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EDWARD W. SOJA Geografias Pos-Modernas A REAFIRMACAO DO ESPACO NA TEORIA SOCIAL CRITICA JORGE ZAHAR EDITOR Titulo original: Postmodem Geographies ~ The reassertion of space in critical social theory Tradugio autorizada da segunda edigdo inglesa, publicada em 1990 por Verso/New Left Books, de Londres, Inglaterra Copyright © 1989, Edward W. Soja Copyright © 1993 da edigdo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RI tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodugao nao-autorizada desta publi ), no todo ‘ou em parte, constitui violacdo de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Composigao: TopTextos Edigées Gréficas Lida Impressio; Cromosete Grafica e Editora CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. S Edward W. S66g — Geografias pés-modernas: a reafirmacao do espaco na teoria social / Edward W. Soja; tradugio {da 2*ed. inglesa Vera Ribeiro; revisio técnica, Bertha Becker, Lia Machado. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993 Tradugio de: Postmodem Geographies: the reassertion of space in critical social theory Bibliogr: ISBN: 85-7110-259-7 |. Geografia humana, 1. Titulo CDD ~ 304.2 93-0455 CDU - 911.3 6. Espacializagdes: Uma Critica da Versao Giddensiana 169 6.1 Duplicando a hélice: 0 espago-tempo e Anthony Giddens 169 6.2 A constituigao da sociedade e a reconstituigao da teoria social 177 7. A Geografia Historica da Restruturagao Urbana e Regional _/9/ 7.1 ObservagGes sobre 0 conceito de reestruturagao 193 7.2 As tegiGes no contexto: da “‘Reestruturacao” e da “Questfo Regional” 197 7.3 A reestruturagao e a evolugao da forma urbana 2/0 7.4 Algumas conclusGes e continuidades contemporaneas 222 8 Tudo se Junta em Los Angeles 23] 8.1 O cenario contemporaneo 233 8.3 A reestruturagao espacial de Los Angeles 239 8.4 Encontrar outros espagos? 266 9. Decompondo Los Angeles: Rumo a uma Geografia Péds-moderna 267 9.1 Um giro por Los Angeles 269 9.2 De volta ao centro 28] 9.3 Posfacio 297 Bibliografia 30] ivdivemeniaive 319 PREFACIO E POS-ESCRITO Combinar um Prefacio com um Pés-escrito parece um modo particu- larmente apropriado de introduzir (e concluir) uma coletaénea de ensaios sobre as geografias pés-modernas. Aponta, logo de inicio, para uma intengo de alterar as modalidades familiares do tempo, de sacudir o fluxo normal do texto linear, para permitir que outras conexées, mais “laterais”, sejam estabelecidas. A disciplina imprimida a uma narrativa que se desdobra seqiiencialmente predispée o leitor a pensar em termos histéricos, dificultando a visio do texto como um mapa, uma geografia de relagdes e sentidos simultaneos que se vinculam por uma Idgica espacial, e nao temporal. Meu objetivo é espacializar a narrativa historica, é associar 4 durée' uma geografia humana critica permanente. Cada ensaio deste volume é uma evocacao diferente do mesmo tema central: a reafirmagao de uma perspectiva espacial critica na teoria e na andlise sociais contemporaneas. Pelo menos durante o século passado, o tempo e a histéria ocuparam uma posigao privile- giada na consciéncia pratica e tedrica do marxismo ocidental e da ciéncia social critica. Compreender como a histéria é feita constituiu a fonte primordial de discernimento emancipatério e consciéncia politica pratica, o grande continente mutdvel de uma interpretagado critica da vida e da prdtica sociais. Hoje, porém, talvez seja mais o espago do que o tempo que oculta de nds as conseqiiéncias, mais a “construgdo da geografia” do que a “construgio da histéria” que proporciona o mundo tatico e teérico mais revelador. Sdo essas a premissa e a promessa insistentes das geografias pés-modernas. 1. Duragao, extensdo temporal. Referéncia a0 conceit elaborado pelo historiador francés Fernand Braudel, ¢ difundido pela corrente historiogréfica conhecida como Ecole des Annales (N.R.). 8 Geografias pos-modernas Naturalmente, os ensaios aqui apresentados podem ser lidos numa seqiiéncia, como o desdobramento textual de uma argumentagao essencialmente histérica. Mas, bem no cerne de cada ensaio, ha uma tentativa de desconstruir e recompor a narrativa rigidamente histérica, de escapar do presidio temporal da linguagem e do historicismo similarmente carcerdrio da teoria critica convencional, de modo a abrir espaco para o discernimento de uma geografia humana interpretativa, para uma hermenéutica espacial. Assim, o fluxo seqiiencial é freqiien- temente desviado para levar concomitantemente em conta as simulta- neidades, os mapeamentos laterais que possibilitam entrar na narrativa quase que em qualquer ponto, sem perder de vista o objetivo geral: criar modos mais criticamente reveladores de examinar a combinagdo de tempo e espago, histéria e geografia, periodo ¢ regiao, sucessio e simultancidade. Conjugar um preambulo com um pés-escrito, apre- sentar um prefacio que é também posficio, constitui apenas o primeiro sinal bem-humorado deste ato intencional de reequilibragao. Ja que comegamos por uma revirada da ordem temporal, parece apropriado sugerir que a melhor introdugo as geografias pés-moder- nas € representada pelo Ultimo capitulo, um ensaio livre sobre Los Angeles, que integra e desintegra aquilo que o precedeu. “Decompondo Los Angeles” é uma leitura inquisitiva de uma paisagem decididamente p6s-moderna, uma busca de “outros espagos™ reveladores e de textos geograficos ocultos. O ensaio se inspira na brilhante visdo/localizagao do “Aleph” de Jorge Luis Borges — o tinico lugar da terra onde se acham todos os lugares, um espago ilimitado de simultaneidade e paradoxo, impossivel de descrever numa linguagem menos do que extraordindria. As observagées de Borges cristalizam alguns dos dile- mas que confrontam a interpretacéo das geografias pés-modernas: Entao vi o Aleph. (...) comega aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de simbolos cujo exercicio pressupde um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha timida memoria mal e mal abarca? Mesmo porque o problema central é insohivel: a enumeragdo, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhées de atos agradaveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposigao e sem transpa- réncia. O que os meus olhos viram foi simultaneo; 0 que transcreverei sera sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. 2. Jorge Luis Borges, O Aleph, trad. de Flavio José Cardozo, Rio, Globo, 1986, 6" ed., pp. 132-33. (N.T.) Preficio ¢ pés-escrito 9 Todo exercicio ambicioso de descrigao geogrdfica critica, de traduzir em palavras a espacialidade abrangente e politizada da vida social, provoca um desespero lingiiistico similar. O que se vé ao olhar para as geografias € obstinadamente simultaneo, mas a linguagem dita uma sucessao seqiiencial, um fluxo linear de afirmagées elocutivas, limitadas pela mais espacial das restrig6es terrenas, a impossibilidade de dois objetos (ou palavras) ocuparem exatamente o mesmo lugar (como numa pdgina). Tudo que podemos fazer é re-compor e justapor criativamente, num experimento com afirmagoes e insergdes do espa- cial no veio preponderante do tempo. No fim, a interpretagaéo das geografias pés-modernas nio pode ser mais do que um comego. Dando esteio a esse ensaio experimental, hd um capitulo con- densado que mapeia a economia politica da reestruturagdo urbana, tal como examinada através das paisagens pds-fordistas da Los Angeles contemporanea. Uma geografia regional mais concreta é apresentada para exemplificar 0 advento de um novo regime de acumulagao capitalista “flexivel”, tensamente baseado num “arranjo” espacial restaurador € instavelmente ligado ao tecido cultural pés-moderno. Essa descrigéo sintomatica € seguida/precedida de uma formulagado mais profunda da geografia historica do capitalismo, através de ana- lises da evolugao da forma urbana na cidade capitalista, dos mosaicos mutaveis do desenvolvimento regional desigual dentro do Estado capitalista, e das varias reconfiguragdes de uma divisio espacial internacional do trabalho. Aqui, como em outros pontos do texto, hd um pressuposto subjacente sobre o ritmo espaco-temporal do desenvolvimento capita- lista, uma conjugagdo macrospectiva da periodicidade ¢ da espaciali- zagao, induzida pela sobrevivéncia bem-sucedida das sociedades ca- pitalistas ao longo dos tiltimos duzentos anos. Mais uma vez, 0 objetivo é descortinar e explorar um ponto de vista critico que aflui marcan- temente da vibrante interagio da sucessio temporal com a simultanei- dade espacial. As geografias pés-modernas e pés-fordistas sao defini- das como os produtos mais recentes de uma série de espacialidades que podem ser complexamente correlacionadas com eras sucessivas de desenvolvimento capitalista. Fago uma adaptagéo da teoria das “ondas longas”, da obra de Ernest Mandel, Eric Hobsbawm, David Gordon ¢ outros, como um subtexto espago-temporal revelador me- diante o qual pode-se interpretar a geografia histdrica das cidades, regides, Estados ¢ da economia mundial. As espacializag6es de base mais empirica dos trés ultimos ensaios sao reproduzidas e explicadas de maneira diferente nos dois primeiros capitulos, que situam outras geografias pés-modernas na esteira de 10 Geografias pés-modernas uma profunda reestruturagdo da teoria e do discurso sociais criticos modernos. Apropriando-me de discernimentos de Michel Foucault, John Berger, Fredric Jameson, Emest Mandel e Henri Lefebvre, tento espacializar a narrativa convencional, recompondo a histdria intelec- tual da teoria social critica em torno da dialética evolutiva de espago, tempo e ser social: geografia, histéria e sociedade. No primeiro capitulo, a subordinacao de uma hermenéutica espacial ¢ rastreada até as origens do historicismo no século XIX € ao conseqiiente desenvol- vimento do marxismo ocidental e da ciéncia social critica, uma histéria periodicizada pelas mudangas dramaticas na conceituagio e na vivén- cia da modernidade. O mesmo ritmo que agita a geografia macro-his- térica das cidades e regides capitalistas, induzido pela crise, é visto em seu reflexo na historia da consciéncia tedrico-critica, criando uma seqiiéncia interligada de “regimes” de pensamento critico, que segue aproximadamente os mesmos blocos de meio século que marcaram as fases da cambiante economia politica do capitalismo desde a era da revolugéo — o primeiro de quatro perfodos marcantes de reestrutura- Gao e modernizagao. O periodo de meados do século XIX, articulando-se em torno dos eventos de grande projegao de 1848-51, foi a era cldéssica do capitalismo industrial competitivo. Foi também uma fase em que a historicidade e a espacialidade estiveram em relativo equilibrio como fontes da consciéncia emancipatoria, quer se tragasse 0 pensamento critico através das perspectivas do socialismo francés, quer da econo- mia politica inglesa ou da filosofia idealista alema. A contestagao da geografia especifica do capitalismo industrial, de suas estruturas espaciais e territoriais, foi uma parte vital das criticas radicais e dos movimentos sociais regionais que emergiram durante esse periodo, assim como a reforma dessa geografia tornou-se um importante objetivo instrumental para os novos Estados burgueses entrincheirados da Europa e da América do Norte. Apés a queda da Comuna de Paris, entretanto, as criticas explicitamente espaciais, radicais e liberais, comegaram a recuar em relagéo a afirmagdes eurocéntricas mais poderosas da subjetividade revoluciondria do tempo e da histéria. As ultimas décadas do século XIX, examinadas em retrospectiva, podem ser vistas como uma era de crescente historicismo ¢ de submerséo concomitante do espago no pensamento social critico. A critica socialista consolidou-se em torno do materialismo histérico de Marx, enquanto uma mescla de influéncias comtianas e neokantianas reformulou a filosofia social liberal e provocou a formagao de novas “ciéncias sociais”, igualmente decididas a compreender o desenvolvi- mento do capitalismo como um processo histérico e apenas acidental- Prefiicio e pés-escrito TT mente geogrdfico. Essa ascenséo de um historicismo desespacializante, que s6 agora comega a ser reconhecida e examinada, coincidiu com a segunda modernizagao do capitalismo e com a instauragéo de uma era de oligopdlio imperialista ¢ empresarial. Tamanho foi 0 sucesso com que ela ocluiu, desvalorizou e despolitizou 0 espago como objeto do discurso social critico, que até mesmo a possibilidade de uma praxis espacial emancipatéria desapareceu do horizonte por quase um século. Pouca coisa mudou no tocante 4 primazia teérica da historia em relagéo 4 geografia, durante a terceira modernizagao do capitalismo e a era subsegiiente de fordismo e administragdo estatal burocratica, que se estendeu aproximadamente desde a Revolugio Russa até o fim dos anos sessenta. A obsessdo do século XIX com o tempo e a histéria, como a denominaria Foucault, continuou a enquadrar 0 pensamento critico moderno. O primciro capitulo comega ¢ termina com a obser- vagao sintetizadora de Foucault: “O espago foi tratado como o morto, © fixo, 0 ndo-dialético, o imdvel. O tempo, ao contrario, foi a riqueza, a fecundidade, a vida e a dialética.~ Pequenos remoinhos de vivida imaginagao geografica sobreviveram fora das correntes principais do marxismo-leninismo e da ciéncia social positivista, mas eram dificeis de compreender e permaneceram decididamente periféricos. No fim da década de 1960, entretanto, com a instalagaéo de uma quarta modernizagao induzida pela crise, essa longa tradigdo critica moderna comegou a se alterar. Tanto 0 marxismo ocidental quanto a ciéncia social critica pareceram explodir em fragmentos mais hetero- géneos, perdendo grande parte de suas desconjuntadas coesdes ¢ centralidades. E, ao nos aproximarmos de outro fin de siécle, \ém surgido movimentos alternativos modernos para competir pelo controle dos perigos e das possibilidades emergentes num mundo contempora- neo reestruturado, Embora ainda sejam termos controvertidos e con- fusos, repletos de conotagdes dispares e amitde depreciativas, a pés-modernidade, a pés-modernizagao ¢ 0 pés-modernismo parecem, agora, ser meios apropriados de deserever essa reestruturagao cultural, politica e te6rica contemporanea, bem como de destacar a reafirmagao do espago que csté complexamente entremeada com cla. Inicialmente, desconfiado de uma pressa excessiva na “corrida para o pds”, bringuci por um momento com a idéia de criar um novo periddico, chamado Antipost,*? para combater nao apenas 0 pés-mo- 3. Uma alusao a revista Antipode, periddico dos gedgrafos radicais norte-ameri- canos, da qual o autor tem sido colaborador eventual além de membro do corpo editorial. (N.R.) 12 Geografias pos-modernas derismo, como também a gama multiplicativa de outros “ismos” prefixados por pos, desde o pos-industrialismo até o pés-estruturalis- mo. Agora, como se evidencia por meu compromisso com o titulo, estou mais 4 vontade com 0 rétulo epitético de pés-moderno e com seu anuncio intencional de uma transic4o, possivelmente marcante, no pensamento critico e na vida material. Continuo a encarar o periodo atual primordialmente como outra reestruturagao ampla e profunda da modernidade, e nio como uma ruptura completa ¢ uma substituigao de todo o pensamento progressista pés-Iluminismo, como proclamam alguns que se autodenominam de pés-modemistas (mas a quem melhor seria descrever, provavelmente, como antimodernistas). Também com- preendo o arisco antagonismo da esquerda moderna ao neoconserva- dorismo atualmente predominante ¢ 4 obscurante extravagancia da maioria dos movimentos pés-modernos. Mas estou convencido de que se perde um numero excessivamente grande de oportunidades ao descartar 0 p6s-modernismo como irremediavelmente reaciondrio. O desafio politico da esquerda pos-moderna, tal como 0 vejo, requer, em primeiro lugar, o reconhecimento e a interpretagao convin- cente da drastica ¢ amitide atordoante quarta modernizagao do capi- talismo, que vem ocorrendo na atualidade. Torna-se cada vez mais claro que essa reestruturagdo profunda nao pode ser compreendida, pratica e politicamente, apenas com os instrumentos e o discernimento convencionais do marxismo moderno ou da ciéncia social radical. Isso nao significa que esses instrumentos e esse discernimento precisem ser abandonados, como se apressaram a fazer muitos dos que antes estavam na esquerda moderna. Em vez disso, eles devem ser flexivel e adaptativamente reestruturados, para lidar de maneira mais eficaz com um capitalismo contemporaneo que, por sua vez, vem sendo mais flexivel e adaptativamente reconstituido. A politica reacionaria pés- moderna do reaganismo e do thatcherismo, por exemplo, deve ser diretamente confrontada com uma politica pés-moderna esclarecida de resisténcia e desmistificagio, uma politica que possa rasgar os enganosos véus ideoldgicos que hoje reificam e obscurecem, de novas e diferentes manciras, os instrumentos da exploragdo de classes, da dominagao sexual ¢ racial, da desautorizagao cultural ¢€ pessoal, ¢ da degradagéo do meio ambientc. Os debates sobre os perigos © as possibilidades da pés-modernidade devem receber adesao, € nao ser abandonados, pois o que estd em jogo é a construgao tanto da historia quanto da geografia. Nao proponho elaborar aqui um programa politico pos-moderno radical. Mas quero, efetivamente, certificar-me de que esse projeto, como quer que venha a se configurar, seja conscientemente espacia- Preficio e pés-escrito 1B lizado desde 0 comego. Devemos estar insistentemente cientes de como € possivel fazer com que o espago esconda de nds as conseqiiéncias, de como as relagdes de poder e disciplina se inscrevem na espaciali- dade aparentemente inocente da vida social, e de como as geografias humanas tornam-se repletas de politica e de ideologia. Cada um destes nove ensaios, por conseguinte, pode ser lido como uma tentativa de espacializagéo, como um esforgo posfaciado de compor uma nova geografia humana critica, um materialismo histérico e geografico sintonizado com os desafios politicos e tedricos contemporaneos. A critica direta do historicismo — sem tropegar numa anti-his- téria simplista — é um avango necessirio nessa espacializacio do pensamento critico e da agao politica. Os quatro primeiros ensaios viram pelo avesso a imponente tapegaria do historicismo, de modo a rastrear a submersio ¢ a eventual reafirmagio do espago na teoria critica social, através do encontro crescente entre as disciplinas e os discursos do marxismo moderno e da geografia moderna. A geografia nitidamente marxista que acabou por emergir desse encontro, bem como os marxismos franceses que tdo influentemente moldaram os debates tedricos, recebem uma atengdo especial, pois alimentaram quase que sozinhos um discurso critico em que o espago “teve importancia”, em que a geografia humana nao ficou inteiramente subordinada 4 imaginagao histérica. Nos capftulos 3 ¢ 4, volto os olhos para meus textos anteriores sobre a dialética sécio-espacial, a especificidade teérica do urbano ¢ o papel vital do desenvolvimento geograficamente desigual na sobre- vivéncia do capitalismo. Esses trés temas constituiram trampolins importantes para a reafirmagio do espago na teoria critica social, mediante a espacializagdo de conceitos ¢ modos de andlise marxistas fundamentais. Isoladamente, porém, esses capitulos talvez se afigurem um tanto superficiais, pois dependem quase que inteiramente da persuasao Idgica e da argumentagao tedrica afirmativa, revestidas da linguagem retorica de um marxismo bastante convencional. Os trés Ultimos ensaios tentam dar maior substancia empirica e interpretativa a esses argumentos, enquanto os dois primeiros ajudam a explicar suas origens histdricas e seu desenvolvimento. Nos capitulos 5 e 6, entre- tanto, tomo outro caminho de refor¢go e demonstragao, que aprofunda as “vinculagoes retroalivas” que vao da argumentagao teorica para 0 campo mais abstrato da ontologia. Sob muitos aspectos, esses capitulos intermediarios sao cruciais para toda a coletanea de ensaios. Também eles podem ser lidos em primeiro lugar, pata proporcionar uma introdugao diferente. A reafirmagao do espago e a interpretagdéo das geografias pdés- modernas nao sio apenas um foco de investigacdo empirica, atendendo 14 Geografias pos-modernas a demanda de uma atengao crescente para com a forma espacial na pesquisa social concreta ¢ na pratica politica esclarecida. Tampouco a reafirmagao do espago é simplesmente uma recomposi¢’o metaférica da teoria social, uma espacializagdo lingiiistica superficial que dé 4 geografia uma aparéncia de ter tanta importancia tedrica quanto a histéria. Levar o espago a sério exige uma desconstrugaéo e uma reconstituigao muito mais profundas do pensamento e da andlise criticos, em todos os niveis de abstragao, inclusive a ontologia. Sobretudo a ontologia, talvez, por ser nesse nivel fundamental de discussio existencial que as distorgdes desespacializantes do histori- cismo se ancoram com mais firmeza. O capitulo 5 inicia a desconstrugao ontolégica com algumas observagdes de um Nicos Poulantzas espacialmente redespertado, ecoando Lefebvre e¢ Foucault, acerca das ilus6es de espago ¢ tempo que caracterizaram a historia do marxismo ocidental. De especial importancia € a conceituagdo poulantziana da “matriz” espacial do Estado ¢ da sociedade como sendo, simultaneamente, 0 pressuposto ¢ a encamagao das relagdes de produgéo, um “arcabougo material primordial”, ¢ néo um simples modo de “representagéo™. Levo essas observag6es mais adiante, afirmando que duas ilusdes persistentes dominaram a tal ponto os modos ocidentais de encarar 0 espago, que bloquearam da interrogacao critica uma terceira geografia interpreta- tiva, a que reconhece a espacialidade como sendo, simultaneamente (14 vem essa palavra outra vez), um produto (ou resultado) social ¢ uma forga (ou meio) que modela a vida social: o discernimento crucial tanto para a dialética sdcio-espacial quanto para o materialismo histérico-geografico. A “ilusdo da opacidade” reifica 0 espago, induzindo a uma miopia que enxerga apenas uma materialidade superficial, formas concretizadas que s4o passiveis de pouco mais do que a mensuragéo e a descrigio fenoménica: fixas, mortas e nao-dialéticas — a cartografia cartesiana da ciéncia espacial. Por outro lado, a “ilusdo da transparéncia” desmaterializa o espago em ideagao e represen- tagiio puras, num modo de pensar intuitivo que também nos impede de ver a construgao social das geografias afetivas ¢ a concretizagao das relagdes sociais inserida na espacialidade, numa interpretagao do espago como uma “abstragao concreta”, num hieréglifo social semelhante 4 conceituagdo marxista da forma mercadoria. Os fild- sofos e os gedgrafos ha séculos tém tendido a oscilar entre essas duas ilus6es deformadoras, obscurecendo dualisticamente da visdo a construgao problematica e imbuida de poder das geografias, a espacializagao envolvente e instrumental da sociedade. Prefacio e pds-escrito 15 Romper com esse duplo vinculo implica uma luta ontologica pela restauragao da espacialidade existencial significativa do ser e da consciéncia humana, pela composigao de uma ontologia social em que 0 espago tenha importancia desde o mais remoto come¢o. Empenho-me nessa luta, primeiro, mediante uma reavaliacao critica das ontologias temporalmente distorcidas de Sartre e Heidegger, os dois teorizadores mais influentes do ser no século XX; e depois, no capitulo 6, mediante uma anédlise € uma extenséo da ontologia social reformulada da “estruturagdo espago-temporal” que vem sendo desenvolvida por An- thony Giddens. Tomando Giddens por base, pode-se ver com mais clareza uma topologia espacial existencialmente estruturada e um topos ligado ao ser-no-mundo, uma contextualizagao primordial do ser social numa geografia multiestratificada de regides nodais socialmente cria- das e diferenciadas, alojadas em muitas escalas diferentes em torno dos espagos pessoais mévcis do corpo humano e nos locais comuni- tdrios mais fixos dos assentamentos humanos. Essa espacialidade ontolégica situa o sujeito humano, de uma vez por todas, numa geografia formativa, e provoca a necessidade de uma reconceituagao radical da epistemologia, da construg¢ao teorica e da andlise empirica. Aconstrugdo de uma ontologia espacializada € tanto uma viagem de exploragdo ¢ descoberta geograficas quanto 0 sao os ensaios sobre Los Angeles ou as tentativas de revelar os siléncios criticos do historicismo. Ela ajuda a completar um mapa introdut6rio e indicativo da coletanea de ensaios, definindo seu alcance, mapeando seu campo interpretativo e identificando algumas das vias a serem percorridas. O quadro conjunto ainda estd incompleto, pois ainda resta muito a descobrir e explorar na reafirmagao contemporanea do espaco na teoria social, muito mais a caminhar para que possamos ter certeza do impacto e das implicagGes das Geografias pos-modernas. A despeito do expediente divertido de combinar um pés-escrito com um preficio, quero abster-me de fazer outras reflexdes restritivas e autocriticas sobre o produto final e, em vez disso, encerrar com alguns agradecimentos necessarios. Primeiro, cabe-me expressar mi- nha divida para com aqueles que optei por apresentar como pionciros das geografias pés-modernas: Michel Foucault, John Berger, Ernest Mandel, Fredric Jameson, Marshall Berman, Nicos Poulantzas, An- thony Giddens, David Harvey e, em especial, Henri Lefebvre, cujo insistente e inspirador senso de espacialidade fizeram com que cu me sentisse menos solitério durante a ultima década. Essas personalidades nunca se descreveram como gedgrafos pds-modernos, mas creio que © sdo e procuro explicar porqué, apropriando-me seletivamente de suas descobertas.

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