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; 737 00/FEF EDITORA AUTORES ASSOCIADOS Conselho Editorial “Prt Casemiro dos Reis Filho Flavio Baldy dos Re Coordenadora Editorial ica Bombardi Assistente Editorial Aline Marques Revisio Rodrigo Nescimenio Diagramacio e Composicio PG Lida, Capa Basenda em fotograias do arquivo da autora Arte-final fica Bombardi Impressio« Acsbanento Gein Fay AFAPESP Heloisa Helena Baldy dos Reis IMNINN FEF 1010773700 titebol “Violencia Prefacio de Dermeval Saviani | oe Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Reis, Heloisa Helena Baldy dos | Futebol e violencia / Heloisa Helena Baldy dos Reis — | Campinas. $P: Armazém do Ipé (Autores Associados), 2006. | Co-edicao: Fundacéo de Amparo & Pesquisa do Estado de Sao Paulo (Fapesp) Bibliografia. ISBN 85-7496-161-2 |. Futebol ~ Brasil - Histéria 2. Torcedores ~ Psicologia 3. Violéncia nos esportes I. Titulo \o 06-4204 CDD-791.6434 oi Indices para catélogo sistemdtico: * 1, Torcedores de futebol: Violéncia: Esporte 791.6434 | N 2, Violéncia: Torcedores de futebol: Esporte 791.6434 | 9 _ Impresso no Brasil ~julho de 2006 Copyright © 2006 by Editora Autores Associados LTDA. AA publicagdo deste livo contou com o apoio parcial da Fapesp. Depésito legal na Biblioteca Nacional conforme decreton,|.825, de 20 de dezembro de 1907. Nenhuma parte da publcagio poder ser eproduida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio ea eleténico, mectico, de fotacépa de gavacf, ou outos, sem prvia autorizagio por escito da Edtora,O Cédigo Penal brasieio determina, no artigo | Dos crimes contra a propredade intelectual Violagio dediteito ator At. 184, Viola dito autora Pena — detencio de ids meses um ano, ou mult 1" Sea vilao consis na reproduce, por qualquer meio, de obra intelectual, no todo ou em paste, parafins decoméico, em autrizaco expressa do autor ou de quem o represents, ou consis Para o Edu, com amor. ma reproduc de ongramae vdeopram, em autoizaio do podutor ou de quem o ceresent: Pena —telusbo de um a quatro anose mult AGRADECIMENTOS Este livro é fruto de muitos anos de pesquisas sobre futebol. sociedade e violéncia. Esta tematica foi desenvolvida em varias pes- quisas, a saber: inicialmente no curso de doutorado onde tive os primeiros estudos da teoria do proceso civilizat6rio, de Norbert Elias, € dos estudos de sociologia do esporte de Elias e Dunning A paixao pelo estudo do futebol levou-me a elaboracao de um projeto de pés-dautorado para a Fapesp no més que antecedia mi niha defesa de doutorado. Nesse novo e ambicioso desafio, eu pre tendia desvendar as raizes e causas diretas da violéncia nos estadios brasileiros e comparé-las aos estudos espanhéis, tendo como refe~ rencial de andlise a sociologia figuracional. Fazia parte desse projeto também a anélise da politica publica de prevencao da violéncia espa~ nhola eo desafio de fazer uma proposta de politica publica setorial para o Brasil, Um grande sonho! O pés-doutorado durou 12 meses, porém seus frutos eu tenho colhido até hoje. Por isso agradeco a Fapesp e a Unicamp pelo finan- ciamento integral da minha pesquisa no exterior ~ Espanha ¢ Ingla- terra -, e pelos diversos apoios recebidos para divulga-las em con. gressos europeus nos dltimos anos Miguel Cardenal Carro, muchas gracias! Sin su apoyo no habria | thank Professor Erie Dunning for uncountable contributions and his generosity. Agradeco ao Ministério da Justica pelo convite para a palestra que proferi no Seminario sobre Seguranga nos Estédios e para parti- ipar do grupo técnico na elaboragao da Carta de Brasilia, em marco de 2003, ocasiao em que eu pude sugerir a criagdo da Comissio Nacional de Prevencdo da Violéncia nos Espetaculos Esportivos. Ao Eric, a0 Zé Luis e a0 Thiago, primeiros integrantes do GEF, meu agradecimento pela dedicacao ¢ pelas contribuicoes. A Liana, pelo companheirismo, cumplicidade e incentivo. Nenhum periodo da minha vida foi tao frutifero como esses ltimos anos, e neles eu contei com 0 apoio incondicional dos meus amores: a Fernanda, o Edu, a Leninha e a Cacilda, meus figis torcedo- res. Muito obrigada! Heloisa Helena Baldy dos Reis Campinas, maio de 2006 SUMARIO FOTOGRAFIAS PREFACIO Dermeval Saviani INTRODUGAO 1, UMA VISAO SOCIOLOGICA DO ESPORTE MODERNO 1. A génese do futebol como um esporte moderno e 0 papel da profissionalizacao na transformacio do futebol em espetaculo 2, O FUTEBOL COMO ESPETACULO EA VIOLENCIA NOs ESTADIOS |. O futebol como espeticulo 2. A violéncia nos estadios 3. A VIOLENCIA DE ESPECTADORES DE FUTEBOL COMO UM PROBLEMA SOCIOLOGICO |. A identidade, a identificagao clubistica e associativa 2. As imagens televisivas, as matérias jornalisticas ¢ a violencia nos estadios 2B xi 3 18 3 40 a 4. AS POLITICAS EUROPEIA E ESPANHOLA PARA A CONTENGAO DA VIOLENCIA NOS ESPETACULOS ESPORTIVOS 1. Os conceitos basicos 2. O problema da violencia na Espanha 3. As medidas internacionais de prevengio da violéncia nos esportes 4. As leis espanholas que tratam do esporte e da seguranca em espetaculos esportivos e as medidas adotadas na Espanha 5. O Tratado Europeu e a participacdo da Espanha A VIOLENCIA RELACIONADA AO FUTEBOL BRASILEIRO: OS DOCUMENTOS, AS LEIS E AS SUGESTOES PARA A PREVENGAO DA VIOLENCIA EM ESPETACULOS ESPORTIVOS NO BRASIL |. Os fatores indivetos geradores de violencia no futebol brasileiro 2. Os fatores diretos geradores de violéncia no futebol brasileiro 3. As leis € 05 documentos brasileiros e o processo de criagao no Brasil da Comissao Nacional de Prevencio da Violéncia ¢ Seguranca nos Espetaculos Esportivos 4. A infra-estrutura dos estadios e a gestdo do espeticulo futebolistico 5. Sugestdes de medidas de seguranca para os espetéculos futebolisticos no Brasil CONSIDERAGOES FINAIS REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS SOBRE A AUTORA 47 49 st 53 62 B 83 85 88 97 lor 109 47 ho 125 Este livro trata de futebol. Mas 0 que é futebol? Ora, que per- gunta mais supérflua, exclamard o leitor! Futebol € um jogo. £ uma modalidade esportiva. Pois é. Mas, se é um jogo, € exatamente algo supérfluo, Nao necessariamente. Algo que se pode fazer ou nao fa- zer sem que, por isso, sejam alteradas as condicdes de existéncia. Sera? Ortega y Gasset garante que nao. Na obra Meditacdo da técni a ele atesta que “o homem é um animal para o qual somente o su- pérfluo é necessério". Apesar do cardter paradoxal dessa afirmacao. € possivel concordar com ela, ainda que com uma fundamentacao diferente daquela desenvolvida por Ortega. De fato, as necessidades basicas de sobrevivéncia os animais, de modo geral, as tem garanti- das, em termos biol6gicos, pela propria natureza. Dai que Ihes basta adaptar-se a ela para manter-se vivos. Diferentemente, o homem constitui-se como tal exatamente quando se destaca da natureza, entra em contradicao com ela e, para manter-se, tem que agir sobre ela transformando-a. Em lugar de se adaptar a natureza ele tem, pois. que fazer 0 contrério: necessita adaptar a natureza a si; ajusté-la as suas necessidades. Assim, o que caracteriza o homem, aquilo que define sua esséncia, ¢ 0 ato de criar, a partir da natureza, algo novo, que esta além da natureza. Esse ato de transformagao dos materiais av fornecidos pelo meio natural nés conhecemos pelo nome de traba- tho. Por isso costumamos dizer que a esséncia do homem é 0 traba- tho. Sua existéncia-nao é, pois. uma dadiva (natural ou divina). mas € por-ele proprio produzida Mas... por que o homem é levado a construir um mundo novo. © mundo da cultura, nao se contentando em permanecer ajustado, simplesmente, ao mundo natural? Certamente, nao é para garantir sua sobrevivéncia, para satisfazer suas necessidades biol6gicas, pois, para isso, bastaria deixar-se guiar pela natureza, como fazem todos os outros animais. Nao! Se a humanidade produz cultura, nao é para permanecer no mundo das necessidades que, satisfeitas hoje retornam amanha, obrigando a reiterar a mesma busca que manteria o homem a elas atado ao longo de todo o seu ciclo vital. O homem faz cultura exatamente para se libertar do jugo da natureza e subjugd- la aos seus designios. Todo o sentido da vida humana implica, pois, a passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, O proces- so de construcao da cultura, ou seja, o processo de produgao da vida propriamente humana caminha na direcao da reducao do tempo de trabalho (mundo das necessidades) e ampliacao do tempo de lazer (0 mundo da liberdade) O mundo da necessidade ¢ regido pela forca. Trabalhar é sem- pre, de algum modo, um ato de violencia, © trabalho implica @ acdo de um sujeito que, mediante o uso dos instrumentos adequados, transforma certa matéria-prima obtendo determinado resultado. Tra- ta-se, pois, de um ato que viola o modo de ser do objeto, um ato que © transforma, isto é, 0 arranca de sua forma original e o obriga a as- sumir uma nova forma. A relagdo do homem com as coisas, tanto as naturais (aquelas que ele encontra diante de si, independentemente de sua aco) como as culturais (aquelas que resultam de sua acao transformadora sobre a natureza), assume, portanto, a forma da do- minagao. E sobre a base desse dominio do mundo das coisas é que se busca construir 0 mundo da liberdade, que se constituiria no mundo especificamente humano. A luz desse entendimento parece claro e perfeitamente ldgico, que a relacao vertical de dominacao, propria do intercambio entre 0 homem e as coisas, néo poderia jamais se estender em sentido hori- zontal nas relagoes entre os homens. Com efeito, se a relacdo verti- cal do homem com as coisas é regida pela dominacao, a relacao ho- rizontal dos homens entre si deverd ser pautada pela colaboracio. E nessa colaboracao dos homens atuando sobre as coisas e se comu- nicando entre si fica evidente que a existéncia humana nao se esgota na satisfacdo de necessidades. Faz sentido, pois, a frase citada de Ortega y Gasset, considerando 0 supérfluo como a verdadeira neces sidade humana. Abre-se aqui um campo imenso para o cultivo das formas estéticas entendidas como a apreciacao das coisas e das pes- soas pelo que séo em si mesmas sem outro objetivo que nao o de relacionar-se com elas. £ nesse espaco que emerge a presenga do jogo como manifestacio tipicamente humana. O jogo é, com efeito, uma relagao interpessoal. Normalmente nao se joga sozinho. Joga-se com © outro, com outras pessoas, situando-se numa esfera para além da dimensao utilitéria que caracteriza a relaco com as coisas. Os joga- dores, obedecendo voluntariamente a regras previamente estipuladas e compartilhadas, realizam acdes, executam movimentos que se es- gotam em si mesmos. O jogo é puro desfrute, pura gratuidade, sim- ples exercicio de liberdade, a forma mais emblematica de ocupacao do tempo livre. O futebol, como jogo. participa das caracterfsticas anteriormen- te indicadas. Por isso, uma partida de futebol bem jogada é puro deleite, tanto para 0s que a jogam como para os que a contemplam, Quem nao se encanta com a beleza das triangulagées, dos passes perfeitos de precisao cirdrgica culminando no langamento que traca uma curva parabdlica alcancando o atacante que, em elegante boleio, muda a direcao da bola fazendo-a balancar a rede adversaria para delirio de sua torcidal Mas este livro, que trata do futebol, nao o faz pelo aspecto até aqui considerado, isto é, como jogo, cuja esséncia é dada pela esportividade. O angulo de andlise € outro, centrado na relacao en- xvi tre futebol e violéncia. O problema que esta obra pretende equacionar é, entao, o seguinte: considerada a irrupcao da violéncia no futebol, como poderemos, senao debela-la, ao menos contornd-la? Sim. Impde-se extirpar a violencia desse esporte mesmo porque, como foi antes explicitado, o futebol. por esséncia e por definicao, exclui a violéncia. Por esséncia porque, inserindo-se no mundo hu- mano, se manifesta como uma relacdo horizontal de colaboracao, afastando-se da relacdo vertical de dominacdo propria do mundo das coisas, Por defini¢a0, porque suas préprias regras punem severamente no apenas os atos de violéncia, mas até mesmo a simples intengao de agir com violéncia A exclusdo da violéncia, que decorre da esséncia (a esportivi dade) do jogo, corresponde a um sentimento generalizado, por isso mesmo j4 consagrado na linguagem comum e corrente, que cunhou expressdes como “por esporte”, “levar na esportiva”, “espirito espor- tivo", Quem faz algo “por esporte” o faz por puro prazer, para se divertir, para passar o tempo, sem objetivo utilitario, sem preocupa- ao de vencer, de se impor, de dominar. “Levar na esportiva” significa no cair em provocacées, reagir com bom humor, Tem “espirito es- portivo” quem sabe ganhar ou perder com classe, com elegancia A vista do exposto. como entender a irrupcao da violéncia no futebol, tal como tem ocortido especialmente com as torcidas orga- nizadas? Evidentemente, ja que internamente esse fendmeno é inexplicdvel, sera necessario buscar sua origem fora do ambito pro- priamente esportivo, E uma vez que o esporte, como toda relacdo humana, é uma relacdo social ¢ histérica que s6 existe em condigdes, determinadas. é preciso buscar na forma da organizacao social em que vivemos as raizes da violéncia das torcidas de futebol Ora, a sociedade atual, organizada sobre a base da propriedade privada dos meios de producéo (capital), por ser uma sociedade centrada na troca, tende a converter tudo em mercadoria. Por isso essa sociedade, além de ser chamada de capitalista ou burguesa, é tam- bém conhecida como sociedade de mercado, Nela ndo apenas os bens rr xvi materiais, mas também os bens espirituais ou simbélicos acabam caindo sob o signo da mercadoria. Trata-se de uma sociedade em que prevalece a esfera do pratico-utilitario: em que se amplia 20 infinito o mundo das coisas pela exploracao em larga escala do meio natural hipertrofiando a relacao vertical de dominacao. Sem duvida, o verti- ginoso desenvolvimento tecnoldgico propiciado por essa forma so- cial cria as premissas para a libertacao humana. Na medida em que o processo de trabalho ao longo da histéria liberta os homens do jugo da natureza, permitindo transferir pare as méquinas grande parte do trabalho socialmente necessario, o homem libera tempo para seu usuftuto. No entanto, na sociedade capitalista esse processo resulta distorcido: seus frutos so apropriados privadamente, o que faz com que o usufruto de tempo livre s6 exista para uma pequena parcela da humanidade, 20 passo que a grande maioria € constrangida a pros- seguir sob 0 jugo do trabalho forcado como meio de suprir suas ne- cessidades mais elementares. E 0 exercicio da liberdade fica limitado a0s poucos momentos de lazer, entre os quais, para consideravel parcela da populacao, a torcida pelo clube de futebol de sua prefe- réncia se apresenta como o mais proeminente. Eis, porém, que a itracionalidade da situacao vivida por essas pessoas se projeta sobre sua atividade de lazer explodindo, nao raro, em atos de violéncia. Com efeito, o préprio tempo livre, nessa forma de sociedade, também caiu sob 0 signo da mercadoria, sendo explorado com o objetivo de lucro no ambito das indistrias do lazer. E. nos tempos atuais, o futebol € com certeza a mais prospera e a mais rentavel dessas indastrias. Eis por que o presente livro comega acertadamente pela consi- deracgdo da visdo social indicando. no primeira capitulo, a génese do futebol como um esporte moderno, cuja profissionalizacéo 0 conver- teu em espetdculo. £ é nessa condicao de espetculo que, conforme se esclarece no segundo capitulo, a violéncia irrompe nos estadios de futebol, impde-se, pois, a conclusio exposta no terceiro capitulo: a violéncia dos torcedores de futebol apresenta-se como um proble- ma sociolégico. xviT Contudo, a autora do livro, estudiosa dedicada do tema, nao se propée academicamente a fazer sociologia nem se alongar em aprofundadas consideracGes te6ricas e filosoficas. Seu objetivo é bem pratico e didatico. Quer apresentar de modo claro e sucinto os ele- mentos constitutivos da questao da violéncia dos torcedores e, com espirito engajado e socialmente responsével, indicat os caminhos para a soluco do problema. Por isso ela faz, no capitulo quarto, uma in- curso pela experiéncia européia, de modo geral, abordando de for- ma mais detida 0 caso espanhol. Finalmente, no capitulo quinto, analisa a situacdo brasileira e propde medidas de curto, médio e lon- 0 prazo para contornar o problema da violéncia nos espetaculos futebolisticos promovidos intensivamente em nosso pais. Oleitor esta, pois, diante de um livro de bastante utilidade. Lido atentamente e atendidas as orientacdes que ele contém, certamente serdo evitadas as cenas deprimentes que a intervalos de tempo cada vez mais curtos vém entristecendo um esporte como o futebol, que tem na alegria e na empolgagao as suas caracteristicas mais salien- tes, Em suma, 0 texto interessa aos protissionais do futebol, como os que trabalham na imprensa desportiva escrita, radialista e televisiva, professores e alunos de educacao fisica e a todos os apre~ ciadores do esporte das multiddes, ou seja, a quase totalidade da populagao brasileira Dermeval Saviani Campinas, 17 de maio de 2006 ten: Este livro € resultado de dez anos de pesquisas sobre o futebol sobre os tipos de violéncia relacionada a ele e a organizacdo de espe- taculos futebolisticos'. © objetivo central do trabalho € compreen- der por que a violéncia social encontrou um ambiente favoravel nos estédios para a ocorréncia de episédios violentos. Procurou-se tam- bém verificar 0 aumento do significado social desse esporte por meio da formacao de identidade do torcedor com seu clube e simbolos (2 bandeira, a camisa, as cores, o distintivo etc.); no caso dos torcedo- res organizados, além de uma identificacdo com o clube, hé também uma identificacéo com a agremiacao torcedora e seus simbolos. Para a compreensao da relagao existente entre futebol e violén- cia, foram realizados exaustivos estudos tedricos com literaturas brasileira, inglesa e espanhola e varias pesquisas de campo em esta- dios nacionais ¢ espanhdis. A andlise do futebol globalizado exige varios tipos de estudos abordagens das ciéncias humanas. Neste livro proponho-me a in- ‘Tr Grande parte desta pesquisa foi financiada pela Fapesp (Fundacéo de Amparo a Pesaui sa do Estado de Sao Paulo) por meio da concessio de balsa de pds-doutorado, no ano de 1999 (Reis, 2000). € Auxilio para Reunite Cientifica no Exterior no ano de 2005, 2 ee ee corporar as contribuigdes da sociologia do esporte e do direito es- Portivo no Ambito do futebol, particularmente as questoes relativas aos direitos do cidadao na participacao como espectador e as obri- gacoes dos organizadores do futebol-espetaculo. Acredito que o fu tebol nao pode mais ser visto apenas como um fendmeno de multi- does ¢ catalisador de paixdes, Ele vem sendo tratado por empresarios como a mercadoria mais rentavel do lazer esportivo. Ele € hoje um grande negécio. Uma importante mercadoria da indistria cultural. €, como tal, necessita de um marco legal bem delimitado e de facil aplicabilidade (..) © esporte nao é somente o exercicio fisico entendido como jogo. nem sequer jd como espetéculo catalisador de paixdes e rivalidades, é um produto de consumo, um meio fantastico de publicidade. e por que no dizer, um grande negécio € um instrumento de poder e de influéncia social (Sanchez, 2002, p. 33, trad. livre). Os estudos realizados demonstraram que o publico de futebol que frequienta os estadios nao se manifesta com xingos, cantos € gestos 0 tempo todo, como ¢ reiteradamente apresentado pelas ima- gens televisivas. Eles manifestam-se por meio dessas agoes em de- terminados momentos do jogo. Os momentos de maior expectativa, tensao e vibragao no decorrer do jogo sio os instantes em que os jo- gadores se aproximam da intermediaria adverséria e demonstram su- cesso em suas acGes técnico-taticas na busca por um bom chute. O momento de um gol € 0 do gozo, do grito euforico do torcedor. do interlocutor e da maior expressio de felicidade dos torcedores. As- sim como € o momento de maior desilusio ¢ tristeza dos torcedores da equipe adversaria. Antes das partidas, as torcidas entoam cantos € realizam uma espécie de jogo com sua congénere rival. Percebe-se claramente 0 jogo simbdlico das torcidas organizadas cantando gritando, que € também respondido na forma de cantos e xingos pela torcida rival. Sao essas e outras emogdes e manifestacdes que o livro pretende analisar. Parte das manifestacdes torcedoras nao € tao pacifica assim: algumas delas so muito agressivas, violentas e transgressoras. Por isso, pesquisei durante uma década o ambiente do futebol-espeta- culo eas teorias sociologicas do esporte para compreender esse uni- verso tao complexo. O primeiro capitulo situa o leitor sobre a génese do futebol como um esporte moderno, criado na Inglaterra em 1863, procurando es- clarecer aos amantes do futebol a relacdo de interdependéncia entre a formacao do individuo, a mudanga de atitudes e comportamentos em piblico € o desenvolvimento de praticas de lazer disciplinadas, como € 0 futebol-espetéculo, Além disso, aponta a profissionaliza- 0 do futebol como um dos fatos mais significativos na transforma- Gao desse esporte em espetaculo. Apresentado 0 processo pelo qual o futebol passou, no capitu- lo dois s40 mostrados o futebol como espetéculo e a violéncia nos estadios, O capitulo trés aborda a violéncia dos torcedores de futebol de uma perspectiva sociol6gica, demonstrando a complexidade do pro- blema. Para isso foi abordada a relagao torcedor/clube/torcida no universo da cultura esportiva. E, sendo a midia uma importante for- madora de opiniao e divulgadora do futebol-espetaculo, dediquei também um espaco para ela Apresentado o processo de espetacularizacao do futebol con- temporaneo, 0 capitulo quatro vai tratar da politica européia para a contengao da violencia nos estédios e as medidas adotadas para a minimizacao do problema. O quinto capitulo tem a finalidade de apresentar um cendrio do espetaculo de futebol no Brasil e a relacao da sua organizacéo com a violencia manifesta explorada intensamente pela midia e o marco le- gal, Nos dez anos que compreenderam a realizacao desta pesquisa, houve alguns avancos normativos no Brasil sobre a prevencéo da vio- lencia nos estédios, os quais serao abordados ao longo do texto. As leis promulgadas no periodo estao sendo cumpridas de forma parcial, co que também serd exposto detalhadamente ao longo do texto, Bus- co, ainda, demonstrar ao leitor que, mesmo que as raizes da violén- cia no futebol sejam um problema complexo, hé fatores diretos, no Ambito do futebol, que sao potenciais geradores de violencia, Sendo assim, abordo a organizacao do futebol brasileiro e sugiro caminhos para a construcao de uma politica de prevencdo da violéncia relacio- nada 20 futebol, além de medidas preventivas e organizativas em trés etapas. Apresento também nessa parte do texto a reacao das autorida des diante de um aparente aumento da violéncia nos espetaculos futebolisticos nos anos de 1994 € 1995, no estado de Sao Paulo, ¢ os desdobramentos da intencéo de se construir uma politica nacio- nal para a prevencao da violéncia e seguranca nos estadios a partir de marco de 2003. 1. UMA VISAO SOCIOLO DO ESPORTE MODERNO Tendo como referéncia que o esporte “nao pode ser encarado, 4 maneira de alguns especialistas, como se fosse uma instituigio social do nosso tempo que se constitui em completa autonomia e in- dependentemente de outros aspectos do desenvolvimento da socie~ dade” (Elias e Dunning, 1992, p. 60). este capitulo trata do surgimen- toe desenvolvimento do futebol considerando o seu contexto social. 1. A GENESE DO FUTEBOL COMO UM ESPORTE MODERNO EO PAPEL DA PROFISSIONALIZACAO NA TRANSFORMACAO DO FUTEBOL EM ESPETACULO Este capitulo tem, em um primeiro momento, 0 objetivo de apresentar 0 futebol como um esporte moderno e como um impor- tante objeto da sociologia do esporte. Alguns dos esportes hoje praticados em todo o mundo tiveram origem na Inglaterra, especificamente na segunda metade do século XIX, sendo que os esportes com bola somente se propagaram para Outros paises no final do século XIX, e dentre esses o futebol. A trans- formagio de um jogo de bola com os pés em esporte deu-se a partir e EE de 1863. quando foi criada a Football Association, na Inglaterra. ins- tituicdo que codificou 0 futebol, criando suas regras universais. Interessa aqui transmitir para o leitor uma compreenséo de por que 0 futebol se torna o esporte mais aceito e assistido no mundo, seja com a presenca de espectadores nos estadios, seja com a cria- fo, a partir da década de 1950, no Brasil, do telespetaculo, com 0 advento dos televisores em branco e preto. A televisao surge na dé- cada de 1950, mas a sua difusdo e massificacao ocorrem somente no final da década de 1960 ¢ principalmente na década de 1970. Parti- cularmente actedito que a transformacao do futebol em telespetaculo se dé depois das décadas de 1980 1990, com o futebol voltado quase que exclusivamente para os interesses televisivos. A principal tese de Elias e Dunning (1992) é a de que existiam afinidades Sbvias entre 0 desenvolvimento e a estrutura do regime politico da Inglaterra e a esportivizacao dos passatempos das clas- ses inglesas elevadas, sendo que no século XIX a pratica esportiva das classes altas inglesas era uma espécie de marca distintiva da nobre- 2a. Por isso, considera-se necessério verificar as mudangas ocorridas “na estrutura da personalidade e na sensibilidade dos individuos em relacao 8 violéncia dos seres humanos que integram estas classes” (Elias e Dunning, 1992, p. 61), para que se compreenda a estreita ligagdo entre futebol e violéncia desde a sua génese como um espor- te moderno. Antes da adogio de regras universais para os jogos de bola com 05 pés, precursores do futebol moderno, as regras eram definidas por tradigdes locais, sendo portanto variaveis suas regras de um local a outro. O sucesso da mundializagao do novo esporte dependia da existéncia de regras universais, e € esta a estratégia adotada até hoje Para a divulgacao de novos esportes. A respeito da génese do esporte modero, Elias e Dunning (idem, p. 225) dizem que tanto a esportivizacao dos jogos como a industrializacao podem ter sido sintomas “de uma transformacao mals profunda das sociedades européias, o que exigia dos seus mem- bros individuais uma maior regularidade e diferenciacao de compor- tamentos”, ainda nao de forma hegeménica nas relagoes sociais in- glesas nos séculos que antecederam @ esportivizacdo do futebol. As transformacdes desses comportamentos jé vinham ocorrendo desde 0 século XVI, particularmente em alguns circulos das classes sociais altas, segundo a teoria do processo civilizador de Elias (1990, 1993) Elias, estudando a sociedade inglesa, verificou a existéncia de uma transformacdo global do cédigo de conduta e de sensibilidade das classes altas que péde ser observada nas suas manifestacdes em atividades de lazer, que na época nao levava ainda essa denomina- Gao, tendo o lazer surgido no processo de industrializacao, ao longo do século XX, a partir das lutas da classe trabalhadora, Mas, curiosa- mente, a expansao do futebol pelo mundo aconteceu independente- mente dessas mesmas estruturas, pois parece que existe algo na estrutura do futebol que the confere uma grande atracao no modemo, uma atracao que parece ser relativamente independente do nivel de desenvolvimen- to dos paises e das caracteristicas sécio-politicas dos res- pectivos governos (Murphy, Willians e Dunning, 1994. p. 6). Ainda sobre o aumento do significado social do futebol, € im- portante destacar que a profissionalizacao do futebol na Inglaterra a partir de 1885, eno Brasil, a’partir de 1933, contribuiu muito para © aumento do interesse do puiblico, jé que com a dedicacao integral a0 treinamento os jogadores se tornaram mais habilidosos e as equi- es mais atrativas, A classe ociosa (desempregada) inglesa foi a grande fesponsavel pela profissionalizacao no futebol inglés. Com grande disponibilidade de tempo para a nova pratica, esse esporte foi desen- volvendo-se e ganhando novas formas, mais habilidosas e atraentes. Em contrapartida, a elite demonstrou resisténcia, ausentando-se de participagdes com equipes distintas das de estudantes, e justificava ‘sua posi¢do argumentando que nao aceitava os novos valores vincu- lados a0 futebol que nao os do amadorismo, Havia claramente uma ‘ EL disputa de classes camuflada por uma resisténcia da mudanca de paradigma amador versus profissional O futebol também chegou ao Brasil restrito a elite, aos descen dentes de imigrantes ingleses e proprietérios de fabricas téxteis de Sao Paulo, Logo os empregados passaram a praticar em suas horas vagas 0 jogo de bola com os pés trazido da Inglaterra por Charles, Muller em 1894, Soma-se a esse fato 0 advento do rédio como um importante divulgador do esporte bretao, na década de 1930 no Brasil. O radio trouxe para o ambiente do futebol uma linguagem prépria e instigante. Esta busca, até os dias de hoje, prende a atencao do ouvinte por meio de uma narrativa propria e cheia de apelos emocionais. O ouvinte tem sempre a sensacao de que o gol nao saiu por um triz. Para Murphy, Willians e Dunning (1994). os torcedores da equi- pe vencedora vivem momentos de triunfo € jubilo € os oponentes provam o sabor amargo da derrota e do desespero. E, no caso de empate, ambos sentem um misto dessas emocoes Uma marca distintiva do futebol é o periodo extenso de ante- cedéncia do gol, o momento de maior prazer do espectador/telespec- tador. Pela extensao do terreno de jogo, o periodo de expectativa da concretizacao do tento no futebol é extenso, e esse periodo de espe- ra, em equipes com jogadores habilidosos, € muito excitante, provo- cada pelo aumento de tensao no sujeito devido ao seu grau de iden- tificagéo com o time e a incerteza do resultado. Acrescenta-se a tudo isso 0 estado emocional dos torcedores em funcao do placar e do tempo de jogo. A paixdo clubistica acompanha os individuos normalmente desde a primeira inféncia. Torcer por um time é uma condicao herda- da dos pais desde o nascimento; dificilmente ha mudanca nessa he- ranga, normalmente paterna, presente principalmente em filhos do sexo masculino, Ao longo de sua vida, o individuo passa a admirar também a selecio brasileira, afinal, desde 0 nascimento a crianca observa que a cada quatro anos o pais para para assistir a selecdo Canarinho na TV. Nos dltimos anos, o apelo da midia nas propagan- das € 0 lucto auferido com elas na venda de produtos vinculados 4 Copa do Mundo tém crescido assustadoramente. Considero que 0 futebol como um espetaculo € originario tam- bém do seu processo de esportivizacdo, pois o interesse pela assis- tancia ao futebol na Inglaterra acompanhou o seu nascimento. Ja nas duas tltimas décadas do século XIX comecam a surgir as cobrancas de ingressos para as partidas de futebol. importante dizer que os passatempos — os jogos de bola com os pés — que antecederam esse esporte também contavam com espectadores, Datam também dessa época (1880-1890) as competigdes formais inglesas. O futebol ja chega ao Brasil na sua forma espetacularizada Conclui-se com esse breve relato que a esportivizagao do fute- bol se deu juntamente com a admiragéo de um publico cativo por esse jogo. daf a denominagao espeticulo. Obviamente ele se incrementa no final do século XX, na década de 1980 na Europa e na década se- guinte no Brasil, Porém, a forma espetacularizada no Brasil é ca6ti- ca, ¢ este livro pretende demonstrar © parqué para os leitores. CO futebol é o esporte coletivo de maior sucesso, por possuir uma caracteristica mimética que propicia ao seu publico situacdes de ele- vada tensdo na expectativa do desenrolar das acoes dos jogadores da equipe. Essa tensa provoca no individuo um alto grau de expec- tativa e ansiedade no desfecho da ago que prende o espectador ao jogo. A maior ou menor atencéo dependeré do equilibrio entre as duas equipes que disputam a partida, pois se percebe que em jogos em que ha uma diferenca muito grande de nivel técnico 0 jogo perde a graca, como diz 0 torcedor. Sendo assim, s40 fundamentais para 0 sucesso do futebol-espetaculo campeonatos em que as equipes estabelecam um equilibrio Esse esporte teve grande aceitacao nos diversos paises desde sua chegada e conquistou, no final do século XX. principalmente na Ultima década, paises que ainda nao tinham o futebol como uma pratica de lazer cotidiana, como € 0 caso de paises asidticos como Coréia e Japa, além dos Estados Unidos da América. Neste ultimo, © futebol havia conquistado, em décadas anteriores, o interesse do sexo feminino, com a participacao da selecao nacional em campeo- natos mundiais desde o seu inicio, na década de 1970. Oesporte moderno, principalmente o futebol, tem tido um papel importante nas sociedades modernas como um dos poucos fatores de excitacdo. Dunning (2003) chega a afirmar que o futebol é nos dias de hoje a principal fonte de entusiasmo e paixio das sociedades nao excitadas O futebol é também um elemento importante na construcéo da identidade nacional de alguns paises. © moderno culto ao esporte € aos grandes campeonatos regionais e nacionais ajudou a construir nos povos, ¢ particularmente no brasileiro, 0 sentido de nagdo. Isso é claramente visivel ainda nos dias de hoje nos campeonatos mundiais de diversos esportes, e, sem divida, as Olimpiadas e a Copa do Mundo fepresentam o momento em que os povos dos paises participantes se interessam por ver o triunfo de seus atletas e gozar a alegria dos sucessos, assim como em sofrer, no caso de grandes derrotas!. Nas competicdes esportivas, grande parte da populacao sente-se repre- sentada simbolicamente pelo atleta ou pela equipe de seu pais, sen- do que os vencedores se tornam os idolos de toda uma nagio. Varios autores europeus baseados no conceito de esporte des- crito na Carta Européia do Esporte, de 1992, apelam para que o fute- bol se converta, como todos os outros esportes, em “uma atividade social e cultural que fomente a interacao social e que seja modelo de prazer e lazer para os jovens, para os quais se manterao as bases morais e éticas do esporte alheio de toda hegemonia de fins comer- Ciais, politicos e midiaticos” (Nufez Encabo, 1999, p. 43. trad, livre). E possivel se trabalhar com valores morais e éticos no esporte, Porém com o estagio avancado de mercadorizacao do futebol é no minimo romantica a possibilidade concreta do conceito europeu de ‘esporte. ‘T. No Bras dois tipicos exemplos foram a final da Copa do Mundo de Futebol de 1950 € a desclassiicacio do Brasil na Copa do Mundo de 1982 para 2 Italia. © esporte moderno no século XX! poderia ser caracterizado como uma pratica esportiva altamente especializada, burocratizada com uma qualificacao jamais vista anteriormente ¢ com uma tendéncia obstinada a busca do recorde e de resultados melhores. A vitéria ja no é suficientemente satisfatéria; além de vencer, é necessario que- brar recordes. Essas caracteristicas demonstram a intima relacdo dessa prati- ca social com @ organizacao da sociedade industrial neste periodo denominado globalizacao, especificamente nas caracteristicas socie~ tarias da racionalizacao social e econdmica, da centralizacao da ciéncia e da tecnologia, do auge dos meios de comunicacao de massa, com seus miltiplos produtos tecnolégicos. Para Garcia Ferrando ¢ Lagardera Otero (1998), 0 esporte mo- derno € reflexo de uma nova civilizagdo industrial. Pode-se afirmar que a quantificacao das agdes e dos comportamentos nos esportes é mais evidente com a crescente implantacio de laboratérios de antropolo. gia fisica, hinmecnica, hinquitmica. fisialogia. psicalagia do esparte etc, todos colocados a servico da quantificagdo (medicao) nos es. portes. Porém, se forem tomados como referéncia a teoria do proces: so civilizador e os estudos de Elias e Dunning (1992) sobre o esporte moderno, este ¢ compreendido como parte da “nova civilizacao in- dustrial” ¢ nao como uma relagdo de causa e efeito COMO ESPETACULO E A VIOLENCIA NOS ESTADIOS {a solucisn al fenémeno de la violencia en el deporte supone la aceptacién de responsabilidades compartidas y de compromisos mutuos de todos (Espanha, 1990, p. 201) |. O FUTEBOL COMO ESPETACULO A pratica de assistir a jogos de futebol profissional em estédios totnou-se, no final do século XX, uma das principais atividades de lazer de grande parte da populacdo ocidental. © futebol como espe- téculo e/ou mercadoria tornou-se um tema de estudo para socidlo. 0s, antropélogos, economistas, advogados, principalmente na Eu- ropa. Além do interesse despertado no ambito universitério, 0 futebol conquistou um grande ntimero de empresérios nacionais ¢ interna- cionais que viram nos produtos futebolisticos um grande negdcio. Os rincipais ramos empresariais relacionados com 0 futebol so os de hotelaria, o de publicidade, o de TVs pagas e o de transportes terres- tres e aéreos, que so os principais responsiveis pelos deslocamen- tos dos protagonistas do espetaculo esportivo. de seus especialistas e dos admiradores que costumam viajar para assistir as partidas de futebol Matéria jornalistica publicada no jornal O Globo traz uma pes- quisa coordenada pelo professor Lamartine Pereira da Costa revelan- do que 0 “PIB do esporte cresceu 12,34% e movimenta até R$20 bi- Indes". Segundo Costa, © Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2002 foi de RS1,3 trilhao, e 0 PIB do esporte varia entre 196 € 1.6% do PIB, ou seja, vai de R§13 bilhdes a R$20 bilhdes. (..) A pesquisa ain- da demonstra que “(...) enquanto o PIB brasileiro cresceu 2.25 de 1996 a 2000, o PIB especifico do esporte cresceu 12.34%". Para o pesquisador. a industria do esporte tem o mesmo peso da petroquimica, "— A industria do esporte no Brasil s6 pode ser comparada a de paises da Europa, e ndo mais 4 do esporte em paises latino-americanos. No Brasil. © esporte emprega mais de um milhao de pessoas, entre atletas, técnicos. funciondrios de clubes e academias e ope- ratios de fabricas de materiais esportivas”. disse o profes- sor, acrescentando que o futebol gera 150 mil empregos € as academias legalizadas, 140 mil (Nogueira, 2003, p. 25) © sucesso do futebol como uma das principais atividades de lazer esportivo no século XX deve-se em grande medida aos investi- mentos dos meios de comunicagao para converté-lo no eixo da in- formagio esportiva, captando clientes por meio do uso deste como um importante agregado de divulgacao No futebol sempre esteve presente uma certa dose de violén- cia, tanto no terreno de jogo como entre os torcedores. O futebol foi _ctiado sob valores de masculinidade. valores exacerbados de virilida- de, forca e sobrepujanca, Porém, isso teve inicio na segunda metade do século XIX no continente europeu, precisamente na Inglaterra, ¢ 15 muitos anos passaram-se, as relagOes sociais alteraram-se, assim como os cOdigos de sensibilidade e de conduta dos individuos' Em sociedades como as nossas, patriarcais, caracterizadas por valores de masculinidade e com um poder predominantemente mas- culino, 0 futebol encontrou terra fértil para solidificar-se e dar mui- tos frutos, principalmente ao capital Mas isso no quer dizer que perpetuaremos eternamente a cul- ture da existéncia de uma relacdo simbidtica entre futebol e violén- cia. A violéncia € gerada socialmente e suas raizes e solucdes so -complexas, assim como 0 é a propria relacao entre futebol e violén- - cia, Tampouco quero ser simplista a ponto de transmitir aos leitores ‘que todos os valores masculinos sao negativos para um bem-estar ‘social. Estou falando em espacos reservados masculinos, que do meu ponto de vista nao sao saudaveis para uma vida societal, ¢ também de valores exacerbados de masculinidade, 0 que nao equivale dizer valores apenas masculinos. Esta questao é complexa e deverd ser elucidada ao longo do livro. Em vez de falar em violencia, poderia ser utilizado 0 termo vio- léncias, mas optarei pela primeira forma entendendo-a de forma abrangente e genérica. Ao longo do texto, serdo tratadas algumas expressdes da violencia no ambito do futebol. As raizes da violéncia relacionada ao futebol estao na socieda- ‘de brasileira_A formacao de individuos apaticos ou agressivos e vio- lentos ocorre a partir de sua sociabilidade priméria, quando ja podem Ser percebidas tendéncias a manifestacbes agressivas ou apaticas; ou sera mais explicitada na juventude, podendo permanecer na fase adul- ta. Nas relacdes sociais a0 longo da vida, irao demanstrar as prefe- réncias de relacionamentos, se de forma pacifica, por um lado, ou em outro extremo de forma agressiva. As sociedades mais desenvolvidas Chegaram a bom termo em relacdo as regras sociais nas quais indivi- duos com alto grau de agressividade, que colocam a integridade do "Sabre esse Tema, consular Elias (1990 € 1993), 16 proximo ou de bens em risco, sao punidos ou hospitalizados. As punigdes so de diversas formas ¢ em um caso extremo a pena é 0 encarceramento; 0s casos de hospitalizacao so normalmente para tratamento psiquiatrico. Mas, no Brasil, o sistema judiciario nao ganhou ainda a credi- bilidade desejada e os tramites legais so extremamente lentos, dei- xando lives pessoas que deveriam estar sob custédia da justica. O sistema puiblico de sauide também € deficitério ¢ nao atende as ne- cessidades da populacao Essa situacao estrutural brasileira contribui para uma socieda- de de individuos frustrados, descontentes, desiludidos, que podem expressar esses sentimentos de maneira agressiva. Isso é preocupante para um bom convivio social A violéncia de torcedores de futebol também est diretamente relacionada com a formacao do individuo e com o seu entorno so- cial, Sendo assim, foi descrito um t6pico sobre a construgio da iden- tidade e a identificagao coletiva. além de descritas as relagdes dessas com o esporte nos dias de hoje. Os tipos de violéncia sao variados, e alguns deles serao abor- dados neste livro, pelo menos as formas mais evidentes e manifestas ‘no ambiente do futebol espetaculo. Uma destas é a violéncia racio- nal, que se manifesta quando os individuos ou um determinado gru- po tém a intencao premeditada de realizar confrontos violentos (Reis, 2005). planejando a forma como agredir o rival. Ela pode ocorrer com a presenca de contatos fisicos (brigas) ou nao. Normalmente a violéncia com agressdes fisicas ocorre precedi- da de agressbes de violéncia simbolica, e a transformagao das agres- sdes simbélicas em fisicas ocorre quando 0 individuo perde 0 con- trole durante suas manifestacdes afetivas/simbdlicas e parte para a violéncia manifesta ~ fisica © uso da violéncia como instrumento de busca do sucesso no futebol pode ter crescido nas ultimas décadas em decorréncia do aumento de investimentos financeiros no futebol e em outros espor- tes de representacao nacional; mas, sem divida, os esportes moder- ce ‘nos so menos violentos que os jogos com bola que os antecederam, demonstrando com essa mudanga que houve um proceso civilizador “nos esportes madernos. Nas sociedades atuais, os individuos tém maior repugnancia a atos de violéncia fisica, 0 que segundo Elias e Dunning (1992) é uma comprovacao da diminuicao da tendéncia das pessoas a obter prazer a partir de atos violentos. Dunning classifica as formas de violéncia levando em consi- deracao 0s instrumentos ou armas utilizados, os motivos dos ato- res os niveis de intengo na realizagéo de seus atos. Consideram- se também alguns dos pardmetros sociais que contribuem para distinguir as formas de violéncia umas das outras (Elias e Dunning, 1992, p. 329) Os fatores geradores de violéncia so vérios e complexos, mas pode-se afirmar que a disseminagao de uma cultura de que a violén- cia e 0 futebol sempre caminharam juntos contribuiu para a permis- - sividade da violéncia nos estadios e dificulta a sua minimizacao. A “telacdo simbidtica” entre esporte e violéncia nao é um privilégio do futebol. Estudioso dos hooligans ingleses, Dunning afirma que todos 10s esportes competitivos conduzem ao aparecimento de agressio € de violencia (Elias e Dunning, 1992). Mas. por sua popularidade e seus valores masculinos, é no futebol que elas encontraram um terreno fértil. £ nesse contetdo cultural que a expressio da violéncia fisica socialmente aceita e ritualizada aparece. Percebe-se também no ambiente do futebol uma rivalidade hostil e em outros casos uma rivalidade amigavel por parte de torce- dores de futebol. Uma ou outra dependera dos times que se enfren- tam e da historia de envolvimento das torcidas. Porém, o desequilibrio entre essas rivalidades pode provocar tragédias. principalmente por causa do grande ntimero de pessoas presentes em um recinto fecha- do, como sao os estadios de futebol. e pela dificuldade atual de im- Pedimento de confrontos com grande niimero de pessoas nos traje- tos e entorno do estadio. Essa dificuldade evidencia a complexidade do problema, demonstrando que a minimizacao da violéncia nao é apenas um problema de repressio policial, como muitas vezes € externado por politicos, por jornalistas e em muitas politicas pibli- cas de seguranca Em linhas gerais, percebe-se, por um lado, que a violencia esta diretamente relacionada & crescente seriedade verificada nos espor- tes modernos, com suas formas mais elaboradas observadas a partir das duas tiltimas décadas do século XX, ¢ as formas contemporaneas de recompensas financeiras aos coadjuvantes do futebol profissional Assim como ao avan¢o da crescente identificagao juvenil com {dolos € equipes de futebol, verificada principalmente em paises como 0 Brasil, onde grande parte da populacdo jovem softe pelas condicdes indignas de vida, pelo baixo nivel educacional, pela desestruturacao acelerada da instituicao familia vivenciada nas Ultimas décadas do século XX. Mesmo nas familias estruturadas do ponto de vista eco- némico, hé uma faléncia dos valores morais € éticos que faz com que 05 papéis sociais de pai e mae deixem de ser cumpridos, gerando dessa forma uma grande parcela de adolescentes e jovens extremamente carentes, que buscam nos clubes futebolisticas seus idolos e sua identidade 2. A VIOLENCIA NOS ESTADIOS O episddio da morte de um torcedor, em agosto de 1995, no estadio do Pacaembu, em Sao Paulo, foi o ponto inicial, por parte do poder piblico, para a tomada de providéncias quanto ao crescente aumento da violéncia nos espetaculos esportivos. Por iniciativa de um promotor puiblico de Sao Paulo, ficou proibida a entrada de torcidas organizadas nos estadios do estado de Sdo Paulo. A proibicao foi controlada impedindo-se a entrada de torcedores com camisas con- tendo distintivos ou outro tipo de alusdo as agremiagGes torcedoras, assim como a entrada com bandeiras e instrumentos de percusséo Houve também a proibigdo, desde entao, da venda de bebidas alcoélicas nos bares dentro dos estadios. Esta tltima medida foi bas- tante criticada por alguns clubes, porque diminuiria seus ganhos fi- 19 nanceiros nos dias de jogos, preocupagio mesquinha e limitada dada a extensdo do problema social no consumo de alcool por javens no Brasil Sobre a relagao maléfica entre alcool e populagao jovem no Bra- sil, apresento duas pesquisas da Unesp (Universidade Estadual Paulista)? que ajudam a compreender 0 problema: Para os pesquisadores, a veiculacao de propagandas na midia ¢ a legislacio branda sobre a comercializacao de be- bidas alcodlicas so os dois fatores que mais favorecem 0 consumo entre os jovens. “A midia € uma das principais responsaveis por esse consumo excessivo. As propagandas ‘no consideram 0 alcool como uma droga e isso provoca graves consequiéncias em toda a sociedade”, afirma Martins, do Ibilce (Romero, 2006). Segundo matéria do jornal Folha de S Paulo de 23/4/1996 (ca- derno de esportes), 0 incidente do Pacaembu fez com que as autori- dades despertassem para o problema da violéncia nos estadios e to- massem algumas providéncias, Foi a partir dai que os julgamentos de processos judiciais dessa natureza foram acelerados, processos que estavam ha anos para serem julgados. O incidente do Pacaembu também mobilizou a sociedade civil particularmente os académicos, para a realizacio de eventos que colocaram a relacdo entre futebol e violencia em debate. Com este propésito foi organizado um evento na PUC-SP (Pontificia Universi- dade Catélica de S40 Paulo) que teve entre seus palestrantes jorna- listas esportivos renomados, ex-jogadores de futebol, politicos e pro- fessores universitarios. Um desses convidados, 0 deputado federal Arlindo Chinaglia, disse que Campus de Sao Tost do Rio Preto e Araraquara. As pesquisas foram coordenadas res pectivamente pat Raul Aragio Martins e Angela Viana Fernandes. as causas da violéncia no esporte devem ser buscadas na so- ciedade. E aqui nao hé como escapar ou negar que a exclu- ‘80 social é um fatar preponderante dentre as miltiplas causas da violéncia.. A pobreza, as péssimas condicées de vida, 0 desemprego, a falta de escola, de moradia, de cultu- ra, de lazer etc. (Chinaglia, 1996, p. 45) Chinaglia (1996) acrescenta em sua andlise que a predominan- cia da impunidade na sociedade brasileira estimula e reforca a violén- cia, e afirma que a impunidade est presente em todos os niveis ¢ setores. Eventos dessa natureza possibilitam a0 publico um esclareci- mento do problema em diferentes abordagens, mas também fica evi- dente que nao sao apenas os estudos académicos (Cardia, 1996; Reis, 1998, 2005) que analisam esse problema como complexo e com raizes ‘na estrutura social brasileira, Para outro palestrante do referido seminario, a causa da violéncia entre as torcidas organizadas é a “falta de perspectivas da juventude das periferias e de uma nova classe média cada vez mais revoltada com sua proletarizacao forcada” (Benevides, 1996. p. 75). A violéncia entre torcedores também est diretamente relacio- nada com @ construgdo das identidades individual e coletiva, tema que sera tratado mais adiante. Para Pimenta (1997, p. 73), A mudanca de comportamento do torcedor nas arquibanca- das dos estédios comeca a ser sentida num viés de violén- cia, truculéncia e agressividade ~ nos moldes atuais ~ pelo torcedor comum e agentes envolvidos com o esporte, e passa a ser veiculada com maior freqiiéncia pelos drgios de impren: sa. a partir dos anos noventa, Simultaneamente, grupos de jovens e adolescentes, engrossam as fileiras associativas das “organizadas”. Ha uma relacdo efetiva entre a mudanca no comportamento do torcedor e 0 aumento vertiginoso de jo- vyens e adolescentes associando-se as Torcidas Organizadas? Levanto a seguinte questao: a violéncia das torcidas ¢ associa- 4 ampliacao do quadro de jovens nas agremiagdes torcedoras ou jumento da violéncia e a veiculacio de episddios dessa natureza rairam os jovens para se associarem as torcidas organizadas? Dados de Pimenta (1997, p. 73-74) apontam que De 1991 em diante as organizadas de maior porte cresceram significativamente, para espanto até de seus dirigentes. A “Mancha Verde” tinha aproximadamente 4.000 (quatro mil) sécios e [em 1996] tinha 18.000 (dezoito mil); a “Indepen- dente” tinha 7.000 (sete mil) associados, [em 1996 tinha] mais de 28.000 (vinte e oito mil): e a maior torcida do Bra- sil, a "Gavibes da Fiel”, cresceu de 12.000 (doze mil) regis- tros para 46,000. Segundo informacées recentes de dirigentes do Grémio Gavides ja Fiel Torcida Forca Independente, eles tém-atualmente em torno de 38 mil associados, dos quais 5 mil estdo ativos no programa de men- salidade, sendo que de fato participam das diversas atividades do Grémio por volta de 3 mil torcedores, com idades entre 18 e 28 anos Questées como a formacio da identidade, grupos torcedores € joléncia ainda serao tratadas em outras partes deste livro. FOTOGRAFIAS AD Letra éptica para conferéncia do ingresso para entrada no estidio do Barcelona F.C. Foto 2 — Revista na entrada do estddio do Barcelona EC. Reis tnogratas ee eproduraas Totogratias 1a 16 repraduzidas neste trabalho sio do arquivo da autora Foto 4~ Imagem captada pelo circuito temo de vdeo do estadio do Barcelona F.C Foto 3 ~ Revista na entrada do | estidio do Barcelona F.C ni ‘ifn i Foto 5 ~ Imagem detalhada revelada pelo circuito interno do Barcelona F.C Foto 6 — Unidade de Controle Operativa (co) do estdio do Barcelona F.C Foto 7 — Unidade de Controle Operativo (UCO) do estadio do Barcelona FC. Biya de un aatais paulista'com capacidade pia aproximadamente 31 mil espectadores. Foto 8 — Arquibancada de um estadio paulista com capacidade para aproximadamente 31 mil espectadores. Foto 10 — Banheiro do Sevilla F.C. Estidio com capacidade para 45.50 spectadores. Foto 1 ~ Banheiro do estadio Foto 13 ~ Arquibancada (assentos) do do Sevilla FC Foto 12 ~ Arquibancada (assentos) do estadio do Sevilla F.C. Foto 14 ~ Arquibancada (assentos) do estdio do Sevilla F Foto 15 ~ Bilheterias: com quadros que demonstram tabela de precos dos ingressos, regulamento, formas de recebimento do pagamento € croqui do estadio do Sevilla F.C. indicando os setores e as portas de entrada Foto 16 ~ Entrada de espectadares por um setor, com equipamento eletrénico de ingresso, no estadio do Sevilla FC 3. A VIOLENCIA DE ESPECTADORES DE FUTEBOL COMO UM PROBLEMA SOCIOLOGICO As manifestagdes violentas envolvendo torcedores de futebol em dias de jogos, dentro 9s estédios, sdo atualmente um problema de seguranca publica e um objeto de pesquisa da sociolo. gia do esporte em varios paises, jé que o fendmeno retine as caracte. tisticas de estabilidade e persisténcia, ocorendo com regularidade, ¢ tendo como lugar os estadios de futebol ¢ as suas imediacoes. sendo raras também as manifestagdes violentas ¢m outros locais das cidades onde ocorrem os jogos. Para Dunning (2003), 0 hooliganismo no futebol parece ter se tornado, a partir das Uitimas décadas do século XX, uma problema- tica mundial. Desde a década de 1980, foi com essa denominagao que mundo conheceu os prob! inicialmente pensados como um problema local da Inglaterra O objetivo da real sentar os resultados de anos de pesquisas sobre a problematica da violéncia re a0 futebol e como ela a no ambito de alguns pat: €uropeus, como a Espanha, pais que conseguiu em um periodo curt Cumprir exemplarmente o Tratado n. 120 do Conselho da Europa u fora lemas da violéncia relacionada ao futebo! 140 deste livro é api ionada (Que sera anaTisado mals ian (European Treaties - ETS n, 120 ou Tratado Europeu n. 120, como doravante seré denominado) e tonar-se vitrine do futebol mundial Para isso, foi feito um amplo estudo da bibliografia especializada publicada nesses paises, incluindo um maior aprofundamento dos livros publicados na Espanha e na Inglaterra? Pesquisas espanholas observaram que a maioria dos individuos considerados por eles vandals no ambiente do futebol (estédios ¢ seu entorno) nao tinha vivéncia e tampouco experiéncias com prati- cas esportivas, em um sentido amplo, ao longo da vida. Pimenta (1997) apresenta dados semelhantes. Dos 60 torcedores entrevista- dos por ele, entre eles torcedores organizados da Mancha Verde, da Gavioes da Fiel e da Independente, 7596 nao tiveram uma iniciagdo na pratica do futebol em es colas ou clubes de formacdo de jogadores de futebol: a gran- de maioria nao teve contato direto com 0 “jogo de bola”, com os fundamentos que a pritica requer, mas gosta de correr atris da bola. O torcedor pode ter se transformado em um fanatico - ¢ esse fanatismo pode converter-se em aces de agressividade ~ em razao de nao ter vivido num meio de formagao de futuros craques ou por projetar no profissional um desejo contido (Pimenta. 1997. p. 95) As praticas esportivas de modo geral, independentemente de ser em “meio de formacao de futuros craques”, possibilitam aos in- dividuos experiéncias importantes para a formacao da sua identida- de. Sendo a educacio fisica uma das disciplinas obrigatorias do ensi- no fundamental. espera-se que nas aulas de educacio fisica escolar ‘TA rspanha Tortornada como modelo no tema da prevengio da violéncia relacionada 30 ‘esporte pela sua relevancia no assunto,J4a Inglaterra, por ser conhecida internacional- ‘mente por seus hooligans. considerados os torcedores mais violentos.e também por eu utilizar a teoria configuracional desenvolvida na Inglaterra por Elias € Dunning, 33 as criangas aprendam valores fundamentais para a construcao de sua autonomia, o que implica vivenciar, por meio de atividades Itidicas e técnicas. conhecimentos do universo da cultura corporal que Ihes. permitiréo uma anilise critica do esporte de alto rendimento de ma- neira tal que a ignorancia nao seja a responsdvel por um fanatismo. O nivel de violéncia de um determinado grupo de aficionados ‘ou._mesmo de um determinado povo dependera também da forma comoeles lidam com os valores da cultura esportiva, ou seja. da acei- taco desses valores, principalmente a exacerbacao da competicdo em -detrimento da integragao: do progresso de um atleta ou equipe em -detrimento.da derrota do adversério a qualquer custo. No caso da igualdade, percebe-se que os grupos europeus mais violentos tem inculcado seu sentimento de superioridade em relagao a outros gru- os inclusive no que tange a questées raciais. E forte o vinculo entre torcedores violentos e movimentos neonazistas ou nacionalistas europeus (Espanha, 1996). Apesar de isso aparentar para nds, brasi- Ieirus, um paradoxo, pois 0 espanhol nao tem no futebol um simbo- de identidade nacional, as identidades séo construidas com as munidades autdnomas e nao tanto com o pais, como ocorre no rasil, na Argentina e no Urugual Para as instituigdes européias, as raizes da violéncia na Europa ‘em geral apsiam-se em problemas sociais como 0 alcoolismo, © abu- ‘$0 € consumo de outras drogas ¢ o racismo (Espanha, 1989, 1990, 1998 e Franca, 1999). Os estadios foram apenas locais escolhidos por [upos juvenis para a realizacdo de manifestagoes violentas em um Perfodo em que havia uma permissividade e impunidade para tal sim como também foi no Brasil até aproximadamente 1996. Porém, NO caso da Espanha, as medidas de seguranca adotadas pela Comis- S40 Nacional contra a Violéncia nos Espetaculos Esportivos fizeram Com que o corpo de seguranca do Estado tivesse plena fiscalizacao Controle dos espectadores dentro dos estédios e em suas imediacées, Por meio de cémeras de video e de um trabalho sincronizado entre 9s diferentes corpos de seguranca que trabalham durante um evento Dunning nao corrobora essas andlises, ¢ em sakitime livro analisa duas dimensoes do problema que tém alcance internacional: A primeira destas dimensoes do hooliganismo no futebol € que tem alcance internacional se relaciona com 0 fato do {futebol ser praticado em todos os lugares com jogadores pro- fissionais, e que é para os espectadores uma busca, uma das principais raz6es de ser na geracdo de emogées. Sempre que uma multidao vé um acontecimento de lazer emacionante. cexistem muitas probabilidades de que seus membros deixem de se autocontrolar e se comportem de forma desordenada e violenta. (...) pode-se dizer que a seriedade da violencia provavelmente varie de um pais para outro, e que as classes sociais ou subgrupos que a protagonizam também variem segundo as trajetorias especificas e seu nivel de civilizagao (e descivilizacao). S40 muitas as probabilidades de que.a vio- léncia dos espectadores no Ambito do futebol se exacerbe em fungao do grau em que os espectadores se identificam com as equipes em campo ea forca de sua implicacao emo- cional e compromisso com a vitéria das equipes para as quais torcem. Muitos torcedores ingleses, por exemplo, afirmam estar loucos por seus times Vé-se assim a forca da implicagio emocional dos especta- dores na vitéria de sua equipe em funcdo da centralidade e im- portdncia do futebol em suas vidas; quer dizer, isto é uma das fontes de significado e satisfacao para eles ou a dinica. (..) A segunda dimensao do hooliganismo, que € provavel- mente compartilhada internacionalmente, relaciona-se mais diretamente com as dimensdes das brigas. Apesar de que as diferencas entre os paises e também dentro deles. a este fespeito, por exemplo entre classes sociais, grupos regionais étnicos, e apesar de que as feministas de alguns paises tenham conseguido diminuir em maior ou menor medida, todas as sociedades do mundo atual caracterizam-se por formas basicas de dominio masculino, sobretudo na esfera publica, dai se transmitem os valores e instituigdes patriar- cais (Dunning, 2003, p. 182-183, trad. livre). As formas de manifestagdes violentas no 4mbito do futebol so diferentes em cada pals, e por isso também outros pesquisadores entendem que a denominacao hooliganismo para manifestagées vio- lentas em outras partes do mundo pode ser uma generalizacio das teorias britanicas. E mais apropriado pensar na violéncia também como uma tendéncia mundial do futebol-espetéculo, mas nao enten- der que todas essas formas sejam hooliganismo ao modo inglés. Apesar das diferencas dos ideais masculinos nos diferentes paises, uma caracteristica geral do patriarcado é supor que os ho- mens se mostraram agressivos e lutaram, e que a capacida~ de e presteza para lutar em situac6es especificas, por exem- plo em uma guerra, por uma patria ou por uma mulher € os filhos que foram agredidos, constituem uma marca chave no significado de ser homem O futebol é um ambiente que permite manifestar o com- portamento bélico do patriarcado, porque o jogo em si é uma simulacao da guerra e porque, apesar do éxito do futebol fe- minino em todo o mundo, durante os ultimos anos, o jogo surgiu como uma érea masculina e continua imbuida de va- lores patriarcais. ) Entretanto, os tipos de hooliganismos também sao ge- rados mediante a forma como 0 futebol é enraizado no con- texto social mais amplo. Uma das consequéncias ¢ que gru- pos de torcedores mais ou menos organizados (torcidas) vio as vezes aos jogos com a intengao de brigar com outros torcedores e quem sabe coma policia, Esses hooligans cons- tituem o niicleo duro deste movimento. Inclusive ha indi- clos que em alguns pafses, como Portugal. os proprietirios

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