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er—-t—tle Capitulo 2 Um gozo para fora do capitalismo Que algo exista realmente ou ndo, isso tem pouca importancia. Ele pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo, mesmo que ndo exista realmente. Jacques Lacan “O gozo faz a substancia de tudo aquilo a respeito do qual falamos em psicanilise”,® dird Lacan. Essa afir- macio deixava claro o papel estruturante do conceito de g0z0 no interior do pensamento lacaniano e de sua clinica. No entanto, ele aparecer4 para Lacan de forma relativa- mente tardia. Podemos mesmo dizer que 0 uso do termo “gozo” como conceito clinico e metapsicolégico, um dos mais importantes conceitos no interior da clinica lacaniana, deveré esperar O Semindrio, livro 7: A ética da psicandlise Para, de fato, ser apresentado de forma mais sistematica. Ele responde a um deslocamento, cada vez mais visivel no | Pensamento lacaniano, em dire¢ao a tematizacao do uso ———— @ L cao Jacques. Le Séminaire, livre XVI: Dun Autre @ lautre. Paris: ‘il, 2006. p. 45. Para uma andlise exaustiva do conceito de goz0 em La ~ ver DUNKER, Christian. O cdlculo neurdtico do gozo. Sao Paulo: ‘Cuta, 1998. «sep de dinamicas ligadas a dimensao do Real, OU sei, clinico ue nao serao objeto de processos de Simbo}; cnc enero 0g Mas notemos um dado bib) er 2 ° SI8Nificatiyg, Apés sua apresenta¢ao no een. a ot once de gory voltara a ser objeto central de andlise principa ae em OSemindrio, livro 16: De um Outro ao outro, OSemindrio, livro 17: O avesso da psicandlise e O Semindrio, livro 20: Mais, ainda. Ha um dado significativo nessa distribuicao, A tematizacao do gozo volta as preocupacées centrais de Lacan logo apés os acontecimentos de maio de 1968, jd que 0 Semindrio 16 comega no final de 1968. E evidente, nesse contexto, como Lacan faz do gozo um conceito fun- damental no interior de uma estratégia de critica social Psicanaliticamente orientada. Essa é, de certa forma, sua Tesposta a respeito do que esta a ocorrer em maio de 1968. Pois Lacan lé o capitalismo nao a Partir de uma economia Politica, mas de uma economia libidinal que se constréi através de certas homologias importantes com a critica Marxista. Isso significa que 0 capitalismo e suas formas © cara a autores como Reich e Marcuse, do Como sistema econdmico que produziria mo- éncia baseados Na repressao e na conformagao a ciplinares de conduta. Na verdade, 0 capitalismo on olhos de Lacan, um sistema de “esp oliagao do go- 218580 do gozo a légica da produgao mercanti Padrées de conta, Compreender tais dinamicas de 230 serig Condicao fundamental para lutas politicas ‘amente transformado Capitalismo dos de exist Padroes dig, Serd, e integra e Seus &spoli efetiy, ras. © LACA Ta XVII, p. 92 a Lacan pode fazer tal afirmagao por saber que o capita- Jismo estava abandonando sua matriz hegem6nica repres- siva em prol da consolidagao de uma forma de sujei¢éo por incitagdo continua. O fortalecimento do discurso da auto- nomia das decis6es individuais e do campo de flexibilidade em relacao as normas gerais tendia a criar vinculos sociais ligados ao discurso de que “cada um tem direito a sua forma de gozo” (ou ainda “cada um deve encontrar sua forma de gozo”™), que acabard por se realizar na liberagdo multicul- tural da multiplicidade das formas possiveis de sexualidade em nossas democracias liberais. Dessa forma, a incitagdo e aadministragéo do gozo transformaram-se na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo. Isso complexifica em demasia as dinamicas da critica social, colocando desafios substantivos para a forga de ruptura dos horizontes de revolta. Pois se 0 conceito de gozo acaba por preencher duas fungées distintas (ele seré o fundamento da critica as sociedades capitalistas e 0 fundamento dos modos normais de funcionamento dessas mesmas sociedades), isso significa que toda revolta deve lidar com as estruturas subjetivas de investimento libidinal na ordem social vigente. As possibilidades da aco social transformadora es- ‘ardo assim ligadas ao advento de um gozo capaz de abrir a experiéncia para além da inscri¢4o social do desejo fe aed das Possibilidades imanentes de reproducao ra simbélica. Mas, para tanto, sera necessdrio “ es nde se segue o fato de que o supereu em Lacan nao funciona exata- te como liamte a6 peg an Patato de repressao interna, mas de incitagdo angus- 8020. Dai por ue ele no iv pereuna comer s lembra que o verdadeiro imperativo do £™ uma obrj tis: Seuil, te a 5 - mporaneidade é: “Goza!”, ou seja, o gozo transformado Basdo (LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre XX: Encore. | 1973. p. 10), N compreender a extensao desse 8020 que se inscrey : modalidades de reproducgdo social € que serg fundames tal para a preservagao do capitalismo, Ale Lacan dang o nome de “gozo falico”. Essa é a maneira lacaniang de discutir a matriz patriarcal do Capitalismo, oy Seja, 4 dependéncia entre seus regimes de Socializacao e a a petuacao de uma forma de desejo prépria a uma organi. zacao libidinal pensada a partir do que se passa em um horizonte masculino, com seus regimes de homogenei- dade, fantasma e identificagao. Discutir 0 §0Z0 no interior do capitalismo sera, ao mesmo tempo, discutir como o desejo se socializa tendo como referéncia fundamental um modo masculino de organizacio da libido, modo que serd o horizonte tanto Para a posi¢ao masculina quanto para a feminina. Nesse sentido, se Lacan tera de dizer, em uma de suas Proposicées mais conhecidas, que “A mulher nao existe”, é Porque nao ha exatamente um “binarismo” de género em Nossas sociedades, Ha, na verdade, algo muito mais brutal, a saber, um “monismo” de género. $6 o homem existe, s6 © modo masculino de organizacdo da libido define a inte- 8ralidade do campo de inscri¢4o social do gozo no interior de nossas Sociedades, Mas essa inexisténcia aventada por Lacan nao é um mero limite a experiéncia.® Na verdade, 4 modificacao da €conomia libidinal do capitalismo sera Solidaria da assun¢ao de algo que deve ser compreendido Como impossivel e inexistente em nossa situa¢do social, * © que nao poderia ser diferente para alguém que dirt eee daar eile exists, vocés realizar a cada instante @ jo 1 ane temas’ fda a inexisténcia como condigao do necessro [ Hnsia nao é nada” (LACAN, ee ee Paris; Seuil, 2012, Pp. 52). livre XIX: ...0u pire, ma forma de gozo nao falica. HA uma dialética : saben i" pensamento critico precisard saber manejar. “a a isso em conta, podemos abordar 0 gozo ando como se trata de um conceito politico funda- metal da psicandlise lacaniana. Ele permite a compreen- me das dinamicas de integra¢ao do capitalismo, assim como abre 0 espa¢o para a tematiza¢ao dos processos subjetivos de ruptura com tais formas de integracao. Sua origem, e isso nao poderia nos escapar, nao se encontra em textos freudianos, embora Lacan se esforce em fazer das incidéncias freudianas do termo “Genuss” indicagées da presenca de um conceito. Mas se quisermos encon- trar a verdadeira referéncia ao uso lacaniano do conceito de gozo, deveremos procurar em Georges Bataille.® Por isso, comecemos nos lembrando do contexto no interior do qual Bataille desenvolve seu conceito. Pois mesmo as diferencas evidentes entre Lacan e Bataille a respeito do g0z0 exigem a recomposicao do espaco inicial de proble- mas compreendidos pelo segundo. Bataille e a critica da sociedade do trabalho ne ees do conceito de gozo como eixo funda- cepitalin, ah Sei social baseada na critica da sociedade Sr desdeg tate a. ho. Ou seja, em suas mos, 0 conceito 0, ligado a uma certa teoria social na qual Os exe ™plos d CAN, te nina 3 Fespeito do gozo, como o potlacht e Sade (LA- Semin, ‘ox VU), ou ainda Santa Teresa @Avila (LACAN. mina; aire, liy ee re ace Batile ¢ ae vém diretamente de Bataille. Sobre a relagdo = acan an Pee DEAN, Carolyn. The Self and Its Pleasures: versity Press en” of the Decentered subject. Ithaca, NY: acritica do capitalismo se insere em um horizonte hb ' ai amplo a respeito do advento do trabalho como Modo jg is An Ine damental de atividade humana. Lembremos, Por exemp), de afirmacgées como: O trabalho exige uma conduta em que 0 calculo do es. forgo, relacionado a eficdcia produtiva, é constante, Exige uma conduta razoavel, em que os movimentos tumultug. sos que se liberam na festa e, geralmente, no JOgO, nio sig admitidos. Se nao pudéssemos refrear esses movimentos, nao poderiamos trabalhar, mas 0 trabalho introduz jus- tamente a razdo de refred-los.%” Nesse trecho, vemos Bataille insistir na existéncia de um modelo de cdlculo, de mensuragao, de quantificagao derivado da logica do trabalho e estranho a “improduti- vidade” desses modos de relacao social que sao a festa eo jogo, nos quais a experiéncia do gozo se aloja. Tal modelo € indissociavel da noco de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades sio medidas tendo em vista o calculo dos esforcos e investi Mentos, tendo em vista a “efi- Cacia prod 'utiva” com sua recusa ao desperdicio enquanto horizonte oiptemd de maralidade de nessas acées, Hd uma apacidade de controle a partir da possibilidade de prever resultados e Srandeza que funda o trabalho como modo de @Propriacao de minha forca e dos objetos. Controle encar- nado no primado da Utilidade. Sobre a nogdo de “utilidade”, Bataille dirg: A Utilidade tem teoricamente como finalidade 0 prazer — Wiss Somente sob uma forma moderada, pois o prazer violento € tido como patolégico - ¢ se deixa limitar, por BARI ica, 2013. p. 64, " Georges. O erotismo, Belo Horizonte: Autentica, 2013. p. 64, 62

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