edigdes italianas, pelo menos 48 foram impressas em ‘Veneza. Cinco edigdes vieram da prensa dos editores originais, a firma de Aldo, e nada menos do que 16, de 1541 a 1574, vieram da imprensa rival de Giolito, que também imprimiu muitas edigées de Petrarca Ariosto. As 27 restantes foram divididas entre 14 firmas venesianas — em ordem cronolégica, Curtio, Torresano, Robani, Tortis, Giglio, Fagiani, Cavalcalovo, Domenico, Comin, Farri, Basa, Mimima, Ugolino ¢ Alberti. Nessas edigdes sucessivas, a aparéncia do livro mudou gradualmente. A versio infélio de 1528, de aparéncia admirivel mas de dificil manu- seio,*foi substituida por edicdes in-oitavo menores e mais manusedveis, ou até mesmo diminutos duodécimos como as edigdes de Giolito de 1549 e 1551, verdadeiros “livros de bolso”. A numeracio de paginas foi introduzida na edicdo florentina de 1529. A partir de 1533, muitas cedigdes foram impressas no novo e elegante tipo itilico. ‘A mancira pela qual olivr era apresentado em suas paginas de rosto sugere a concorréncia entre as casas editoras para produzir a verso mais. atraente desse bestseller. Duas edigdes venezianas de 1538 afitmavam ser “recém-revisadas”. A edigdo de Giolito de 1546 superava as anteriores a0 se declarar “revisada com extrema diligéncia", A firma de Aldo reagiu, em 1547, afirmando que sua edigio fora “cotejada mais uma vez com 0 manuscrto original, escrito com a caligrafia do proprio autor”, Giolito ripostou em 1552 com uma edicio que afirmava ter sido “corrigida segundo 0 exemplar do préprio autor’, além de ter sido revisada por Ludovico Dolce, um revisor profissional a servigo da firma (como ocorria com freqdéncia nesse periodo, a reviséo inclufa aquilo que o revisor 54 PETER BURKE considerasse aperfeigoamentos lingUisticos).* Outros livros publicados por Giolito chamavam a atencio para O cortesdo, em especial as obras de Dolce, Domenichi e Doni, que apareceram entre 1545 e 1550.6 (llivro também passou a ter um “paratexto” cada vez mais elaborado, para usar um termo recémcunhado mas conveniente para descrever ‘material como preficios e notas, quer estes precedessem ou sucedessem fo texto em si.? A edicio de 1528 jé havia inclutdo as cartas prefaciais a0 bispo de Viseu ea Alfonso Ariosto, que nao eram meramente decorativas — como demonstram as meticulosas revisdes do autor —, mas parte de ‘uma cuidadosa estratégia para a apresentagdo do texto a0 publico.® A edicio de Giolito de 1541 acrescentava uma bem detalhada “tabela” (‘avola) “de todos os assuntos contidos no presente volume” na ordem de sua aparigio no.texto, desde “as desculpas do autor” até “se as mulheres séo capazes de amor divino".? A edigio de Aldine de 1547 incluia um indice “de todos os assuntos dignos de mencl0”, dispostos em ordem alfsbética, de “Acaso” até “Zéuxis”, além de um resumo conclusivo do livro sob a forma de uma breve lista das qualidades do cortesio, que era anunciado na pagina de rosto. A edigdo de Giolito de 1556 ultrapassava a de Aldo ao se vangloriar por ser“anotada nas margens” (nel margine apostillato), umn procedimento cada ver mais comum nessa época. Essa anotacées geralmente eram resumos da secdo relevante, mas as vezes assumiam a forma de notas editotiais revelando, por exemplo, que as observacées iniciais de Casti- glione a Alfonso Ariosto eram uma imitagio do prélogo ao Orator de Cicero, As edigfes de 1559 ¢ 1573 tinham como preficio a vida do autor por Giovio, ea edigio de 1584 de Basa substituiv-o por uma nova biografia de Castiglione, de autoria de Bernardo Marliani. A edicio de Giolito de 1560 apareceu com um novo indice (de “A chi nasce aggratiato" a “Usilica del riso") e também “com o acréscimo de sumarios (argomenti) para cada livro”, uma inovacgo que outros editores venezianos rapidamente copia- ram. A edigéo de 1574 publicada em Veneza por Farri incluia um conjunto paratextual especialmente pormenorizado. Em suma, no decor 5 Cian, 1887, p.708; ef Richardson, 1994. 6 Dalee, 1545; Domenichi, 1549; Dont, 1550 7 Genet, 1981, 1987. 8 Guidi, 1989 9 Ossola, 1987, p-44s. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 55 rer de sua concorréncia pelos leitores, as casas esitoras do século XVI ¢ seus editores se combinaram para transformar O cartesdo. Os izados com 0 layout dos livros do século XVI dificilmente ficarSo surpresos com esse telato sobre as edigoes de O cortesdo. Preficios e dedicatdrias pormenorizados, da mesma forma qile res fami versos lisonjeiros esctitos pelos amigos do autor, eram convengdes comuns na época. Com freqiiéncia, os editores dividiam os textos em capitulos, ou acrescentavam notas marginais, ou varios tipos de indice. Por exemplo, a obra Galateo, de Giovanni della Casa, ndo foi dividida em capitulos em sua primeira edigéo. As divisdes foram feitas por editores posteriores a fim de tornar mais ficil a consulta de seus usuétios. Por outro lado, o texto do Orlando Furioso de Ariosto apresentava todo um conjunto de “exposigées", “anotacSes", “declaragées” © “notas” de autoria de alguns de seus editores, inclusive Ludovico Dolce, que tratou O cortesdo de maneira semelhante.!0 Dolee apresenta um bom exemplo de uma nova profissio que se toma possivel com a invengio da prensa, ou seja, a do “poligrafo”, 0 hhomem de letras que ganhava a vida tabalhando para um impressor, editando, traduzindo e plagiando as obras de outros, além de produzir algumas de sua autoria. Entre as 358 producées de Dolee, havia diversos romances de cavalatia, o que fornece mais um exemplo da sintese entre cavalaria ¢ cortesia no século XVI.M Se existe alguma diferenga entre 0 tratamento que Dolce deu 2 O coriesdo e @ outros livros que editou, é apenas uma questio de intensidade. Esses detalhes bibliogrificos podem parecer ser apenas do interesse de antiquétios, mas eles possuem uma relevancia muito maior. Os ctiticos costumavam tracar uma distin¢ao muito nitida entre © contetido a forma de um livro, mas alguns deles hoje argumentam que a forma faz parte do contetido, tendo em vista a aparéncia fisica do livro ajuda a moldar as expectativas e percepcdes de seus leitores.!? Nesse caso, © paratexto ajudou a transformar O cortesdo de um didlogo aberto, provavelmente criado para ser lido em voz alta, em um tratado fechado, um manual de instrugdes, ou, poderseia dizer, um “livro de 10 Quondamn, 1983; Hempfer, 1987. 11 Guidi, 1983; Ossola, 1987, p35 Baregg, 1988, p.58s. 12 MeKene, 1986, 56 PETER BURKE receitas’.0 E provavel que a tradigfo do livro sobre cortesia, discutida nro capitulo 1, também moldasse as expectativas dos leitores. Poderseia dizer que — como ocorreu com outras obras do periodo, em especial a Utopia de More — o autor considerava seu livro exemplo de um género, ‘20 mesmo tempo em que os editores e muitos leitores o classificavam. em outro. Apesar da preocupacio de Castiglione para controlar a producgo da primeita edigfo, o livro foi tirado de suas méos desse momento em diante,ilustrando, assim, de forma dramética, 0 processo inevitavel de desligamento ou distanciamento de um texto impresso em relagdo a seu contexto ou meio original! O comprador de uma das edigdes do final do século XVI teria pouca necessidade de ler o livro para se instruir. Consultando um dos indices, ele ou ela teria~encontrado nada menos do que 46 referéncias a “corteséo". Uma outra alternativa seria a do cliente iniciar o livro pelo fim e encontrar lé (a partir de 1547) um resumo das qualidades de cortesio e dama da corte perfsitos. Uma terceira possibilidade teria sido folhear o volume, tendo como guia as notas marginais. Pouco importava qual era 0 procedimento adotado pelo leitor, uma ‘vez que as notas marginais, © indice, 0 sumério e o resumo final repetiam se uns aos outros em ver do texto do autor. Esses acréscimos dos editores geralmente assumiam a forma de regras: “O cortesio deve abominar a afetacdo", “O cortesdo deve saber falar bem”, "O cortesio deve saber desenhar”, “O cortesio deve evitar o autoelogic" assim por diante. Além disso, no indice thtitulgdo “como, encontramos “como 0 cortesdo tem que se governar na maneira de falar e de escrever", “como cle deve se vest”, “como ele deve escolher amigos” etc. O tom predominante do paratexto era o imperativo do manual de instrucdes.!5 O livro também era apresentado como um tesouro de perspicacia e ditos espirituosos. O indice de Dolce fazia referéncia a 51 conselhos, vinte réplicas, 11 observagdes e sete piadas. Em suma, 0 didlogo de Castiglione foi aplainado e descontextualiza- do por seus editores. Uma observacio especifica,feita por uma determi nada personagem em um determinado ponto da discussio, & qual outra 13 CE Quéndam, 1980, p.179. 14 Ricoeur, 1981. 15 Ossola, 1980, p.32. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 3 personagem retruca, era com freqiléncia transformada em uma regra geral. No texto original, a existéncia dessas méximas para comportamen- to do cortesio-eram deimadas em suspense. Frederico Fregoso de fato declarou seu desejo de que “nosso cortesio” fizesse uso de “algumas regras universais" (alcune regole wniversali), mas foi imediatamente inter. rompido por um dos falantes que desprezou essas regras, chamando-as de intiteis, uma ver que as circunstincias diferem (2.78). Os compilado. res dos sumérios, das notas marginais e assim por diante guilhosinaram esses debates e impuseram suas préprias idéias aos leitores. Um estudo recente do didlogo renascentista argumentou que ele se tomou cada ver mais fechado no século XVI, atribuindo a mudanca, por um lado, 20 humor da ContraReforma, e, por outro, ao efeito fixador da imprensa.*6 O argumento é plausivel e sugere que nao devemos depositar uma carga excessivamente pesada de responsabilidade sobre Dolce e seus colegas editores. Eles estavam reagindo a movimentos maiores e também reforcando-os. O cortesao como jogo de salio A idéia de um manual ou livro de receitas, por mais importante que seja, pode nfo ser suficiente como descricéo das pistas que 0 texto impresso dava a seus leitores. Uma segunda idéia importante é a do jogo. Alguns criticos modernos escreveram perspicazmente sobre O cortesda como um jogo.'? © problema que eu gostaria de abordar agora é se 0 texto foi ou nio recebido ou percebido dessa forma no proprio século XVI. ‘Uma das muitas conseqiiéncias da invencio da imprensa, e que nao tem recebido muita atencio, € 0 de seu efeito na organizagao do lazer, «em especial o lugar do livro na ascenso daquilo que veio a ser conhecido como “jogos de salio”. Os livros impressos ajudaram a codificar e @ padronizar a pritica hidica, e foram inventados novos jogos nos quais 6s livros eram fundamentais. Esses jogos baseavam-se em passatempos populares para as noites de inverno, em tradigées populares de amor 16 Cox, 1992, cap. 69. 17 Greene, 1983. 53 PETER BURKE cortesio e em aspectos da cultura da Renascenca. No Livro de adivinhacées (1476) de Lorenzo Spirto, no Triunfo da fortuna (1527) de Sigismondo Fanti ou em Destinos engenhosos (1540) de Francesco Marcolini, por exemplo, vemos 0 livro impresso empregado como um instrumento de adivinhacdo, aparentemente um passatempo. Outros guias para jogos baseavam-se em debates intelectuais. © Livro de cem jogos, compilado por Innocentio Ringhieti e publicado em 1551, ‘comecava com “o jogo do cavaleiro", no qual os participantes tinham ‘que discutir se ¢ melhor “amar os homens de letras ou os homens de armas".!8 O “Diélogo sobre jogos” (1572), de autoria de Scipione Bargagli, citava Castiglione e descrevia jogos dos quais participavam ho- ‘mens ¢ mulheres alternadamente, como n’O cortesdo, discutindo quais personagens em Orlando Furioso comportavamse melhor, ou compondo vvers0s e replicas perspicazes.!? Outro didlogo de Bargagli, Os ivertimentos (1587), incluia o “Jogo de perguntas de amor”, no qual os participantes debatem sobre a superioridade das armas ou das letras, da arte ou da natureza, da mente ou do corpo, de uma forma que lembra 0s cortesios de Castiglione. Nesse sentido, o autor nfo se esqueceu de reconhecer ‘aquilo que chama “o exemplo mais valioso” da “elegante e magnanima corte de Urbino”. ‘Uma outra instituicéo que combinava uma postura alegre com ‘assuntos sérios, e que se multiplicou na Itilia do século XVI, especial- ‘mente a partir da década de 40 desse século, foi a “Academia”; em outras palavras, um grupo de discusséo com participantes fixos ¢ reuni8es regulares2! Algumas dessas actdemias eram abertas as damas, ¢ alguns dos assuntos que discutiam, como o neoplatonismo ou a comparacio entre os miéritos da pintura e da escultura, ecoam as conversas n'O cortesdo. Scipione Bargagli chegou a descrever a corte de Urbino como. uma academia.” O escritor veneziano Francesco Sansovino também chamava a corte de Urbino de “a famosa academia" Se ele era capaz de ver O cortesdo como algo parecido com as minutas das reunides de 18 Ringhieri, 1551, m1. 19 Bargagl, 1572, p345, 656, 128, 167. 20 Idem, 1587, p-118. 21 Quondam, 1982. 22 Thidem, 1982, p.832. 23 Sansovino, 1582, versos 70 e 169. AS FORTUNAS D’O CORTESAO eo uma academia, é plausivel sugerir que os académicos pudessem as vezes ter seguido 0 modelo do didlogo. Apesar das intervengées editoriais que incentivavam os eitores a ver © dilogo como um manual, a existéncia dessa tradigdo lidica'pode ter possibilitado a alguns deles tratarem O coresdo de forma mais descon- traida, Um certo Mario Galeota, que declarou que preferiia ter escrito Occortesdo a Decameron, parece ter assumido essa atitude.* As reacées a O cortesdo O niimero de edigves italianas d’O cortesdo no século XVI, por volta de 58 delas, sugere uma recepeZo bastante calorosa ao livro de Castiglione. Um dos motivos da recepcio positiva é certamente o fato de o autor ter incluido alguma coisa para todos entre as classes altas italianas. Os participants vinham de diferentes partes da Itilia. Homens e mulheres, soldados e estudiosos, o jé estabelecido e o que ascendia para posicoes superiores, todos podiam encontrar argumentos que combinassem consigo ¢ personagens com as quais se identificassem. Embora o didlogo descrevesse © mundo da corte, no era necessariamente antipatico aos cidadaos das republicas. Afinal, tés dos participantes (Frederico © Otaviano Fregoso e Gaspare Pallavicino) vinham da Repablica de Geniiva. Dessa forma, nao surpreende descobrir que duas das edigoes venezianas foram dedicadas a patricios da cidade, Alvigi Giorgio (em 1538) e Giorgio Gradenigo (em 1565), 0 primeiro descrito como um jovem nobre com a maioria dos “ornamentos” do cortesao ideal. Neste ponto talvez seja util destacar alguns rostos da multidao de leitores, com base na lista do Apéndice 2. Apesar dos problemas cutidos no capitulo 1, pode valer a pena examinar esses poucos italianos dos séculos XVI e XVII — 89 no total — sobre quem sabe-se terem possuido O cortesdo, ou que fizeram alguma referéncia a0 texto ou 0 seu autor. ‘Ocorre que esse grupo era uma grande mistura social. Nao surpresa descobrir que entre eles hi homens da propria classe de Castiglione. Entre os homens de letras italianos de origem nobre, que citaram 0 24 Cian, 1887, p.663n. ‘o PETER BURKE didlogo com aprovagio, estio Ludovico Ariosto, Annibale Romei € Torquato Tasso, todos de Ferrara; Giangiorgio Trissino, de Vicenza; ‘Alessandro Piccolomini, de Siena; ¢ Stefano Guazzo, de Casale em Monferrato, autor de um conhecido dilogo sobre conversacio, que remete leitor em busca de uma discussio sobre as cortes "a polida pena do homem que criou 0 cortesio perfeito” 25 O ditlogo de Castiglione também atrafaleitores que ndo pertenciam a nobreza. Ele foi elogiado, por exemplo, pelo crtico florentino Benedetto Varchie pelo escritor veneziano Francesco Sansovino (0 filho ilegitimo do escultorarquiteto Jacopo Sansovino), ¢ o texto foi usado como fonte pelo médicorilésofo Agostino Nifo em seu proprio livro sobre o cortesso. Entre os artists que estavam familiarizados com o texto, estavam Rosso Fiorentino, que jé possuia um exemplar em 1531, e Giorgio Vasari. Perto do final do século, o livro também podia ser encontrado nas bibliotecas de advogados como o siciliano Argisto Giuffredi, e comerciantes como Giovanni Zanca, de Veneza, que possuia um “Cortegiano in ottavo” em 1582. Entre o clero, além dos censores, que serio discutidos mais adiante (p.11522), 0s leitores de Castiglione inclufam o monge beneditino Vincenzio Borghini, que também era um patricio florentino e um dos principais eruditos de seu tempo; Giovanni Andrea Gilio da Fabriano, ele proprio o autor de um tratado sobre cortestos, que elogiava o estilo do didlogo; e o bispo humanista Paolo Giovio, que descreveu 0 livro de ‘maneira mais ambivalente como uma antologia de idéias clissicas, escrito em vernéculo para agradar as mulheres © tratado de Ludovico Dolce sobre a dama também recomendava as leitoras que consultassem O cortesdo. Como vimos, Vittoria Collonna Jeu-o com entusiasmo. O mesmo ocorreu, com toda probabilidade, com Isabella d'Este. De qualquer forma, o autor presenteou Isabella com um exemplar, e também outras oito damas: Aloysia Gonzaga Castiglione; Margherita Trivulsio, condessa de Somaglia; Eleonora Gonzaga; Emilia Pia; Ippolita Fioramonda, marquesa de Scaldasole; Margherita Cantel- ma; Margherita di San Severino; e Veronica Gambara.® Dencre essas dex damas, era de esperar a escolha da mae do autor, de Emilia Pia e de Isabella d’ Este (que pode ter ajudado a reconciliar seu 25 Guano, 1574, £252b. 26 Carowright, 1908, vil, p37883. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 6 marido com Castiglione). Bleonora Gonzaga ema a nova duquesa de Urbino. Veronica Gambara era uma poetisa bem conhecida e amiga de Bembo. Margherita di San Severino era irmé de Emilia Pia. Margherita Trivultio vinha da nobreza lombarda ¢ em sua familia havia outras damas letradas. Ippolita Fioramonda foi citada por Giovio por éua clegancia e pelo arrojo de sua impresa (um enigmatico recurso alegérico).2” Quanto a Margherita Cantelma, nascida Margherita Maloselli, era filha de um rico notitio de Ferrara e esposa de um nobre de Mantua, Sigismondo Cantelmo, Ela era amiga de Isabella d’Este, e uma defesa das mulheres em manuscrito de autoria de um certo Agostino Strozz foi dedicada a ela.” Mais tarde, nesse século, descobrimos que Irene di Spilimbergo, uma nobre de Friuli, possula um exemplar d’O cortesdo'como um de seus livros de cabeceira, junto a volumes de Petrarca e Bembo.” Ela provavelmente do era a tnica a ter esse tipo de gosto. Embora seja impossivel provar essa afirmacdo, acredito que seja muito provavel que O cortesdo tenha sido bastante lido pelas damas na Itilia, especialmente ‘em meados do século XVI. E, sem duivida, imposstvel usar as evidéncias costumeiras dos inventaitios das bibliotecas para apoiar essa afirmago porque estes geralmente estavam em nome dos maridos, que também escreviam seus nomes nos livros. Portanto, para justficar a afirmagio, send necessério digressionar um pouco ¢ considerar a questio da “dama letrada”, fato ou ficedo, concen- trandonos no conhecimento das “letras” recomendado donna di palazzo no livro Il, em outras palavras, nas habilidades literirias no verndculo, ¢ néo em latim e grego. Qual era 0 grau de difisio desse conhecimento das letras? Duas antologias italianas de meados do século XVI foram dedicadas veiramente as obras literirias de mulheres. A primeira chamavase Letras de muttas mulheres dignas (1548), editada por Ortensio Lando, incluindo a obra de 181 damas — embora seja razodvel acrescentar que dovidas sobre a autenticidade de alguns dos textos foram levantadas. A segunda era Versos wirios de algumas mulheres nobres talentosas 21 Gievio, 1555, p.16. 28 DBL, sv. “Cantelmo, Sigismondo"; Fahy, 1956, p.36-44 29 Atanagi, 1561, Preficoy ef Schute, 1991 @ PETER BURKE (1559), abrangendo 53 poetisas, editada por um homem de letras profissional, Ludovico Domenichi.*9 A essa evidéncia podemos actescen- tar as escritoras do século XVI mencionadas na obra Teatro das damas letradas (1620), de Francesco della Chiesa, ou representadas em uma antologia de poetisas do século XVIIL, mais de quattocentas damas juntas.) Essas damas as vezes eram cortesis, as vezes, cidadas comuns, even- ‘ualmente judias e com maior freqiéncia freiras, mas a maioria delas era constituida por mulheres leigas da nobreza. Seus nomes pareciam uma lista de chamada das familias nobres da época (is vezes dinastias inteiras pela linhagem materna). Os nomes incluiam os de diversas familias associadas com o livro de Castiglione. Batista de Montefeltra, por exemplo, filha de Frederico, uma freira que escrevia poemas religiosos; Egeria da Canossa; e Beatriz Pia. De maneira bastante irdnica, tendo em vista a célebre misoginia de Gasparo, os Pallavicini contributram com quatro damas para a lista. Os Gonzaga, no entanto, contribuiram com nada menos que dez. Hé também uma Paula Castiglione de Mildo, e ts Torellis, a familia da esposa de Castiglione, ela propria uma possivel merecedora de um lugar nessa lista. Outro aspecto diz respeito aos impressores. A antologia de textos escritos por mulheres foi publicada por Giolito de Veneza, a firma que publicou a maioria das edicoes 4’O cortesdo, Ela termina com poemas de Dolce e outros em honra das “estudadas e ilustres damas” e suas “cartas eruditas”. Giolito também Bublicpu os poemas de Tullia d’Aragona (1549) e de Vittoria Colonna (1552), e 0 poemas e um discurso sobre ‘Ariosto de autoria de Laura Terracina. A mesma casa editora foi responsdvel por uma série de antologias de poesia que incluiam conti- Duigdes de damas, algumas delas editadas pelo incansével Dolee. Giolito também publicou Edueacdo das damas (1545), de Dolce, que recomenda (O cortesto, e Nobreza das damas (1549), de Domenichi, com sua lista de mulheres ilustres sua referéncia a Castiglione como um predecessor. ‘Ouro escritor a servico de Giolito, Giuseppe Betussi, traduziu textos de Boccaccio sobre mulheres famosas e escreveu um dislogo que apresenta poetisa veneziana Francesca Baffo. 30 Dionisoti, 1965, p.2379; Pius, 1982. ‘31 Chiesa, 1620; Bergali, 1726. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 6 Esses detalhes sugerem duas conclusoes. Em primeiro lugar, parece razodvel argumentar que ascensio da dama letrada na Itilia, entee 1540 ¢ 1560, mostra a infiuéncia do didlogo de Castiglione, que muito bem pode ter dado coragem as mulheres pata escrever ¢ publicar. Contras. tando com a tradicdo, O corteo apresenta damas em papéis outtos que co de mie, filha ou espose. Em segundo lugar, parece ter havido uma campanha, centrada em Veneza, nas décadas de 40 e 50 do século XVI, visando atrair atencdo para os escritos de mulheres. De maneira mais incrédula, poderse-ia descrever a campanka como uma tentativade atrair ‘um mercado feminino que O cortesdo havia ajudado a legitimar e que, ppor sua vez, incentivava a reimpressio do livro. Entretanto, para que 0 mercado existisse ¢ os livros fossem vendidos, como evidentemente foram, deve ter havido um niimero razodvel de damas cujo gosto correspondia as expectativas do impressor. O ue elas encontravam no didlogo que hes agradasse? Se o texto cera visto como uma espécie de livro de receitas, quais eram as favoritas dos leitores? Pode-se comecar por uma anilise mais detalhada do sumsrio dde uma pagina no final de diversas edicbes a partir de 1547. Ele lista 22 ‘qualidades para o cortesio e 13 paraa dama. No caso dadama, “nobreza” e“bondade” encabecam a lista, seguidos por “boa administracio” (bon governo), presumivelmente da familia e do lar; "prudéncia”, “honra” ¢ “afabilidade”. Em seguida, vm “vivacidade do espivito", “forca da alma”, “peleza e elegincia do corpo”, “literatura”, “musica”, “pintura’ e, por fim, “dana”. As qualidades do cortesio comecam com “nobreza” e “perspicicia” (ingegno) — dessa vez nao ha mencio & belesa. Em seguida, vém “beleza « graca’’e “habilidade com as armas"; “entusiasmo”, “lealdade”, “pru- déncia”, “magnanimidade”, “temperanca” e “forca eugilidade do corpo” Na seqiiéncia da lista estio conhecimento sobre duelo, danga, luta romana, corrida e salto. Depois dessas habilidades fisicas, finalmente chegamos as “letras”, “miisica”, “pintura” e “conhecimento de linguas estrangeiras”. A lista termina com “caca” e “qualquer exercicio digno de rota”. Pode-se resumir 0 sumétio como uma lista de cinco qualidades morais, cinco qualidades intelectuais e oito qualidadesfisicas. Os letores poderiam se perguntar se essa énfase no aspecto fisico descreve (ou no) de maneira precisa suas lembrarigas sobre 0 texto. Uma outra forma de descobrir o que os leitores contemporineos viam n'O cortesdo é recolher as breves descrigdes do didlogo feitas por cles ¢ tentar elaborar um mosaico com esses fragmentos. Por exemplo, ot PETER BURKE uma leitora, Vittoria Colonna, enfatizou as “maximas profundas” de Castiglione. Isso pode néo ser o que um leitor moderno percebe em pprimeiro lugar n’O cortesdo, mas o gosto pelos aforismos parece ter sido bastante comum. Algumas edicdes da Histéria da Talia, de Guicciardini, por exemplo, incluiam uma "gnomologia”, ou indice de aforismos. Colonna também estava Longe de ser a Unica a fazer menglo especial s piadas de Castiglione (ver adiante, p.92, 172-3). Outros leitoresitalianos parecem ter se voltado para o texto em busca de conselhos praticos, em ver de Iélo como uma obra literéria. © advogado Argisto Giuffredi aconselhou seus filhos a observar os preceitos tanto d’O cortesdo quanto do Galateo, como se 0s dois livros pertencessem ao mesmo género.22 Tmitagdes do dislogo ou de passagens tiradas dele sio um outro sinal de entusiasmo por Castiglione. Alessandro Piccolomini esereveu um dialogo sobre a educacio das damas, as vezes chamado La Rafaella (1539), em homenagem a uma das partcipantes, e, em seguida, um tratado sobre a educacéo dos homens da nobreza.33 Os livros para damas publicados por Dolce e Domenichi, mencionado alguns pardgrafos antes, também deviam a O cortesdo alguns detalhes e a inspiracio geral. Para um exemplo daquilo que atraiu os escritoresitalianos posteriors,* e de que forma eles recontextualizaram O corteséo 20 embutir passagens dele em discussoes acerca de seus proprios interesses cotidianos, pode. mos nos deter fos conceitos aparentados de gravia © sprezeatura. O filésofo Agostino Nifo, por exemplo, dedicou um capitulo de seu tratado sobre 0 cortesio “graca”, e definiu-a em termos de “negligéncia e desdém” (neglectus atque contemprus).# Stefano Guazzo e Torquato Tasso seguiram Castiglione ainda mais em seus didlogos, o primeiro escrevendo, negligenza 0 sprezamento e 6 segundo, isprezgatura cortegiana.>5 Embora evitasse a palavra, © professor de equitagio A. Massario Malatesta apresentou uma idéia semelhante em seu Compendium (1600), a0 dizer 208 aprendizes que tentassem dar a impressio de uma “graca natural”, “gem faina ou esforco” (senza fatica e sforze).® ‘Onovo termo de Castiglione tem ressondncia ainda maior nos textos sobre miisica. Para os compositores em torno do ano 1600, parece ter 32 Giufredi, 1896, p83. 3 Piccolomini, 1539; ef. Pigjus, 1980. 34 Uhlig, 1975, p.29-33; Hin, 1992, p.228. 35 Guazzo, 1574, p.83b; Tasso, 1958, p.3113, 36 Apud. Hale, 1976, p.245, n.62. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 55 se tornado um termo téenico, empregado para descrever e também para legitimar o novo estilo de cantar, no qual a monodia era substitulda pela polifonia e 2 inteligiblidade das palavras era considerada mais importante do que a demonstracio de ornamentos virtuosistcos. Giulio’ Caccini, por exemplo, um dos pioneiros da épera, descreveu seu método de compor como sna certa sprezzatura, que ele associava & nobreza ea graca, 20 passo que seu colega Marco da Gagliano expressou idéia semelhante a respeito de permitir que os cantores demonstrassem sprezzatura.?7 As palavras spreczatura e grazia também seriam vistas em textos sobre arte. Ludovico Dolce, que, entre todas as pessoas, era de esperar conhecesse bem o texto de Castiglione, introdusiu o primeiro termo na teoria da arte em seu didlogo L’Aretino (1557), no qual Fabio fala sobre ‘und certa convenevole sprezzatura em uma passagem que recomendava aos pintores ndo dar muito polimento (politezza) as suas figuras. Em sua obra sobre as vidas dos artistas italianos, Giorgio Vasari usou com freqiéncia palavra grazia. Na verdade, foi dito queeele “apenas aplicou asartes a concepcio de graca... desenvolvida pelos escritores que trataram de boas maneiras”.» E dificil imaginar que Vasari nao estivesse pensando em Castiglione quando elogiou Michelangelo por uma graca definida como a habilidade de superar as dificuldades com tanta facilidade que suas obras “pareciam ser feitas sem esforco” (non paion fatte con fattica) #9 ‘Vasari, ele proprio um cortesio bem-sucedido, também elogiou alguns artistas por suas manciras graciosas, em especial Rafael, amigo de Castiglione, um modelo de “graciosa afabilidade”; Rosso, destacado por sua “presenca” ¢ seus interesses intelectuais, e também por sua “facilida- de" na pintura; e Giulio Romano, o herdeito de Rafael em suas boas maneiras e em sua arte. Jé dissemos que Rosso possuia um exemplar 'O cortesdo, Quanto a Giulio, ele era um conhecido de Castiglione, ¢ jé se sugeriu que seu interesse em deixar obras inacabadas era, em si uma forma de spreceatura.‘! ‘Alm disso, em um tratado sobre teoria da arte de autoria de Gian, Paolo Lomazo, encontramos no s6 uma referéncia explicita aos elogios 37 Caccini, 1600, deicatriay Caceini, 1601, Aos letores; Gaglisno, 1608, Avs leitores. 38 Dolee, 1557, p.156. 39 Blunt, 1940, p97. 40 Vasari, 1564, -VI, p.108, 41 Vasari, 1550, p.610.11, 828, 749-51; Gombrich, 1986, p.167. 66 PETER BURKE de Castiglione & pintura, mas também uma descricao de um artista, Gaudenzio Ferrari, cuja facilidade era tal que “suas obras pareciam ter sido fetas sem arte”: Como no caso de Vasari, poderseia falar de um tipo de viagem circular, ou seja, 0 retorno, para o dominio da arte, de ‘um conceito que Castiglione havia originalmente tomado de empréstimo arte a fim de analisar 0 comportamento. Por fim, um critico de arte do século XVII, Luigi Lanzi, usou o termo sprezzatura para se referir a0 estilo de um pintor da Renascenca, Giorgione.#? Os historiadores de arte modeenos gostam de usar o termo “mane rismo” para descrever a elegincia ou estilo autoconscientes de artistas como Rosso ou Parmigianino. Eles eram ativos em uma época em que estilo” (maniera) era um assunto que motivava intenso debate entre os homens de letras italianos. O cortesdo ecoa esses debates, em sua discussio sobre a pintura e também sobre a literatura. Em um determi- nado momento (1.37), imitando criativamente a discussdo sobre orat6ria de Cicero, Castiglione posstbilita a uma de suas personagens sugerir que Leonardo da Vinci, Rafael, Michelangelo e outros pintores eram perfei- tos, cada urn em seu prdprio estilo. Embora fosse usado por Dolce para combater as tendéncias maneiristas na arte, em especial o refinamento excessivo, 0 proprio O cortesdo se apresenta como um exemplo de ma neirismo em alguns aspectos, e também um modelo para discusses posteriores sobre maniera. E claro que o maneirismo fol um movimen- to intemacional. E chegada a hora de nos voltarmos para a receprio internacional do livro de Castiglione. 42 Lomazz0, 1590, caps. 7,15. 43 Lansi, 17951796, ll, p76. i | i | | ' CAPITULO 4 O CORTESAO TRADUZIDO O inicio do século XVI parece ter sido uma época em que o debate sobre a corte atingiu o auge, gracas, talvez, & ascensdo recente de trés jovens monareas, Carlos V, Francisco le Henrique VIIL. A Educacao de sum principe cristdo, de Erasmo, e também a Utopia, de seu amigo Thomas More, apareceram impressas em 1516, na época em que Castiglione estava escrevendo seu didlogo. Os dois autores discutiram o problema do aconselhamento, como faria Castiglione: Erasmo, do ponto de vista do principe, e More, de seu proprio ponto de vista, o de um intelectual que é convocado & corte. Duas famosas crticas & corte foram publicadas entre 1517 ¢ 1518; a epistola do papa Pio Il, Sobre a miséria dos cortesaos (escrita em 1444), ¢ 0 dialogo A corte, de Ulrich von Hutten, No contexto europeu e também no italiano, o livro de Castiglione era certamente de interesse para sua época. Afirmacées grandiosas foram feitas sobre os efeitos d’O cortesao fora da Ieilia, Um estudioso afirmou que a tradugao inglesa “tornou-se 0 brevidrio de todos 0s cavaleiros ¢ damas", e outro afirmou que a influencia de Castiglione no gosto elisabetano “dificilmente pode ser exagerada”.! Podemos, pelo menos, concordar que o interesse por O cortesdo era to intenso fora da Itilia quanto na peninsula. Como demonstra o 1 Pras, 1943, p.196; Buxton, 1954, p19, @ PETER BURKE Apendice I, por volta de sessenta edicdes do texto em outras linguas que io o italiano foram publicadas em um espaco de tempo de 92 anos (15281619). De qualquer forma, alguns estrangeiros leram Castiglione no original, em uma época em que o prestigio da cultura italiana tornava bastante desejével o conhecimento do italiano, quando nao absolutamen- te necessério para qualquer um com pretensdes a uma boa educacio. E provavel que o italiano tenha sido a primeira lingua moderna a ser aprendida na Inglaterra, na Franca ¢ também na Espanha. Com certeza, a lingua tornou-se mais acessivel para os ingleses a partir de meados do século XVI. Sir Thomas Hoby, 0 tradutor d’O cortesao, escreveu uma gramdtica italiana para uso de Sir Henty Sidney, e outras graméticas da lingua foram publicadas por William Thomas (1550), Claudius Hollyband (1575) e John Florio, o filho de um exilado pprotestante italiano (1578), Foi gracas as gramaticas de Thomas e Florio que Gabriel Harvey, por exemplo, aprendeu italiano nos anos 15703 Florio lecionou italiano em Oxford durante um certo tempo, ¢ alguns membros da universidade nesse periodo possufam gramaticas italianas.4 Nos comentirios introdutorios 4 sua traducio de Castiglione, Sir ‘Thomas Hoby declarou que 0 cortesio inglés deveria ter competéncia em linguas, ou, como ele afirma ser, “entendido em linguas”, especial mente em italiano, francés e espanhol. Segundo seu preceptor, Roger ‘Ascham, a rainha Elizabeth possuia “perfeito desembaraco” nessas trés linguas? Varios dos cortesios que a acompanhavam parecem também ter atingido esse nivel. Sir Philip Sidney, por exemplo, saiu do pais em 1572 para aprender linguas, e-parece ter sido fluente em italiano, francés ¢ espanhol. © mesmo se deu com Henry Howard, que mais tarde se tomou conde de Northampton. Sir Walter Raleigh possula livros nessas tués linguas.* O conde de Leicester, Lord Burghley e Sir Francis Walsin- gham sabiam no minimo o italiano.” Quanto as damas, sabe-se que as cinco irmas Cooke e Lady Jane Grey estudaram francés ¢ italiano.® 2 Hale, 1954. 3 Stem, 1979, p156. 4 Curtis, 1959, p.1401. 5 Ascham, 1568, p.21 6 Peck, 1982. 7 Fino, 1971, p38, 8 Wamicke, 1988, p42. [AS FORTUNAS D’O CORTESAO 69 Nao é facil descobrir se um conhecimento de leitura do italiano teria sido algo comum em paises diferentes no século XVI. A questio seria um excelente tema para um trabalho, mas a pesquisa ainda nao foi realizada. Minha impressio, baseada principalmente em inventirios de bibliotecas, € que tal conhecimento nao era incomum entte os nobres europeus, pelo menos para aqueles cuja primeira lingua era francés, aleméo, espanhol, tcheco, polonés ou hungaro. Exemplos dessas areas lingdisticas incluem Montaigne, Gatclaso de la Vega, Willibald Pirehei- mer, Karel Zerotin, Jan Zamojski e Balint Balassa. Diversos livros de conduta atestam © quanto essas habilidades eram. desejéveis. Por exemplo, em Cortesdo polonés (1566), de Lukase Gérnicki, ‘que sera discutido mais adiante, o leitor era aconselhado a ler alemao, italiano, francés e espanhol, nessa ordem. No ensaio de Louis Guyon sobre 0 cortesio (1604), os leitores franceses eram aconselhados a aprender italiano, espanhol, “e até mesmo alemdo, se possivel”. Em Honnéte homme (1630), de Nicolas Faret, as linguas recomendadas aos cavalheiros franceses eram italiano e espanhol, “que sio muito mais difundidas do que quaisquer outras na Europa, até mesmo entre os infeis’? Tendo em vista esse conhecimento da lingua italiana entre a nobreza européia nessa época, as reacdes estrangeiras a O cortesdo em sua lingua original merecem ser examinadas com algum cuidado antes-que chegue- ‘mos as virias tradugdes do texto € sua recepeio nas diferentes partes da Europa. A difusio do texto Em uma carta a sua mfe em 1528, Castiglione pedia que setenta cexemplares de seu livro the fossem enviados na Espanha, sem duvida ppara distribuigdo entre seus amigos e conhecidos. Em todo 0 caso, 0 intetesse espanhol em seu didlogo foi incentivado pelo envolvimento primeiro de Aragio e, depois, de Castela nos assuntos italianos. As diversas referéncias a Espanha n'O cortesdo, especialmente proeminentes nna versio final impressa do texto, foram notadas com freqiiéncia, 9 Gomnicki, 1566, p.100; Guyon, 1604, p.194; Fate, 1630, p.31. 0 PETER BURKE inclusive a discussio sobre a conveniéncia do empréstimo de palavras ‘expressdes espanholas, como acertar ou criado (1.31).!° De todo modo, ‘existem boas evidéncias do interesse espanhol pelo dislogo. Um livreiro de Barcelona possuia nada menos do que 24 exemplares d’O cortesdo em italiano a0 morrer em 1561, apesar do fato de que uma tradugio espanhola estivera em circulagdo durante décadas (tendo em vista que cle regularmente importava livros de Lyon, podemos supor que seu cestoque era formado pelas edig6es italianas ali publicadas)."! Sabe-se que diversos nobres espanhdis possuiram 0 que um inventirio chama “el cortegiano en italiano”.! O mesmo, é claro, aconteceu com o poliglota imperador Carlos V, a quem é atribuida a famosa observacio de que 0 italiano era a lingua cerma para ser usada com os amigos, 0 francés com as mulheres, o alemio com os cavalos eo espanhol com Deus. Afirma- ‘vase que o imperador “adorava ler apenas trés livros” — O cortesao de Castiglione, os Discursos de Maquiavel, a obra do antigo historiador sgrego Polibio.? ‘No caso de Portugal, a pessoa dbvia com quem se deve comesar é 0 amigo de Castiglione, Miguel da Silva, bispo de Viseu, a quem o didlogo foi dedicado. Dom Miguel nos leva a seu. conhecido Francisco de Holanda, mais conhecido por seus textos sobre arte, ¢ Holanda, por sua ‘yea, nos conduz ao escrtor religioso frei Heitor Pinto, O fato de que © indice de Lisboa de 1624 discute uma edigao italiana d’O cortesdo com certo detalhe confirma que o texto era razoavelmente bem conhecido em Portugal naquela época.!4 ‘No caso da Franca, a referéncia mais famosa ao didlogo de Castiglione é descortés. O conde Lodovico da Canossa afirma que os franceses “no ‘s6 nfo sabem apreciaras letras, mas as odeiam e desprezam os escritores”. Contudo, Giuliano de Medici 0 contradis, declarando que os tempos ‘mudaram e que se “Monseigneur d’Angouléme” suceder no trono (e ele 6 fez, como Francisco 1, em 1515, muito antes que 0 didlogo fosse publicado), as letras florescerio tanto quanto as armas (1.42). No primeiro esboco de seu livro, Castiglione afirmava que o tei, que ele 10 Guidi, 1978, 11 Kamen, 1993, p12, Joan Guardiola, 12 LeFlem, 1973, n. 4245. 13 Sansovine, 1567, p-21 44 Desware, 1989, 1991 | i i AS FORTUNAS D'O CORTESAO n havia encontrado em duas ocasiées, 0 havia incentivado a continuar trabalhando no didlogo. Trés edicées em italiano d’O cortesdo foram publicadas em Lyon entre 1553 e 1562. Uma vez que Lyon era uma cidade na qual residia lum néimero considerivel de mercadores italianos, resta-nos a diivida sobre 0s volumes destinaremse ou nfo @ italianos no exterior, para franceses italianizados ou mesmo para exportagio para a Espanha Portugal. Felizmente, existem evidéncias mais diretas para os leitores franceses do texto em italiano. Jean Groslier (c. 14861565), por exemplo, era um funcionario puiblico que colecionava livros em grandes quantidades. Groslierestudou com um humanista italiano em Paris antes de se tomar secretirio do rei Luis XIL. Fle viveu na Ieilia na primeira década do século XVI, como tesoureiro real em Miléo, ¢ também veioa conhecer Bembo e o impressor ‘Aldo Manutio. Foi por intermédio deste que Groslier conseguiu um manuscrito d’O cortesdo, sem contar seis exemplares da primeira edicio e cinco da edicéo de 1533 (publicada pela mesma casa editora).16 (Outro francés que possuitu O cortesdo em italiano foi o nobre Nicolas d Herberay, Seigneur des Essarts, um artilheiro por profissdo, mas um ho- mem que combinava armas € letras, como o proprio Castiglione. Herberay ¢ mais conhecido pela posteridade como o homem que traduziu fo romance de cavalaria Amadis de Gaula para o frances a pedido de Francisco I, mas representa outro sinal da compasbilidade entre os valores da cavilaria ea cortesia, ou, pelomenos, de suainteragio mia nessa época. Por sua vez, o historiador Jacques-Auguste de Thou possuta dois exemplares de Castiglione em italiano, um dos quais se encontra agora na Bodleian Library.” Brienne La Bostic, amigo de Montaigne, clebrou, em um soneto, seu exemplar lindamente encadernado em ouro: “Tenho um livrs toscano com a lombada ricamente decorada em ouro batido. O exterior brilha de ouro e no interior esté a arte da cortesia do Conde Balthasar”. Jai un livre Tasca, dont la anche est genie ‘ichamene d'or batu de Une et Vautre part; le dessus rlui d'or et au dedans est Vare du comee Balthasar, dela Courtzanie. 8 15 Clough, 1978, p245. 16 Austin, 1971. 17 Thaw, 1679, p.400} ef. Coron, 1988. 18 La Botte, 1892, p.275. n PETER BURKE ‘Um exemplar sermelhante da edicdo venezianade 1545, encadernado ‘em marroquim vermelho, pertenceu ao estadista cardeal de Granvelle, ‘que veio de Besancon em FrancheComté.!? Na Austria e na Alemanha, as edigdes italianas d’O cortesdo aparecem em catilogos de bibliotecas.”° Nobres hiingaros e boémios como Hans Dernschwam, a familia Lobko- vite Miklés Pismény também possuiram edigdes italianas.! ‘Também na Inglaterra houve diversas referéncias a O cortesdo antes de sua aparigdo em inglés no ano de 1561, confirmando 0 comentatio de seu tradutor, no preficio que escreveu, de que “esse O cortesdo de ha muito ultrapassou seu dominio” 7? A primeira dessas referéncias data de 1530, apenas dois anos depois de a primeira edicio italiana ter sido publicada, Nesse ano, um jovem diplomata chamado Edmund Bonner (mais tarde bispo de Londres e importante opositor da Reforma) pediu a Thomas Cromwell o empréstimo do “livro chamado Cortigiano em italiano” 23 Que o ocupado secretitio do cardeal Wolsey ede Henrique VIII possutsse tum exemplar do didlogo tornase menos surpreendente quando descobri- mos que Cromwell morou na Itilia durante sua juvennude, e que ele também possuta exemplares dos Triunfos de Petrarca e de Maquiavel.* Em 1548, um certo William Patten descreveu um conhecido seu como um homem “como ... o conde Balthazar, o Italiano, descreve em seu livo sobre O cortesdo”2> Um ano depois, William Thomas fez referencia ao livro em sua Histor of Italy Henry Howard, posterior mente conde Northampton, anotou com cuidado aedigao de 1541, como vveremos, provavelmente em sua juventude, visto que escreveu seu nome mas no seu titulo no volume?” Mesmo depois que o digloyo fez sua apariglo em traduclo, referencias a leitores ou proprietirios ingleses do texto original nfo sao dificeis de se encontrar. © Thomas Wright que escreveu seu nome em um exemplar da edicio de 1562, que agora se encontra em Trinity College, Cambridge, 19 Piequard, 1951, p.206. 20 Brunner, 1956; Rosek, 1990. 21 Dernschwam, 1984; Kasparov, 1990; Ow, 1994. 22 Vincent, 1964; Gabriel, 1978. 23 Hogrete, 1929-1930. 24 Dickens, 1959, cpl. 25 Panen, 1548, H vii ree. 26 Thomas, 1549. 27 JuelJensen, 1956; Barkec, 1990. + AS FORTUNAS D'O CORTESAO B era provavelmente o capelio da faculdade (1570-1572). Um adjunto do Corpus Christi College, Cambridge, Abraham Tilman (morto em 1589), também possuiu um Cortesdo no orizinal# Outros proprietirios incluemn Maria Stuary;o cavalheiro escocés William Drummond; 0 dvido bibliofilo Sit Thomas Tresham; e Gabriel Harvey, adjunto do Trinity Hall ¢ lente de retérica na Universidade de Cambridge, um homiem que parece ter sido virtualmente obeecado pelo Cortesdo, como veremos. Para alguns desses leitores, o texto era atraente como um bom. exemplo do italiano idiomético em uso. Bonner, por exemplo, quis aprender a lingua antes de sua missio em Bolonha e Roma. As edigdes bilingoes publicadas em Lyon, em 1580, ¢ em Paris, em 1585, juntamen- te com a edicdo trilingde publicada em Londres, em 1588, foram claramente claboradas para leitores que queriam estudar italiano e também boas maneiras. De fato, a edicto de 1580 era dirigida especifi- camente “aqueles que desejam entender” asduas linguagens. A referéncia de John Florio a alguém que “havia aprendido um pouco de italiano com © cortesdo de Castillion” provavelmente acertou no alvo. De todo modo, 0 sucesso do livro em traducéo deixa claro que 0 conteido do didlogo era tio atraente quanto sua forma. O texto em traducio Ebem conhecida a importincia das traducées do italiano na Europa da Renascenca. Orlando Furioso, de Ariosto, por exemplo, foi traduzido para 0 espanhol em 1549, para o francés em 1543 (e novamente em 1614) ¢ para o inglés em 1591. Nada menos que 18 edig&es da traducéo espanhola foram publicadas entre 1549 ¢ 1588. Apesar de sua difin- dda condenagio como um livro imoral, O principe de Maquiavel foi traduzido para o francés (duas vezes em 1553 e, novamente, em 1571), para o latim em 1560 e para o holandés em 1615, enquanto as verses francesas haviam passado pelo menos por 19 edicées até 1616." A 28 Leedham Green, 1987; cf Jayne & Jobneon, 1956, p.187:. 29 Flotio, 1591, Dedicaoria 30 Cioranescu, 1938; Chevalier, 1966, p74. 31 Gerber, 1913. a PETER BURKE Histéria da Itdlia de Francesco Guicciardini foi traduzida para o latim (1567), francés (1568), inglés (1579), espanhol (1581) e holandés (1599). O tratado sobre arquitetura de Sebastiano Serlio foi traduzido para 0 alemao (1542), frances (1545), espanhol (1552), latim (1569) e inglés (1611) — sem mencionar uma tradugéo parcial para o holandés. O sucesso de Castiglione foi semelhante ao desses quatro contemporineos. Por volta de 1620, era possivel ler O cortesdo no s6 no original, mas também em espanhol, inglés, leo (duas versOes), francés (trés verses) ¢ latim (trés, ou, mais exatamente, duas versées, e uma com um quarto da obra, correspondente apenas ao livro 1). Vale a pena chamar a atengio para as linguas européias nas quais cortesdo nfo foi traduzido na época, ainda que seja dificil explicar se isso se dew pela condicao da sociedade, pela condicio da lingua (ou, na vverdade, por acaso). Nao havia tradugéo para o flamengo ou para 0 holandés, por exemplo, até 0 final do século XVII (embora pelo menos trés das edicdes em espanhol tenham sido publicadas em Antuérpia); nenhuma tradugio para o portugues (embora os porgueses fossem capazes de ler a verso em espanhol sem muitos problemas); nenhuma traduio para as linguas escandinavas (embora alguns dinamarqueses ¢ suecos possuissem 0 texto em francés, alemo, italiano ou espanhol); ou para o celta ou o eslavo (além da adaptagao polonesa, que sera discutida adiante, e anedotas sobre uma possivel versio em russo).?? Muito menos, hhavia uma tradugdo para o htingaro, apesar da receptividade héngara & Renascenga—entretanto o livrg foi publicado dois anos depois da batalha de Mohacs, quando os nurcos destriiram 0 exército hingaro ¢ devasta tam a maior parte do pais, dando aos potenciais leitores outras questies sobre as quais pensar. [As tradugdes d’O cortesta, ou pelo menos algumas delas (as versoes inglesa, francesa e espanhola mais do que a latina, alema e polonesa), foram estudadas de maneira consideravelmente detalhada, em especial sob as perspectivas linguisticae literiria."" Entretanto, no relato a seguir, ‘9 método serd comparativo e a énfase recaira sobre aquilo que as diferentes versdes do texto nos contam sobre as culturas de origem dos tradutores. 32 Benin 1778, p40, truncado em Carvrighs, 1908, v.t, p.440. 33 Morreale, 1959; Klesceewski, 1966; Nocera, 1992 i i ¥ AS FORTUNAS D’O CORTESAO 6 A tradueio espanhola de 1534 foi a primeira a ser feta para uma lingua estrangeira, o que parece bastante apropriado, tendo em vista os anos que © autor passou na Espanha. © tradutor foi Juan Bosca ‘Almogiver (um patricio catsléo, ainda que escrevesse em castelhano e mais conhecido coma Juan Boscén). Importante poeta espankol ‘maneira de Petrarca, Béscan tinha conscitncia das didcuss6es italianas de seu tempo acerca da imitacio criativa, que ele praticava em sua prosa também em sua poesia.## Pelo menos 12, e talvez até 16, edicses de sua traduclo foram publicadas até o final do século XVI (trés delas em Antuérpia). Entre os leitores espanhéis do. texto no século XVI, havia més escritoressoldados. Havia Garcilaso de la Vega, que chamou a atencio de Béscan para o livro. Havia Alonso Barros, que sera discutido postetiormente. Por fim, hayia Miguel de Cervantes, que aludiu a0 didlogo de Castiglione no Dom Quixote e também em Galatea} Os leitores espanhois também incluiam o diplomata Don Diego Hurtado de Mendoza (que possuia trés exemplares), e 0 secresirio assistente do Conselho de Itilia, Francisco de Ididques (que possuta dois); os autores Fernando de Rojas ¢ Garcilaso dela Vega, “o Inca”; 0 miisico Luis Milén; 0s humanistas Lorencio Palmireno e Cristal de Villalon. O texto em espanhol também foi lido na Austria no final do século XVI e comeco do XVII, uma época na qual a influéncia da cultura espanhola na corte imperial ainda era forte; foi lido também no império espanhol, até mesmo no Peru. Além disso, o nobre e chanceler dinamarqués Jakob Ulfeldt possuia uma traduglo espanhola do didlogo (apesar de ter estudado em Pidua), da mesma forma que o escritor francés Jean Chapelain 0 poeta escocés William Drummond de Hawthornden. Castiglione vendeu melhor ainda na Franga. Trés tradugdes separa- das d’O cortesdo, uma delas anénima, apareceram em 23 edicdes entre 1537 e 1592. A traducao que logrou maior sucesso foi a de “J. Colin” (alver 0 diplomata Jacques Colin), publicada em 1537 e revisada em 1540 pelo impressor humanista Eienne Dolet e pelo poeta Melin de SaintGelais. O interesse pelo livro entre os membros de seu circulo é 34 Darst, 1978. 35 Lope: Estrada, 1948; Fuclla, 1950. 36 Brunner, 1956, Hampe, 1993, % PETER BURKE revelado pela controvérsia da década de 40 do século XV, no que diz respeito a dama da corte, o que seré discutido adiante (p.889, 129). A caminho do final do século, em 1580, a traducéo de Colin perdeu seu lugar para uma nova versio feita por um tradutor semiprofissional, Gabriel Chappuys (¢. 1546-c. 1613), que também verteu Ariosto, Boccaccio e parte do Amadis para o francés. Da mesma forma que a tradugio espanhola, essas versdes estavam 10 $6 na Franga, mas em outras partes da Europa. O rei Eric XIV da Suécia, por exemplo, ganhou um exemplar de uma traducéo francesa de um emissirio inglés, John Dymock, em 1561. “Perto da véspera do Natal, Ashley perguntoulhe se o rei sabia falar italiano. Ele disse nfo, e por sua recomendaco comprou um pequeno livro na lingua francesa chamado Courtisan.” Quando Dymock chegou & Suécia, ele deu zo rei um par de luvas, um cachorro e “um pequeno livro dourado chamado Coustisan”3? em circulagao O patricio alemao Ulrich Fugger também possula uma ediglo francesa, como o cavalheito de Surrey William More de Loseley, cujo inventitio de 1556 menciona “o cortesio, em francés", ¢ também Sir Christopher Hatton, apesar de seu conhecimento de italiano. Huijeh van Alckemade de Leiden possuia “Le courtisan de messite Balthasar de Castalon’. No século XVI, os nobres dinamarqueses Niels Friis de Favrskov (que havia estudado na universidade de Orléans) e Jacob Ulfelde possuiam versées em francés d’O cortesdo. Depois das tradugées espanhola ¢ francesa, que apareceram logo apés o original, houve uma espécie de hiato. Uma tradugio inglesa ja havia sido planejada em meadds do século XVI por Sir Thomas Hoby, mas nfo apareceu em forma de livro até 1561. Hoby era um membro daquilo que tem sido chamado a “conexio Cambridge” dos intelectuais protestantes (entre eles William Cecil, Roger Ascham e John Cheke), que se tomou fundamental para a ascensio da rainha Elizabeth em 1558.38 A traducao de Hoby foi reimpressa trés vezes em nosso periodo de estudo, em 1577, 1588 e 1603. Houve duas traducées alemas diferentes d’O cortesdo, mas de nent ma delas se conhece uma segunda edi¢fo. A primeira (1565) foi obra de 31 Seevenson, 1867, p.219, 223; ef Anderson, 1948, p.167. 38 Hudson, 1980, AS FORTUNAS D’O CORTESAO n Laurents Kratzer, inspetor de alfandega (Mautchales) de Burghausen na Baviera, que dedicow o livro a seu duque; e a segunda (1593) foi feta por Johann Engelbert Noyse, outro bavaro, que dedicou sua versio a um dos Fuggers, na esperanga, afirmava ele, de que pudesse remediar os modos corrompidos das verdadeiras cortes.” Ha referéncias ocasignais 2 circulagao desses texros fora da atea de lingua alenia, em especial 0 inventirio dos livros do principe Cristiano da Dinamarca (filho mais velho de Cristiano IV), realizado quando de sua morte, em 1647, que ‘menciona “Chastilons Hoffmann quarto”. Fora da Itilia, Espanha e Franga, O cortesdo era, provavelmente, mais bem conhecido em suas verses para o latim, um lembrete de que o latim era a lingua da repiblica internacional das letras nessa época, no sé entre 05 eruditos, mas entre os homens educados de ‘maneira mais geral. As obras de Maquiavel e seu amigo, o historiador Francesco Gucciardini, por exemplo, eram, provavelmente, mais bem conhecidas na Europa em latim do que em sua lingua original, 0 italiano." Uma traducio latina d’O cortesdo feita por Johannes Turler foi publicada em Wittenberg em 1561; uma segunda versio, por Bartho- lomew Clerke, em Londres, em 1571; ¢ uma terceira versio em lati, apenas do livro 1, foi publicada por Johannes Ricius, em 1577. Elas foram criadas provavelmente para o mercado universitério. De qualquer fornia, Turler era professor de’Direito Romano na Universidade de Marburg, e Clerke era professor de retdriea eadjunto do King’s College A versio de Clerke foi criticada no século XVIII, no preficio traducao inglesa de Samber, “por seu estilo desgracioso e suas metaforas afetadas”. Ainda assim, ela parece ter tido um sucesso considerével em sua propria época, quando a cultura latina florescia na Inglaterra‘! Alguns exemplares ainda podem ser encontrados em varias biblioteca de faculdades em Cambridge, e também nos inventitios dos homens que passaram por Cambridge (inclusive dois livreiros, John Denys e Reynold Bridge, este possuindo trés exemplares em estoque quando 39 Seoumner, 1888, p.4949. 40 Burke, 1993, p41-2; um esnudo mais dealhado sobre esse tipico, de minha autora, cncontrase no pre. 41 Binns, 1990, B PETER BURKE morreu, em 1590). Foi a versio latina que Gabriel Harvey aconselhou seu aluno Arthur Capel a ler. Sabese também que em Oxford muitos alunos e professores (inclusive Robert Burton) possuiram O cortesdo na traducio de Clerke. Das dez edig6es do texto publicadas na Inglaterra entre 1561 ¢ 1611, seis foram feitas a partir da versdo latina de Clerke, comparada a quatro edigSes da versao inglesa de Hoby. Nao admira que tantas pessoas chamassem o autor do didlogo por seu nome latinizado, “Castilio”. A reescritura do texto E hora de examinar essas verses mais de perto, para vermos de que forma os tradutores interpretaram e apresentaram o texto de Castiglione. ‘As tradugtes so um objeto de estudo que desperta um crescente interesse académico e podem, é claro, ser estudadas de varias perspectivas, como ‘oconflito entre traducdo “livre” e traducio literal, as predilecdes de cada tradutor, e a compatibilidade ou incompatibilidade entre diferentes linguas. Sir John Cheke, por exemplo, que foi professor de Thomas Hoby em Cambridge, aconselhou sobre o fato de que “nossa propria lingua deveria ser escrita de maneira limpida e pura, sem misturas ou desfiguragoes originadas pelo empréstimo de outras linguas”.!? Quando cle traduri o “Novo Testamenty”, por exemplo, Cheke preferiu “crossed” ‘crucfied” e “hundreder” a “centurion”? Com base na perspectiva que adotamos neste ensaio, a importincia das tradugées d’O cortesdo é que elas oferecem evidencias com detalhes incomuns sobre as reacées de leitores do texto que foram especialmente atentos. Se as notas marginais so documentos valiosos para um estudo da recepedo, as traducSes so ainda mais. Com freqaéncia, elas revelam fentusiasmo, is vezes critica, e vo muito longe quanto a nos contar de que maneira seus contempordneos, pelo menos fora da Itilia, entendiamn passagens fundamentais do didlogo. 42 Cara acrescentada a Hoby, 1561 49 Nos dois casos, a primelea forma ¢ de ralzanglosaxOnics ea segunda de ais latina. WT) AS FORTUNAS D'O CORTESAO p E, sem duvida, impossivel discutir a recepeao de um texto traduzido sem falar sobre os detalhes flolégicos, como o fizeram alguns trabalhos sobre versbes especificas d’O cortesao." Aparentemente, divergéncias menores entre o original e a tradugio sio, as vezes, indicadores muito claros de distinciz cultural. Na traducio espanhola, por exemplo, os termos cittadino e civile desapareceram, lembrandonos que a Espanha nndo possufa o tipo de cultura civica que era caracteristico da Tuilia renascentista.!® Alem disso, jd foi dito que Hoby tradusi 0 termo italiano architett por “carpenters” [carpinteiros), ou porque nao se sentisse a vontade com a nova palavra “architect”, ou porque estava tentando adaprar Castiglione a situagdo inglesa, na qual os prédios eram projetados por artesios ea ‘madeira era um material mais comum do que a pedra. Por outro lado, as tradugdes de Hoby para termos técnicos na area de miisica foram clogiadas por um especalista como “muito melhores” do que as tenativas feitas pelos franceses (Sir Thomas interessava-se bastante por miisica ¢ possuia varios livros italianos sobre o assunto).¥6 Num relato um tanto breve quanto este, entretanto, os detalhes filologicos s6 podem ser apresentados ao preco de extrema seletividade. Por essa ra a discusséo se concentrari na tradugéo de alguns dos termos essenciais de Castiglione, em especial cortegiania, grazia e sprezza- ura. Seré feit uma tentativa de comparar a maneira pela qual os diferentes tradutores superaram esses obstaculos, nao para atribuirlhes ppontos por sua habilidade, mas para tirar conclusdes sobre suas respostas. ao texto. Tornase dbvio que uma tarefa desse tipo exige muito dos recursos lingtisticos de um historiador. Por esse motivo, a versio em inglés sera analisada mais detalhadamente, como um estudo de caso de problemas mais gerais. Cortegianta parece ter sido um termo incomum quando foi utilizado pot Castiglione, e parece nfo ter tido grande sucesso na Itilia, embora fosse usado pelo escritor lombardo Matteo Bandello, e 0 homénimo do autor, Saba di Castiglione, tenha dedicado um capitulo de seu livro de conselhos aquilo que chamou “a cortesania de nosso tempo” (la 44 Klesceewski, 1966; Morreale, 1959; Nocera, 1992. 45 Morreale, 1959, p.110, 113, 46 Kemp, 1976, p.361 ry PETER BURKE cortegianta de’ nostri tempi).7 Béscan traduziu 0 termo para o espanhol sem dificuldade como cortesania, mas outros tradutores parecem té1o considerado um empecilho. Na Franga, por exemplo, Colin: cunhou uma nova palavra, courtisannie; Chappuys usou 0 circunléquio forme de courtiser, € 0 tradutor francés anénimo tentou parafrases alternativas como profession courtisane, Vart du courtisan, ou facon de bon courtisan, como se nao estivesse muito satiseito com nenhuma delas.#® Thomas Hoby também encontrou dificuldades para lidar com 0 tetmo. Em inglés, otermo “coureesy”, da mesma forma que courtier, passou a ser usado, no minimo, a partir do século XII, mas cortesia, no sentido medieval, ndo era exatamente o que Castiglione estava discutindo. Perto do final do século XVI, novos termos passaram a existir, incluindo “courlliness” ou mesmo “courtship”, nao no sentido de amoroso de “cortejar", gracas, talvez, & voga da tradusao de Hoby- Contudo, esses termos nao estavam disponiveis para ele. Hoby teve que cunhar uma nova palavra, “courtership" , que ele as veres preferia parafrasear como “the trade and manner of courtiers" ("a atividade ou os modos dos corteséos" 9 Os tradutores para o latim também acharam o termo dificil. Ricius evitou-o rorlmente; ¢ Clerke, em seu preficio ao leitor, foi bastante eloqdente acerca dos problemas. “Como vou traduzir aquilo ques ingleses chamam courtership 08 italianos cortegianta? Dizer aurcalitas nao é uma boa idéia vu SoU forcado a usar o termo curialitas, ainda que nao seja laim puro, visto estar mais préximo da latinidade clés “Graca” (grazia) foi outro termo fundamental que representou um. problema para alguns tradutofes, especialmente naqueles contextos mais conhecidos, nos quais a palavra se refere ndo aos favores de um principe, mas a um estilo de comportamento. Por exemplo, o primeiro tradutor alemao, Kratzer, traduziu grazia por Gnade (o termo tradicional para “favor"); e o segundo, Noyse, preferiu importar o termo Gratia, que se destaca na pagina como uma das poucas palavras em tipo romano ‘em um livro impresso em gético. Hoby também escreveu que “o corteséo deveria fazer acompanhar todos seus feitos, gestos, comportamento, enfim, todos seus movimentos, com certa ‘graca’ (grace)”. Podemos nos 47 Bandello, 1554, liv Il, n.57; Castiglione, 1549. CE Sigismondi, 1604, p.5. 48 Klesceewski, 1966 49 Bates, 1992, 50 Nocera, 1992. AS FORTUNAS D’O CORTESAO at perguntar o que seu mentor, Sir John Cheke, pensou desse empréstimo do latim. Entre os tradutores para o latim, Ricius escolheu venustas, e Clerke fez o mesmo algumas vezes. Béscan teve sorte pelo fato de 0 espanhol se parecer suficientemente com o italiano para que ele pudesse empregar a elegante antitese gracia/desgracia. . ‘Um desafio ainda maior foi colocado, como se pode adivinhar, por aquele que se tornou © conceito mais famoso em todo o livro de Castiglione, sprezeatura, um termo usado (como vimos no capitulo 2) “para mostrar que aquilo que se faz e dis surge sem esforgo e como que irrefletidamente" (1.26), desenvolvendo a antiga nogio romana de negligencia (ver p.38). Um pouco antes na Renascenca, Petrarca havia usado a expressdo “de comportamento deveras negligente” (habitus neglection) e 0 humanista Pietro Paolo Vergerio havia usado “faclidade” (facilitas)* Os problemas dos tradutores so revelados por suas escolhas de diversos equivalentes para spreczatura ern passagens diferentes — ou até zna mesma passagem —, como se eles nao estivessem muito satisfeitos com suas proprias solugdes. Boscan, por exemplo, as veres traduz sprezeatura literalmente por desprecio ("desprezo"); em outras passagens por descuido (“descuido”), o que permitia a antitese euidado/descuido para expressar o contraste entre “afeta¢o” ¢ “negligéncia". Em compensagio 6 sindnimo disinvoltura, usado por Castiglione, néo representava um problema. Por ser um empréstimo do espanhol, poderia volta facilmente a essa lingua. Enfrentando 0 mesmo obsticulo, Colin optou por nonchalance, uma palavra que se torniou, sem diivida, uma analogia préxima do termo imaiano (quer isso jé estivesse acontecendo ou nao em sua época). tradutor francés anénimo e Chappuys foram mais cautelosos e as vezes duplicaram as. palavras: nonchalance et mesprison, no primeito caso, rmespris et nonckalance, no segundo. Notese que a palavra francesa insoueiance, que agora pode parecer um equivalente apropriado de spreveatura, remonta 20 inicio do século XIX. Quanto 0s dois tradutores alemées, Kratzer parece ter sido mais livre © seguro, Noyse mais hesitante literal. O primeiro traduziu 51 Loos, 1955, p.l16. 52 Cf Morceale, 1959, p.1635. 53 CE. Klescrwsti, 1966, p.168s. ss PETER BURKE “aferacao” por Begierlichkeit, o segundo por Affectation. Krateer traduziu ‘una certa sprezzatura por uma certa Unachtsamlit, e Noyse recomendou ‘co.uso em todas as coisas de ein Verachtung oder Unachtsamkeit, utilizando ‘mais uma vez a duplicagio do termo. Entre as versdes latinas, Bartholomew Clerke retornou, de maneira bastante apropriada, & non ingrata neglegentia de Cicero, falando da necessidade de se comportar “de mancira negligente” (negligence). Ele glosou 0 termo com a expressio “(ut vulgo dicitur) dissolute”. A ultima palavra agora parece um tanto estranha nesse contexto, mas no inglés do século XVI “dissolute” poderia significar “negligente”, ou “a vontade”, ‘sem uma conotagdo moral para 0 termo. Clerke também usa o termo incuria, que se poderia traduzir por “desleixo intencional”. Quanto a Ricius, como Castiglione, ele inventou um novo termo e traduziu una certa sprezeatura por certa quaedam veluti contemptio, O circunléquio “certa quaedam veluti” sem duvida trai uma certa hesitagio ou desconforto no que diz respeito & sua propria traduio. Da mesma forma que Béscan, Chappuys ¢ outros, Thomas Hoby fer mais de uma tentativa para encontrar a palavra certa. Em sua traducio_ da passagem em italiano citada, escreveu que 0 cortesdo precisa “(para empregar uma palavra nova) ... usar em tudo um certo desvalimento (disgracing| para ocultar uma certa arte também, e dar a impressio de que qualquer coisa que faga ou diga seja sem esforgo, e (por assim dizer) que ‘ele nao se preocupa com isso”. Na segunda ocorréncia de sprezeatura, a palavra foi novamente traduzida por “disgracing", mas na terceira vez Hoby escolheu “recklessness” [irresponsabilidade]. Parece que os impres- sores ¢ editores de Hoby nao ficaram totalmente satisfeitos com essa opsio, pois a edicdo de 1588, publicada 22 anos depois da morte do tradutor, mudou “recldessnes” para “disgracing’ 5 ‘A escolha de termos feita por Hoby é uma evidencia preciosa de sua propria reacdo a Castiglione, se é que podemos interpretitla —o que no & uma tarefa fil, tendo em vista todas as mudancas que ocorreram na lingua inglesa nos quatrocentos e poucos anos que nos separam dele. Podemos comegar perguntando quais eram as alternativas que estavam sua disposicéo, Ele ndo optou por “nonchalance” como os tradutores franceses, cuja obra ele provavelmente conhecia pois estava trabalhando 54 Nocera, 1992, | i | | | AS FORTUNAS D’O CORTESAO 83 em sua traduefo em Pats, talvez porque isso teria significado’a cunhagem de um novo termo (a primeira referéncia a “nonchalance” no Oxford English Dictionary s6 aparece em 1678). Hoby também evitou os termos “carlessness", “effortlessnes” e, 0 que talver seja mais surpreendente, “negligence”, que ja fora empregadorem inglés na época de Chaucer. O motivo dessa omissio pode sera tradigio de uso de “negligence” em contextos morais e espirituais, para significar alguma coisa como “omissio do dever” ou “indoléncia”.* Entretanto, por volta do século XVIII, quando duas novas traducées d’O cortesao foram publicadas na mesma década, os significados positivos de “neg gence” eram dominantes, e os dois tradutores utilizaram esse termo. Na versio de Robert Samber de 1724, tio livre que introdusia referéncias a perukes e a graxa de sapatos, diziase que 0 cortesio precisava “fazer uso de um certo tipo de negligéncia, ¢ fazer tudo facilmente e, por assim dizer, sem se preocupar com isso”. Em outra parte ele escreveu sobre “uma indiferenga natural” [an easy Carelessness}. Na versio mais literal de 1727, ‘ocortesdo era descrito como aquele que precisa “descobrir em tudo uma certa negligéncia, a também ocultar sua arte e dar a impressio de que tudo que diz ou faz the ocorre natural e facilmente, como se ele ndo estivesse prestando atencio” Quais foram, entio, as associagses dos termos usados por Hoby? “Recklessness” & uma antiga palavra inglesa, jem uso pot volta do século X, a escolha de Hoby pode refletir a preocupacio de Cheke em usar auténticas palavras inglesas. Se o termo era ou néo tio fortemente pejorativo no século XVI, como o é hoje em dia, ainda é algo incerto. E interessante descobrir que na época de Hoby o tradutor de uma obra historica, os Commentaries de Sleidan, péde usar a expressio “a certain negligence and recklessness" como se os termas fossem mais ou menos sinOnimos. Chegamos agora ao termo “disgracing”. Ao contrario de spreczatura, “disgracing” nao era uma palavra recém-criada. Ela corresponde de perto ao termo disgrazia, que Castiglione usa ocasionalmente para descrever 0 tipo de comportamento que nao recebe a aprovagio da personagem que estiver falando (afetaco, por exemplo). Também em inglés o termo parece ter sido fortemente pejorativo. “Uma fala rude e ignorante 55 Kuhn & Reidy, 1954. ‘au PETER BURKE deforma e desgraga {defaceth] um bom tema”, escreveu Robinson em sua tradugéo de 1551 da Utopia de More. “Desgracas s6rdidas” escreveu ‘Norton em sua tradugio de 1561 de Calvino. Trabalhos de amor perdidos inicia com uma referéncia & “desgraca da morte”. O uso mais préximo a0 de Hoby é 0 de Philip Sidney em sua obra Defence of Poetry, na qual fa palavra “disgracefulness” parece significar “deselegincia”, mas isso é posterior a Hoby e pode até mesmo aludir solucdo encontrada por E possivel que Hoby simplesmente quisesse seguir 0 paradoxo ¢ desejo propositais de Castiglione, mas podemos pelo menos pensar na possibilidade de que ele estava, consciente ou inconscientemente, sub- vvertendo seu texco. Tendo em vista o que se sabe sobre sua vida eatitude: poderseia esperar que Hoby fosse um pouco ambivalente com relacéo a Ocortesdo, Por um lado, Hoby era um italianofilo que estudou durante certo tempo na Universidade de Pédua. Por outro, ele era um protestante ‘que levava sua religido muito a sério (como seu preceptor John Cheke), 6 suficiente para se exilar quando 0 protestantismo foi proscrito pela rainha Maria.58 Em Estrasburgo, ele morou na casa de um importante tedlogo protestante, Martin Bucer. Seu amigo Roger Ascham, cuja postura sera discutida adiante (p.89-90, 129), é um exemplo mais expli- cito da ambivaléncia de um humanist protestante. Para concluir esta seco, pode ser interessante olhar para outras tentativas de traduzir a negligentia de Cicero e a sprezzatura ou a grazia de Castiglione para o inglés. Assnotas marginais feitas por Gabriel Harvey fem seu exemplar da traducio de Hoby traduziam disinvoltura como “diligéncia negligente”, embora se pudesse pensar que “negligéncia diligente" fosse mais adequado.® A obra de George Puttenham, Arte of English Poesie, remontava a antes de Cicero, para “aquilo que os gregos ‘chamam charientes, homens educados, bem nascidos e quese comportam de mancira graciosa”. Um outro escritor elizabetano, George Pettie, preferiu uma pardfrase, referindo-se Aqueles que “consideram ser bastan- te recomendavel em um Cavalheiro ocultar sua arte habilidade em tudo, 56 Oxford English Dictionary, 6. "disgrace". 51 Sidney, 1973, p11. 58 Garer, 1938, n.204. 59 Sern, 1979, 60 Puuenham, 1589. AS FORTUNAS D'O CORTESAO 8s parecendo fazer todas as coisas de maneira natural” S' Que Ben Jonson dé-a palavra final sobre o assunto: Give me a look, give me a face ‘That makes simplicity a grace Robes loesely flowing, hair as free ‘ Such suet neglect mare eth me, Than all tadulteres of ar ‘They strike mine ees, but not my heare St Ele estava ecoando Horicio e Ovidio, mas “sweet neglect” continua sendo um equivalente atraente para sprevzatura. O paratexto ‘Uma outra forma de estudar as respostas a O cortesdo ¢ examinar as cedigdes estrangeiras da mesma maneira que as edigées italianas foram ‘examinadas no capitulo anterior, prestandose atengio as ocorréncias paratextuais como um conjunto de pistas sobre como o texto era lido. Discutir uma a uma todas as edigdes certamente seria algo entediante e pouco esclarecedor, mas uma andlise de algumas edigdes ¢ absolutamente indispensivel. As primeiras edicoes das tradugdes espanholas, por exemplo, pare cem bastante diferentes das edicdes italianas, porque foram impressas fem letras géticas. Elas apresentam 0 tradicional material prefacial, em especial um prélogo de autoria do tradutor Juan Béscan e uma carta de seu amigo, o poeta Garcilaso de Vega. Béscan descrevett 0 contetido do livro como “nao s6 atl e agradével, mas também necessétio” (no solamente provechosa y de mucho gusto: pero necessaria); observou as diferencas entre os costumes das nagbes espanhola e italiana e agradeceu 60 incentivo de duas damas da nobreza. De sua parte, Garcilaso elogiou a tradugio e seu “vocabulirio deveras semelhante a0 d’O contesdo” 61 Pentie, 1576. {62 Daime um olhar, dake um sosto / Que em graca muda o simples gosw / Roupas ‘luem soli, o eabelo ¢ igual: / Doce desleixo me tome de forms tal / Mais queda ate toda a talglo. / Encantam meus olhos, mas nlo o coracio. (N.T.)

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