You are on page 1of 7
jon, 2004, ry para a presente edi. Les presses du él (© 2008, Martins Eitora Liveaia Lida ‘rojetogrifco Capa Preparagio modem S620 3. Comurieagio ern cpp-7on904 Tdices pars atdioge sistematico ovr hate medarna = éculo 20. 700904 ‘Rua Pro. Lert Ramos de Careho, 163, (013254030 Sto Paulo SP Brasil infomartinseditora com br ‘wun martnsediora com.r SUMARIO Introdugio suse sre eee 0 uso dos objetos seonnansenee 19 O uso do produto, de Duchamp @ iatKoom.. A feira de usados anos 1990. forma dominante da arte dos ‘O.uso das formas ‘Os anos 1980 ¢ 0 nascimento da cultura Dj: para um comunismo das formas .. ‘A forma como enredo: um modo de utilizagio do mundo (Quando os enredos se tornam formas) vn 49 Pierre Huyghe .. Dominique Gonzalez-Foerster Liam Gillick ‘Maurizio Cattelan .. Pierre Joseph: Little Democracy uso do mundo srl 79 Playing the world: reprogramar as formas sociais .. ” Philippe Parreno &... : 85 Hacking, emprego e tempo livee «m. sl 89 Como habitar a cultura global (A estética depois do MP3). venesnsuenonenenenanannn e : 7 ‘A obra de arte como superficie de estocagem de infor- IMAGBES rere 97 O autor, essa entidade juridica 9 Ecletismo e pés-produga0 - 103, INTRODUGAO “E simples, o ser humano produz obras; pois bem, a gente faz com elas o que tem que ser feito: a gente se serve dela. Serge Daney “"P6s-produgao”: termo técnico usado no mundo da televisdo, do cinema e do video. Designa 0 conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legen- das, as vozes off, 08 efeitos especiais, Como conjunto de atividades ligadas ao mundo dos servigos e da reciclagem, a pés-producao faz parte do setor tercidrio em oposicéo ao setor industrial ou agricola, que lida com a produgio das matérias-primas. Desde 0 comeco dos anos 1990, uma quantidade ca- da vez maior de artistas vem interpretando, reproduzindo, reexpondo ou utilizando produtos culturais disponfveis ou 8 ‘NICOLAS BOURRIAUD obras realizadas por terceiros. Essa arte da p6s-producao corresponde tanto a uma multiplicagao da oferta cultural quanto - de forma mais indireta ~ A anexagéo ao mundo da arte de formas até entio ignoradas ou desprezadas. Pode- se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distingdo tradicional en- tre produgao e consumo, criagdo e cépia, ready-made e obra original. Jé nao lidam com uma matéria-prima. Para eles, nao se trata de elaborar uma forma a partir de um material bruto, e sim de trabalhar com objetos atuais em circulacdo no mercado cultural, isto é, que j4 possuem uma formia da~ da por outrem. Assim, as noc6es de originalidade (estar na origem de..) ¢ mesmo de criagdo (fazer a partir do nada) esfumam-se nessa nova paisagem cultural, marcada pelas figuras gémeas do DJ e do programador, cujas tarefas con- sistem em selecionar objetos culturais ¢ inseri-los em con- textos definidos. A Estética relacional, que de certa maneira se prolon- ge na presente obra, descrevia a sensibilidade coletiva na qual se inserem as novas formas da pratica artistica. Am- bas tomam como ponto de partida o espaco mental mutan- te que a internet, instrumento central da era da informagéo em que ingressamos, abriu para o pensamento. Mas a Esté- tice relacional tratava do aspecto convivial e interativo des- sa revolugdo (as razSes pelas quais os artistas se dedicam a produzir modelos de socialidade para serem inseridos na esfera inter-humana), enquanto a Pés-produgiio apreen- ce as formas de saber geradas pelo surgimento da rede: POs-PRODUGAO 9 em suma, como se orientar no caos cultural e como dedu- zir novos modos de produgio a partir dele. De fato, é sut- preendente que as ferramentas mais usadas pata produzir esses modelos relacionais sejam obras ou estruturas for- mais preexistentes, como se 9 mundo dos produtos cultu- rais e das obras de arte constituisse um estrato autonomo capaz de fornecer instrumentos de ligacéo entre os indivi- duos; comose a instauragao de novas formas de socialidade e uma verdadeira critica as formas de vida contemporaneas passassem por uma atitude diferente em Telagao ao patri- ménio artistico, pela produgo de novas relagdes com a cul- tura em geral e com a obra de arte em particular. Algumas obras embleméticas permitem esbogar os contornos de uma tipologia da pés-producio. Reprogramar obras existentes No video Fresh Agconci (1995), Mike Kelley e Paul ‘McCarthy usam manequins e atores profissionais para as performances de Vito Acconci. Eni One Revolution per Mi- mute (1996), Ritkrit Tiravanija incorpora & sua instalagao pegas de Olivier Mosset, Allan McCollum e Ken Lum; no MoMA, ele anexa uma construgao de Philip Johnson, con- vidando criangas para desenhar: Untitled (Playtime), 1997. Pierre Huyghe projeta um filme de Gordon Matta-Clark, Conical Intersect, nos mesmos locais em que foi rodado (Light Conical Intersect, 1997). Swetlana Heger e Plamen Dejanoy, na série Plenty Objects of Desire, expdem em pla- 10 NICOLAS BOURRIAUD taformas minimalistas as obras de arte ou os objetos de design que compraram. Jorge Pardo, em suas instalagdes, manipula pecas de Alvar Aalto, Arne Jakobsen e Isamu Noguchi, Habitar estilos e formas historicizadas Felix Gonzalez-Torres utilizava 0 vocabuldrio formal da arte minimalista ou da antiforma recodificando-as, mais de trinta anos depois, segundo suas préprias preocu- pagaes politicas, Esse mesmo glossério da arte minimalis- ta € empregado por Liam Gillick para uma arqueologia do capitalismo; por Dominique Gonzalez-Foerster, para a es~ fera da intimidade; por Jorge Pardo, para uma problemé- tica do uso; por Daniel Pflumm, para um questionamento da nogao de producdo, Sarah Morris utiliza a grade mo- dernista em sua pintura para descrever a abstracao dos flu- x0s econdmicos. Em 1993, Maurizio Cattelan expoe Sans titre, uma tela que reproduz o famoso Z de Zorro no esti- Jo das laceragées de Lucio Fontana. Xavier Veilhan expoe La Forét (1998), onde o feltro marrom evoca Joseph Beuys e Robert Morris, numa estrutura que faz lembrar os pene- irdveis de Soto, Angela Bulloch, Tobias Rehberger, Carsten Nicolai, Syivie Fleury, John Miller e Sydney Stucki, para ci- tar apenas alguns, adlaptam estruturas e formas minima- tas, pop ou conceituais as suas problematicas pessoais, chegando a reproduzir seqiiéncias inteiras de outras obras de arte existentes. POS-PRODUGKO u Usar as imagens No Aperto da Bienal de Veneza de 1993, Angela Bulloch apresenta o video Solaris, o filme de fiegio cientifica de ‘Andrei Tarkovski, substituindo a trilha sonora por seus proprios didlogos. 24 Hour Psycho (1997) é uma obra de Douglas Gordon que consiste numa projegao do longa-me- tragem de Alfred Hitchcock em baixa rotacao, de modo que clase estende ao longo de 24 horas. Kendell Geers isola se- giiéncias de filmes conhecidos (um esgar de Harvey Keitel em Bad Lieutenant [Vicio frenético], uma cena de O exor- cista) e coloca as passagens em circuito fechado em suas instalagdes de video, ou escolhe cenas de tiroteios do re- pertério cinematogrifico contemporaneo para projeté-las em duas telas frente a frente (TW-Shoot, 1998-99). Utilizar a sociedade como um repertério de formas Matthieu Laurette obtém 0 reembolso dos produtos que consome utilizando sistematicamente os cupons ofe- recidos pelo marketing ("Sua satisfacao ou seu dinheiro de volta”) e, assim, circula entre as brechas do sistema pro- mocional. Quando produz o piloto de um game show so- bre o principio da troca (El Gran trueque, 2000) ou monta ‘um banco offshore com os fundos arrecadados numa se- gunda bilheteria na entrada dos centros de arte (Laurette Bank Uilimited, 1999), ele esta jogando com as formas eco- némicas como se fossem linhas e cores de um quadro. 12 NICOLAS BOURRIAUD Jens Haaning transforma centros de arte em lojas de im- portacéo-exportagao ou em oficinas clandestinas; Daniel Pflumm apropria-se de logos de multinacionais e confere a eles vida plastica prdpria, Swetlana Heger e Plamen De- janov trabalham em todos os empregos possiveis para ad- quirir “objetos de desejo” e vendem sua forga de trabalho para a BMW durante todo 0 ano de 1999. Michel Majerus, que incorporou a técnica do sampleamento em sua prati- ca pict6rica, explora a abundante mina visual da embala- gem publicitéria Recorrer 4 moda e aos meios de comunicacio As obras de Vanessa Beecroft derivam de um cruza- mento entre a performance e o protocolo da fotografia de moda; remetem a forma da performance, mas nunca se re- duzem a ela. Sylvie Fleury vincula sua produgao ao univer- so glamourizado das tendéncias apresentadas nas revistas femininas. “Quando nao tenho uma idéia clara da cor que ‘you usar em minhas obras’, diz ela, “pego uma das novas cores de Chanel’. John Miller realiza uma série de qua- dros e instalacdes a partir da estética dos esttidios de jo- gos televisivos. Wang Du seleciona imagens publicadas na imprensa e thes dé volume, sob a forma de esculturas de gesso pintado, ‘Todas essas praticas artisticas, embora muito hetero- géneas em termos formais, compartilham o fato de recor- ret a formas jé produzidas, Elas mostram uma vontade de OS-PRODUGAO 13 inscrever a obra de arte numa rede de signos e significa~ Ges, em vez de consideré-la como forma autOnoma ou ori- ginal. Nao se trata mais de fazer tabula rasa ou de criar a partir de um material virgem,-e sim de encontrar um mo- do de insergdo nos intimeros fluxos da produgdo. “As coi- sas e os pensamentos’, escreve Gilles Deleuze, “crescem ‘ou aumentam pelo meio, e é af que a gente tem de se insta- Jar sempre este o ponto que cede” A pergunta artistica nao é mais: “o que fazer de novidade?", e sim: “o que fa- zer com isso?”. Dito em outros termos: como produzir sin- gularidades, como elaborar sentidos a partir dessa massa cadtica de objetos, de nomes préprios e de referéncias que constituem nosso cotidiano? Assim, os artistas atuais néo compSem, mas programam formas: em vez de transfigu- rar um elemento bruto (@ tela branca, a argila), eles utili- zam o dado, Evoluindo num universo de produtos & venda, de formas preexistentes, de sinais j4 emitidos, de prédios ja construidos, de itinerarios balizados por seus desbravado- res, eles nao consideram mais o campo artistico (e poderfa- mos acrescentar a televisdo, 0 cinema e a literatura) como ‘um musett com obras que devem ser citadas ou “supera- das”, como pretendia a ideologia modernista do novo, mas sim como uma loja cheia de-ferramentas para usar, esto- ques de dados para manipular, reordenar e langar. Quando Ritkrit Tiravanija nos propée a experiéncia de uma estrit- tura formal onde prepara pratos culindrios, ele ndo esté les Deleuze Pouparirs Pais, 6 Mint, 190,218. [Ed bras: Con esp trad: Peter Pal Pear, io de Janet, Eos 34,1992] 14 NICOLAS BOURRIAUD fazendo uma performance, mas utilizando a forma-per- formance. Seu objetivo nao é questionar os limites da arte: ele utiliza formas que serviram nos anos 1960 para inter- rogar esses limites, mas com a finalidade de produzir efei- tos totalmente diferentes. Tiravanija, alids, cita varias vezes a frase de Ludwig Wittgenstein: “Nao procure o significa- do, procure 0 uso’. Aqui, o prefix “pés” ndo indica nenhuma negacio, nenhuma superagao, mas designa uma zona de atividades, uma atitude. Os procedimentos aqui tratados nao consis- tem em produzir imagens de imagens - o que seria uma postura maneirista ~ nem em lamentar que tudo “ja foi fei- to”, € sim em inventar protocolos de uso para os modos de representacéo e as estruturas formais existentes. Trata-se de tomar todos os cédigos da cultura, todas as formas con- cretas da vida cotidiana, todas as obras do patriménio mundial, e colocé-los em funcionamento. Aprender a usar as formas, como nos convidam os artistas que sero aqui abordados, 6, em primeiro lugar, saber tomar posse delas ¢ habité-las. A pratica do Dj, a atividade do internauta, a atuagao dos artistas da pés-produgdo supdem uma mesma figu- ra do saber, que se caracteriza pela invencao de itinerérios por entre a cultura, Os trés so semionautas que produzem, antes de mais nada, percursos originais entre os signos Toda obra resulta de um enredo que o artista projeta 9o- bie a cultura, considerada como 0 quadro de uma narrati que, por sua vez, projeta novos enredos possiveis, num 1POS-PRODUGAO 1 movimento sem fim, © DJ aciona a historia da miisica, co- piando/colando circuitos sonoros, relacionando produtos gravados, Os artistas, por sua vez, habitam ativamente as formas culturais e sociais. O internauta cria seu préprio si- te ou home page; levado a consultar constantemente as in- formagées obtidas, ele inventa percursos que pode salvar em seus favoritos e reproduzir & vontade. Quando procura uum nome ou um assunto num buscador, surge na tela uma infinidade de informacées safdas de um labirinto de ban- cos de dados. O internauta imagina conexdes, relagdes es- pecificas entre sites dispares. O sampleador, instrumento que digitaliza sonoridades musicais, também supde uma atividade permanente; escutar discos torna-se um traba- Iho em si que atenua a fronteira entre recepgao e prética gerando, assim, novas cartografias do saber. Essa recicla- gem de sons, imagens ou formas implica uma navegacéo incessante pelos meandros da histéria cultural ~ navega- co que acaba se tornando o proprio tema da pritica artfs- tica. Pois ndo é a arte, segundo Marcel Duchamp, “um jogo entre todos os homens de todas as épocas”? A pés-produ- do 6 a forma contemporanea desse jogo. Quando um mtisico faz uma digitalizagao sonora, ele sabe que sua contribuicéo poderd ser retomada e usada co- mo material de base para uma nova composicao. Para ele, é normal que o tratamento sonore aplicado ao éudio grava- do venha a gerat, por sua vez, outras interprétacbes, € as- sim sucessivamente. Com as miisicas sampleadas, o trecho representa apenas uma saliéncia numa cartografia mével, 16 NICOLAS BOURRIAUD Ele entra numa cadeia, e sua significagfio depende, em par- te, da posigao que ocupa nesse conjunto. Da mesma forma, numa sala de bate-papo on-line, uma mensagem adquire valor no momento em que é retomada e comentada por outra pessoa. Assim, a obra de arte contemporanea nao se coloca como término do “proceso criativo” (um “produ- to acabado” pronto para ser contemplado), mas como um. local de manobras, um portal, um gerador de atividades. Bricolam-se os produtos, navega-se em redes de signos, inserem-se suas formas em linhas existentes. © que une todas as figuras da pratica artistica do mundo 6 essa dissolugaio das fronteiras entre consumo © produgio. “Mesmo que seja ilusério e ut6pico’, explica Dominique Gonzalez-Foerster, “o qué importa é introdu- zit uma espécie de igualdade, é supor que, entré mim - que estou na origem de um dispositive, de um sistema - e © outro, as mesmas capacidades e a possibilidade de uma relagio igualitéria vao Ihe permitir organizar sua propria historia em resposta a histéria que acaba de ver, com suas préprias referéncias”», Nessa nova forma cultural que pode ser designada como cultura do uso ou cultura da atividade, a obra de arte funciona como o término provisério de uma rede de elementos interconectados, como uma narrativa que prolonga e reinterpreta as narrativas anteriores. Cada exposigo contém 0 enredo de uma outra; cada obra pode ser inserida em diversos programas e servir como enredo da Cidade de Paris, 1999, p. 82) POS-PRODUCAO 1” mtiltiplo. Nao é mais um ponto final: é um momento na ca~ deia infinita das contribuigGes. Essa cultura do uso implica uma profunda transfor- mago né estatuto da obra de arte. Ultrapassando seu pa- pel tradicional como receptaculo da visio do artista, agora ela funciona como um agente ativo, uma distribuigao, um enredo resumido, uma grade que dispde de autonomia e materialidade em diversos graus, com uma forma que po- de variar da simples idéia até a escultura ou o quadro. Pas- sando a gerar comportamentos e potenciais reutilizagdes, a arte contradiz a cultura “passiva” ao opor mercadorias e consumidores e ao ativar as formas dentro das quais se de- senrola nossa vida cotidiana, sob as quais os objetos cul- turais se apresentam & nossa apreciacao. B se a criagdo artistica, hoje, pudesse ser comparada a um esporte cole- tivo, longe da mitologia cléssica do esforgo solitario? “Sao 0s espectadores que fazem os quadros”, dizia Marcel Du- champ: a frase s6 adquire sentido quando a relacionamos com a intuigéo duchampiana sobre o surgimento de uma cultura do uso, na qual o sentido nasce de uma colabora- cdo, de uma negociagao entre o artista e as pessoas que vém observa-la. Por que o sentido de uma obra nao hé de provir do uso que Ihe é dado, além do sentido que Ihe € conferido pelo artista? £ essa a acepgio daquilo que pode- riamos nos arriscar a chamar de comunismo forri

You might also like