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1 Disciplina e invengao: a festa , Por que comecar com a festa? O entusiasmo festivo que to- mou conta da historiografia francesa ha uma dezena de anos parece, com efeito, ter-se dissipado um pouco em nossos tempos mais austeros. E bem certo que, naquela época, a exploracao multiplicada da festa antiga constituiu uma espécie de compen- sacao, em termos de conhecimento, para o desaparecimento de um sistema de civilizagdo em que a festa tinha, ou melhor, era considerada como tendo um papel central. A andlise histérica, portanto, estava encarregada de relatar, na sua linguagem e com suas técnicas, a nostalgia secretada por um presente que tinha banido a festa definida como ato de participagao comunitaria. Nesse terreno, encontrou-se uma das funcées principais atribuf- das -implicita ou abertamente — a histéria hoje: restituir ao pla- no do saber um mundo desaparecido do qual a sociedade con- temporanea se sente herdeira, mas herdeira infiel. A operacao de conhecimento sempre teve dificuldade de separar-se da fabri- cacdo de um passado imaginério, coletivamente desejado. Em todo caso, ela fez que fossem privilegiados os objetos mais es- 21 Roger Chortier porém os mais sintométicos da cultura voacia, a festa foi um deles. i erga a evidencia, a festa foi um de re cera to a festa—como objeto histérico~beneficioy. seca reabilitagdo do acontecimento. Depols de terem pescrutadg facicamente a longa dura¢do € as permanéncias, os historiadg. te radig&o dos Annales, voltaram ao acontg res, em particular os da 0 y ne, Na sua efemeridade € na sua tens&o, com efeito, este pode revelar, tanto quanto as evolucSes de longa duragio ou «, Prercias sociais e culturais, as estruturas que constituem uma sociedade ou uma mentalidade coletiva. A batalha foi entre og primeiros beneficiérios dessa reavaliacdo. Arrancada da historia. narrativa, ela pode ser instituida como um lugar de observacig pertinente onde apreender uma estrutura social, um sistema de cultura, a fabricag¢ao de uma hist6ria ou de um legendario,! pa mesma maneira, a festa deixou 0 territério do pitoresco e do anedético para tornar-se um revelador maior das clivagens, ten. sdes e representagdes que atravessam uma sociedade. Semelhan. te tratamento é certamente evidente quando a festa engendra uma violéncia em que a comunidade se dilacera, como em Romans em 1850: “O carnaval romanés me faz pensar no grande canyon do Colorado. Sulco factual, ele se afunda numa estrati- grafia estrutural. Como 0 tracado de um guia, ele deixa ver as camadas mentais e sociais que compoem um muito Antigo Re- gime”.? A metfora geoldgica designa claramente uma perspec- tiva em que o acontecimento festivo é indicio, em que 0 excepcio- nal tem a tarefa de relatar o comum. Mas, mesmo quando nao gera desregramentos nem revolta, a festa suscita semelhante abordagem. Ela é sempre aquele momento particular mas reitera- quecidos pelo presente. cimen Duby, G. Le dimanche de Bouvines 27 juillet 1214. Paris: Gallimard, 1973 (es: pec. p.13-4) [ed. bras.: O domingo de Bouvines. Trad. Maria Cristina Frias. S40 Paulo: Paz e Terra, 1983]. 2. Le Roy Ladurie, E. Le carnaval de romans. De la Chandeleur au mercredi des Cendres 1579-1580. Paris: Gallimard, 1979. p.408. 22 Leituras @ leitores no Franga do Antigo Regime do em que se pode apreender ~ mesmo se mascaradas ou inver- tidas — as regras de um funcionamento social. Mas para nés, aqui, a atencSo dedicada as festas do Antigo Regime tem uma razdo diferente. A festa, com efeito, é um dos momentos principais em que se vinculam, em termos de com- promisso € de conflito, relagdes entre uma cultura designada como popular, ou folclérica, e as culturas dominantes. Desses encontros, a festa nao é o tinico lugar, mas é um lugar absoluta- mente exemplar. Primeiramente, é claro que ela se situa na encru- zilhada de duas dinamicas culturais: de um lado, a invencao e a expressao da cultura tradicional compartilhada pela maioria; de outro, a vontade disciplinante e o projeto aculturante da cultura dominante. Podemos entao, com todo o direito, aplicar a ela a problematica construida por Alphonse Dupront a propésito da peregrinaco, que da énfase as tensGes entre a pulsao do coletivo ea disciplina imposta pela instituicao.’ Por outro lado, a festa “popular” foi pensada pelas culturas dominantes como um obsta- culo maior a afirmacdo de sua hegemonia religiosa, ética ou poli- tica. Em conseqiiéncia, ela foi o alvo de um trabalho, sempre recomegado, visando destrui-la, desbasta-la, disciplina-la ou re- cuperd-la. Ela é, portanto, o lugar de um conflito em que se con- frontam, ao vivo, logicas culturais contraditérias; por isso, ela autoriza uma apreensio das culturas “popular” € erudita nos seus cruzamentos e nao apenas por meio do inventario dos motivos que supostamente lhes s40 proprios. A festa é uma das formas sociais em que é possivel observar tanto a resisténcia popular as injunges normativas quanto a remodelagem segundo os mode- los culturais dominantes dos comportamentos da maioria. Dai sua importancia para uma historia das mentalidades sensivel 4 andlise de funcionamentos culturais concretos € localizados. re des masses: de la doléance au pélerinage 3. Dupront, A. Formes de la cultui de culture et groupes sociaux. Paris, La panique (XVIIF-XX° siécle). In: Niveaux Haye: Moutoun, 1967. p.149-67. 23 Roger Charter Reconhecidas assim as raz6es que fizeram colocar a ordem do dia do trabalho hist6rico, €possivel esbosar, parse terreno bem balizado ~ a Franga entre o século XV eo séeun XVlIl-, um balango das conquistas e dos problemas colocadee por sua leitura retrospectiva. Para isso, parece de bom métode apoiar-se em certo niimero de “estudos de casos”, tanto orig nais como tomados de empréstimo. Resta, entretanto, uma it rma preliminar, que diz espeito a grande incerteza que veicula proprio uso da palavra festa. Sua aparente unicidade remete, fato, amiiltiplas diferencas, geralmente pensadas mediante uma série de oposicSes: popular/oficial, rural/urbana,religiosa/laica, participacao/espetdculo etc. Ora, essas clivagens, longe de per. mitir uma clara tipologia das ceriménias festivas, so elas pro prias problematicas,jé que a festa & quase sempre um misto que visa conciliar os contrérios. Por outro lado, a palavra investe em sia definicio — teorizada ou espontanea - que cada um se forjou da festa, Misturando lembranga e utopia, dizendo que a festa deve ser eo que ela nao é, essas definig6es sao certamente a coisa menos compartilhada do mundo. Portanto, elas impedem de construir facil festana ente a festa como objeto histérico de contornos bem desenhados. Para tentar reter por algum tempo essa reali- dade mével, fugidia e contraditéria, aceitaremos como festas todas as manifestacbes que so dadas como tais na sociedade antiga, mesmo se o festivo estiver em outro lugar além das festas (talvez sobretudo nelas).* Primeira e fundamental constatagio: a festa antiga, longe de ser um dado estavel, suscetivel de uma descrigao estética, foi, do fim da Idade Média até a Revolucao, objeto de mi s6es modificadoras que, antes de tudo, é preciso detectar. AS censuras eclesiésticas so certamente as mais antigas. As conde- nagGes lancadas pela Igreja contra as festas e as diversGes popula- res alimentam uma cadeia ininterrupta de textos entre os séculos 4+ Certeau, M de. Une culture trés ordinate. Esprit, oct. 1978, p.326. 24 I a a situs e ltores na Fronga do Antigo Regime Xl eXVIIL A literatura dos exempla, que devem apoiar essa pre- dicagdo, éa forma principal dessas prevengSes, seguida pelo corpus macico dos decretos conciliares, estatutos sinodais ou prescri- ‘qGes episcopais. Desde o fim do século XVI, a abundancia desse material é tanta que pode servir de base para tratados teol6gicos vvisando recapitular a tradicdo da Igreja e encarregados de infor- ‘mar a pastoral, como os dois tratados de J.-B. Thiers Essas in- terdig6es eclesidsticas s40 tao importantes a ponto de serem freqtientemente retomadas pelas autoridades civis, parlamentos ‘ou municipalidades. Um exemplo t6pico dessa alianga dos pode- res é dado pela luta empreendida contra as festas bailadas nos séculos XVIle XVIII na algada do Parlamento de Paris.‘ Essas fes- tas, realizadas aos domingos ¢ nos dias de festas obrigatérias, freqiientemente ligadas a uma feira, marcadas por divertimentos, tradicionais (dangas e jogos), foram proibidas por um decreto dos Grandes Dias de Auvergne em 1665, e, dois anos mais tarde, acondenagao foi estendida a toda aalgada do Parlamento. Entre- tanto, na tiltima década do Antigo Regime, vemos essa conde- nao universal ser duplicada pot meia centena de decretos par- ticulares. Em toda parte, mecanismo é idéntico: uma queixa € apresentada pelo vigério do lugar into ao procurador-geral do Parlamento, este manda abrir um inquérito pelos juizes locais, e essa informacdo acaba muitas vezes, mas nem sempre, comoum decreto de interdigdo, Semelhante ofensiva, tensa edecidida, atesta 5 Thiers). jeux et ds divrtissements, Paris, 1696; e Troité des supers- titons selon U'Eeriture Sainte les dérets ds conciles et es sentiments des saints Pres et des théologiens. Paris, 1678, 2.ed., 4 tomes (1697-1704). Sobre este timo ions de Jean-Baptiste Pays de "Ouest, 1976, p.443-65; e Charter, R., Revel, J. cet saint Augustin, In: La décowert dela Pance au XVIL CNRS, 1980. p.259-66, -M, Féteetrévolte. Des mentalités populaires du XVI¢au XVIMsiécle, Paris: Hachette, 1976. p.170-6, 25 “oger Chartier Para a I i wt et de conontoentreacultuaiaine sr & Um pe Muito cedo, desde o séculortan nee 2 tStitigiger lesde o século XI, a literature! alee © conflito vivo que se estabelen oo nope ede Pentecostes.” Paraa cultura jon cick, do calendério é antas de tudo o temper nn tea espera. a integragdo dos jovens a sociedade. 9 8284 cratico quer sejam as dancas no meio pocgy i eo eclesidstica, ao contrério, esse tem, cea Pentain Santo deve sero tempo da Procissio, de reg att do Eig Essa luta pelo controle do tempo se desert, Tuzaa, cotidiana, coma Igreja nao oer bet na esl Fomanala Com Igrejandocessando de fazer desapuecerag eure pte © concep¢do que os fundamenta; a ie stabelecida entre o dia, que pertence grein ees tempo privilegiado do jogo livre. ect Visando disciplinar os corpos, a Igreja apreende os tamentos festivos por meio das mesmas categorias que open la ac ic : Pas tne condenses a tradicional. Em primeiro lugar, dia essa palave,colocandora coma oontririoocediee oe comportamentosfestivos, com cfeto valamao nat saoee seetPonamentos festivos, com eet, varam aint, nose sem abrlutamente puma autordad elesést,fncan ‘Bigs im evlstencias comunitrias particle, Foran les lico, universal, fundamentado e compar- do eclesissig 7 Schmitt, J. Peak Jeunes et danses des chevaux de bois. Le folklore méridional ddans la littérature des exempla (XIII“XIV" scl). Cahiers de Fanjeus (Tulu- 50), n.11, p-127-58, 1976. do Antigo Regime Lnturose litres ne Frans 1 outra, psicol6- sdenaggo teoldgica éduplicada P® tilhado. Essa co” malar identifica-se, a festa popull irracional dos corpos © dos eecesso e addesmedida, bani fe ease justamente medidas. Enfirmy one: , mg das, ao mesmo fem ca indecencia elicenga. Nela se &° ‘no plano moral, ela sigt Jidade crist normas, 0S COrPOs ; Je, o pudor perde suas i se dd Sem Co a do espontaneo, 2 = Jonam sem reveréncia pelo Criador WEST Sp do ree da desordem ¢ 40 vie por exceléncia. Ela retine em si os dife Sean praticas ilfcitas, contrérias & rentes tra¢ : area -a verdadeira, a necessdria me : renee fr que as festas tenham sido um dos alvos vrincipais do esforgo Ree coe aca censuré-las, as estratégias séo diversas. A m: plo, no caso da festa dos Loucos, cele- brada geralmente no di cara tina inversao das posig6es da hierarquia eclesidstica, a parédia teatrais, dancas, festins etc.). Festa de forte conotacao religiosa, desen- volvendo-se na sua parte essencial dentro do espaco consagrado, ¢, a0 que parece, eficaz. No seu Tratado dos jogos e dos divertimen- tos, J-B. Thiers recapitula os textos que proibiram a festa dos ordem do bispo de Paris e comporta trés textos do século XII, sete do século XV, dez do século XVI. Essa insisténcia parece ter juplicada por s eae com efeito, a0 ja, a fe ica, Para a Tereh a ‘ ° 20 oi Pi verfeito das praticas autoriza situ s bens. Blase essarias € i a: a afetividade ntam a civil no gs regras que fundame! alistas ‘desonesto, a festa, aos olhos dos mor cristos, €a antici f i desqualificam as ontrérias fda e ao pudor crist#o. Nao portanto, de admir. : cristianizador:* : is radical tende a interdigao; por exer, ( ia dos Santos-Inocentes e caracterizada por dos rituais religiosos e divertimentos miltiplos (jogos afestados Loucos foi objeto de uma condenacao antiga, reiterada Loucos ou dos Inocentes: sua série comeca em 1198 com uma ca produzido seus frutos, jé que a festa dos Loucos desaparece no 8 Delumeau, J. (Dir.) La mort des Pays de Cocagne. Camportements collectifs de la Renaissance a I’Age Classique. Paris: Publications de la Sorbonne, 1976. p.14-29. 9 Thiers, Traité des jeux... op. cit, p.440-51, 27 Roger Chartier fim do século XVI; em meados do século xvi, e hist6ria, de uma hist6ria to distante e estranh, indecifravel: ‘As festas cuja histéria eu empreendo sao cz, vagantes que o leitor terd dificuldade em dar-thes cr ee to extra. for instruido na ignorancia ena barbérie que precederan cenga das belas-letras”.!° ‘am arenas. Muitas vezes, essa estratégia de erradicacio nfo é deve dar lugar ao compromisso que passa por um eons sioso do dispositivo festivo. Como para a peregrinaczo, 1. tuigdo eclesidstica visa impor sua ordem a0 espontanes, drar a liberdade popular, extirpar suas manifestac6es intolerse, E assim que se deve compreender a luta tenaz. emnpreendida ae Igrejas, tanto a reformada como a catélica, contra a aaa co, da festa antiga, pratia poss velmente presente em ceriménias muito diversas. Nesse ponto, ainda, Thiers recorre a miiltiplas autoridades para condenar ; danga, escola de impureza e arma do diabo: IEE objeto ge 1a que & ‘quase a insti. enqua- Quéo poucos séo aqueles que, dancando ou vendo os outros dangar, ndo se entregam a alguns pensamentos desonestos, néo angam algum olhar impudico, ndo assumem alguma postura in- decente, ndo dizem alguma palavra solta, enfim nao formam al- ‘gum desejo da carne, como diz 0 santo Apéstolo?” 10 Till -B. du. Mémoires pour servir& histoire de a fie des Fous gui se feist efois dans plusieurs élises, Citado por Bercé, Féte et réolte, op. cit p140. 11 Thiers, Trité des jeux... op. cit, p.331-41. Como a danga, as méscaras de carnaval sio duplamente condenaveis: elas travestem o corpo do homer, portanto blasfemam contra o Criador; permitem as lcengas mais perigosss tanto para a ordem da sociedade como para a da moral. Como prova, dois textos: primeiroas consttuigdes sinodais da diocese de Annecy (ed- de 1773): “Exortamos enfim os Sr. arcebispos, procos evigirios, aque se epliquem da melhor maneira, sobretudo nos burgos e nas cidades, para extitp@t © abuso das mascaradas que nada mais s4o do que um lixo vergonheso do ‘paganismo. Para fazé-lo, eles se levantarSo contra isso em seus sermées ¢ instrugées, sobretudo da| iia até a Quaresma, fardo sentir ose ridiculo 28 res na Fronga do Antigo Regime Leituras Deformando os corpos, a danga distorce as almas e inclina 1o deve entdo contaminar as festas autorizadas. lerical é a da triagem. A operacao da festa eas praticas Im caso t6pico dessa ao pecado. Ela nd : ‘Uma terceira estratégia cl d decristianizagao visa separar o nticleo licito superstiiosas sedimentadas em torno dee, Umcaso spicod perspectiva pode ser lido no discurso re relativo aos fogos ae eho Jodo.” A festa e seus fogos, que visam celebrar o nasci- fnento do santo, so considerados legitimos, mas com a condi¢ao de ser estritamente isolados e controlados: a ceriménia deve ser breve, por issoa fogueira pequena, a fim de evitar todo supérfluo ‘ou excesso; as dancas e os festins que acompanham os fogos devem ser proibidos, assim como as condutas supersticiosas que eles geram. Os fogos de S40 Joao, com efeito, alimentam um gran- de niimero de crencas nas quais se desnuda a supersticao, j4 que todas se baseiam na relacio iluséria que existiria entre um gesto (jogar ervas sobre o fogo, guardar tices ou carves do fogo, dar voltas ou fazer circulos ao redor do fogo etc.) e seus supostos efeitos (adivinhar a cor do cabelo da futura mulher, garantir-se 0 ano inteiro contra a dor de cabeca e a dor de rim etc.).” Entre a € seus perigos, mostrando ao povo que essa desordem ¢ inj jas imagens desfigura; que desonra os adeptos de Jesus Cri ‘ando-Ihes personagens butlescos e deslocados; e que favorece fando aquilo que atenta ao pudor” (citado segundo Devos, R., Joisten, C. Moeurs et coutumes de la Savoie du Nord au XIX" scl Lenguéte de ME i preimbulo de uma ordem do mais tao de Lille de 1681: “Consderando que todos ob anes, algum tempo sete da Quaresma, corer uitasdesordensinconvenientesrejuicne &atagtodas amas ea bem da cosa pessoas de um e uta sexo det pel rane cifree, iment Lather ase. a: reses Universit tes de France, 1971. p.259-61. ee fo reltadas em Thies, Tad de spe , Tat es spe 9.298, de 127,01, pd 4 OB. cit, 29 Roger Chor erversto supersticioss emote olimite ging fe ce rae Oe anidades e seus Vigarios."*Tolerancia e condenasses coat: a squiparaevitar canto ocontlito aberto, muitas vezesjudiga to abuso intolerdvel. Duas cultura se confrontam em yf festividades: uma, clerical, que visa ordenar os comport Oda para fazer da festa uma homenagem a Deus; outra, qe amen que absorve o cerimonial religioso num ato col ube Embora seja incontestavelmente amais continuag4 2". derosa, a pressio eclesidstica sobre as festas nao abso Mais po, ainica. Entre 1400 e 1600, com efeito, as festas urban, ‘tamenge palmente o carnaval, sofreram outra intervencio ligadang P+ confisco municipal. Em toda parte, coletorias, econsuladee nt dominar a festa urbana, e, para isco, controlar seu free Se seus itinerdrios, seu programa." Cada vez mais, na a to, dermidade,a festa ésustentada pelasfnangas monica mais apenas pelo rei da confraria que era. ta organizadora ta cional. Progressivamente, a autonomia cede lugar 2 fnaney mento ptiblico. Daf um controle mais rfgido dositineriroscer, que dao um espago privilegiado aos lugares simbslins da identidade e do poder urbanos (por exemplo, a prefeituraoy a praca do mercado, as vezes até as casas dos coletores). Daftan- bém uma intervengao cada vez mais clara do corpo municipal na elaboragaio do programa festivo que até entéo era unicamenede algada das confrarias organizadoras (reino da juventude ovate dias jocosas). 14 Tackett, T Priest and Parish in Eighteenth-Cetury Front ‘A Social and Pl ie ighteenth-Century Fr 7 1750-179) visites pastorales ordre ess Guida Editor, 1973. ea \ _xviesitele: lero Grin or Carnaval et société urbaine, xx FS are ologie Prangaist, 1.3, P2153: a0 tres na Fronga do Antigo Regime Essa apropriagio municipal obedece a uma finalidade clara: cexprimir na linguagem da festa uma ideologia, a0 mesmo tem- po citadina e laica. A composigéo dos cortejos é uma primeira tradugio disso, jé que neles esto reunidos, real ou simboli mente, todos 0s corpos de profiss6es que compéem a cidade. Fot assim, em Metz, em 1510 1511." Agrupando e ao mesmo tem- po hierarquizando, a festa deve exprimir a unidade da comuni- dade urbana, Ela deve também moldar um legendirio urbano en- carregado de enraizar 0 passado da cidacle numa hist6riaprestigiosa, antiga ou biblica. Em Metz, em 1511, no dia dos Archotes, os dignitérios da cidade se fantasiam, e s4o Davi, Heitor, Jilio César, Alexandre, 0 Grande, Carlos Magno e Godefroy de Bouillon que legitimam o poderio da cidade e 0 poder de sua oligarquia. A festa urbana tornou-se assim um instrumento politico que permite a afirmagao da cidade perante o principe, a nobreza.e as outras ci- dades, Portanto, ela deve exprimir, pelo dispéndio e pelo fasto, a riqueza da cidade, inserindo-se assim numa diplomacia da com- peticio que néo deixa de ter efeito sobre o calendirio festivo. De fato, afim de autorizar a assisténcia reciproca de representantes das cidades nos carnavais, as cidades de Flandres e de Artois des- locam a festa, chegando a celebré-la fora de sua posigéo no ca- lendério normal. Vemos assim como uma ideologia politica pode alterar, determinar ou transformar rituais antigos para sub- verter a sua significado. ‘Censurada pelas autoridades eclesiasticas, desviada pelas oli- ‘garquias municipais, a festa antiga s6 se consagra ento por meio das alteragSes que os poderes progressivamente lhe impuseram. Parece, portanto, impossivel a triagem que visaria reencontrar, sob essas deformagdes e mutilagdes, uma base origindria, pro- priamente “popular” ou “folclérica”. O material festivo, tal como se pode apreendé-lo entre os séculos XVIe XVII é sempre ‘um misto cultural que nao permite isolar facilmente seus com- 1, .229-30, 31 Roger Chartier ponentes, que se quera ordené-los segundo uma clivagem pg. pular/oficial quer segundo uma sedimentacao que faz a depen, déncia suceder a uma espontaneidade pt iva. E por essa ra. 40 que nos pareceu legitimo colocar primeiro em ordem og remanejamentos operados sobre as festas pelos poderes antes de tentar der uma descricao ilus6ria de uma festa supostamente virgem de qualquer contaminagao disciplinatéria. Mas esse ma. terial compésito é ele proprio objeto de uma histéria que talves seja possivelelucidar a partir de um estudo de caso que diz res. peito ao sistema das festas ionesas entre o fim da Idade Média ¢ aRevolugao.” ‘A trama da evolucdo é clara, com as festas baseadas numa participacao comunitéria sendo sucedidas por festas outorgadas, Na Renascenga, o sistema das festas lionesas se compe de dois elementos principais: festas da totalidade urbana, festas da socia- lade popular. As primeiras supdem a participaco do conjunto da populacao citadina num mesmo divertimento, mesmo que ssa participagao seja hierarquizada e por vezes conflituosa. Essa situacdo é evidentemente a das festas religiosas nascidas sobre 98 escombros da festa das Maravilhas desaparecida no inicio do século XV, quer sejam os perdées de Sao Joao, quer as procissdes das Rogacées, quer as festas dos santos padroeiros. E 0 caso, tam- bém, das entradas reais das quais a série lionesa é repleta entre 0 fim do século XV € o inicio do XVII: 1490, 1494, 1495, 1507, 1515, 1522, 1548, 1564, 1574, 1595, 1600, 1622, ou seja, doze entradas em 125 anos, as quais se deveriam juntar todas aquelas ue nao sao reais. Cada uma das entradas prope uma reciproci- dade do espetéculo:0 povo citadino &espectador do cortejo rea, O61 € Sua corte sfo espectadores do cortejo urbano, que incluia Participagao de todas as categorias da cidade, incluidos os arte- Entrées royals et Fetes populaires Lyon di lives fu XVau XVIII stele Lyon: que dela Ville de Lyon, 1970. eae jtores na Franga do Antigo Regime Leturos: sos, reunidos por corporagGes até 1564 e em seguida por bairros. ‘Aentrada é também, por exceléncia, uma festa plural, na qual se imbricam miltiplos elementos: cortejos, cavalhadas, jogos tea- trais, quadros vivos, fogos de artificio etc. O material iconogréfico e cenografico mostrado dessa maneira autoriza uma pluralidade de leituras, certamente muito diversas para os diferentes grupos socioculturais, mas, de qualquer modo, ele é apresentado em ‘comum numa cerim6nia que retine a cidade ‘Outro componente essencial das festas 6 dado por festas que podemos designar como “populares”, com acondigao de nao encerrar a definigao de povo dentro de demasiado estreitos."* Algumas, assumidas pelas confrarias joco- sas, neste casoas vinte abadias de Maugovert, tém por fundamento as relagdes de vizinhanga dentro do bairro. E 0 caso das algazarras que, soba forma de uma cavalgada do asno, ridicularizam os ma- ridos espancados. Esses divertimentos, organizados pelo mundo do artesanato e da mercadoria, s4o também espetéculos que po- dem ser oferecidos aos héspedes aristocréticos: & 0 caso da caval- gada de 1550 e, também, a de 1566, que deveria constituir um dos elementos da entrada da duquesa de Nemours.” Em outras, ocasiGes, o papel principal cabe as confrarias jocosas emanadas das. corporagées, em particular a dos impressores. A confraria da Coquille, que pode ser também a organizadora de cavalgadas do asno (como em 1578), encarrega-se dos cortejos parddicos que marcam Domingo Gordo. Entre 1580 e 1601, meia dizia de livreto: pressos em Lyon pelo Senhor da Coq festiva e critica do grupo de companheiros impressores.”” 18 Davis, N. Z. Le cultures du peuple. Rituels, savoirs et résistances au XVI Paris: Aubier- Montaigne, 1979. cap.1V: “La régle & lenvers”,p.159-209, royale... 0p. cit, p49-50. Duas pecas citadas, uma por » Mota 70; outra pelo catélogo Entrées 1.22, permitem penetrar numa dessas confratias jocosas, reunida em 1517 na Rua Mercigre, 20 Day tres cle nena. am. cin O04 Roger Chartier Popular py a em 1610, pe da festado Don, a i loDoms Gordo nao menciona mais nem as abadias jocosas nem lingo, contra. em 162, Luis XII €oltimo beneficitio de entrada do tipo antigo, ao passo que as seguintes (como aden x1Vem 1658) nao sio mais do que simples recepdes pelo axe ado, nao implicando a participagao do povo urbano. A he operada é, portanto, tripla. Inicialmente, apagam-se as orga ages populares (abadias, confrarias), tradicionalmente © tenedoras das festas. Depois,estiolam-seasfestas da totalidads urbana, entradas ou cerim6nias r dado pela comparacao entre trés jubileus da Igreja de Lyon em 1546, 1666 e 1734: do século XVI 20 XVIII, a profusdo ea ostenta- ‘so decorativas parecem aumentar em razZo inversa da pantic- pacio popular. Por fim, a festa outorgada, reduzida a um espe- taculo, torna-se a regra. Enquanto no século XVI povo arteséo oferecia aos maiorais espetéculo das cavalgadas do asno, no XVIII, sfo as autoridades que oferecem ao povo seus fogos de attificio. De uma situagao para outra, a iniciativa popular per- deu-se e a festa uniformizou-se. Seja qual for a ocasiio, quais forem os coletores, os fiscais ou cnegos-condes de Séo Jodo, a ceriménia é a mesma, reduzida a um fogo de artficio em que se oblitera totalmente a significagao primitiva do fogo de alegria. A festa traduz e institui uma ordem urbana da separaco, que perdeu a consciéncia de uma unidade urbana da qual cada um, na sua categoria, participava.” Essa evolucdo, esbocada a partir do caso lionés, &certamente generalizada nao apenas para a cidade, mas também para cam- datas formam simbolicamente um cruzamento; 21 Chartier, R. Une académie avant les lettres patentes. Une approche dee sociabilité des notables lyonnais& la fin du regne de Louis XIV. Masi L101, p.115-20, 1975. Lsiturase litres na France do Antigo Regime po. A multiplicacéo, por ‘exemplo, das festas da coroa de rosas na década de 1770, apés a descoberta parisiense do costume de alency, institui no vilarejo uma forma de festa ‘outorgada que ‘isa suplantar os divertimentos tradicionais." Exteriores & co- munidade, corganizadas pelos dignitarios senhoriais, eclesidsticos ‘ou parlamentares, essas festas, em busca de uma Arcédia crist, iio sao nada populares, embora as elites ~ depois de té-las ence- vrado -encontrem nelas aimagem de um povo ideal, casto ¢vigo~ oso, simples e frugal, industrioso e cristéo. A anemiae 0 confisco via festa tradicional provocam, no século XVII, uma dupla rea- (do. Por um lado, a afetividade se encothe em lugares préprios de sociabilidade, mas nos quais a festa se uniformiza e se bana- liza na sua repeticao cotidiana. A Provenca, tanto na cidade como no campo, fornece um bom exemplo dessa evolucéo que, cada vez mais, identifica a festa com um simples baile.” Por outro, a reacdo ¢ filos6fica e leva a uma reflexao sobre @ festaa inventar. Numerosos, com efeito, so aqueles que criticam a festa artificial e dissociada como é sempre a festa outorgada, seja qual for sua modalidade: “O século XVIII jé nada mais vé nos fo- 0s de artificio a nao ser 0 artificio dos fogos”.* A nova festa de- verd ser radicalmente diferente, patriética, transparente e undni- me. NaCartaad’Alembert sobre os espeticulos, Rousseau dé omodelo dessa festa ideal, ao mesmo tempo que constréi sua teoria politica: Plantem no meio da praca uma estaca coroada de flores, rea- nam af 0 povo e terdo uma festa. Facam algo ainda melhor: apre- 22 Sobre as festas das roseiras, cf. Everdell, W. F. The Rosizre Movement 1766-1789. A Clerical Precursor ofthe Revolutionary Cults. French Histori- cal Studies, VIX, n.1, p-23-36, 1975; e Certeau, M. de, Julia, D., Revel, J. La beauté du mor: le concept de “culture populaire”.. 1970, p3-23. 23. Vovelle, M. Les métamorphose de la fete en Provence de 1750 a 1820. Patis: Aubier-Flammation, 1976. p.84-90. 24 Ozoul, M. La fit révolutionnare 1789-1799. Patis: Gallimard, 1976. p.9. 35 Roger Choror sentem os espectadores como espeticulo; facam deles préprios sores, fagam que cada um se vejae € ame nos outros. A fim de {que todos estejam mais unidos. Edessa festa que nega o espeticulo eabole as diferencas que Boullée desenha o quadro arquitetural no seu projeto de circo inspirado no Coliseu: Imaginem trezentas mil pessoas reunidas sob uma ordem anfieatrl em que ninguém poderia escapar aos olhares da multi- dio, Dessa ordem de coisas resultaria um efeito tnico: é que a bpelera desse espantoso espeticulo proviria dos espectadores que, sé eles, ocomporiam?> Odiscurso| nas suas diversas modalidades, torna-se ‘um laboratSrio privilegiado para esclarecer, até nos mi talhes, as circunstancias ¢ 0s dispositivos dessas festas cuja épura nos é dada por Rousseau e Boullée. Do Cédigo da natureza de Mo- relly aos Incas de Marmontel, do Suplemento a viagem de Bougainville de Diderot a0 Ano 2440 de Louis-Sébastien Mercier, os textos, ordenam uma festa regenerada, pensada como um microcosmo onde se reconhecem pecagogicamente as regras de um funciona- ‘mento social novo. Mas, antes de considerar a maneira como a festa revoluciondria tentaré encarnar a utopia, precisamos fazer ‘uma iltima parada sobre a festa tradicional a fim de apreender suas possiveis decifracées. ‘Trabalhando sobre um mater st6rico mas também sobre as festas vivas ainda hoje, os etndlogos da Franca tradicional pro- puseram uma leitura da festa dando énfase & sua funcdo simbo- 25, Esses dois textos so ctados e comentads por Bacako, B, Lumiée de top. lores na Fronge do Antigo Regime tica. Essa abordagem se caracteriza por um primeiro traco: 0 privi- Tégio dado & festa carnavalesca, considerada a pedra de toque de todo o sistema festivo, e isso por duas raz6es.” Por um lado, 0 ‘carnaval atrai para si outros divertimentos, no necessariamente situados no periodo do calendério; por exemplo, as algazarras que possuiem muitos tragos (adistribuigio de alimentos, 0 jogo de méscaras, a justica festiva) que as aproximam dos rituais car- navalescos2# Por outro, estes iltimos podem ser encontrados nas, festas realizadas fora da época de carnaval, sejam as festas em torno da Ascensio e de Pentecostes sejam ainda as festas votivas do verdo. Na perspectiva etnolégica, um motivo primordial & colocado como organizado do conjunto dos gestos e dos discur- 0s. Pondo em cena luta dos contrarios (a noite e odia, oinverno eaprimavera, a morte ea vida), a festa autoriza um novo nasci- mento, a0 mesmo tempo, do calendério, da naturezae dohomem: “A festa imagina, imita e provoca uma regeneracao do tempo, do ‘mundo natural eda sociedade”.® O carnaval traduz na sua ingua- gem miiltipla 0 confronto dos extremos, e sua eficécia ritual res- tabelece a cada ano a ordem do mundo. ‘Semelhante leitura tem por corolario tratar todas as formas localizadas dos ritos caravalescos como signos encarregados de expressar 0 motivo primordial que o fundamenta. Desse modo, deve ser agrupados numa compreensio comum os dife nites elementos que compoem a festa: a perambulagio, a acolhida, 0 julgamento e a morte do rei Carnaval, a intrusio e a morte sa- ctifical do homem selvagem, a circulagio dos alimentos ¢ 0s so- pros no interior do corpo dos homens. Assim, devem também 27 Fabre, D., Camberoque, aujourd'hui. Toulouse: Pr 28 Fabre, D., Traimond, B. scon contemporain: un enjew {ue In; Le Gof. Sehr 1 Charivari. Paris, La Haye: Mou- ton, 1981. p.23-32. 29 Fabre & Camberoque, La fit en Languedoc op. cit, p71. en Languedoc. Regards sur le carnaval a7 Roger Chartier Ser agrupadas as figuras concretas, variadas a0 infinito, que, se. ‘Sundo os lugares e os anos, encarnam de maneira especifica ° ei gigante e selvagem. Duas énfases, muito diferentes, sao en. ‘40 possiveis. A menos hist6rica recai sobre a universalidade das categorias em atividade na festa carnavalesca. O carnaval ag. sim constitufdo como o tempo central de uma verdadeira “reli. gido popular ou folcl6rica”, camponesae pré-historica, cujos fun. damentos miticos e expressdes rituais podem ser identificados mediante diversos sistemas culturais.” Outra petspectiva, que recusa esse tratamento transcultural da festa, da atencdo, antes de tudo, aos enraizamentos particularizados das categor valescas.?! E somente dentro de espagos culturais homogéneos que a leitura simbélica adquire sentido, que é legi. tima a comparago entre os textos antigos e as observa¢Ses con- tempordneas, que se podem legitimamente distinguir os diferentes niveis de interpretacao (histérico, comemorativo, litirgico) de um ritual. As diferengas regionais ou locais nas maneiras de encar- nara significa¢o central da pratica carnavalesca dizem mais aqui do que sua suposta universalidade. Com esta tiltima leitura, so indmeras as pontes entre etnd- logos e historiadores. Entretanto, no caso desses tiltimos, o trata- mento da festa é diferente. Com seus rituais, seus gestos, seus objetos, ela é uma gramética simbélica que permite enunciar, apresentando-o para ser visto ou ouvido, um projeto politico (dando a esse tiltimo termo sua acep¢4o mais ampla). Como vi- ‘mos, entre 1400¢ 1600, a festa urbana, remodelada pelas oligar- quias municipais, faz-se tradutora de uma ideologia unitéria da comunidade, que visa exprimir sua identidade em face dos pode- res concorrentes e, para isso, deve eliminar suas divisGes internas. O projeto é tido como fracassado, na medida em que a festa, ape- sar da vontade dos dignitérios, constitui um lugar de possiveis 10 Gaignebet, C. Le Camaval. Paris: Payot, 1974. 1 Fabre, D. Le monde du carnaval. Annales ESC, 1976, p.389-406. ituras ¢letores na Franga do Antigo Regime riticas. Uma primeira razdo disso € que, a despeito das usurpa- ges municipais e das censuras eclesisticas, as festas continuam amplamente assumidas pela juventude e suas instituig6es. De ‘maneira bem clara, este € 0 caso, por exemplo, na Provenca do século XVIII.” Ora, para todos os textos religiosos e administra- tivos dos séculos XVII e XVI, ajuventude (com as mulheres) € uma das figuras principais da ilegalidade. Por sua vez, a festa—a carnavalesca em particular ~ pe em cena (portanto exprime e a0 mesmo tempo desloca) as clivagens que atravessam a comu- nidade. Sua distribuicao é mt |, uma vez que é ordenada se- gundo a oposigao entre 0s sexos, os graus de idade, a oposicao entre solteiros e casados, as diferencas sociais. Por meio da festa, por tras da mascara e gracas linguagem parédica, as distancias eas tenses podem se exprimir e, portanto, segundo 0 caso, de- ssarmar-se ou exacerbar-se. Linguagem do grupo etério mais tur- bulento, “encenagao das diferencas” (Daniel Fabre), a festa per- manece renitente ao projeto unanimista dos notaveis. Por vezes, ela pode até tornar-se o lugar privilegiado em que se confrontam duas estratégias sociopoliticas. Foi assim em Ro- mans, em 1580, onde o partido dos plebeus eo dos notéveis ma- nipulam, a sua maneira, as instituigGes, as fSrmulas e os cédigos da festa para tornar decifraveis para a maioria seus projetos con- traditérios.® De um lado e de outro, opera-se um verdadeiro tra- balho sobre o material carnavalesco visando denunciar tanto os, intoleraveis privilégios (fiscais e politicos) quanto as ridiculas pretenses do povo romanés. Cada um controlando suas préprias instituig6es festivas (abadias e reinados), os dois campos podem empreender a guerra dos simbélicos. Do lado dos artesios, os 32. Agulhon, M. Pénitents et franesmayons dans Vancienne Provence. Paris: Fayard, 1968, p43-64. 33. Le Roy Ladurie, Le carnaval de romans, op. cit; Van Doren, LS. Revolt and Reaction in the City of Romans, Dauphiné, 1579-1580, Sixteenth Century Journal, v5, p.71-100, 1974. Roger Chorter recursos so miltiplos: rites agrérios de Séo Brés, desfile do asm, rituais de afligao, danga das espadas; do lado dos dignitarios, manejo das formas fstivas & mais lmitado, baseado no uso gg parédia e na manipulagao da inversio. Por meio de duas enceng. G6es (ou festas), um conflito social e politico se exacerba, até re. nna morte de uma das partes (0s artesos) pela outra (og jos). Mesmo quando seu resultado néo € assim tao tragi, co, festa pode ser aquele lugar em que, por meio de cenografiag diferentes, se enuncia, sob a forma do simulacro, um confrontg fundamental. £ 0 caso, por exemplo, da festa segoviana de setem. bro de 1613, em que nobres e tecel6es, pelas figuras e pela econo. mia de cortejos concorrentes, tornam vis{vel sua oposicdo social ereligiosa.* Como signo de unanimidade ou como traduséo de dissen- ses, a festa s6 podia ocupar um lugar de destaque na pedagogia revolucionéria. Dois estudos fundamentais ~ 0 de Mona Ozoufe ‘ode Michel Vovelle - talvez possam permitir fechar esse sobre- vv60 das festas francesas entre os séculos XV e XVIII, colocando alguns dos problemas principais da festa revolucionéria. E, ‘meiramente, serd que é legftimo usar essa designacdo? A tr sao historiografica, com efeito, durante longo tempo s6 conside- rouas festas ‘opostas umas as outras, exatamente como eram as politicas que elas estavam encarregadas de mani- festar. Sempre ligada a uma intencao particular, sempre empreen- dia por uma facrao determinada, a festa da Revolucao s6 podia ser politica e partidéria, reduzida a especificidade circunstancial de seu esqueleto ideolbgico.A essa perspectiva, Mona Ozouf ops ‘outra que dé énfase a coeréncia fundamental da festa revolucioné- ‘a. Aleitura comparada das festasideologicamente mais opostas (em 92, a festa em honra dos Sufgos de Chateau-vieux e a festa emmeméria de Simoneau, a festa da Razio e a do Ser Supremo, Carnaval des gues. Etude sur le “Buscbn" de Enudes Socio-criiques, 1975, 40 Luitrase leitores ne Franga do Antigo Regime as festas que precedem e as que seguem o Termidor) manifesta claramente a unidade dos designios, das formalidades e do simbo- lismo. Um modelo ideal de festa foi colocado com a festa da Fede- le ébaseado ao mesmo tempo num ideal de unio (embora as exclus6es sejam bem reais) e na vontade de diluir no discurso comemorativoa violencia das lutas reais. Esse modelo festivo atra~ vvessa toda a Revolucio e, se no apenas as intencies politicas, mudangas, néo deixa de ser ele que regula, de maneira implicita, as fungSes € 0s processos da festa revolucionéria. A unidade dessa matriz original faz desaparecer aquilo que hé de mais abrupto nas clivagens geralmente estabelecidas entre festa populare festa oficial, espontaneidade e institucionalizacao. Entretanto, ela per- mite compreender por que os mesmos materiais festivos (por exemplo, aqueles vindos da tradigao carnavalesca) puderam ser empregados para fins ideolégicos totalmente contraditérios.* Numa histéria longa da festa, qual foi o efeito da festa revolu- cionéria reduzida assim a sua unidade? Dois diagnésticos, aqui, sio talvez complementares. Em primeiro lugar, éclaro que a festa revolucionéria transformou de maneira irreversivelo sistema das io provencal, uma dupla tornou-se rarefeita: a norma doravante é de uma festa por ano (contra duas ou mais), quase sempre realizada em agosto, 20 asso que na metade do século XVIII o periodo festivo estendia- se de maio a setembro. Em segundo, a festa foi mutilada: o sis- tema complexo e profuso da festa tradi devota, profissional e municipal, cedeu lugar a um divertimento mais simples, que na maioria das vezes vem enxertar-se numa feira. A festa antiga, por volta de 1820-1830, foi entéo restaurada s6 muito parcialmente nos seus elementos 35. Ozouf, La fete révolutionnaive 1789-1799, op. 36 Vovelle, Les métemorphores de af a ———O~ Roger Chortier tas, i ey pres ndo na superposicao de suas signitiacs luo, querendo instaurar um cagbes mil ele préprio pouco duradouro, teria assi BOW Sistema defn evolugdes que desde o século XVI eae seal ae comegado a distanciar as festas da antiga soceas thay Koni Linie neat Reese dora de um antigo equilibrio, é certamente i ‘lace que dé énfase ao seu valor fundador” A re ene! pm efeit,ciadoranlo porque foicapazdesobesn ee Se Ge Semen ane aera as aates Cail Gis ce diuiiea’ mainte rageeees centrado na familia, na patria e na humanidade, soe a fst, a festa fo o agente de uma bem-eucedi tusitad sacralidade, certamente porque, por meiode sua ingy as mente simbélica, roils nenrussctuma padegeg toa ee suasiva, reiterada e comunitéria.™ As demonstracbes festa podem ser apenas efEmeras, mas nio (os valoresnoos do ‘civicos ou sociais que ela se encarrega de arraigar nos mésticos, coragGes e nos espiritos: Vinculemos a moral a bases eternas esagradas inspires 0 homem aquele respeito religioso pelo homem,aquele seninsnt?, profundo de seus deveres, que € tna ga ia da felicidad so- j-lo por todas as nossasinsttusdes queasy gida sobretudo para esse objetivo ~ Bt de insttuigdo que deve ser consderada como una Pa eseneial da educagdo publica ~ Quero falar das festas nacional. fregmamos homens, els se tornarso melhores Porte homens reunidos procurario divertir-se;€ eles 8 poder diverse Po savy das cofsas que os fornam esamdvels. Diem 8 ua rerio tim grande motivo morale politico, € 0 mer das coisas honest 37 Ozout, La fete révol 438 Baczko, Lumiées et tutomair 1789-1798, oct P3T740 tpie, op cit P.280-2 ceiuras ators 0 Fens oo pnigo Regime ao ges; porque OS homens né ex em todos 08 coFae0e8 Ps centrarh com prazet se veem sem prazer.”? ro séculos de historia da festa im daqueles lagares em De $ emara- Tebrias. Primeiramente, C18 é um dos dominantes podem encontrar © re notagees de Viagens, loresce “etnoldgicos” ide maioria. Mas, 20 mesmo fermP&, vo cessam de aparar ou Subverter a ignorancia ea extrava- ar, censurada por- sta visio1em destaque de quat 1a como U! ses contradi egiados onde 0s a das supersticoes & que multipli povor edacole 5 ‘os comentarios foda uma literatura} asauti essas c gancia do popular ‘Comentada porque popu: ta “popular” antiga ésempre objeto de um duplo Gesejo das elites, que pretenderiam Gheervacio ede memériae destruf-la como cadinho das extrava- gincias. Aessa incerteza acrescenta-Se Ums segunda. A festa, com efeito, sempre foi vi jamente, como instrumento de uma pedagogia e como pe! ‘aRobespierre e Saint-Just, das oli ‘0s filésofos, a festa, coma condi ivo que a torne demonstrat igo potencial. Da Igreja reformadora igarquias municipais medievais ico de ser moldadae canalizada por um disp fa, € pensada como Tuilo que pode manifestar,portanto socializar, um projet, seja cleda ordem do religioso seja da do politico. Daf seu papel como darma pastoral ¢ como instituigao cfviea. Entretanto, a domesti- cagdo jamais é garantida nem acabada, ea festa pode sempre des- cambar para a violencia contra aordem estabelecida ou a estabe~ lecer. Como dé a melhor parte para aqueles que estdo menos integrados nela, como pode exprimir, em sua linguagem, as ten- 1958, tll: “Sur les rap- incipes républicains et sur 39. Robespierre. Texter chiss. Pris: Editions Sociale ports des jeuses et morales avec les les fetes nationales, 7 mai 1794", .175-6, 43 ager Charter siden que a dilaceram, a festa é ameaca Pare acomunidade, cujg aparente ¢ desejada unidade ela pode sees ; Dal seu controle dayutcea, co ceauea nempre recomecads: DIE COMO 8 Maio, ‘do, remeteri; nsagdo ou decep¢io, aa ou. Naa vivia, se cla era oes sao raras as confidéncias dos ang, us comentdrios que 0S dominantes sedimentaram sobre a festa, antes de poder descobrir como 0 pov? organizava sua Parcela de existéncia auténoma dentro desse esPaso constantemente remo, delado. 44

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