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7 Liberté + Egalité + Fraternité REPUBLIQUE FRANGAISE Bate livro, publicado no ambito do Ano da Franga no Brasil ¢ do programs de iuaxilio A publicagio Carlos Drummond de Andrade, contou com 0 apoio do Ministério Francés das Relagies Exteriores e Enropeias. i Ano ch Franga no Brasil 21 de abril 15 de over Te: bo) € organizado, na Francs, pelo Comissariado N Geral Francés, pelo Ministério das Relagdes‘Exte- riores e Europeas, pelo Ministerio da Caltora e da Comunieago por Cale yelo Comissariado Geral Brasileiro, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Relagdes Exteriores & Branenis, le Ministdve des Affaires Etrangeres et Euro~ JEAN DELUMEAU HISTORIA DO MEDO NO OCIDENTE 1300-1800 Uma cidade sitiada Traducao Maria Lucia Machado ‘Tradugio de notas Helofsa Jahn Capitulo 3. 641 Capitulo 4 648 Capitulo § 653 Capitulo 6 656 Capitulo 7 662 Capitulo 8 665 Capitulo 9 669 Capitulo 10 673 Capitulo 11 680 Capitulo 12 685 Conclusio 689 Sobre 0 autor 695 INTRODUGAO O HISTORIADOR EM BUSCA DO MEDO 1, O SILENCIO SOBRE O MEDO. No século XVI, nio é fécil entrar 4 noite em Augsburgo. Montaigne, que visita a cidade em 1580, maravilha-se diante da “porta falsa”, protegida por dois guardas, que controla os viajantes chegados depois do pér do sol. Estes deparam, antes, de tudo, com uma poterna que primeiro guarda abre de seu quarto, situado a mais de cem passos dali, por intermédio de uma corrente de ferro, a qual puxa uma pega também de ferro “por um caminho muito longo e cheio de curvas”, Passado esse obstéculo, a porta volta a fechar-se bruscamente. O visi- tante transpée em seguida uma ponte coberta situada sobre tum fosso da cidade e chega a uma pequena praca onde declara sua identidade e indica o endereco que o alojaré em Augsburgo. O guarda, com um toque de sineta, adverte entio seu compa- nheiro, que aciona uma mola situada numa galeria proxima ao seu aposento, Essa mola abre em primeiro lugar uma barreira ¢ de ferro — e depois, com ausilio de uma grande roda, comanda a ponte levadiga “sem que nada se possa perce: ber de todos esses movimentos, pois siio conduzidos pelos pe- sos do muro e das portas, ¢ subitamente tudo isso volta a fe- — sem char-se com grande ruido”. Para além da ponte levadica bre-se uma grande porta, “muito espessa, que é de madeira e reforcada com varias grandes liminas de ferro”. Através dela 0 estrangeiro tem acesso a uma sala onde se vé encerrado, s6 ¢ sem luz, Mas outra porta semelhante & precedente permite-Lhe entrar numa segunda sala em que, desta vez, “h ele descobre um vaso de bronze que pende de uma corrente. Deposita ai o dinheiro de sua entrada, O (segundo) porteiro puxa a corrente, recolhe 0 vaso, v luz”, e onde rifiea a soma depositada i pelo visitante, Se nio ests de acordo com a tarifa fixada, porteiro 0 deixa “de molho até o dia seguinte”. Mas, se fica satisfeito, “abre-lhe da mesma maneira mais uma grossa porta semelhante as outras, que se fecha logo que passa, ¢ ei-lo na cidade”. Detalhe importante que completa esse dispositivo 20 mesmo tempo pesado ¢ engenhoso: sob as salas ¢ as portas existe “um grande porio para alojar” quinkentos homens de armas com seus cavalos, no caso de qualquer eventualidade. Se for necessirio, sio enviados para a guerra “sem a chancela do povo da cidade”, Precaugdes singularmente reveladoras de um clima de in- seguranca: quatro grossas portas sucessivas, uma ponte sobre um fosso, uma ponte levadica nio parecem excessivas para proteger contra qualquer surpresa uma cidade de 60 mil habi- tantes que é, na época, a mais povoada © a mais rica da ‘Alemanha, Num pais atormentado por querelas religiosas ¢ num império cujas fronteiras so rondadas pelos turcos, todo ngeiro € suspeito, sobretudo 4 noite. Ao mesmo tempo, -se do homem “comum” cujas “emogGes” sio impre- visiveis e perigosas, Assim, dé-se um jeito para que no perce- ba a auséncia dos soldados habitualmente estacionados sob 0 dispositive complicado da “porta falsa”. No interior desta, empregaram-se os tltimos aperfeigoamentos da metalurgia alema da época; gracas a isso, uma cidade particularmente cobicada consegue, se nao afastar completamente 0 medo para fora de seus muros, a0 menos enfraquecé-lo 0 suficient® para que se possa viver com ele, Os complicados mecanismos que outrora protegiam os habitantes de Augsburgo tém valor de simbolo, Pois nao s6 os individuos tomados isoladamente, mas também as coletividades ¢ as proprias civilizagdes estio comprometides mum dilogo permanente com o medo. No entanto, até o momento, a histo- Fiogratia pouco estudou 0 passado sob esse Angulo, a despeito do exemplo preciso — e muito esclarecedor — fornecido por 2 G. Lefebvre e dos votos expressos sucessivamente por ele ¢ por L. Kebvre. O primeiro escrevia, ji em 1932, em sua obra consa- grada ao Grande Medo de 1789: “No decorrer de nossa histéria houve outros medos antes e apés a Revolucio; houve medos também fora da Franca. Nao poderiamos encontrar-lhes um trago comum que langaria alguma luz sobre o de 17892". Fazendo-Ihe eco, L.. Febvre, um quarto de século mais tarde, esforgava-se por sua vez cm engajar 08 historiadores nese ca- minho, balizando-o com grandes tragos: Nao se trata [...] de reconstruir a historia a partir da exclusi- va necessidade de seguranga — como G, Ferrero estava ten- tado a fazer a partir do sentimento do medo (no fundo, de resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, © outro de ordem negativa, nao acabam por encontrar-se?) — trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos, de restituir scu quinhao legitimo a um complexo de senti- mentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, nfo pode deixar de desempenhar um papel capital na historia das sociedades humanas para nés préximas ¢ familiares." I. a esse apelo que tento responder por meio da presente obra, precisando desde o inicio trés limites de meu trabalho. O primeiro é aquele mesmo tragado por L, Febvre: nao se trata de reconstruir a histéria a partir do “exclusive sentimento de medo”. Tal redugio das perspectivas seria absurda, e é sem diivida demasiadamente simplista afirmar com G. Ferrero que toda civilizagao € 0 produto de uma longa luta contra o medo. Portanto, convido o leitor a lembrar-se de que projetei sobre o passado certo enfogue, mas de que hé outros, possiveis e dese- jiveis, suscetiveis de completar ¢ de corrigir 0 meu. As duas outras fronteiras sio as de tempo ¢ espaco. Busquei meus exemplos, de preferéncia — mas nem sempre — no periodo que vai de 1348 2 1800 no setor geogritico da humanidade ocidencal, a fim de dar coesio ¢ homogeneidade a minha expo- sigao e de nao dispersar a luz do projetor sobre cronologia e 2B periodos desmedidos. Nesse quadro, ficava por ser preenchido tim vazio historiogrfico que em certa medida vou esforgar-me em completar, bem ciente de que tal tentativa, sem modelo a ser imitado, constitui uma aventura intelectual, Mas uma aventura excitante, Por que esse siléncio prolongado sobre o papel do medo na histéria? Sem diivida, devido a uma confusio mental ampla- mente difundida entre medo ¢ covardia, coragem e temeridade, Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a lingua falada — o primeiro influenciando a segunda — tiveram por muito tempo a tendéncia de camuflar as reagées naturais que acompanham a tomada de consciéncia de um perigo por tras das falsas aparéncias de atitudes ruidosamente herdicas. “A palavra medo esti carregada de tanta vergonha’, escreve G. Delpierre, “que a escondemos, Enterramos no mais profundo de nés 0 medo que nos domina as entranhas” [ no momento — séculos XIV-XVI — em que comecam a avangar na sociedade ocidental o elemento burgués ¢ seus valores prosaicos que uma literatura épica € narrativa, encora- jada pela nobreza ameagada, reforca a exaltaedo sem nuanga da audacia, “Como a lenha nao pode queimar sem fogo”, ensina Froissard, “o fidalgo nfo pode chegar & honra perfeita, nem 4 gloria do mundo, sem proeza.”" ‘Trés quartos de século mais tarde, o mesmo ideal inspira o autor de Jehan de Saintré (por volta de 1456). Para ele, 0 cavaleiro digno desse titulo deve desafiar os perigd’ por amor da gléria ¢ de sua dama, B. “aque- Te que [4] faz tiinto que, entre os outros, ha noticias dele” — por faganhas guerreiras, entende-se.* Conquista-se tanto mais honra quanto mais se arrisca a vida nos combates desiguais. io esses 0 pio cotidiano de Amadis de Gaula, um herdi saido lo do romance bretio, que chega a fazer “tremer as mais feras selvagens”,’ Publicado na Espanha em 1508, tradu- zido para o francés a pedido de Francisco t, o Amadis de Gaula ¢ seus suplementos dio lugar, no século XVI, a mais de sessen- 4 ta edigdes espanholas ¢ grande quantidade de edligdes france- sas e italianas. Mais impressionante ainda € a fortuna de Orlando furioso, de Axiosto: cerca de 180 edigdes de 1516 a 1600. Orlando, “paladino insensivel a0 medo”, despreza naturalmente “o vil bando dos sarracenos” que 0 ataca em Roncevaux. Com a ajuda de Durandal, “os bragos, as cabecas, os ombros (dos inimigos) voam por todos os lados” (cap. XIt!). Quanto aos cavaleiros cristios que Tasso coloca em cena na Jerusalém libertada (1581), a0 chegar diante da cidade santa, agitam-se de impaciéncia, “antecipam-se ao sinal das trombe- s e dos tambores, e saem a campo com altos gritos de alegria” (cap. 11). A literatura das crdnicas é igualmente inesgoravel no que diz respeito a0 heroismo da nobreza e dos principes, sendo esses a flor de toda nobreza. Apresenta-os como impermed- veis a todo temor. Assim é com Jodo Sem Medo, que ganhou lcunha significativa em luta contra Liége, em 1408? Sobre Carlos, o Temerrio — outro apelido a destacar —, os elogios sio hiperbélicos. “Era altivo e de grande coragem; seguro no perigo, sem medo e sem pavor; e se um dia Heitor foi valente diante de’Troia, este o era outro tanto.” Assim fala Chastellain." B Molinet vai ainda mais longe depois da morte do duque: “Bra [..] a planta de honra inestimavel, o tronco de graca bem-aventurada, ¢ a drvore de virtude colorida, perfumada, frutuosa e de grande altitude”** Reveladora, por sua vez, a gloria que cerca Bayard durante sua vida, E 0 cavaleiro “sem temor ¢ irrepreensivel”. A morte do famoso fidalgo do Dau- phiné, em 1524, também deixa “toda nobreza de luto”. Pois, assegura o Leal Servidor, “em audicia pouca gente a ele se comparou. Em conduta, era um Fabio Maximo; em empresas sutis, um Coriolano, e em forga e magnanimidade, um segun- lo Heitor”. Esse arquétipo do cavaleiro sem medo, perfeito, € constan- temente realcado pelo contraste com uma massa considerada sem coragem. Virgilio jf escrevera: “O medo é a prova de um hascimento baixo” (Eneida, tv, 13). Tal afirmagio restou incon 1s teste por muito tempo. Commynes reconhece que os arqusiros se tornaram “a soberana coisa do mundo para as batalhas”. M . 6 preciso tranquiliz-los com a presenca de “grande quantidade de nobres e de cavaleiros”, ¢ dar-lhes vinho antes do combate a fim de cegé-los diante do perigo.” No cerco de Padua em 1509, Bayard se insurge contra a opinido do imperador Max iano, que pretendia colocar a gendarmaria francesa a pé © favé-la setae ao lado dos lansquenetes, “gente maquinal que nfo tem s honta em tio grande recomendagio quantos os fidalgos”: Montaigne atribui aos humildes, como uma caracteristica TP ca, a propensio ao pavor, mesmo quando sio soldados: pert bem couraceiros onde hé apenas um reba nho de ovelhi tomam canigos por lanceiros.” Associando, além disso, covar- Tine erueldade, ele assegura que uma e outra sio mais especial- mente proprias dessa “canalha de vulgo”." No século xv, ia Bruyére por sua vez. toma por certa a ideia de que a massa de camponeses, artestios ¢ crindos ndo é corajosa porque nao busea « enio pode buscar — a fama: “O soldado nfo sence que sea conhecido; morre obscuro € na multidio; vivia do mesmo fnodo, na verdade, mas vivia, ¢ essa é uma das origens da falta tHe coragem nas condigdes baixas e servis’. Romance e teatro ddestacaram por seu turno 2 incompatibilidade entre esses dois luniversos a0 mesmo tempo sociais € morais: © da valentia — ndwidual —- dos nobres, ¢ 0 do medo — coletive — dos pobres. Preparando-se dom Quixote para intervir pelo exéretto te Pentapolin contra 0 de Alifanfaron, Sancho Panga timida- mente Ihe faz ngtar que se trata simplesmente de dois rel anhos de carneiros. Merece esta resposta: “F. o medo que tens, Sancho, que te faz ver e entender tudo mal, Mas se teu pavor € to grande, afasta-te [.}. Sozinho, darei a vitria a0 exéreto 2 que levarel 0 socorro de meu brago”’* Faganhas individuals sempre, mas desta ver sacrilégios de dom Juan, “o enganadar de Sevilha”, que desafia 0 espectro do comendador, Deus ¢ jaferno, Naturalmente, seu criado vai de pavor em pavor e dom Juan 0 censura: “Que medo tens de um morto? Que farias tu se fosse um vivo? Tolo e plebeu temor”.” 16 Esse lugar-comum — os humildes sie medrosos — pode ser bem exemplificado na época da Renascenga por duas obser- vagoes, contraditorias em suas intengdes mas convergentes quanto ao ponto de vista que empregam e que se pode assim umir: os homens no poder fazem de modo a que 0 povo — essencialmente 0s camponeses — tenha medo. Symphorien Champier, médico ¢ humanista mas turiferirio da nobreza, escreve em 1510: “O senhor deve tirar prazer ¢ delicia das coi sas em que seus homens tém sofrimento ¢ trabalho”, Seu papel 60 de “manter terra, pois pelo pavor que os homens do povo tém dos cavaleiros eles trabalham e cultivam as terras por pavor ¢ medo de serem destruidos”.” Quanto a Thomas More, que contesta a sociedade de seu tempo situando-se, contudo, em uma imaginaria “Utopia”, afirma que “a pobreza do povo é a dlefesa da monarquia [..J. A indigéncia ea miséria eliminam toda coragem, embrutecem as almas, acomodam-nas a0 sofri inento ¢ 4 escravidio e as oprimem a ponto de tirar-Ihes toda energia para sacudir 0 jugo”! Essas poucas evocagdes — que teriamos podido multiplicar ndefinidamente — ressaltam as razdes ideolégicas do longo ‘ncio sobre o papel e a importéncia do medo na histéria dos homens. Da Antiguidade até data recente, mas com énfase no tempo da Renascenga, o discurso literrio apoiado pela icono- fprafia (retratos em pé, estatuas equestres, gestos e drapeados sjloriosos) exaltou a valentin — individual — dos herdis que yovernaram a sociedade. Era necessério que fossem assim, ou 0 menos apresentados sob essa perspectiva, a fim de justificar aos seus proprios olhos e aos do pova o poder de que estavam reves- tilos. Inversamente, 0 medo era o quinhdo vergonhoso — ¢ mum — ea razio da sujeigio dos plebeus. Com a Revolugio ancesa, estes conquistaram pela forca o direito 4 coragem. Mas 0 novo discurso ideoldgico copiou amplamente o antigo ¢ seguiu a tendéncia de camuflar o medo para exaltar 0 herofsmo dos humildes. Portanto, é 6 lentamente, a despeito das marchas Inilitares e dos monumentos aos mortos, que uma deserigio ¢ uma aproximagio objetivas do medo des: sil mbaracado de sua ve gonha comegaram mostrar-se, De maneira significativa, as primeiras grandes evocagées de panico foram equilibradas em contraponto por elementos grandiosos que proporcionavam como que desculpas para uma degringolada. Para Victor Hugo, foi a“Debandada, gigante de face assustada”, que venceu a cor: gem dos soldados de Napoleio em Ws campo faterloo; € “esse combinou tantas fraquezas/ Treme ainda de ‘No quadro de Goya intitulado 0 io um sinistro onde Deus ter visto a fuga dos gigantes”.* ‘panico (Prado), um colosso cujos punhos gotpeiam em va ‘céu carregado de nuvens parece justificar 0 amedrontamento de uma multidio que se dispersa precipitadamente em todas as diregdes. Depois, pouco a pouco, 2 precupacio com a verdade psicoligica prevaleceu. Dos Contos de Maupassant aos Diilogos das carmelitas de Bernanos, passando por La débacle de Zola, a literatura progressivamente restituin ao medo seu verdadeiro ugar, ao passo que a psiquiatria agora se inelina cada ver. mais sobre cle. Em nossos dias, sio incontiveis as obras cientificas, 08 romances, as autobiografias, os filmes que trazem no titulo o mnedo, Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos dominios, o negligenciou Em qualquer época, a exaltacio do heroismo é enganadora: discurso apologético, deixa na sombra um vasto campo da rea lidade, O que havia por trés do cenério montado pela litefatura cavalheiresea que gabava incansavelmente 2 bravura dos cava~ |eiros ¢ zombava da covardia dos plebeus? A propria Renascenga encarregou-se, ém obras maiores que transcendem todo con- formismo, de corrigit a imagem idealizada da valentia nobilié- ria, Ser que nos damos conta de que Panurgo ¢ Falstaff sio fidalzos, companheiros preferidos de futuros reis? O primeito declara, no navio desorientado pela tempestade, que daria uma renda de “180 mil escudos [.. a quem o colocasse em terra todo frouxo e defecado” como esti.” O segundo, coerente consigo mesmo, resigna-se em ser desprovido de honra: 18 Que necessidade tenho de ir [..] ao encontro do que nto se dirige a mim [trata-se da morte}? (...] Pode a honra devol- ver uma perna? Nao. Um brago? No. Eliminar a dor de um ferimento? Nao. A honra nao entende nada de cirur- gia? Nao. O que é a honra? Uma palavra. O que hi palavra honra? Um sopro [..] Desse modo, niio quero saber dela, A honra é uma simples insignia, e assim termina meu catecismo." nessa Aspero desmentido a todos os “diflogos de honra” do sécu- Jo xvi! Existem outros, no periodo da Renascenga, em obras que de modo algum eram de fiega0, Commynes & uma teste- munha preciosa a esse respeito, pois ousou dizer 0 que os demais cronistas calavam sobre a covardia de certos grandes. Relatando a batalha de Montlhéry, em 1465, entre Luis x1 e Carlos, 0 ‘Temerério, declara: “Jamais houve fuga maior dos dois lados”. Um nobre francés se foi numa s6 Lusignan; um senhor do conde de Charolais, partindo em sen- tido contririo, s6 parou no Quesnoy. “Esses dois nfo tinham preocupacio de atingir um a0 outro.” No capitulo que consa- gra a0 “medo” ¢ 3 “punicao da covardia’, também Montaigne menciona a conduta pouco gloriosa de certos nobres: caminhada até (No cerco de Roma, 1527,] foi memorsvel o medo que aper- tou, tomou e gelou tio fortemente o coracio de um fidalgo que ele caiu duro morto em combate, sem nenhum ferimen- to.” No tempo de nossos pais, lembra ele ainda, o senhor de Franget [..., governador de Fontarabie [..J, tendo-a entre- gue aos espanhdis, foi condenado a ser destituido de no~ breza, e ranto ele quanto sua posteridade foram declarados plebeus sujeitos a impostos, e incapazes de usar as armas; ¢ foi essa rude sentenca executada em Lyon. Depois sofre- ram semelhante punicio todos os fidalgos que se encontra- vam em Guise, quando 0 conde de Nassau ali penetrou [em 1536); depois: y Medo ¢ covardia nao sio sindnimos. Mas € preciso se per- guntar se a Renascenca nao foi marcada por uma tomada de consciéncia mais nitida das maltiplas ameagas que pesam sobre os homens no combate ¢ em outras situages, neste mundo € no outro. Dai, por virias vezes perceptivel nas crénicas da época, a coabitagio em una mesma personalidade de comportamen- tos corajosos e de atitudes temerosas. Filippo-Maria Visconti (1392-1447) empreendeu guerras longas ¢ diffceis. Mas manda~ ya revistar todas as pessoas que entravam no castelo de Milo ¢ proibia que se parasse perto das janelas. Acreditava nos astros € na fatalidade e invocava ao mesmo tempo a protecio de uma iio de santos. Esse grande leitor dos romances de cavalaria, esse fervoroso admirador de seus herdis, no queria ouvir falar zendo até expulsar do castelo seus favoritos quando Ise pare- da morte, fa: agonizavam. Morreu, todavia, com dignidade.” Luis ce com ele em mais de um aspecto. Esse rei inteligente, pruden- Jo careceu de coragem em graves circuns- ndo o advertiram we ¢ desconfiado, 1 tAneias, como na batalha de Montlhéry ou qu: de seu fim préximo — noticia, escreve Commynes, que “supor- tou virtuosamente, ¢ todas as outras coisas, até a morte, e mais que qualquer homem que eu jamais tenha visto morrer”. Contudo, esse soberano que criou uma ordem de cavalaria foi desprezado por virios de seus contemporineos que o julgaram um “homem amedrontado” e “era verdade que o era”, precisa Commynes. Seus temores agravaram-se no fim da vida. Gomo o tiltimo dos Visconti, caiu “em extraordinaria suspeita de todo ‘0 mundo”, s6 querendo perto dele os “criados” ¢ quatrocentos arqueiros que o protegiam com uma guarda continua. Ao redor do Plessis, “mandou fazer uma grade de grossas barras de fer~ ro”, Mandou também “fixar” nas muralhas do castelo “espetos de ferro de varias pontas’." Alabardeiros tinham ordem de atirar em qualquer um que se aproximasse & noite da re real, Medo das conjuracées? Mais amplamente, temor da mor- te. Doente, enviaram-lhe de Reims, Roma ¢ Constantinopla das quais esperava a cura, Tendo mandado reliquias preciosa 20 buscar © santo eremita Francisco de Paula nos confins da Calabria, langou-se a seus pés quando ele chegou ao Plessis “a fim de que Ihe concedesse prolongar sua vida”, Commynes jerescenta este outro trago que aproxima mais uma vez. Luis Xt de Filippo-Maria Visconti J Jamais um homem temeu tanto a morte, nem fez tantas coisas para encontrar-Ihe remédio: ¢ todo o tempo de sua vida, pedira a seus servidores ¢ a mim, como a outros, que, se 0 vissemos nessa afligio de morte, que nao Ihe dissésse~ mos, a nao ser tao somente: “falai pouco” € que o inci semos apenas a confessar-se sem Ihe pronunciar essa cruel palavra da morte, pois Ihe parecia jamais ter coragio para ouvir tio cruel sentenga." is De fato, ele a suportou “virtuosamente”, embora © culo nao tenha respeitado a instrugio real. O mais nobre dos nobres, 0 chefe de uma ordem de cavalaria, confessa portanto que tem medo, como logo o fario Panurgo e Falstaff. Mas, a0 contririo destes, cle o faz sem cinismo e, chegado o momento temido, nao se conduz como covarde. A psicologia do soberano hilo pode ser separada de um contexto histérico onde abundam dangas macabras, artes moriendi, sermdes apocalipticos ¢ ima- gens do Juizo Final. Os temores de Luis sao os de um homem {jue se sabe pecador e teme o inferno. Ele faz peregrinacées, vontessa-se com frequéncia, homenageia a Virgem ¢ os santos, feline reliquias, faz largas doagdes as igrejas ¢ as abadias.” Assim, a atitude do rei é reveladora, para além de um caso indi vidual, da escalada do medo no Ocidente na aurora dos tempos iste uma relagio entre consciéneia dos perigos ¢ hivel de cultura? E 0 que sugere Montaigne em uma passagem {Jos Ensaios onde, com. humor, estabelece uma relago entre a Jo intelectual dos povos do Ocidente, de um lado, ¢ seus Comportamentos na guerra, do outro: 21 ‘Um senhor italiano, relata ele sorrindo, sustentou uma vez cata afirmagio em minha presenga, em detrimento de sua hago: que a sutilera dos italianos ¢ a vivacidade de suas concepgées era tio grande, previam de to longe os peri wos e acidentes que Thes pudessem advir que nao se devia char estranho se eram vistos frequentemente, na guerra, prover sua segruranga, até mesmo antes de ter reconhecido 6 perigo; que nds e os espanhéis, que nao éramos to finos, famaos mais além, € que nos era necessirio fazer ver 20 olho de nos amedrontarmos € ¢ tocar com a mio 0 perigo ant {que envio nfo tinhamos mais firmeza; mas que 0s alemies a pe euicos, mais grosseiros e mais pesaddes, no tinkam © Senso de se precaver, quando muito no momento mesma m abatidos sob os golpes."* em que estav: Generalizagdes irdnicas ¢ talvez, sumérias, que tém no entanto o mérito de ressaltar o elo entre medo € lucider. tal como ele se estabelece na Renascenga — uma lucider solidaria de um progresso do equipamento mental - Refinadlos que somos por um longo passado cultural, nio somos hoje mais frageis diante dos perigos € mais permeivels do medo do que nossos ancestrais? F. provavel que os cavaleiros deoutrora, impulsivos, habituados 's guerras € aos duelos ¢ que lade nas disputas, fossem menos ge lancavam com impetuosid: ; venseientes dos perigos do combate do que os soldados do séeulo XX, portanto menos sensiveis ao mnedo. Em nossa époci, tim todo caso, o medo diante do inimigo tornou-se a regra. De las no exército americano na Tunisia e no sondagens eferyad: 2 Pacifico no decorrer da Segunda Guerra Mundial, resulta que apenas 1% dos homens declarou jamais ter tido medo.* Outras sondagens realizadas entre os aviadores americanos durante 0 r nteriormente, entre os voluntirios da A. {vil Espanhola colheram mesmo conflito e, Lincoln Brigade quando da Guerra Ci resultados andlogos.’ 2.0 MEDO E NATURAL Quer haja ou nfo em nosso tempo mais sensibilidade a0 inedo, este € um componente maior da experiéncia humana, a despeito dos esforgos para supers-lo.” “Nio hi homem acima do medo”, escreve um militar, “e que possa gabar ” Um guia de montanha a quem se faz a pergunta eu-lhe sentir medo2” responde: “Sempre se tem medo da tempestade quando a ouvimos crepitar nas rochas. Isso artepia os cabelos debaixo da boina”.” O titulo da obra de Jakov Lind, La peur est ma racine, no se aplica s6 ao caso de uma cianca judia de Viena que descobre o antissemitismo. Pois 0 medo “nasceu com o homem na mais obscura das eras”.”” “Ele esté em nés [..] Acompanha-nos por toda a nossa existéneia.”™ Gitando Vercors, que dé esta curiosa definigdo da natureza huma- ha — os homens usam amuletos, os animais no os usam —, Mare Oraison conclui que o homem é por exceléncia “o ser que tem medo”.” No mesmo sentido, Sartre escreve: “Todos os homens tém medo. ‘Todos. Aquele que nfo tem medo no € normal, isso nada tem a ver com a coragem”.” A necessidade de seguranga € portanto fundamental; esta na base da afetividade ¢ da moral humanas. A inseguranga é simbolo de morte, ¢ a seguranca simbolo da vida. O companheiro, o anjo da guarda, 0 amigo, o ser benéfico é sempre aquele que difunde a seguran- gas Assim, € um erro de Freud “no ter levado a andlise da nguistia ¢ de suas formas patogénicas até o enraizamento na necessidade de conservagao ameagada pela previsio da morte”. O animal ndo tem ciéneia de sua finitude. © homem, ao con~ inirio, sabe — muito cedo — que morrers. F, pois, 0 “iinico no {nundoa conhecer o medo num grau to temivel ¢ duradouro”." Além disso, nota R. Caillois, 0 medo das espécies animais \inico, idéntico a si mesmo, imutavel: o de ser devorado. “Eo inedo humano, filho de nossa imaginagao, nao é uno mas mul liplo, nio fixo mas perpetuamente cambiante."” Dai a jecessidade de escrever sua histéria, No entanto, o medo é ambiguo. Inerente 4 nossa natureza, se de a ele uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensivel que permite a0 organismo escapar provi- soriamente 3 morte, “Sem o medo nenhuma espécie teria sobrevivido."* Mas, se ultrapassa uma dose suportivel, ele se torna patoldgico ¢ cria bloqueios. Pode-se morrer de medo, ou a0 menos ficar paralisado por cle. Maupassant, nos Contos da galinbola, descreve-0 como uma “sensacio atroz, uma decom- posicio da alma, um espasmo horrivel do pensamento © do coragfo de que s6 a lembranga dé arrepios de angiistia”.”" Por causa de seus efeitos por vezes desastrosos, Descartes o identi= fica com a covardia, contra a qual nio se poderia muito prote- ger-se com antecedén [.J O medo ou 0 pavor, que é contrério 3 audécia, nao é ape- nas uma frieza, mas também uma perturbacio ¢ um espanto da alma que lhe tiram o poder de resistir aos males que cla pensa estarem préximos [..] Desse modo, niio é uma paixio particular; € apenas um excesso de covardia, de assombro ¢ de temor, 0 qual é sempre ® porque a principal causa do medo é a surpresa, ndo ha nada melhor para dele isentar-se do que usar de premeditagio e preparar-se para todos os acontecimentos cujo temor pode causi-lo.* Simenon declara da mesma maneira que o medo é um “{nimigo mais perigoso do que todos os outros”. Ainda hoje, indigenas — e até mestigos — de aldeias afastadas do México conservam entre seus conceitos o de doenga do pavor (espanto ou susto): um dotnte perdeu a alma em razio de um pavor. Espantar-se “deixar a alma em outra parte”. Pensa-se nto que ela é retida pela terra, ou por pequenos seres maléficos chamados chanegues. Daf a urgéncia de ir a uma “curandeira de terror”, que, gracas a. uma terapéutica apropriada, permitira & alma reintegrar-se a0 corpo de que escapou." Esse comporta- mento no deve ser comparado ao dos camponeses do Perche, cujas priticas “supersticiosas” foram descritas pelo padre J.-B. mu no século XVU? Para precaver-se contra o medo, carre fiavam com eles olhos ou dentes de lobo, ou ainda, se a poss hilidade se apresentava, montavam num urso ¢ davam virias Voltas em cima dele. O medo pode com efeito tornar-se causa da involugio dos individuos, e Mare Oraison observa a esse respeito — voltarei jesse tema em um segundo volume — que a regressfio para o medo € o perigo que espreita constantemente o sentimento tcligioso." Mais geralmente, quem quer que seja presa do medo corre o tisco de desagregar-se, Sua personalidade se fende, “a Impressio de conforto dada pela adesio 20 mundo” desaparece; o ser se torna separado, outro, estranho. O tempo para, 0 espaco encolhe”." F 0 que acontece a Renée, a esquizofrénica estudada pela sra. Sachehaye: num dia de janeiro, experimenta pela primeira vez o medo que lhe é provocado, acredita ela, por {um forte vento anunciador de higubres mensagens. Logo esse mnedo, crescendo, aumenta a distancia entre Renée e 0 mundo exterior, cujos elementos perdem progressivamente sua realida- de.” A doente confessou mais tarde: “O medo, que antes era ¢pisédico, nio me abandonava mais. Sentia-o todos os dias, linha certeza. E depois também os estados de irrealidade jumentavam”.” Coletivo, 0 medo pode ainda conduzir a comportamentos therrantes e suicidas, nos quais a apreensio correta da realida- le desaparece: como esses pinicos que escandiram a histéria tecente da Franga depois de Waterloo até o éxodo de junho de Dp. Zola descreveu fielmente os que resultaram na derrota dle 1870: galopavam no espanto, e tal tempestade de va, arrebatando ao mesmo vempo os vencidos os vencedores, que num instante os dois exércitos estavam perdidos, nessa perseguiggo, em pleno dia, fugindo Mac- -Mahon na diregio de Lunéville, e 0 principe real 0 procu- rava do lado dos Vosgues, Em 7 [de agosto}, 0s restos do l* corpo atravessavam Saverne, assim como um tio limoso € 25 transbordado, carreando destragos. Em 8, em Sarrebourg, © 5 corpo vinha tombar no 1° como uma torrente agitada puma outra, em fuga ele também, vencido sem ter comba- tido, arrastando seu chefe, o general De Failly, desatinado, enlouguecido de que se fizesse remontar A sua inaglo a res- ponsabilidade da derrota. Em 9, em 10, a galopada conti- Poava, um salye-se quem puder furioso que nem sequer olhava para tras. Compreende-se por que os antigos viam no medo uma punigio dos deuses, e por que 0s gregos divinizaram Deimos (0 Temor) ¢ Fobos (0 Medo), esforcando-se em coneiliar-se com eles em tempo de guerra. Os espartanos, nagio militar, con- Sngraram uma pequena edicula 2 Fobos, divindade a quem Alexandre ofereceu um sacrificio solene antes da batalha de “Arbelos. Aos deuses homéricos Deimos e Fobos correspondiam ‘k divindades romanas Pallor ¢ Pavor, 3s quais, segundo Tito Livio, Tulo Hostilio teria decidido consagrar dois santudrios a0 ver seu exército debandar diante dos estrangeiros. Quanto a Pa, nna origem deus nacional da Areidia que, 20 eair do dia, espa hava o tertor entre os rebanhos ¢ 0s pastores, a partir do sécu- Io tornou-se uma espécie de protetor nacional dos gregos. Os arenienses attibuiram-Ihe a derrota dos persas em Maratona € levantaramt-Ihe um santudrio na Acrépole, homenageado toclos oe anos com sacrificios rituais € corridas com tochas. A vor dlisconamte de P3 teria semeado a desordem na frota de Xerxes fim Salamina ¢, mais tarde, detido a marcha dos gauleses sobre Delfos.” Assim os antigos viam no medo um poder mais forte dlo que os homens, cujas gragas contudo podiam ser ganhas por meio de oferendas apropriadas, desviando entio para 0 inimigo sua agao aterrorizante. E haviam compreendido — e em certa media confessado — o papel essencial que ele desempenha nos destinos individuais e coletivos. © historiador, em todo caso, mio precisa procurar muito para identificar a'presenca do medo nos compartamentos de tgrupos. Dos povos ditos “primitives” as sociedades contempo- L r encontra-o quase a cada passo — ¢ nos setores mais 1s da existéncia cotidiana, Como prova, por exemplo, as aras muitas vezes apavorantes que intimeras civilizagdes eee no decorrer das eras em suas liturgias. Escreve R. aillois: Miscara ¢ medo, mascara e pénico esto constantemente presentes juntos, inextricavelmente emparelhados [...] [0 homem] abrigon atrés desse segundo rosto seus éxtases € suas vertigens, ¢ sobretudo o trago que ele tem em comum com tudo 0 que vive e quer viver, o medo, sendo a méscara 20 mesmo tempo tradugao do medo, defesa contra o medo ¢ meio de espalhar o medo.! E cabe a L. Kochnitzky explicitar, a propdsito dos casos Africanos, esse medo que a mascara simualtaneamente camufla ¢ txprime: “Medo dos génios, medo das forgas da natureza, medo los mortos, dos animais selvagens a espreita na selva e de sua Vinganga depois que 0 cagador os matou; medo de seu seme- jhante que mata, viola e até devora suas vitimas; e, acima de {uilo, medo do desconhecido, dle tudo que precede € segue a hyreve existéncia do homem”.” “ Mudemos voluntiria ¢ bruscamente de tempo e de civili- Joio e mergulhemos por um instante na modernidade econd- Iniea, Nesse dominio, escreve A. Sauvy, “onde tudo é incerto, onde o interesse esti constantemente em jogo, o medo (ontinuo”.Os exemplos que o provam sio inimeros, das desor- lens da rua Quincampoix no tempo de Law & “quinta-feira Hegra” de 24 de outubro de 1929, em Wall Street, passando jrla depreciasio dos asignats* e a degringolada do marco em 1023, Em todos esses casos, houve pinico irrefletido por con- {iio de um verdadeiro medo do vazio. O elemento psicolégi- 0, isto é, a louca inquictacio, ultrapassou a s ‘d anélise da * Papel-moeda emitido no periodo d Revolugio Francesa. (N.E) conjuntura. Mais lucidez e sangne-frio, assim como menos apreensio excessiva com o futuro por parte dos detentores de promissérias ¢ de ages, teriam sem diivida permitido conti- nuar a experiéncia de Law, conter em limites razodveis as desvalorizagées respectivas do assignat revolucionario, mais tarde do marco de Weimar, ¢ sobretudo permitido controlar melhor, em consequéncia do craque de 1929, a queda da pro- ducio € 6 crescimento do desemprego. Os movimentos da o conhe- Bolsa, de que dependem tantos destinos humanos, cem afinal seno uma regra: a alternancia de esperancas imo- deradas e de medos irrefletidos. Atento a essas evidéncias, o pesquisador descobre, mesmo no decorrer de um sobrevoo rapido do espago e do tempo, 0 niimero ea importancia das reagdes coletivas de temor. A cons- tituicio de Esparta era fundada sobre ele, sistematizando a organizagao dos “iguais” em casta militar. Mobilizados perma- nentemente, aguerridos desde a infancia, viviam sob a constan- te ameaga de uma revolta dos hilotas. A fim de os paralisar pelo medo, Esparta precisou modificar-se ela propria cada vez mais radicalmente. As medidas “aloplisticas” iniciais dirigidas con- tra os hilotas logo acarretaram medidas “autoplisticas” ainda mais rigorosas “que transformaram Esparta em um campo fortificado”.® Mais tarde, a Inquisicio foi semelhantemente motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar ren cente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja. Em nosso tempo, 6 fascismo ¢ o nazismo beneficiaram-se dos alarmes dos detentores de rendas e dos pequenos burgueses que temiam as perturbacées sociais, a ruina da moeda ¢ 0 comunis- mo. As tensdes raciais na Africa do Sul ¢ nos Estados Unidos, a mentalidade obsidional que reina em Israel, 0 “equilibrio do terror” mantido pelas superpoténcias, a hostilidade que opde a China ¢ a Unido Soviética sio umas tantas manifestagdes dos medos que atravessam e dilaceram nosso mundo. Ss Talvez seja por nossa época ter inventado 0 neologismo urisar que esta mais apta— ou menos mal armada — do que outras para langar sobre o passado esse olhar novo que busca descobrir 0 medo. Tal pesquisa visa, no quadro espaco-tempo- ral preciso estipulado aqui, a penetrar nos méveis ocultos de uma civilizagio, descobrir-Ihe os comportamentos vividos mas por vezes inconfessados, apreendé-la em sua intimidade e em seus pesadelos para além dos discursos que cla pronunciava sobre si mesma, 3. DO SINGULAR AO COLETIVO: POSSIBILIDADES F DIFICULDADES DA ‘TRANSPOSIGAO* Nada é mais dificil de analisar do que o medo, € a dificul- dade aumenta ainda mais quando se trata de passar do indivi. (ual ao coletivo. As civilizagdes podem morrer de medo como As pessoas isoladas? Assim formulada, essa pergunta poe em \cia as ambiguidades veiculadas pela linguagem corren- {o, que muitas vezes no hesita diante dessa passagem do sin= ular ao geral. Péde-se ler recentemente nos jornais: “Depois th guerra do Kippur, Israel esté em depressio”, Semelhantes tunsposigdes no sio novas. Na Franga, na Idade Média, thamavam-se “pavores” as “rebelides” as “loucas comogdes” this populagdes revoltadas, querendo com isso expressar o ter- For que espalhavam mas que também sentiam."' Mais tarde, os {ranceses de 1789 chamaram de Grande Medo o conjunto dos {ulsos alertas, paradas militares, saques de castelos e destrui- ges de es os provocados pelo temor de um “complo Anistoc © povo com a ajuda dos bandidos e das poténcias estrangeiras. No entanto, é arriscado aplicar pura e Aiplesmente a todo um grupo humano anslises vilidas para * Agradeco fortemente 8 sta. dra. Denise Pawlorsky-Mondange, dizetora ile Win centro médico-psicopedagégico em Rennes, por ter acetal ler esta slo de minha introdueZo e fornecer-me suas observagies. 29 J) sob 0 efeito das agressdes repetidas de nossa época, nem emprega com discernimento. w utilizar esse quadro clinico no nivel coletivo? poryunta prévia — o que se entende por coletivo? Pois esse \slivo tem dois significados. Pode designar uma multidio untebatada em debandada, ou sufocada de apreensio em I\yequéncia de um sermao sobre o inferno, ou ainda liberada iiedo de morrer de fome por meio do ataque a comboios toreal, Mas significa cambém um homem qualquer na wilidade de amostra anénima de um grupo, para além da jucificidade das reagdes pessoais de tal ou tal membro do po. ‘Tratando-se do primeiro significado de coletiva, é provavel um individuo tomado em particular. Os mesopotimicos acre ditavam na realidad de homens-escorpides, cuja visio bastava para causar a morte. Os gregos estavam igualmente conven cides de que toda pessoa que encarasse uma das gérgonas ficava instantaneamente petrificada. Nos dois casos, tratava- se da versio mitica da experiéncia: a possibilidade de qualquer uum morrer de medo. Certamente € dificil generalizar essa constatacio que, no plano individual, ¢ indiscutivel; mas como no partir assim mesmo, para tentar a passagem do singular a0 plural, do estudo dos medos pessoais cujo quadro ganha cada dia em precisio (jé que agora se sabe desencadear reagdes de medo, de fuga, de agressio ou de defesa em macacos, gatos ou ratos, provocando lesdes nervosas no Ambit do sistema limbico}? Wp 4» reagdes de uma multido tomada de pinico ou que libera No sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) ihiiumente sua agressividade resulvem em grande parte da 6 uma emogio-choque, frequentemente precedida de surpresa, igo dle emogSes-choques pessoais tais como a medicina psi provocada pela tomada de consciéncia de um perigo presente wiomitica nos faz conhecé-las. Mas isso s6 é verdade em urgente que ameaga, cremos nés, nossa conservagao. Colocado {4 medida. Pois, como o pressentira Gustave Lebon,” os em estado de alerta, o hipotalamo reage mediante mobilizagio |portamentos de multidao exageram, complicam e transfor- global do organismo, que desencadeia diversos tipos de com- iNiti 08 excessos individuais. Com efeito, entram em jogo portamentos somiiticos e provoca sobretudo modificagbes en- ores de agravamento. O pinico que se apodera de um exér- décrinas. Como toda emogio, 0 medo pode provocar efeitos ily) vitorioso (como o de Napoledo na noite de Wagram)" ou dos segundo os individuos € as circunstancias, ou até Hssa dos clientes de um bazar em chamas ser tanto mais 30 dos movi- 1 quanto for mais fraca a coesio psicolgica entre as pessoas juidas de medo. Nas sedigées de outrora, muito frequente~ contr: reagdes alternadas em uma mesma pessoa: celera mentos do coracio ou sua diminuigio; respirago demasiada- mente ripida ou lenta; contragio ou dilatagio dos vasoS san- Wile, as mulheres davam o sinal da agitagio, e depois da rebe- guincos; hiper ou hipossecregio das glandulas; constipacdo ou ip," arrastando atrés de si homens que, em casa, nfo gostavam diarreia, politira ‘ou antiria, comportamento de imobilizacao Hii im pouco de deixar-se levar pela esposa. Além disso, os ou exteriorizagio violenta. Nos casos-limite, a inibigio pode sintamentos humanos so mais sensiveis & ado dos chefes do chegara uma pseudoparalisia diante do perigo (estados catalép- {iil 0 seriam as unidades isoladas que os compoem. ticos), ¢ 2 exteriorizagio resultart numa tempestade de movi Mais geralmente, os caracteres fundamentais da psicologia mentos desatinados ¢ inadaptados, caracteristicos do pinico.“ iy ima multiddo sao sua capacidade de ser influenciavel, o Ao mesmo tempo manifestagio externa e experiéncia interior, ‘iniler absoluto de seus julgamentos, a rapidez dos contdgios ‘o de medo libera, portanto, uma energia desusada e a liv) atravessam, o enfraquecimento ou a perda do espirito difunde por todo o organ Essa descarga é em si uma rea- ‘itico, a diminuigao ou o desaparecimento do senso da respon- cdo utilitéria de legitima defesa, mas que 0 individuo, sobre- ilidade pessoal, a subestimacio da forga do adversario, sua a 31 30 capacidade de passar subitamente do horror ao entusiasino ¢ das aclamagoes As ameagas de morte! Mas, quando evocamos 0 medo atual de entrar no carro para uma longa viagem (trata-se na realidade de uma fobia cuja origem reside na experiéncia do sujeito) ou quando lem- bramos que nossos ancestrais temiam 0 mar, os Jobos ¢ os fantasmas, ndo nos remetemos a comportamentos de multi- dio, e fazemos menos alusio 4 reagio psicossomitica de uma pessoa petrificada no lugar por um perigo repentino ou que foge as pressas para dele escapar do que a uma atitude bas- tante habitual que subentende e totaliza muitos pavores indi- viduais em contextos determinados e faz prever outros em casos semelhantes. O termo medo ganha ento um significado menos rigoroso mais amplo do que nas experiéncias indi- viduais, ¢ esse singular coletivo recobre uma gama de emo- «Bes que vai do temor ¢ da apreensio aos mais vivos terrores. O mmedo é aqui o hibito que se tem, em um grupo humano, de temer tal ou tal ameaca (real ou imaginéria). Pode-se entio legitimamente levantar a questio de saber se certas civilizagdes foram — ou so — mais temerosas que outras; ou formular esta outra interrogacio a que © presente ensaio tenta responder: sera que, em certo estigio de seu desenvol- vimento, nossa civilizagao europeia nfo foi assaltada por uma perigosa conjungio de medos diante dos quais precisou rea- gir? FE. essa conjungio de medos, nao se pode chamé-la globalmente de “o Medo"? Essa generalizagio explica 0 titulo de meu livro, que retoma de maneira mais ampla ¢ sistematica formulas empregadas aqui ou ali por iminentes hhistoriadores que falaram de “escalada” ou de “recuo” do medo.” ‘Tratando-se de nossa época, a expressio “doengas da civilizagio” se tornon familiar ¢ com ela denotamos 0 impor- tante papel desempenhado pelo modo de vida contempori- neo. De outra maneira, seré que um actimulo de agressOes € de medos, portanto de estresses emocionais, nao provocou no Ocidente, da peste negra as guerras religiosas, uma doenca 32 \ 40 ocidental da qual ela finalmente saiu vitoriosa? 0s cabe, por uma espécie de andlise espectral, individu | ox medos particulares que entio se adicionaram para #Meclos particulares’, ou seja, “medos nomeados”. Aqui po- {ornar-se operatéria ‘no plano coletivo a distingso que a iiviatria agora estabeleceu no plano individual entre medo e yilstia, outrora confundidos pela psicologia classica. Pois se Miiie dois polos em torno dos quais gravitam palavras e fatos Ivico8 ao mesmo tempo semelhantes e diferentes. O temor BiMiinito, © pavor, o terror dizem mais respeito a0 medo; a IWlelugio, a ansiedade, a melancolia, & angdstia. O primeiro ¥eK6 20 conheciclo; a segunda, a0 desconhecido.* O medo umn objeto determinado 20 qual se pode fazer frente. A yfistin nio 0 tem e é vivida como uma espera dolorosa diante Win perigo tanto mais temivel quanto menos claramente iflendo: ¢ um sentimento global de inseguranga. Desse ilo, cla & mais dificil de suportar que o medo. Estado ao Wino tempo organico ¢ afetivo, manifesta-se de modo corri- Hto (0 ansiedade) por “uma sensagdo discreta de aperto da yaa, de enfraquecimento das pernas, de tremor”, acres- ili'N apreensio com o futuro; e, em sua forma mais aguda, {iii crise violenta: , Pruscamente, a noite ou de dia, o doente é tomado por \ijna sensagio de constrigao tordcica com opressio respira- (Orla e impressio de morte iminente. Da primeira vez, ele Uwe com razdo um ataque cardiaco, a tal ponto a sensigio ile angistia assemelha-se ao angor*, com o qual a lingua- on aponta a semelhanga. Se os episGdios se repetem, 0 Wtdprio doente reconhece seu carter psicogénico. Isso nob paaaesimar nem sss sensagtes nem seu edo Ada mvore *Volives latina que significa “angiistia” e “angina”. (NT) Nos obsedados a angiistia torna-se neurose, ¢ nos melancé~ licos uma forma de psicose. Porque a imaginagio desempenha ‘um papel importante na angéstia, esta tem sua causa mais no individuo do que na realidade que o cerca, e sua duragio nao esta, como a do medo, limitada ao desaparecimento das amea- gas. Assim, ela é mais propria do homem do que do animal. Distinguir entre medo e angiistia nio significa, porém, ignorar seus ]agos nos comportamentos humanos. Medos repetidos podem eriar uma inadaptagao severa em um sujeito ¢ conduzi- ‘lo a um estado de inquietagio profunda gerador de crises de anguistia. Reciprocamente, um temperamento ansioso corre 0 isco de estar mais sujeito aos medos do que um outro. Além disso, o homem dispoe de uma experiéncia tio rica ¢ de memoria tio grande que sem diivida s6 raramente experimenta medos que nio estejam em algum grau penetrados de angiistia. ‘Ainda mais do que o animal, ele reage a uma situagio desenca- deadora em fungio de sua experiéncia anterior ¢ de suas “Jem brangas”. Assim, nfo é sem razdo que a linguagem corrente confunde medo ¢ angustia,* o que desse modo inconsciente- mente leva 4 compenetracio dessas duas experiéncias, ainda que os casos-limites permitam diferencii-las com nitidez Como o medo, a angistia ¢ ambivalente, & pressentimento do insdlito e espera da novidade; vertigem do nada e esperanga de plenitude. E a0 mesmo tempo temor e desejo, Kierkegaard, Dostoiévski e Nietzsche colocaram-na no coracao das reflexdes filosoficas. Para Kierkegaard, que publicou em 1844 s\fa obra sobre o conceito de angtistia, ela é 0 simbolo do destino huma: no, a expressio de sua inquietacao metafisica. Para nds, homens do século Xx, eft tornou-se a contrapartida da liberdade, a emo- cio do possivel. Pois liberar-se € abandonar a seguranga, enfren tar um risco. A angiistia ¢ entio a caracteristica da condi¢io humana eo peculiar de um ser que se cria incessantemente. Reduzida ao plano psiquico, a angtistia, fendmeno natural a0 homem, motor de sua evolucio, € positiva quando prev ameacas que, por serem ainda imprecisas, nem por isso sio menos reais. Fstimula entio a mobilizagio do ser. Mas uma 34 jnulio demasiadamente prolongada pode também criar um ul de desorientagzo e de inadaptagao, uma cegueira afetiva, I) proliferagio perigosa do imaginsrio, deseneadeando um hiimo involutive pela instalagio de um clima interior de juninga. F especialmente perigosa sob a forma de angdstia Aljjaili, Pois o sujeito vira entio contra si as forcas que deve- sor mobilizadas contra agressGes externas € torna-se para /jhipano seu principal objeto de temor. Porque é impossivel conservar o equilibrio interno afron- ilo por muito tempo uma angistia incerta, infinita ¢ indefi- 1, € necessirio ao homem transformé-la e fragmenté- Joy precisos de alguma coisa ou de alguém. “O espirito ypistia mérbida que resultaria na aboligao do eu 4) «jue reencontraremos no estgio de uma civilizagio. Em Hi) sequéncia longa de traumatismo coletivo, o Ocidente ven {i anpiistia “nomeando”, isto é, identificando, ow até “fabri i He" inedos particulares. distingao fundamental entre medo e angiistia, que forne- portanto uma das chaves do presente livro, convém acres- Wir, sem pretender esgotar a questio, outras abordagens uplementares gragas As qua dos casos individuais il 0 compreender as atitudes coletivas. Desde 1958 a teoria Mixagio”,* ultrapassando a psicandlise freudiana, colocou ovidéneia que o laco entre o filho ¢ a mie nfo é 0 resultado {Winn satisfagio ao mesmo tempo nutritiva ¢ sexual, nem a Hiequéncia de uma dependéncia emocional do bebé em rela- Winie. Essa “fixacio” € anterior, primdria. E também a Jy mais segura de uma tendéncia original e permanente de ar a relagio com outrem. A natureza social do homem Jue desde entio como um fato biolégico, e & nesse subsolo ilinvlo que estariam mergulhadas as raizes de sua afetivida- Vina crianga a quem terao faltado © amor materno e/ou \\9) Hormais com o grupo de que faz parte corre o risco de ser Hjiuliptida c vivers, no fundo de si mesma, com um sentimento WWolundo de inseguranga, nao tendo podido realizar sua voca- cio de “ser de relacio”. Ora, observa G. Bouthoul, 0 sentimen- to de inseguranga — “o complexo de Damocles” — € causa de agressividade.” ‘Essa constatagio oferece a oportunidade de uma nova pas- sagem do singular 20 plural. As coletividades mal-amadas da histéria sio compariveis a criangas privadas de amor materno @, de qualquer modo, situadas em falso na sociedade; desse jhodo, tornam-se as classes perigosas. A prazo mais ou menos longo, & portanto, uma atitude suicida da parte de um grupo dominante encurralar uma categoria de dominados no descon- forto material e psiquico. Recusar amor € “relagio” s6 pode ‘ar medo ¢ dio. Os vagabundos do Antigo Regime, que is, provoca- engendr: ‘cram os “deslocados” rejeitados dos quadros soci tam em 1789 0 “Grande Medo” dos proprietérios, mesmo modestos, ¢, por consequéncia inesperada, a ruina dos privilé= ios juridicos sobre os quais ¢stava fundada a monarquia. politica do apartheid, cujo proprio nome exprime a rect consciente e sistematica do amor € da “relagao”, criou na Africa ‘lo Sul verdadeiros paidis cuja explosio corre o risco de ser terrivel. E.o drama palestino nfo reside no fato de que cada um dos dois parceiros quer excluir 0 outro de uma terra e de um enraizamento que sio comuns a ambos? 'A partir da‘ se verifiea no plano coletivo o que é evidente no ‘dual: a saber, 0 elo entre medo ¢ angistin de wm lado, ¢ agressividade do outro. Mas o historiador encontra aqut ‘uma imensa pergunta: as causas da violéncia humana poldgicas on sogiol6gicas? Freud ja tinha $9 anos quando, em 1015, escreveu,pela primeira vez sobre a agressividade, distin guindo-a da sexualidade. Apresentou em seguida (em 1920) sua {eoria do “instinto de morte” em Além do principio do prazer. \ agressividade, que encontra em eros seu eterno antagonista, e cntdo descrita como um desvio da energia do instinto de morte, afastada do cu, contra 0 qual era inicialmente dirigida. Freud redescobria assim as antigas mitologias ¢ metaffsicas orientais que sitvavam a luta entre 0 amor ¢ 0 édio nas origens do un! Yerso, Sua nova teoria s6 podia conduzi-lo a visdes pessimists plano in 36 futuro da humanidade, a despeito de algumas palavras tiga expressas no final de Mal-estar na civilizagio, Bois, ivi cle fundamentalmente, ou a agressividade nao é ry nie # envio se dirige para outros grupos ou pessoas ena HAip0— dai as guerras eas perseguigGes-—ouentioé repri, lj vs em sew lugar aparece uma culpabilidade eset WW Individuos. Essa concepgao 6 muitas vezes considerada lanvio do pensamento de Freud, € muitos psicdlogos jamais Haram, Mas, seguindo um outro caminho, K. Lorenz ilseipulos também foram levados a propor a existéncia c sressividade inata em todo 0 reino animal.® Para cles, lin instinto de combate no cérebro, ai compreendido o Moin, que assegura o progresso das espécies ¢ a vitéria dos, fonts sobre os mais fracos. Tal instinto daria conta do for life darwiniano; seria necessirio a essas “grandes, ipniloras” do mundo vivo que sao a selego ¢ a mutacio. Ii) sentido contrario, W. Reich, distinguindo a agressivi- BPG espontines a servigo da vida daquela produrid Inibigdes — essencialmente sexuais —, negou a esistencia I instinto destrutivo primério e transferin todo o tanatos Hressividade por inibigGo.” Mais amplamente, J. Dollard tolaboradores procuraram mostrar que toda agressivida- contra sua origem em uma frustracio: seria um meio para isos obsticalos que se opGem &sutsfagio de uma neces. instintiva." Nesse segundo tipo de hipdtese, a agressivi Winona nao seria um instinto como o apetite sexual. BREE 30 resultaria de uma programacio genética do Io, mas apenas de aquisigdes ¢ aberragdes corrigiveis. A Hijou sucessio das guerras que escandiram a. histdria IN) parece dar raza Aqueles que ereem em um instinto de | Tintretanto, objerou-se a K. Lorenz que a agressividade é, se nao ausente, 20 menos pouco frequente s. Os combates entre machos no momento do i pelt posse de um territério raramente terminam com a ilo vencido. Essas violéncias moderadas tém por fungo ilocor hierarquias ¢ a sobrevivéncia do grupo no meio. sm dhivida, ele tam= q a jad e fornecem Contudo, © ponto de vista de J. Dollard a0 prosseguimento da atividade fi bém, demasiadamente esquemitico. Nio seria melhor, com A iliulance suplementar. E. Fromm, distinguir entre a agressio como “pulsio Mis evocagdes da isiologia individual sem civida nto sto jo do meio, ao mesmo tempo desejavel & (ii para compreender os fendmenos coletivos. Como as ecessiria A sobrevivencia, € a agressio como “hostilidade sabes sofridas pelos grupos poderiam deixar de provocar destruidora”?* ois existem populagdes pacifieas (por exemple sobretudo ao se somarem ou se repetirem com demasiada fos exquuimas do Artigo central canadense) em que 0 espirito de Mise —wobiliacdes de enorgis? E essas dover logien, iniciativa, isto é, a agressividade em seu sentido positivo, nae MPriGozir-se ou por pénicos, ou por revolts, ou, se nao toma o aspecto maligno de uma vontade de destruiz. Nessa cm criminals Finha de investigagio, as anilises que encontraremos nos dois BG icc, on vee de acnvost cle proprit ore de capitulos consagrados as sedigoes de outrora parecem provat OO os ornintes vnteee rm per bem um clo entre destrutividade ¢ frustragées, mas nao s6 no a iscicice perseguicdes de sentido sexual caro a W. Reich. As inibigbes, as earéncins afer I sce “ra-estr® no qual o Ocidenteviveu da pene vas, as tepressoes, os fracassos sofridos por um grupo acum! ei cceas sliiosss pode aina wea da p lam nele cargas de rancor suscetiveis de explodir um din, do Bay Bierrssreligiosas pode ainda ser spreendo gracas a mesmo modo que no individuo 0 medo ou a angtistia liberam ¢ Bis cos hsawiatrse-pediates chamado Teste do mobilizam no organismo forgas inabituais. Essas se tormin, finee Metre a sn ratendozse do primeiro, levam entio disponiveis para responder & agressao que assalta o sujel Sn tr Sus angistin — esse cermo geral convém ‘alvo no caso de voltar-se contra ele por um traumatismo auido que o de medlo — coma ajuda de frases ¢ sobre acima de suas forgas). iy le desenhos que sio reagrupados em quatro categorias: ‘A fisiologia da reacao de alarme mostra que, apos a recep ia ppsceuranse, abandono ¢ morte." Os simbolos que da perturbagdo emocional pelo sistema limbico e pela reg me Cons Drees esse “pais do medo” sio ora de carter hipocimpica que desencadeiam os pisca-piscas de alerta, 0 hipo inico (cataclismos), ora tirados do bestiério (lobos, dragdes, tdlamo e o rinencéfalo, zonas de orientagio em ligacko com ijt €10), ora extraidos do arsenal dos objetos maléficos (ins- todo o sistema nervoso e endécrino, langam no corpo impulsox WNientos de suplicio, atatides, cemitérios), ora oriundos do que devem permitir uma reagio de defesa ¢ de ataqué. A libe verso dos seres agressivos (torturadores, diabos, espectros). a aceleracdo do coragio, a redistribuicio Meiontar, mesmo que sucintamente, esse teste, basta para 0 nr que cle fornece, no plano coletivo, uma chave de leitu- constri¢ao esplincnica pdem em circulacto maior niimero de ii perturbada época aqui estudada (¢ sem diivida também da Vetores de oxigénio, que tornam possivel um dispéndio fisico Wl, que, a esse respeito, Ihe é compardvel). Com efeito, a ais forte (fuga ou luta). A liberagio de agdcar ¢ de gordura ne Wiografia, desde a época do estilo gético flamboyant até 0 sangue age no mesmo sentido, fornecendo um substrato eneric \icirismo, exprimin incansavelmente ¢ com deleite morbido tico imediatamente utilizavel para 0 esforgo. A essa primeins 4 quatro componentes da anguistia iclentificados pelos testes réplica, imediata e breve, segue-se uma segunda resposta, €ons wilernos, que alids se inspiraram nesse inquietante conjunto tituida pela descarga de horménios corticotrépicos. Estes, por Iinagens (por exemplo, 0 TAT Thematic Apperception Test). A sua agio glicogenética, permitem assegurar a reposigo ener: JWsi0, ao mesmo tempo temida e saboreada, fornece o tema Storr motriz” para o doméni ragio de adrenalina, ‘vascular em proveito dos masculos, a contragao do bago, & 9 38 Wilinis, chamaram de “objetivagio”? G. Delpierre esereve tanto de Dulle Griet (Mangor, a furiosa) de Brueghel, quanto das esp. miltiplas Tentagies de santo Arriao e das iniimeras cenas de mér- tires oferecidas 20s olhos dos cristaos do tempo. A Idade Médi chissica nio insistira tanto nos sofrimentos dos supliciados. Os Win {..] efeito do medo € a objetivagio. Por ex martires da f apresentavam-se comumente sob um aspecto Meo a violencia, o homom, ao inven de lonroere sney triunfal. Além disso, os pequenos compartimentos dos vitrais MMOD cela, sctisfny-se olhando-a defen oe onde seu fim trigico era contado mal podiam agir sobre as tin eserever, ler, ouvir, conear historias de batalhas, imaginacdes. Mas em seguida o clima se deteriorou ¢ o howe Bilis com cerca paint ts corridas perigerss ae ee a do Ocidente encontrou um estranho deleite em representar 9 HONG 8s touradas. O instino combaeve deslocea-se pore agonia vitoriosa dos torturados. A Legenda durea os mistérios Ppbjeco." leslocou-se para representados diante das multidies e a arte religiosa sob todas as stias formas popularizaram com mil refinamentos o flagelo W historiador cabe operar a dupla transposigao d ea agonia de Jesus — pensemos no Cristo esverdeado e crivado Uplirale do atualao pasado. de feridas de Issenheim —, a degolagio de sio Joao Batista, 0 (Qhnto ao sentimento de inseguranga, ele prop apedrejamento de santo Estéviio, a morte de sto Sebastido pe ini de um temor do abandono, nao ¢ explicate pelos ini furado de flechas € de si0 Lourengo queimado sobre uma Jiltos Finsis © evocagées do inferno. que obsedaram a grelha” A pintura maneitista, & espreita dos espetéculos mal- BRMMEEinsores, cos pregudotes, des sedlogos ¢ doe ios, transmite aos artistas contemporineos da Reforma cats BE oriendl Nic foi por taneea reine nce ca esse gosto pelo sangue e pelas imagens violentas herdado da Mirnns cue Lavcro se refugiou na doutsina ie jecficaeo idade gtiea agonizante. Sem divida, jamais foram pintadas nas IB) Mas os temas da gress30, da inseguranqaedosbondens igrejas tantas cenas de martirios, nfo menos obsedantes pelo Bliss nevis o de an © de shandono formato da imagem quanto pelo luxo dos detalhes, como entre BPRS nascinagens » nas'palavnitdes fivooeree 1400 ¢ 1650. Os fiéis s6 tiveram 0 embarago da escolha: apre~ a Tdade Moderna: nas dangas macabras assim eomo em sentavam-Ihes santa Agata com os seios cortados, santa Martine Mila morte, de Brueghel, nos nsaias, de Montaigne, enema com 0 rosto ensanguentado por unhas de ferro, sfio Ligvin com tO de Shakespeare, nos pocinas de Ronsard avin cons a lingua arraneada e langada 20s cies, fo Bartolome esfolado, Meess0s de feitigaria: umas eantas iluminagdes sobre ume sio Vital entergado vivo, santo Erasmo com os intestinos Mila coleiva e sobre uma civilizagio que se sencin feigih desenrolados. Todas essas representagdes nao exprit Wiio uma tradigio demasiadamente stmplista por mate juntamente um discurso homogeneo que afirma ao mesmo Wii tereve apenas os sucesso da Rensscenga tempo a violéncia softida por uma civilizagio € a vinganga sonhada? B, além disso, nao constituem no plano cole verificagio daquilo que os psiquiatras, estudando os medos Vhigilidade por qué? A reviravola da conjuntura que se Hliviti na Europa no século xiv ¢ agora bem conhecida: a {iz entio uma reapariggo estrondosa — seguida de uma loi" presenga — ao mesmo tempo em que se delineia um * Jacopo de Varezze, Legenda diurea. S20 Paulo: Companhia das Let a ador ver com que insisténcia livros piedosos e sermoes comba- teram entre os cristios a tentagio do desencorajamento nas proximidades da morte: prova de que essa vertigem do desespe ro realmente existiu numa escala bastante ampla e de que mn ta gente experimentou um sentimento de impoténcia face a um inimigo tio temivel quanto Sati. Mas, precisamente, os homens de Igreja apontaram e des- imascararaim esse adversario dos homens. Levantaram o inven- tirio dos males que ele € capaz de provocar ¢ a lista de seus agentes: os turcos, os judeus, os heréticos, as mulheres (espe- cialmente as feiticeir: Partiram & procura do Anticristo, anunciaram o Juizo Final, prova certamente terrivel, mas que seria ao mesmo tempo o fim do mal sobre a terra. Uma ameaga global de morte viu-se assim segmentada em medos, segura- mente temiveis, mas “nomeados” e explicados, porque refleti- dos ¢ aclarados pelos homens de Igreja. Essa enunciagio desig- hava perigos e adversarios contra os quais o combate era, se no cil, ao menos possivel, com a ajuda da graca de Deus. O dis- curso eclesiistico reduzido a0 essencial foi com efeito este: os lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as pentirias ¢ as guerras si0 menos temiveis do que o deménio ¢ pecado, ¢ a morte «lo corpo menos do que a da alma, Desmascarar Sata e sens agentes € lutar contra 0 pecado era, além disso, diminuir sobre a terra a dose de infortinios de que sio a verdadeira causa. Essa demincia se pretendia, pois, liberagio, a despeito — ou melhor por causa — de todas as ameagas que fazia pesat sobre os ini migos de Deus desentocados de seus esconderijos. Ni atmosfera obsidienal, a Inquisicao apresentou tal dentincia como salvagio, @ orientou suas temiveis investigagdes para duay grandes diregdes: de um lado, para bodes expiatorios que todo mundo conhecia, 20 menos de nome — heréticos, feiticeiras, turcos, judeus ete, —; de outro, para cada um dos cristios atuando Sati, com efeito, sobre os dois quadros, ¢ podenco todo homem, se nfo tomar cuidado, tornar-se um agente «lo deménio. Dai a necessidade de certo medo de si mesmo. Esse convite autoritério 4 introspecgio nao deixou de levar, em casos “4 Wilires, a situagdes neuréticas, Mas, como se corria o risco 1) angaistia culpada instalar-se em lmas demasiadamente pillosas, moralistas e confessores procuraram desvii-las — obsessio do passado ¢ fonte de desespero— para Hependimento, que abre para o fueuro, Por outro lado, Hilo. populacao inteira de uma cidade, por ocasifo de ung I pein gragas no decorrer de uma procissio expiatoria Iiirava nessa solicitayio razoes de esperanca para este lhe para o outro. ‘Ter medo de si era, afinal, ter medo de Oly, Sata é menos forte que Deus. Assim, os conselheiros nits do Ocidente, empregando uma pedagogia de che Hforgavam-se em substituir por meds teol6gicos a pesala Vincoletiva resultante de estresses acurmulados. Operaram Ilion entre os perigos ¢ assinalaram as ameagas essen- Wito 6, aquelas que Ihes pareceram tais, levados em conta HiHiagio religiosa e seu poder na sociedade. i {ensio num combate incessante contra o inimigo do HIhumano cra tudo menos serenidade, e o inventario dos Sontidos pela Igreja e que ela tentou conypartilhar com iligOes, colocando-os no lugar de temores mais visce- pHem em evidéncia dois fatos essenciais nio suficiente- bservados. Em primeiro lugar, uma intrusio maci¢a da i hi vida cotidiana da eivilizacio ocidental (na cpoca 1) elt invadira tanto os testamentos de modestos artesios I) alta literatura, inesgotivel no tema da graca); om Ii, que a cultura da Renascenca sentiu-se mais frdeil do. tle longe e por ter final e brilhantemente triunfado, hoje » HiNioN. A identificagio dos dois niveis de medo conduz Hssentar face a face duas culturas das quais cada una Ni} outta e nos explica o vigor com que nao $6 a Igreia Hunhén o Estado (estreitamente ligado a ela) reagirann, Perlodo de perigo, contra o que pareceu 4 elite uma amea. {leo por uma civilizacio rural e paga, qualificada de 1) lin) suma, a distingo entre os dois planos de temor [14 Hs um instrumento metodolégico essencial para IF 0 interior de uma mentalidade obsidi mal que mar- oe cou a historia europeia no comeco da Idade Moderna, mas que cortes cronol6gicos artificiais ¢ 0 sedutor termo Renascenga por muito tempo ocultaram. No entanto, existe 0 perigo de cair no excesso inverso © tornar-se prisioneiro de um tema ¢ de uma dtica que enegrece- ‘mil a realidade de outrora. Dai um aquele que nos fara riam para além do veros terceiro momento em nossa caminhad: descobrir os caminhos utilizados por nossos ancestrais para sair do pais do medo. A essas sendas salutares, daremos tre esquecimentos, remédios ¢ audicias. Dos paraisos aos fervores misticos, passando pela protecio dos anjos da guarda ¢ pela de sio José, “patrono da boa morte”, pereorreremos 20 final um universo tranquilizador onde o homem se libera do medo ¢ se abre para a alegria. Desse projeto, enunciado aqui em sua totalidade, o pre: livro traz. apenas uma realizacio parcial. O medo de si ea saica do pais do medo terdo lugar em um segundo volume em proces so de redagio. Mas me pareceu necessirio, nessa introducio gral, dar a conhecer também as etapas posteriores de men it neritio para dele oferecer ao leitor uma visio panorimic coerente, Desde jé 0 editor julgou necessirio oferecer a0 piblice 1 resultados disponiveis desse inventirio explicativo dos medos de outrora. Cedendo a suas solicitagdes, reagrupei entio os cle: mentos de minha investigaco, no ponto de andamento em que se encontra hoje, em dois conjuntos: a) “Os medos da maioria"s by “A cultura dirigente eo medo” — que correspondem aos dois niveis de investigagio definidos anteriormente. O subtitulo do volume, “Uma cidade sitiada”, refere-se mais especialmente a0 segundo desses ois niveis, sendo verdade que, para chegar » este, foi preciso inicialmente explorar o primeiro. ‘A sintese tentada nesta obra ena que se seguird 6 podia ser realizada por meio de uma historiografia de tipo qualitati vo. Hissa escolha consciente ¢ esse risco calculado nao compor tam — € preciso destacé-lo? — nenhum desprezo € nenhum critica dos métodos quantitativos que eu préprio utilize amplamente em outras obras.” Mas intermindveis quantifies ml 16 Wh Ine teriam aqui impedido de ver os conjuntos e teriam Hilo irrealizaveis as aproximages das quais surgiré, espe- i, cerne de minha proposta. “O método é precisamente Holla dos fatos”, eserevia H. Poincaré.” E portanto pela piegnagio progressiva resultante de numerosas leituras i Convergéncia dos documentos e por seu emprego a0 modo {ima realizagio sinfénica que me esforgarei em demonstrar Wha tese. Confessemos, contudo — honestidade elementar, Hiiconfidléncia necessiria —, que por trés desse plano ¢ des” Iitodo desenham-se em filigrana uma filosofia da histori, WWaposta sobre o futuro humano e especialmente a convie. dle que os séculos nao se repetem, de que existe uma ines- ivel cirreversivel criatividade humana, e de que a humani- ile ilo dispe de modelos prontos entre os quais escolhi tindo os tempos e os lugares. Creio, ao eantritio, que no joirer de sua peregrinagio terrestre ela & constantemente Muda a mudar de direcao, a corrigir sua rota, a inventar se inirio em Fungo dos obsticulos encontrados —~ muitas W crindos por cla mesma. O que se tentou tragar aqui, em {u espaco e durante certo tempo, é essa recusa do desenco. yiiento gracas 4 qual uma civilizagao foi para a frente — Jom cometer seguramente crimes odiosos — analisando Ibmecios ¢ superando-os, Ao reconhecimento de uma filosofia subjacente é preciso svontar uma confissio pessoal, motivada no por uma va eupneio de aurobiogratia mas pelo desejo de melhor fazer preender minha proposta. “Nao ha nenhuma busca”, fave A, Besancon, “que nao seja busca de si mesmo e, em ih grau, introspecgaio."™ Essa formula aplica-se particular- ile’ minha investigagto sobre © medo. Eu tinha dez ani Mw noite de margo, um farmacéutico amigo de meus pais conversar em casas conversa calma e alegre na qual ev \\winente s6 presto uma atencio distraida, ocupando-me Hirincar a alguma distancia do eirculo dos adultos. Nao {i conservado nenhuma lembranga dessa cena banal se, na a manha do dia seguinte, nao tivessem v! indo anunciar a meu Quando meus libios pronunciarent pela diltina vez vosso adord— pai 0 falecimento sibito do farmacgutico, que nio era um Nome, Maho, Sua mulher, a0 acordar, encontrara-o morto ao lado Yela, Senti um verdadeiro choque, enquanto o desapareci- mento, alguns meses antes, de minha ave paterna, que morre= ve aos 89 anos, nao me perturbara. Foi para mim a verdadeira eseoberta da morte e de seu poder soberano. A evidéncia se impunha: ela atinge pessoas com boa saiide © de qualquer dade, Senti-me fragil, ameacado; um medo visceral instalou- ee em mim, Fiquei doente por mais de trés meses, durante os aquais fui incapaz de ir & escola. Dois anos mais tarde vou para um colégio interno mantido pelos salesianos, Na manhé da “primeira sexta-feira do més” {que passo nesse estabelecimento, participo com meus coleg> fo exercicio religioso que se consagra ali regularmente 3s tania da boa morte”. A cada uma das inquietantes sequén~ cigs, respondemos “misericordioso Jesus, tende piedade de mim”. Kase texto, proposto a criangas de doze anos e que Ihes tra fido a eada més, me foi recuperado, nestes tiltimos tempos, por wm religioso salesiano em uma edigaode 1962." Creio Quando me coragio esgotado pelo sofrimento fisica e nroral conbecer aoe ae acaunlo in extense, acreseentando que eT ep Jon ds morte que tas veces as alas nus santas canbeceran, dio dle um pai-nosso e de uma ave-maria “por aquele de nds que misericordioso Jesus, tende piedade de mim. morrer primeiro” Quine eu derramar minkas tltimas ligrimas, recebei-as em Senbor Jesus, Coragin pleno de misericirdia, apresento-nre hu iin le expiagio por todas as faltas de minka vida, unidas is mildemente diante de vis, lamentando meus pecadas. Venbo recomen is ie vis baveisderranado na cruz, fos mika hora derradeira © 0 que deve segui-la ‘mivericordioso Jesus, tende piedade de min. Quando meus pés imiceis indicarem que miinka estrada nest mage psrentes nica arniges, reunides erm rorne de seme etl ies everintas, | wforvarem-se em aliviar-me e vos tnvacarvar por mim, Pr i, rene piade demi ‘miericordioso Jesus, tend piedade de min. amisericordioso Jesus, tende piedade de min. Quando mew rosto, enrpalidecido ¢ vincado pelo sofrimento, pro- Wr compaixado, ¢ os suores de minke fronte fizerem prever meus (iiios instantes, mmisericordiaso Jesus, tende piedade de minn Quando mens ouvidos, doravante insenstveis as palreras buma- | pepararen-se para escattar vossa sentenca de Divino Juiz, misericordioso Jesus, vende piedade de nin Qnundo minba imaginacdo, agitada por sombrias visies, merga- non ingctagios quando nrew espivite, perturhud pela lem- Ais le minbus faltas ¢ pelo temor de vossa Fustiga, lutar contra j yie quererd fazer-me duvidar de vossa infinita bondade, misericordioso Jesus, tende piedade de mim. dar-v mundo eu tiver perdido o ss . sean nem meso on poe hi tuo de todas os mens semtidas, 0 mun- Wiiro tiver deseparecido para mim, e eu estiver sob o risa da Quando minbas maos desfalecentes jd do forca de estreitar 0 crucifixo bert-amado, , misericordiaso Jesus, tende piedade de mia. misericordioso Jesus, tende piedade di rieoridoso Jesus, Je de mim. 9 Quendo minba alma deixar men corpo, aceitai minka morte \vina tiltima e decisiva ilustragio, Para melhor atingir 0 cris como o supremo testemunho prestado ao vosso Amor salvador, que por ip. © conduzi-lo mais seguramente & peniténcia, a ele se fazia anim quis sofver essa dolorasa ruptura, ws (lorradeiros momentos do homem uma descrigio que nio é misericordioso Jesus, tende piedade de mrinn. J yosimente exata. Pois existem finais serenos, embora a mor- loz esteja sempre presente nessas evocagdes demasindamente Enfins, quando en aparecer diante de vés ¢ vir pela prinveira iticas, Mas me impressiona mais ainda a vontade pedagdgi- a esplendor de vossa Majestade e de vossa Dagura, nito ne rejeitais da Alp relorgar no espirito dos recitantes 0 necessério medo do frente de oussa Face: dignat wntr-me a V6s para sempre, para que e1 Jymento por meio de obsedantes imagens de agonia conte eternamente vossos lorrvores, Por mais traumatizante ¢ por mais obscuro que fosse, esse amisericordioso Jesus, tonde piedade de mine 4150 religioso sobre a morte que ouvi regularmente todo 's durante dois anos escolares (portanto, para mim, dos doze Orage: O Deus nossa Pai, vis nos baveis providencialmente oct ‘atorze anos) revelou-me uma mensagem que aclara um tudo 0 dia e a bora de nossa morte, para convidar-nos a estar sentpre Wiorama hist6rico muito amplo: para a Igreja, 0 sofrimento ¢ promos, Concedei-me niorrer amando-v0s, e para isso, viver eada iia ijuilagio (provis6ria) do corpo sio menos temiveis do que en estado de graca, a qualguer prego! Eu vé-l0 peso por Nosso Senhor ado ¢ 0 inferno. O homem nada pode contra a morte, mas “Jesus Cristo vosso Fitho ¢ men Satvador. fom aajuda de Deus — the € possivel evitar as penas eternas. wir das, um medo — teoldgico — substituia um outro que . {nlerior, visceral e espontineo: medicaczo heroica, medica- Aconteceu-me varias vezes fazer a leitura dessas litanias 9 Biilm mesmo, jé que proporcionava uma safda ali onde no cestudantes de uns vinte anos, que ficaram aturdidos: prova de J sono 0 vazio. Tal foi a ligao que os religiosos encarrega- 1a mudanga rapida e profunda de mentalidades de uma gera- Mifrrinha educacdo se esforgaram em me ensinar, © que {0 para outra. Tendo subitamente envelhecido, aps long i ‘de meu livro. atualidade, essa prece por uma boa morte tornou-se documen Vois a0 construir o plano da obra ¢ ordenar seus materiais, to historico na medida em que reflete uma longa tradigao de \) surpresa de constatar que recomegava, com quarenea pedagogia religiosa. De resto, no era sengio uma reproducie Wile distincia, o itinerrio psicolégico de minha infancia ¢ dialogada de uma meditagao sobre a morte escrita por dom Jjercorria novamente, sob o pretexto de uma investigagao Bosco em uma obra destinada as criangas de suas escolas e inti Mlogrifica, as etapas de meu medo da morte. A caminhada tulada O joven instruido, Por tris dessas litanias draméticas, BPMN En dois voluiies*teromars sabia forma-de tr adivinham-se @ Dies irac, imimeras Artes moriendi © outros Js neu caminho pessoal: meus pavores primeiros, meus Pensai bem nisso ¢ toda uma iconografia onde se avizinharam, {ls esforcos para habituar-me a0 medo, minhas med jtagdes longo dos séculos, danas macabras, Juizos Finais, comunhoc \loloycente sobre os fins tiltimos e, como final, uma pacien- aos agonizantes (por exemplo, a de sio José Calasanza, de Bpyiln screnidade e da aceitagio. Goya)” e torrentes de imagens piedosas distribuidas durante 3 misses. Culpabilizagao ¢ pastoral do medo — sobre as qu insistirei no segundo volume e que tanto contaram na historia A jolémica despertada por men livro anterior, Le christia- ocidental — encontram nos textos salesianos que acabamos le BRM srourir?, leva-me a fordecer um eselareciments Amén. un 50. que deveria ser instil, mas que nao é. A “cidade sitinda” de que Vai se tratar € sobretudo a Igreja dos séculos XWV-XViI — mas 2 Igreja como poder. Daf a necessidade de voltar as “duas Ieitu- ras” historiogréficas propostas na obra vilipendiada por algum O tema que estudo nas paginas que se seguem pouco remete i caridade, & piedade e a beleza cristés, que também existiram apesar do medo. Mas por isso era preciso, mais wma ver, fazer ‘dléneio sobre este? E hora de os cristéos deixarem de ter medo da historia Primeira Parte OS MEDOS DA MAIORIA 1. ONIPRESENCA DO MEDO 1. “MAR VARIAVEL ONDE TODO TEMOR ABUNDA” (MAROT, Complainte I) Na Europa do comego da Idade Moderna, 0 medo, ea mufla- do ou manifesto, esté presente em toda parte. Assim é em tod ivilizagio mal armada teenicamente para responder as miltiplas agressdes de um meio ameagador. Mas, no universo de outron hd um espago onde 0 historiador esta certo de encontré-lo sein nenhuma falsa aparéncia, Esse espago € 0 mar. Para alguns, mut to audazes — os descobridores da Renascenga ¢ seus epigonos —, o mar foi provocagio, Mas, para a maioria, ele permaneccu por a, o lugar do medo. Da muito tempo dissuasio e, por excelénel Antiguidade ao século XIX, da Bretanha 4 Ressia, sie legio os provérbios que aconsclham a ni se aeriscar no mar. Os Tatinos liziam: “Louvai 0 mar, mas conservai-vos na margem”. Um ditado russo aconselha; “Louva 0 mar, sentado no aquecedor Erasmo faz dizer a um personagem do colquio Nawfragiun Que loucura confiar-se ao mar!”, Mesmo na maritima Holanda corria a sentenga: “Mais vale estar na charneca com uma velba carroga do que no mar nunt navio novo”! Reflexo de défesa «le ‘uma civilizacdo essencialmente terrestre confirmada pela expe rigncia daqueles que, apesar de tudo, arriscavam-se Jonge das rmargens. A formula de Sancho Panga: “Se queres aprender rezar, vai para o mar”, encontra-se com miltiplas variantes dc uma ponta a outra da Europa, por vezes nuangada de humor ‘como na Dinamarca, onde se precisava: “Quem nao sabe reza deve ir para o mar; e quem nao sabe dormir deve ir 3 igreja"- Incontiveis sio os males trazidos pela imensidao liquida: « peste negra, esti claro, mas também as invas6es normandas ¢ de as incursbes dos berberes. Lendas — sarracenas, € mais tal vilade de Ys ou a dos drgdos submersos de Wenduine que as \ silo ouvidos tocando 0 Dies irae — evocaram por muito \jo seus avancos furiosos.’ Elemento hostil, o mar é orlado Jucifes inumanos ou de pantanos insalubres e langa, nas {00s costeiras, um vento que impede as culturas, Mas é iilinente perigoso quando jaz imével sem que 0 menor sopro, iiilule, Um mar calmo, “espesso como um pantano”, pode Aificar a morte para os marinheiros bloqueados av largo, ins de “fome voraz” e de “sede ardente”. Por muito tempo ano desvalorizou o homem, que se sentia pequeno ¢ frégil ite dele ¢ sobre ele — razio pela qual os homens do mar Wi) comparaveis aos montanheses e aos homens do deserto. J\ie, até perfodo recente, as ondas causavam medo a todos ¢ ilmente as pessoas do campo, que se esforgavam em nao Wh} © mar quando © acaso as levava para perto dele. Apds a {4 preco-turca de 1920-2, camponeses expulsos da Asia Jor foram reinstalados na peninsula de Stnio. Construiram inns com muro cego do lado do mar. Por eausa do vento? Ivey, Mais ainda, sem dtivida, para nio ver o dia inteiro a itnte ameaca das onda Mo final da Idade Média, 0 homem do Ocidente continua jnido contra 0 mar nao apenas pela sabedoria dos provér- | {iis também por duas adverténcias paralelas: uma expres «lo dliscurso poético, a outra pelos relatos de viagens, espe- Iwionte os dos peregrinos a Jerusalém. Desde Homero ¢ (llo até a Prnciade © Os lustadas, nao hé nenhuma epopeia, Wwnpestade, esta figurando também com destaque nos iuiues medievais (Brut, Rou, ‘Tristio ete.) © separando no Wii tnomento Tsolda de seu bem-amado.' Viste um tema mais banal [notava G. Bachelard] do que © th) cGlera do oceano? Um mar calmo é tomado de sitbita sa- ih), Urra e ruge. Recebe todas as metéforas da firia, todos Hy Mlinbolos animais do furor e da raiva [...]. E que a psico- logia da edlera é no fundo uma das mais rieas ¢ das mais uangadas [..J- A quantidade de estados coldgicos a pro: jetar é bem maior na célera do que no amor. As metiforss {Jo mar tranquilo e bom serio portanto menos numerosas do que as do mar bravio. Contudo, a tempestade nio é apenas tema literirio e imagen das violéncias humanas. f. também e em primeiro lugar a expe- iéneia relatada por todas as crénicas da navegagio para a Te ri Santa, Em 1216, quando o bispo Jacques de Vitry segue para Saint-Jean-d”Acre, 08 ventos e as correntes da costa da Sardenbs di chor sas Fra da. ventos sio “ evideme que a rainha implora nave de prata de cinco marcos. diz piedade de nossa aflicio”.* Em 1254, Luis volta da Siria pa gem uum navio na diego daquele no qual ele se encontra. O que parece inevitével. Todo mundo grita, confessa-se is pres ‘com muitas lagrimas de arrependimento. Mas “Deus teve a3 nga com a rainha, Joinville e os que se salvaram da VI cruza (© furacio surpreende os viajantes diante de Chipre. Os 0 fortes e tio horriveis”, o perigo de naufrigio tio a sao Nicolau e Ihe promete una * Tf logo atendida, “Sao Nicolau’, la, nos protegeu desse perigo, pois o vento enfraqueceu.” im 1395, 0 bardo de Anglure volta de Jerusalém. E ain perto das costas de Chipre que “subitamente” se ergue geande e horrivel desgraga” que dura quatro dias. Ena ver dade nao havia ninguém que tivesse outro semblante a na ser o daquele que bem vé que deve morrer []- E sabet qu ouvimos jiirar muitos, que por muitas vezes haviam estado, fem muitas ¢ diversas desgracas no mar, sobre a danagio dc suas almas, que jamais em nenhuma desgraga que tivessem tido nfo tiveram tio grande pavor de estar perdidos como dessa vez." + Antigo peso de oito ongas de Paris (2445s) que seria para pesar met preciosos. (N.T) $6 Jim 1494, o conego milangs Casola também empreende a frit da ‘Terra Santa e encontra a tempestade, na ida e na lt Altima estrondefa ao largo de Zante. O vento sopra de [bs 0s lados, e os marinheiros, tendo ferrado as velas, no lem fazer nada além de esperar. “Na noite seguinte”, relata ib, “o mar estava tio agitado que todos tinham abando- lh. esperanca de sobreviver; repto, todos.” Entao, quan- @havio chega afinal ao porto, ninguém fica vagueando a Wy, "Quando um homem”, escreve o irmio Félix Fabri fol do Oriente em 1480, “suporton a tempestade por lov dns seguidos, definhou por falta de alimento e chega a om porto, arriscaria de preferéncia cinco saltos [da lu para um barco que 0 conduziré a terra] a permanecer a [.iteratura de ficgao ¢ erénicas apresentam a mesma visio aptipada da tempestade no mar, Ela se levanta de modo ile cai de repente. Vem acompanhada de trevas: “O céu ilo, 0 ar denso”, Os ventos sopram em todos os sentidos eicleiam-se raios e trovdes. “O edu", conta Rabelais no Hy livre (cap. XvTH), “[comegou a] trovejar do alto, fulmi- Whar, chover, granizar; oar a perder sua transparéncia Bs opaco, tenebroso ¢ escurecido, sem que outra faz iparecesse que no a dos raios, clardes e refragdes das iiiites nuvens.” Vin) Os lusfadas, Camoes faz Vasco da Gama dizer: (.] Contarte longamente as perigosas Cousas do mar, que os honsens nao entendem, Siibitas trovondas tenebrosas, , Relanspados que o ar em fogo acendem: Negros chuveiros, noites tenebrosas, Bramnides de trovoes que 0 mundo fendens, Nao menos te trabalho, que grande erro Ainda que tivesse a voz de ferro. que sobem do “abismo”, Viajantes de outrora, as constantes da ten vores ira tr@s dias — 0 tempo passado por Jonas no ventre «la baleia — ¢ que munca dei: até os marinheiros profissionais tém me porto, Como prova, esta cangio de marinhe do século x1v ou comego do XV); véspera da grande partida de 1497: Instantaneidade, bi rascas turbilhonantes, vagas imensis temporal e escurida tais s20, pa mpestade que muitas de criar um perigo mortal. Assim do quando deixam © ingleses (final A tripulacio pode renunciar a todas os prazeres Que vai frzer vela para Saint-Fanes: Pois para muitos bonrens é war desgosto er vel. Comecar a fi De fato, quer tenham se langado ao mar Eni Sandwich ov em Winchelsea, Ent Bristol on allures, Stua coragenn conteca a fraguejar: Do mesmo modo, o Vasco da Gama de Camées declara ni Depois de aparelbados desta sorte De quanto tal viagem pede e mani Apeerotbames a alma para a morte la, Que sempre «as nantas ane os olbas ande.? Aval se melhor a parti daf 0 extraordinario sangue-friv dos descobridores da Renascenga, que precisaram lutar constan temente contra 0 pavor das tripulagdcs. As viagens desse te resultaram, alias, em consequéncias contraditérias no respeito 4 navegagio. De fato, os progres viagens: det mas exéticos, ciclones assustadores nas tanto, morbidez e mortalidade aumenta 58 po que dir ssos da cartogratia, «lo lenlo para fixar a latitude, da construgio naval ¢ do balia mento das costas foram — negativamente — compensados por todos os aborrecimentos que decorreram do alongamento rioragio dos alimentos, escorbuto, doenga dos eli ‘zonas tropicais €, por das, Ainda no final «ly {ilo XV1, a ligao que muitos tiram das viagens transocednicas Jw niio se pode correr piores perigos do que aqueles que se yum no mar, Lé-se em uma Histoire de plusieurs voyages fureux publicada em 1600 em Rouen, portant num porto, \ ro{lexdes significativas: Ji corto que entre os perigos que se encontram na passagem desta vida humana, nao hé de modo nenhum tais, semelhan- uy nem tio frequentes ¢ ordingrios quanto aqueles que ad- ‘you aos homens que frequentam a navegacio do mar, tanto fin) niimero ¢ diversidade de qualidades como em violéncias dis e inevitaveis, para eles comuns e didrias, ¢ (hiv quen 1m garantir por uma s6 hora do dia estar {i nimero dos vivos [... Todo homem de bom juizo, depois {jue tiver realizado sua viagem, reconheceré que é um mi- Jiyre manifesto ter podido escapar de todos os perigos que sg apresentaram em sua peregrinagio; tanto mais que, além ‘lo que diziam os antigos sobre aqueles que vao para o mar {iio terem entre a vida ea morte senfo a espessura de uma ihuya de ponte que sé tem trés ou quatro dedos de travessia, J\\ (antos outros acidentes que diariamente af podem ocor- f4) «ie seria coisa pavorosa iqueles que ai navegam querer (i Jos todos diante dos olhos quando querem empreender ii viagens.”" jnda que as montanhas também despertem aprecnsio, io diz Shakespeare, sendo “verrugas ao lado das vagas”. ) Nino, por seu lado, evoca “ondas tio altas que escon- 4 lin”, Chegando perto do objetivo, Vasco da Gama € ilo pelo furacao. “Vendo”, conta Camées, “ora o mar até 440 aberto, ora com nova firia ao céu subia.”™ Entio, Jy Aw propde um caso exemplar de medo, ele é situado de Jeli no mar. Assim faz Rabelais no Quart livre. La Je, tontando por sua vez uma tipologia do medroso, uo cm primeiro lugar com as aventuras da navega- 9 gio, depois — como segunda experiéneia apenas — com as «lt guerra." Para além da covardia pessoal de Panurgo, o desvario que o toma diante dos elementos desencadleados pode ser iden tificado como um comportamento coletivo que se encontr') facilmente nos relatos de vingens. Um comportamento marci do por duas dominantes: a nostalgia da terra, Ingar de sey tanga em rclagao a0 mar} e o apelo desordenado a santos pro tetores (mais do que a Dens). No auge da tempestade Panuryo exclama: 6 como trés ¢ quatro vezes felizes sfio aqueles que plantan couves! [..] Quem quer que plante couves é por meu decre to declarado bem-aventui Ah! por mansio dette ¢ senhorial, nfo ha como a terra firme!” (cap. XVII}. Mais adiante, volta uma variante do mesmo tema (6 ha privet em terra firme): “Quisesse a digna virtude de Deus — la menta-se Panurgo — que 3 hora presente eu estivesse i quinta de Seuillé ou na casa de Innocent, 0 pasteleiro, 1s frente da adega, em Chinon, sob pena de me colocar gibio para cozinhar os pasteizinhos (cap. XX). Em A tempestade, de Shakespeare, Gonzalo, no coragie do perigo, declara preferir ao oceano a terra mais ingrata essa hora, daria bem mil jeiras de mar por um acre de terra estéril: uma grande charneca, pinheiros queimados, qualqu coisa [...]”.” Os pedidos supersticiosos do companheiro de Pantagritl, apresentados ironigainente por Rabelais, eam evidentemente habituais nessas espécies de apuros. Ele invoca “todos os ben ditos santos e santas em seu ausflio”, garante “confessar-se ci) tempo ¢ lugar adequados”, recita varias vezes 0 confiteor, implo ra.ao irn que nao blasfeme em tal petigo, faz voto ik edificar uma capela a sio Miguel ou a so Nicolay, ou a ambos, sugere “fazer uin peregrino”, isto 6, sortear aquele que, nome de todos, ir a algum lugar santo agradecer ao céu en caso de desfecho feliz (cap. XVIN-XX1). Os relatos de “milagres" «0 otos de m io) Naufragiunt? olido pelas onda Jogamento: “Que a vontade do alto seja morr tos santudtios nfo esto cheios de promes- lhantes, das quais Erasmo acredita dever zombar no Paniagrucl, o irmio Joao ¢ Epistémon conservara -{vio, confessam no entanto ter tido medo, ¢ Pantagrucl 4, depois de Homero e Virgilio, que a pior das mortes & : “Digo que essa espécie de morte, por iio, € [de se temer], ou nada é de se temer. Pois, como di ), coisa dolorosa, abomingvel ¢ desnaturada é perecer We! (cap. Xx). Gonzalo experimenta uma repulsa antloga |, mas eu pre- de morte seca!”" Se a morte no mar é sentida no ‘lesnaturada”, € que 0 oceano foi por muito tempo visto na gonhecido elas lends i) flamenga atestada desde o século Xx1v: Exam dois filbos de rei, Anuavian-ve tanto tan ao outro! ‘Nio podiam encontrar-se, A dgua era muito profunda, Que fez ela? Acendew trés cirios, A noite, quando a luz do dia declinava: “Ob! meu bem-amado, vent! Atravessa a nado!” O que fez 0 filbo do rei: eva jovem! Jim mundo marginal, situado fora da experiéncia corren- jis geralmente ainda, é que a égua, naquilo que tem de , poderoso, incontrokivel, profundo e tenebroso, foi \¢ inilénios identificada como um anticlemento, como a io do negativo e o lugar de toda perdigio. “Todo um Ae nossa alma nocurna”, escrevin G. Bachelard, “explica-se fnito da morte concebida como uma partida sobre a 0 Styx dos antigos, “triste rio de inferno” (Marot, nic Ill), & a barca de Caronte, navio dos mortos tam- célticas ¢ pelas do Extremo ie, As dguas profundas — mar, rio ou Iago — eram con- i\ys um abismo devorador sempre pronto a engolir os | Como testemunho, entre mil outras provas, esta antiga 61 Wn) fogo, ar, mar, terra, todos os elementos em refratéria Wiio” (Cap. XVI). Leonardo da Vinci, cujos estudos geol6~ f mecinicos o haviam levado a se interessar pela poténcia Ws, deleitou-se em evocagées assustadoras de dildvio: Foi 0 que vin unea velba feiticeira, Un: ser tito maldeso. Ela foi entio apagar agitela lux E.aio jovem herdi se afogon [. [A sequencia da cangio conta como a moga desesperil acabou por enganar a vigiincia dos seus e se afogou volunt tiamente.” O elemento liquide figura portanto aqui conw 0 inimigo da felicidade ¢ da vi Polifemo, Cila, Circe, as Sereias, Leviatd, Lorelei: sere ameacadores que vivem na égua ou 3 beira d’égua. Seu objetivo comum era apanhar os humanos, devoré-los ou pelo meno como Circe, fazé-los perder sua identidade de homem. Assini para conjurar o mar € preciso sacrificar-lhe seres vivos qué saciario — talver? — seu apetite monstruoso. Ex-votos napoli tanos do final do século XVI apresentam navios que levan nit proa uma pele de carneiro, Era um rito de conjuragio do mal No langamento do navio, matava-se um carneiro branco, re va-se 0 barco com seu sangue € conservava-se sua pele na dint teira da embarcacio. Dava-se assim uma vida ao mar para «ii cle fosse apaziguado e nio exigisse a dos marinheiro." No secu Jo XVIi, 05 marinheiros berberes praticavam uma variante desi rito. Levavam earneiros a bordo. Quando a tempestade irre pia, cortayam um deles vivo a0 meio, depois langavam metal Go animal a direita do navio e a outra metade & esquerda. ¢ ‘© mar iio se acalmava, sacrificavam-se sucessivamenté vit ios |] Os rios cheios transbordam e submergem todas as terras cercanias com seus habitantes. Poder-se-ia ver, assim Ainidos nos topos, toda a espécie de animais apavorados dlomésticos, na companhia dos homens ¢ das mulheres Aili se refugiaram com seus filhos. Os campos submer- Inostravam ondas geralmente cobertas de mesas, de Hagdes de camas, de barcos, e de todos os expedientes jirudlos pela necessidade e pelo medo da morte; estavam vojados de homens e de mulheres com seus filhos, em Jo 4 lamentagdes e gemidos, cheios de pavor diante do Jello que rolava as aguas em tempestade com cadiveres yjulos. ‘Tudo que podia flutuar estava coberto de animais, 1403, reconciliados ¢ agrupados em bandos amedronta- lobos, raposas, serpentes, criaturas de todo o tipo [... I quantos gemidos! [...] Quantos barcos virados, inteiros 440) pedlagos, sobre pessoas que se debatiam com gestos ¢ \inentos desolados, antincio de uma horrivel morte.” Wy) noite de junho de 1525, Diirer teve um pesadelo: via » jnundo chegar. Transcrevendo esse sonho angustiado \) \\juarela, representou imensas nuvens negras carrega- ‘s)iiivi e ameagando a terra.”*Ao fazer isso, Diirer dava da {i final uma visio correntemente aceita em seu tempo animais.” Os elementos desencadeados — tempestade ou dilivie evocavam pari os homens de outrora 0 retorno ao caos prin! tivo. Deus, no segundo dia da cringio, separara “as aguas q\W veitamente claborada a partir dos textos apocalipticos estio sob 0 firmamento das aguas que estio acima do firm Wis que aumentava em relagao a eles o papel atribus mento” (Génesis 1:7). Se, com a permissio divina, esti clar, |W 6 A. dgua no desenrolar do grande cataclismo. Na clas transbordam novamente os limites que Ihes haviamy sid W Vila do Anticristo publicadas no século XV € nas vii designados, 0 caos se reconstitui. A propésito da tempest yinli, aparece de maneira estereotipada a lista dos enfrentada por Pantagruel e seus companheiros, Rabelais est) ii thunciadores do “advento de Nosso Senhor”. Os ve: “Crede que aquilo nos parecia ser o antigo cao, no «il Wijeitos referem-se ao mar e 3 Agua dos rios: va 6 0 primeiro dos ditos XV sinais que antecedem o dia do gran de juizo geral serd quando o mar se elevar XV eiibitos acini das mais altas montanhas do mundo. O 11 sinal sera quale © mar descer ao abismo, concavidade ¢ profundeza da ter" tao baixo que mal se poders vé-Io, O utsinal sera que os pel xes-¢ monstros do mar aparecerdo sobre o mar com muito} grandes gritos. O1V’sinal ser que o mar e torlns as Aguas doy eutros rios arderdo e queimarao no fogo vindo do céu.! Caos, ou seja, desrazio, deméncia. As estranhas palavros le ‘Tristan langado pelos marinheiros 8s costas da Cornualha, [i nef des fs, de Schastien Brant, e a morte de Ofélia sugeret si we nentalidade coletiva estabelecia um laco entre a loucura ¢ ( tlemento liquido, “avesso do rmundo"y* um lago que a tempest dle nfo podia sendo reforcar. Hamlet, no julgamento da rainhiy std num estado de deméncia “como o mare o vento quarili futam para ver quem sera o mais forte” f1v, 1]. Enlouguecidiy co oceano desencadeado provaca loucura. Prospero ¢ Ariel, el “1 tempestade, de Shakespeare, trocam estas palavras signiticn tivasi Prospero: Diz-me, meu bravo espitito, houve um hone bastante firme, bastante intrépido para que a tormenta Nill tivesse afetado sua razao? Aniet: Alma nenhuma que nao sentisse a febre dds demon tes e mio se entregasse a algum ato de desespero. As populagdes costeiras, na Bretanha por exemplo, co! ravam o mar em fiiria a um eavalo sem cavaleiro, a um caval Ge salta para fora de seu campo ow ainda a uma égua entury aia.” A tempestade nao era portanto considerada — ¢ vivil aevcomo um fendmeno natural. Suspeitava-st que sua Orly eeava associada a feiticeiras e deménios. Tendo a violencis lip ondas impedido por virias veres o rei Jaime da Eseccia « prineesa Ana de atravessarem o mar do Norte em 1580.0) bao que feiticeiros e feiticeiras haviam enfeitigado o ioxando um gato.” Em todas as margens setentrio- Jip, mas também no Pais Basco, recitou-se o conto Vis" altas como torres e braneas como neve — na ftv mulheres de marinheiros que se tornaram feiti- fe nsformaram em wages pacn vingar-se de seus {ue nos navios de Vasco da Gama, de Colombo e de Je tenha saudado a aparigdo do fogo de santelmo na Instros como o sinal de préximo apaziguamento das fina, maior parte do tempo esse fogo e os fogos Iiprito sobre o mar eram vistos como manifestagdes WG uniincio de algum infortiinio. Em 4 pares: de Wie, Ariel, espitito do ar, conta a Prdspero como, deste, ele “organizou” 0 furacio: " ro terror. Por vezes eu me dividia ¢ queimava ho mastro, na givea, nas vergas, no gurupé, distintas que se reencontravam para juntar- havia quinze anos a viagem da Escécia, NO Hymne des daimons que estes “L.] se transformam Hoh em grandes chamas ardentes/ Perdidas sobre uma tigolfar/ O passante fulminado iludido com sua luz/ 4 alogar-se na onda assassina” (Livre des dynes 1). Milo, inimeros marinheiros, especialmente na Grécia pina cm exes ogos inane 2 fall, ora com um ruidoso tumulto, ora com gritos de WWanimais que se acreditava serem de natureza dia- {iNo, suponha-se, afugentavam os espfritos maléficos.” iw do outrora —¢ também na Legenda daerea (no capi ido a vide de santo Adzianc) —, o diabo aparece eitemente como o capitao do “navio fantasma”, bar- or co que obsedou a imaginagio das populagbes costeiras € que er ‘dentifieado com o inferno dos marinheiros.* Atribuiu-se 1 Gioryione uma tela do comeco do séeulo Xvt que representa navio fantasma provide de uma tripulacio de dem@nios, ‘De diferentes maneiras a mentalidade coletiva estabclechs tacos entre mar ¢ pecaco. Nos ramances medievais, volta com? tim t6pos o episddio da tempestade que se forma por & presenga de um grande peendor — ou de wna mulhe® gr ida t portanto impuira — a bordo do navio assaltado pelas onda como se o mal atraisse o mal. Esse lugar-comum lite respondia a uma crenga profunda das populag®es, ‘Ainda en) 1637, a tripulagio do Tenth Whelp recusou-se a deixar 0 por porque temia o pior para um barco sob o comandlo de um cap) re rom a reputagio de ser um blasfemador.* Além disso, 0 twarinheiros, a despeito de suas peregrinagdes ¢ de seus ex-v0 tox, eram muitas vezes considerados maus eristos pelas pews) «pe imterior e pelos homens de Igreja. Dizia-se que eram “mil sondenavels as virtudes morais” (N. Oresme), ¢ até mesmo 1 ceieilizados? (Colbert), Em um manval de confessor ingles 1344, citado e traduzido por M. Mollat, lé-se: ‘Tu, confessor, se te acontece ouvir algum marinheir) ell confiseto, nio deixa de interrogé-lo com cuidado, Devel saber que uma pena dificilmente bastaria para descreve! 0 pecados nos quais essa gente esté mergulhada. I*"tal, coil Uieito, a geandeza de sua malicia que wlerapassa os Prop!) mromes de toxlos os pecados (..]. Nao sO matam os clevifiy ¢ 0s leigos quando esto em terra, como no mar entregaiiy ye a abominagao da pirataria, pilhando o bem de outren sobretucdo o dos comerciantes |-. ‘Alem disso, sao todos adiilteros e fornicadores, po! (Il todas as terras ¢ regides onde vivem, ou bem contract ii ao com diversas mulheres, acreditando a coisa per siti se itdo entregam-se ao deboche com as rmulleres de vil fnilindo ainda a anilise, descobre-se que o { # Lrequentemente representado como 0 domi io mvt le Sutil © das poténcias infernais. E uma ident fica flaiydifunde — talvez involuntariamence — aCe mio Joao dizer, no centro da remnpeatade Wy ie todos os diabos esti 0 sto enfurecidos hoje ou que {pin esta em trabalho de parto. Todos os diabos dan. pains Gap. x1x), E ainda: “Creio que hoje é a pa de todos os milhdes de diabos? (cap. xx). Pa- ho dia réplica: “Creio que todos os mi : AP! Pea contada por Ariel na pega de Shake- pauerel Ferdinando, tomado de pavor, langa-se Hilo) "O inferno esta vazio e todos os deménios esto TWecwssidade de exoreizar 0 oceano furioso; ¢ iss H4l0 portugueses faziam recitando 0 prélogo do rons ippees ae figura no ritual do exorcismo) e os marie Hasan de ost gars mergulhano reais jh uinpestae io se acalma, portant, pr si mes Hjem ou sito Nicolau ou algum outro santo que Hn poder que reeeberam dagusle gue caminhow Ili olgo de Tiere, comandou os clemen- § (0uano seja o itinerdrio privilegiado dos demonios € BBMMETIiG0 lo culo xv, o cdlebre e sinistro magistra- Bi ariasc0 do Pais Basco. Ele assegura que sian. ila por mara Bordéus,viram excros de dabos, se BMH Extremo Oriente pelos missionérios, diigi- 9 Thang” Quem dds do carter demonic ldo convencido pela multidao ¢ pela enormidade 0% jignntescos que o habitavam e que so descrito Niele pelas “cosmografias” ¢ relatos de viagens da a7 ito dow i ; identificacio de ito ol ‘Ao de outrora. Dai a insisténci: ae ts if ssisténcia com a 2 ieurso literério comparava o destino de cada um. ile barco em perigo. cacao de Hilo a Nossa Si E a Nossa Senhora, Eustache Deschamps the diz: PAnghiera conta a respei Remascenga. Pierre Martyr aetinbeiros que, em 1526, dirigiam-se a América: “EI “Tatintemente um peixe gigantesco que dava a volta 20 ber tat ¢ eam um golpe de sua cauda parti em pedagos 0 Teme do iGo E eoneluis “isses mares, com efeito, alimentam mort" tnarinhos gigantescos”.” Relatando uma viagem 20 Brasil em 1559-8, Jean de Léry fala com pavor das “horriveis ¢ nedonhitt faleiae” que ameagam avrastar o navio pelo fund, ima de , mare dondo-se, proxtuziu ainda wm tal ¢ to horrivel jorros (Mt la est rota, dncoras nao posse ancorars cemais umna ver tema que, atraindo-nos atris de si, fOsscmioy rinde pavor que socabre on afunde engolidos nesse abismo”." Fim 1555, 0 bispo sueco ‘Olaus Magni piedade por nein nito se firmar (Ballade CXXXI publica em Roma uma Historit de gentibs septertrionalibs 8 av Qual admite a existéncia de imensos animais marinhos que i tripalagdes tomam por iThas ¢ onde atracam, ‘Miacendem {00 ry aquecer-se-¢ cozinhar seus alimentos. Fito os met) : a FEssas ilhas vivas ¢ Flutiil i dos desgostostransborda sobre nés Nossa razdo destoca a cada golpe afundam, tragando homens e navio: tee, inspitadas em Behemot ¢ no Leviatl s80 assint deseritas i crea , vencido pela onda desabadta. tSktue Magnus: “Sua cabega, toda coberta de espinkos,é de longos chifres pontuclos semelhantes 3s raizes de uma ‘i re arrancada”." No século XVIII, um outro: bispo ¢€s nil Pontoppidan, identificard esses monstros com polvos siti cyjos tentéculos sio tio grossos quanto os mastros dos nav Tein 1802, um aluno de Buffon falaré do Kraken, polvo gi do “animal mais imenso de nosso planeta’, einsistins Of sua agressividade; tema reromado em 1861 por ‘Michelet em bf Wubigné julga-se ner, em 1866 por Victor Hugo em Os trabalbadores dlo ri 0) shi scabulo polve, ¢ em 1869 por Jilio ‘Verne ell Iaolpor ventos ¢ vagas Poni Kens stbmarinas, Duradoura lendla, nascila iy 1 Mi ido por urea tempestade pr onstros assustadores que um clement Host qt Ml gos, de compli, de emboscadas (Hécarombe de Dis mat niio podia deixar de gerar em suas profundeza icDianel Tngar do medo, da morte ¢ da deméncia, vives Sati, 98 deménios 0s monstros, © mar um cin (evil econ quando toda a criacio for regenerada. So Jato 0101 hho Apocalipse (8%,1): “Depois, eu vi um céu noes uma (of nova, © primeira cén, com efeito, e a primeira ter esa pil vay e de mar, j nao hé mais”. O mar, perigo mame i! ( Wind, no Hymne de la mort, assim evoca as preocupagées |, mioi't, assim evoca as p) dutta: . iH ; illiy proclama feliz 0 natimorto, poi seitlu sobre a eabeca Iiiuc! tempestade lle sores agitados (Complainee di désespért) como que popularizaro vo nilo x Bes, JJ. Rousseau eserevers: “Perdido no mar infortinios, nao posso esquecer os detalhes de ile viver, com medo de morrer semelhante we porttido, jogucte do fuss e do reflux, cera 9 Mina alma para bore suturnien). Aes ciado na sensibilidade Estava ligado a morte, plano de repulsa milenai s poueas sondagens, uma no deixaria de trazer ampla confirmagio. ‘Assim, até as vitérias da técnica moderna, 0 mar era iyi ‘ecis naufrdgios aparelba [L° Poime ‘Vimbém nao se dizia, até o século XV, que o mar \uilor, que os antipodas sio inabitados ¢ inabitaveis: ino dos marinheiros portugueses quando Henrique, J, podiu-lhes que ultrapassasse o cabo Bojador ao sul | considerado por muito tempo “o cabo do medo”: nvestigagdo sistemit\i cletiva as piores imagens de afi noite, a0 abismo. & todo esse sex iil ilvito (diziam eles] que para além desse cabo nao hé r que se adivinha por tris de Ovi jenny nem lugares habitados. O solo ali nio é me- ino dlo que nos d jrox: “Onde esto os marinheiros sogobrados nas noites ei win) drvore, nem relva verde. Alii o mar é tio pouco ma 832 perdas de navios em Uma civilizagao ess tanto sendo desconfiar metade do séeulo xv, capitulo geral de sua ordem. Embarca em Nice, Mas lox. ji pelo mau tempo, desde Ménaco, ele se faz trazer de voli § margem; € pela estrada de terra que aleanga Roma. Inst ll pela aventura, consigna em seu didrio de viagem a seul sentenga: “Por mais pr6) ¢ 2 st bastante longe p: O DE — um estranho muitas Simone Majolo (Dies caniculares, Roma, 1597), passanclo if Vincent de Beauvais, Mandeville e As mil e uma noites, CON VE “se a crenga em uma montanha imantada situada em aljvilif parte na rota da India: ela atvafa irresistivelmente os navi il tadores de objetos met -os prisioneiros ou até 70 >°, Victor Hugo escreveu esse poema em 1836. Dezoito ai s tarde, 0 relatério anual da Marinha inglesa mencioni\f faua, sobretudo quando se acumula sob forma de mar, Nf mara ali encontrar sepultura”. TANTE E 0 PROXIMO; 0 NOVO E.0 AN'TIGO hin esq Aberto pata o distante, o mar desemboeava outrora cm ih \s6litos énde tudo era possivel ¢ onde o estranho era i 1o\/ ses in: nde tud P ie uugueses, ameaga-os nestes termos: li) ie, a uma légua de terra, o fundo nao ultrapassa Wi, As correntes sio to fortes que qualquer navio |\ipulsesse 0 cabo no poderia dali regressar. Foi por {io\s0s pais jamais empreenderam ultrapassi 1853." encialmente terrestre nao podia pil de um elemento tio pérfide cone Iiindas, Cambes faz eco 208 temores sentidos pelos Jy portugueses nas proximidades do cabo da Boa | (ognominado anteriormente cabo das Tormentas. juyinada pelo poeta nao teria nascido em seu espirito J0\05 relatos orais ¢ escritos relativos a temivel pas ima que esteja a terra, no mar Seti |y\Hinto os navios avancam na sua direcao, eis que o a Ajoivnta aos capitdes ¢ as tripulagdes como uma esté- jue ¢ gigantesca”, “réplica do colosso de Rodes” — Jnyoluntirio do de Goya em O panico. “O rosto carre- ida: os olhos encovados, ¢ a postura medo- | cor terrena e palida, cheios de terra ¢ crespos os egra, 05 dentes amarelos.” Dirigindo-se aos ‘um dominicano de Grasse dirige-90 Wf veres assustador. De Plinio, o Vell, § O gente ousada mais que quantas No nnando cometerio grandes cousas, | Pois os-vedados térmsinos quebrantas Hi naveger nrens longos mares ousas, Que cx tanto tempo bed jd que guardo e tenbo Nunca arades destranto, ou proprio lenbo. 10s, ¢ especialmente pregos, 1nantiii ‘mesmo provocava seu desmembr:ini i 0H uma obra publicada no final do século xv, O Vitoria natural: Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza, ¢ do timido elemento, ‘A nentuam grande bumano concedidos iN ligito [...), vivem dois perigosos monstros. F. se de bom grado as margens do mar, que séo muito i) causam medo a gente do pais, dos quais uns tém ile hipopdtamos e os outros tém nome de crocodilos. alto, que édo lado do Oriente, pastam muitas bestas Wy Venenosas como ledes, leopardos, parideos, tr @ hasiliscos, dragées, serpentes e aspides que estiio ile muito perigoso ¢ mortal veneno. Sabe que quantas nas esta viagent Que tu fzes, fizerem de atrevidas Inimiga teri esta paragem Com ventas e tormentas desmedidas: E-da primeira armada que passagem Fizer por estas ondas insufridas, Eu farei dimproviso tal castiga Que seja mir 0 dano que o perigo. (--] is ‘lessas crengas lendérias ou desses exageros assusta- Ishiese o medo do outro, isto é, de tudo que perten Antes a oisoer wins nels cadaono, wo diferente. Por certo, os aspectos extraordinirios, Se éverdade o que meu jutzo alcanca, ‘\iributdos aos pafses distantes podiam também consti- Natefrigios, peviigies de toda sorte, Hilly poderoso. A imaginagao coletiva da Europa na Que 0 nrenor mal de todos soja a morte." ii © na Renascenca inventava, para além dos mares © luxuriosos, paraisos cujas miragens arrancaram tlos horizontes familiares descobridores e aventurei- {iiile — 6 outro — foi também um ima que permi ‘air dle si mesma: voltaremos a isso mais adiante. Cronistas ¢ poetas portugueses procuraram naturalneill engrandecer a coragem dos capities lusitanos. Por outro lili as correntes que circulam nas proximidades do cabo Bojaliy gio efetivamente violentas. Enfim, cada nagio, na épovs (lf i, para a massa das pessoas o recuo diante do estra- Renascenga, tentou impressionar seus concorrentes difwnliiili Wuiliy ay suas formas permaneceu por muito tempo relatos terrificantes sobre as viagens maritimas — avin Aside mais comum. O conselho dado no séeulo x1 pelo dissuasiio que se acrescentava ao segredo que se tentav 1141) Kekavmenos teria podido ser formulado quinhentos sobre os melhores itinerérios. De todo modo, as rotas do lull {urile por muitos ocidentais: “Se um estranho chega grinquo causavam medo. ile, liga-se a tie entende-se contigo, néo confia nele: °E, se asgim mesmo se chegasse aos paises exdticor, (lf #10), enti que precisas precaver-te”.” Dai a hostili- is fantasticos € aterrorisa\ie “foristeiros”, a cdlera nas aldeias, manifestada por ievow na hill 0 \uina moga se casava com um homem vindo de W, 0 silencio dos habitantes diante das autoridades W) leles havia maltratado um “forasteiro”, as rixas seres monstruosos, que anima tie ali nfo se encontrariam? A Idade Média homens com eabeca de cachorro que rosnavam ¢ ati outros que nfo tinham cabega, mas olhos sobre 0 veil outros ainda que se protegiam do sol deitando-se de costs asic dase ecidedes seo Ts erguendo um Ginico ¢ largo pé — universo onitico que 10 cris s responsiblsiate paar aece> rece no final do século xv na obra de Bosch. & propdsitt th Belichics ce eee peus fazem muitas vezes uns dos outros, no momento cH (Ne txplode a nebulosa crista. Em seu Bivve de la description des pay redigido por volta de 1450, Gilles Le Bouvier apresents it mancira pejorativa a maior parte dos europeus: os ingleses “cruéis ¢ sanguinirios” e, além disso, mercadores cipidos. O# suigos sfo "gente cruel e rude”; os escandinavos ¢ os polonesty “pessoas terriveis e furiosns”; os sicilianos, “muito ciumenti de suas mulheres’; os napolitanos, “pessoas grossciras ¢ rill © maus eatélicos & grandes pecadores”; os castelhanos, “got que por tudo se enfurece, © sio mal vestidos, mal calgadoy | sealdormidos, e maus catélicos”. Na época da Reforma, inglt ges e alemics consideram que a Iedlia é a sentina de wos vicios, € essa opinigo nao deixou de contribuir para a proj) gagio do protestantismo. Assins, mesmo no momento ci «IE e genascenga amplia os horizontes do Ocidente — ¢ ainill depois —, 0 estranho 6 visto por muita gente como suspeit | Sera preciso tempo para habituar-se a cle. Ni dleatacam, no século XVIFou até o comego do XVIII, movimeniiy Yendfobos em diversos cantos da Europa: em 1620 em Marvell os turcos — 45 deles siio massacrados —, em 1624 «lll sdimburgo onde | inguietante. cont Barcelona contra os genoveses, em 1706 em populagio mata a tripulagio de um barco ingles A novidade era — ¢ € — uma das categorias do outro Ili a novidade é um slogan que rende. Outrori iif nossa época, a contririo, causava medo. Evocaremos mais adiante as rebe le impostos. Ui fe as revoltassprovocadas pelos aumentos sobrecarga fiscal no era apenas um fardo a mais para onbiy fatigados, era também uma novidade, Era uma das forma» ll outro. “Nossos povos", recon! tem 1651, “so naturalmente impacientes com toclasas nov ‘As revoltas do Périgord em 1637, as taxagdes recentenwill decididas parecem “extraordindrias, insuportiveis, ilewiti ii cexcessivas, “novidades” reaparece na “peti 10 da populaga” que 05 ©: tudo de vinte paréqui m 1675 fazem diri- iniids de Never e por ele ao governador da provine Kontentes de pagar [os impostos} que existia Ios © niio nos recusamos a pagar cada um sua contri- n hi iio the cabe, ¢ nao contestamos nada sendo os novos Wwitrgos”." Se os projetos ou os rumores de extensio 4 regides que dela estavam tradicionalmente isentas Jomandia, Bretanha, Poitou, Gasconha — desperta- ) Heagdes violentas, é que os povos ai viam um ataque WVilégios mais antigos, portanto & sua liberdade, uma seus direitos e da palavra dos reis. Daf grito famo- {hei sem gabelal”. Dat 0 amanifisto em favor da liber iia do alto indomdvel capitio Joao Miserdvel, general ilk sofrimento (1639): — Joito Miseriével & vosso apoio, Vingard vossa querela, Libertando-vos dos impostos, Furi retivar a gabela FE. combaterd por nds todas essas gentes Que se enviquecem as custas De sus bens e da patria; Foi ele que Deus exrviow Para colocar na Normandia Uma perfeita liberdade.* N10, nao é exes wiligbes antifiscais de outrora, o choque de duas cul- vo perceber com Y.-M. Bercé, por Wi oral, costumeira, na defensiva, “tomando seus 40) un passado imutaveP’ 2 a outra d ria. Bs ung Be ioscne outra escrita, moderna, | fierigosamente inovadora.” O papel timbrado teria a odioso se nao tivessem tentado impé-lo a popula- Iiinente analfabetas? As mesmas estruturas mentais ‘fevolta dos “rard-avisés” do Quercy, em 1707, contra jpiroquiais.” Se “desconhecidas de nossos pais”. A mesma recut ; P bs ijl institufa controladores dos autos extraidos dos s sedicGes de outrora procederam a 5 frequentes queimas de papéis, nao foi porque 0 povo iletrado t Devolverei em breve a primeira liberdade tinha medo e dio da eserita? mabre, do canyponés eda santa Igreja, Os novos tributos cram acompanhados nio 6 de uma pape- Quer dizer no estado em qe escamos . lada sem exemplo no pasado, mas também da instalagio de Quando Luis Doze conduzia tem século de onro, organismos de arrecadagio aos quais nio se estava habituado: raz6es de sobra para a inquictacao. A coleta das talhas na Franga do século xvi foi precedida pela redugio de regides de estados a regides de eleigdes ¢ os oficiais de finangas, tradicionalmente Breve de Lats ss la de Lad soto oe Hensique ligatos Sos ihtere cidade ou de sua provincia, foram Iillo dos Estados Gerais por Luis xv e ainda quando se difun- progressivamente desapossados em favor de comissionados assa~ ilu nos campos a noticia das jornadas parisienses dle 1848. Tal lariados, revogiveis e nomeados pelo intendente. Assim, na opi- A utopia do Estado sem tributo atravessou os século: Assim, na Franca, acreditou-se no alivio, ou até na supressio do fico, quando da morte de Carlos v, da ascensao de I Tenrique de su Inito teve por muito tempo como componente maior a crenga io geral, novos tributos e “forasteiros” estiveram indissolu- Hi inesgotével bondade do soberano, Ele era o pai de seus stidi- ni velmente li ssionados ¢ os cobradores da gabela (os; no demandava senao o alivio de seu povo. Mas era enga- de toda Inia apareceram como gente que chegava de outras par- Huclo por seus ministros ¢ pelos agentes locais destes iiltimos tes para extorquir uma comunidade a que nio pertenciam. Em Desse modo, durante séculos, nfo houve revolta contra o rei 1639, os “Miserdveis” da baixa Normandia reuniram-se em ~~ era-um personagem sagrado acima de qualquer suspeita — para defender a patria “oprimida por financistas e cobra- {as apenas contra seus indignos servidores, Os bordeleses, dores da gabela” e “nao tolerar nenhuma pessoa desconhecida” Hiilindo perdi a Henrique 1 em 1549, fizeram-lhe sincera- nas paréquias.* O Manifesto de Joao Miserifvel langava em sua Mente notar que “a sublevacio [no tinha] sido feita para opor- terceira estrofe esta exclamagio significativ “se sua autoridade, mas para resistir As grandes pilhagens que fiziam aqueles que estavam comissionados para a gabela e que Een suportarei um povo languesvente ‘osses fatos Ihes eram insuporeéveis?. Sob a tirania, ¢ que wn bando de forastetvos Revolear-se era ajudar o rei a livrar-se das sanguessugas da Oprime todos os dias com suas fragées!” Inigio. Do mesmo modo, pensava-se periodicamente que o principe desejava essa cooperacio ativa e, durante certo tempo Os estudos recentes sobre as sedicées de outrora provaram jlo menos, dava ordem e até intimava o povo a fazer justiga por {que # imensa maioriadelas tina uma dominante “misoneisca”. Hi mesmo, G. Lefebvre pds em evidéncia esse elemento da psi Conservadoras e passadistas, faziam por vezes referéncia explici- Cologia coletiva quando das perturbagdes rurais do verio de ta — ou, com mais frequéncia, remetiam inconscientemente — 1789. Depois de 14 de julho, Luis xvi, como acreditava bom ao mito da idade de ouro perdida, maravilhoso paraiso ao qual se inlimero de camponeses, decidi teria amado voltar ¢ que os milenaristas percebiam novamente logindos e redigira instrugdes nesse sentido, Mas conjurados no horizonte. Sob sua forma atenuada, esse mito fazia crer 3 Impediam sua publicagao, e os padres abstinham-se de Ie-las na populagées que existira outrora um Estado sem tributo nem homilia. Apesar desse siléncio, convenceram-se de que 0 rei tirania, por exemplo no tempo de Luis xit. 0 que assegurava Orlenara queinar os eastelos e outorgara algumas semanas Joao Miseravel aos revoltosos normandos de 1639: le permissdo para essa santa tarefa.° Tal mitologia sobrevivia 11 rebaixar o poder dos privi- 6

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