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AHISTORIOGRAFIA DA REVOLUGAO MEXICANA NO LIMIAR DO SECULO XXI: TENDENCIAS GERAIS E NOVAS PERSPECTIVAS Carlos Alberto Sampaio BARBOSA! Maria Aparecida de Souza LOPES? «= RESUMO: O objetivo deste artigo 6 discutir, em linhas gerais, as principais tendéncias historiograficas da Revolugéo Mexicana. O trabalho se divide em. trés partes nas quais sao descritas, em ordem cronolégica, as obras mais sig- nificativas, que foram publicadas durante o século XX dentro e fora do México, e que tinham como temética a discussdo do processo revolucionério em si, bem como livros e artigos que puseram em reviséo os postulados tedricos deste tema. Destacamos que as polémicas centrais sobre a Revolucao gira- ram em toro do cardter agrario desta e do alcance das reformas sociais pro- postas pelos governos pés-revolucionarios. = PALAVRAS-CHAVE: Revolugao Mexicana; historiografia; Revolugdo; Amé- rica Latina. A Revolugdo Mexicana ou as “Revolugdes Mexicanas", como a par- tir de uma perspectiva se denominou o grande movimento armado que ocorreu no México entre 1910 e 1917, foi e é objeto de diversas contro- vérsias. Nos ultimos anos, j4 se questiona a necessidade de estuda-la isoladamente por causa da extensa produgdo historiogréfica sobre o tema - sumamente rica no que se refere a anélise tedrica e metodolégica -, que conseguiu nao somente reyisar o “revisionismo”, mas também. 1 Departamento de Histérla ~ Faculdade de Ciéncias e Letras - UNESP ~ 19800-906 - Assis ~ SP E-mail: casb@assis.unesp br. 2 Departamento de Historia ~ Faculdade de Histéria, Direito e Servigo Social - UNESP ~ 14400-690 - Franca ~ SP, E-mail: souza@iranca.unesp br. Historia, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 163 construir um sdlido corpus bibliografico que contempla as telagées in- ternacionais, estudos biogrdficos (desde as principais figuras militares e lideres civis até atores sociais pouco conhecidos, como mulheres e crian- gas, entre outros), histérias regionais, aspectos ideolégicos, culturais e matetiais. Toda essa producdo historiografica esteve acompanhada da publicag&o de uma ampla gama de memodrias, dicionérios e crénicas im- prescindiveis para compreender os acontecimentos da segunda década do século XX mexicano. Por esse motivo, as interpretagées acerca das causas e do signifi- cado da Revolugao variam bastante, dos primeiros estudos escritos pra- ticamente durante os levantes armados — alguns dos quais “sataniza- yam" © porfiriato e propugnavam o carater “vencedor”, “legitimo” e global da Revolugao — atravessou-se uma fase de “regionalizagao” que colocou em evidéncia as diversidades locais dos movimentos. Ao ressal- tar as especificidades geograficas, questionou-se a qualidade “reden- tora", assim como o legado “revoluciondrio" dos acontecimentos de 1910. Em razao desses fatores, alguns autores advogaram por substituir 0 termo “revolucao" pelo de “revolta", posto que viram mais continuida- des que reformas na estrutura econémico-social mexicana do final do século XIX e da terceira década do XX. Também foram incorporados ao discurso historiogréfico atores que anteriormente haviam sido relegados pelos estudos precedentes, que insistiam em descrover os acontecimen- tos revolucionarios relacionados as grandes figuras militares. Nos ulti- mos dez anos, retorna-se a uma visdo geral dos acontecimentos de 1910 néo somente no que diz respeito a abordagem geogréfica, mas também no 4mbito temporal. A andlise do porfiriato, assim como dos anos poste- tiores & luta armada, tornou-se praticamente imprescindivel. De fato, Houcos sao os estudos atuais que se circunscrevem exclusivamente ao contexto dos combates armados, e, em alguns casos, se analisam os anos de 1930 ou 1940, duas décadas fundamentais para o desenvolvimen- to do Estado pés-revolucionario. Este artigo retine algumas obras sobre a Revolucéo Mexicana nestas trés tendéncias — grosso modo denominadas “agraristas", “revisionistas" e “andlises contemporaneas" — que corres- pondem a divisao tematica deste. Essa “agrupagao" responde a uma ne- cessidade meramente expositiva e nao tem a intengao de enquadrar os autores € seus estudos em blocos monoliticos ou homogéneos. Devemos esclarecer que é sumamente arriscado e complicado fazer um balango historiografico dessanatureza, nao somente pela impressio- nante quantidade de trabalhos disponiveis, como também por sua quali- dade e complexidade tedrico-metodologica. Dessa forma, é evidente que deixaremos de lado ou mencionaremos de maneira breve a grande maio- 164 Histéria, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 tia dos estudos escritos sobre o tema ao longo do século XX. O nosso objetivo primordial é oferecer ao ptblico brasileiro uma perspectiva his- torica e geral sobre a condig&o atual da historiografia da Revolugéo Mexicana, motivo pelo qual tivemos que estabelecer alguns critérios para selecionar as obras mencionadas neste artigo, Além de limitarmo- nos as publicagdes mais significativas e/ou recentes que se centraram. na analise das questées fundamentais da Revolugao — causas, principais protagonistas, caracterizagéo e conseqtiéncias —, pareceu-nos impor- tante dar a conhecer referéncias bibliograficas que nado encontramos nos acervos brasileiros. Também citaremos alguns artigos e livros coletivos orientados a discussdo e revisdo dos postulados e do legado dos anos 1910-1917 para a sociedade mexicana. Infelizmente, néo foi possivel aprofundarmos em um grupo imenso de andlises sobre alguns persona- gens revolucionarios, como o livro classico de John Womack (1994) sobre 0 zapatismo e€ 0 ultimo de Friedrich Katz (1998) acerca de Francisco Villa. Em todo caso, sempre que for necessario e possivel, faremos men- des bibliograficas as quais 0 leitor interessado poderé recorrer para apro- fundar aspectos precisos acerca da temética geral tratada neste ensaio. Apesar das dificuldades que os pesquisadores de historia da Amé- rica enfrentam no Brasil, devemos mencionar a existéncia de um con- junto importante de obras e autores dedicados ao estudo da Revolugéo Mexicana no nosso pais. Entre os quais destacamos Ana Maria Martinez Correa (1983), Werner Altmann (1992), Héctor Alimonda (1986) e Marco Antonio Villa (1984, 1992,1993). Em contrapartida, no campo editorial, algumas tradug6es recentes, como a do livro de Héctor Aguilar Camin e Lorenzo Meyer, A sombra da revolugao mexicana, ampliaram as possibili- dades de divulgagao de obras pouco conhecidas entre o publico brasilei- ro. Essa produgao editorial tem sido acompanhada de uma ampla dis- cussfo no meio académico nacional por meio de teses de mestrado e doutorado, além da publicagdo constante de artigos em revistas especia- lizadas. Finalmente, devemos reconhecer que é praticamente impossivel dissociar a imagem ou a historiografia da Revolucgao Mexicana da evolu- ao do partido que se transformaria no seu principal porta-voz, o Partido Revolucionario Institucional - originalmente Partido Nacional Revolucio- nario, fundado em 1929 pela ctiipula do governo do presidente Plutarco Elias Calles —- que, como o proprio nome revela, proclamou-se como o resultado “institucional” e legitimo dos conflitos de 1910-1917. De ma- neira relativamente constante, podemos seguir a tendéncia e a orienta- ao geral dos trabalhos sobre a Revolugo a partir do curso desse partido na histéria do México contemporéneo. ‘Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 166 Primeiras andlises. A revolugéo.como triunfo e redengaio Apesar das divergéncias sobre as causas, o significado e os resulta- dos da Revolu¢éo Mexicana, existe um consenso acerca de que, em vés- peras de 1910, o México era um pais basicamente agrario. O desenvolvi- mento econédmico do pais nas duas tltimas décadas do século XIX aprofundou as divisdes sociais e transformou os camponeses, de algu- mas zonas do campo mexicano, num “proletariado” rural. A politica econdmica porfiriana néo somente havia intensificado 0 processo de concentracdo da propriedade, com diferencas regionais bastante marca- das, como também havia promovido meios legais para atacar os peque- nos proprietarios, camponeses e comunidades indigenas que foram, paulatinamente, despojados de suas terras. Essa situagdo fez que mui- tos historiadores afirmassem que em 1910 a sociedade mexicana se en- contrava dividida entre uma enorme massa de campesinos desposeidos e€ um grupo pequeno de latifundiarios. Assim, aproximadamente até meados da década de 1960, a explicagdo aceita das causas da Revolugao se fundamentava nessa polarizag4o: os camponeses mexicanos levanta- ram-se em 1910 contra essa opresso, para corrigir as injustigas, especial- mente em materia agraria, que a ditadura porfirista havia exacerbado. Outro fendmeno atribuido ao porfiriato foi a centralizagao politica. Depois de anos de desajustes politicos, guerras civis e internacionais — em 1848 quase metade do territério mexicano foi anexada aos Estados Unidos -, o México alcangou certa estabilidade durante os anos em que Porfirio Diaz governou o pais. Essa tranqjiilidade relativa foi possivel em taz&o dos acordos que se estabeleceram entre os investidores nacionais € estrangeiros, sobretudo norte-americanos, e com os grupos locais de poder que haviam dominado a cena politica mexicana, ante a debilidade do Estado central, praticamente desde o final das guetras de indepen- déncia até a expulsdo dos franceses em 1867. Porfirio Diaz foi conside- tado pelos observadores contemporaneos como o responsdvel direto pela “pacificagao" do pais e pela ades&o dos governadores a sua politica de “conciliagéo". Alguns dos agentes da centralizagao politica foram os jefes politicos, funcionarios federais, leais ao presidente e por ele desig- nados, que mantinham o controle sobre quase todos os assuntos politi- co-administrativos dos Estados da repiiblica. A partir desses persona- gens, Diaz néo somente estava atento a todos os acontecimentos das zonas mais remotas da capital do pais, como também os controlava. A eclosao do movimento armado no México em 1910 foi, em grande me- 166 Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 dida, resultado da combinag&o destes dois fatores: centralizagao poli- tica e pressées econémicas. Os trabalhos aqui analisados péem maior énfase num ou noutro aspecto para conformar o panorama das causas “explicativas" da Revolugdo Mexicana. Esse posicionamento oferece uma linha analitica que podemos seguir para conhecer as pautas historiografi- cas dos autores e das propostas teéricas defendidas em suas pesquisas. Os primeiros escritos sobre a Revolugaéo Mexicana tém em comum, além da perspectiva eminentemente agrarista e popular, uma busca das causas da Revolugao no passado remoto. De acordo com a tendéncia geral desses estudos, as divergéncias sociais que eclodiram em 1910 tinham um inicio preciso: 0 modelo econémico implementado pelos espanhdis que fomentou a divisdo da sociedade mexicana entre grandes latifundidrios, pueblos ou comunidades indigenas e camponeses sem- terras. Ao longo do periodo colonial e até mesmo depois da independén- cia, essas desigualdades foram acentuadas; 0 porfiriato, nesse caso, re- presentou o ponto de culminagaéo desse “projeto econémico”, que aperfeigoou o Jatifundismo - modo de propriedade que prevaleceu até 1917 -, pois 0 sistema e seus representantes conseguiram combinar desenvolvimento econédmico com a instauragao de leis para atacar “legalmente" as tieas comunales de los pueblos e a pequena e média propriedades. Assim, o levantamento iniciado em 1910 teve a grande tarefa de mudar nfo somente as condigées sociais imediatas de que padecia grande parte da populacéo mexicana, mas todo um legado de explorag&o, proveniente do século XVI. Um terceiro elemento comparti- lhado por esses escritores diz respeito aos principais “atores revolucio- narios”. A Revolug&o descrita por essa “primeira geragéo” de historiado- res € um movimento dos grupos e lideres vencedores. Embora concordassem em que houve uma patticipagao geral da sociedade mexicana nos levantamentos e que os principais sujeitos revoluciond- rios foram os camponeses motivados pela luta contra a exploragao rural e pela reforma agraria, pouco espago foi concedido aos projetos que néo vingaram; a narrativa desses autores concentra atencao naqueles perso- magens que conformaram a “sintese revoluciondria nacional’, como Venustiano Carranza , ou nos governantes pés-revolucionarios. Com algumas divergéncias, os trabalhos de Jests Silva Herzog e Frank Tannenbaum compartilham essas caracteristicas, Segundo Her- zog (1969, p.7), “a causa fundamental desse grande movimento social, que transformou a organizagaéo do pais em todos ou quase todos seus variados aspectos, foi a existéncia de enormes haciendas em poder de umas quantas pessoas de mentalidade conservadora ou reacionéria...”. Histéria, Sao Paulo, 20; 163-198, 2001 167 Nessa linha de argumentagao Tannenbaum insiste em dois fatores: de um lado, na contradi¢éo existente entre os niveis de “modernizacéo” econdmica que 0 México atingiu durante o porfiriato e as condigées de sobrevivéncia da grande maioria da populagéo mexicana, e, de outro, nas conseqtiéncias da destruigao da organizagao dos pueblos, ocasio- nada pelo processo de alienagao de grandes partes do territério nacional nas m4os de proprietarios estrangeiros, especialmente dos norte-ameri- canos. Esses elementos, no seu entender, constituiram o pano de fundo dos conflitos de 1910. As apreciagées desses dois autores, com respeito as causas fundamentais da Revolug4o, estao intimamente relacionadas com uma visdo extremamente critica acerca das relagdes de produgao e da debilidade econémica do sistema agricola mexicano. Herzog (1969, p.25) afirma que um dos problemas fundamentais do campo mexicano era a auséncia do fazendeiro: “o hacendado mexicano do final do século passado e principio do XX nao era efetivamente agricultor, nao era homem do campo, mas sim sefiorito da cidade”. A definigéo também é empregada por Tannenbaum (1929, p.130 ss.), que descreve a hacienda como um latiftindio auto-suficiente com carater de centro politico mili- tar, porque se regia por meio de “leis internas" praticamente indepen- dente do resto do pais: “Devemos concluir que o sistema de hacienda era uma estrutura politica feudal que nao contribuiu materialmente para o desenvolvimento econdmico do México".3 Assim, juntos, 0 hacendismo, ou seja, 0 Jatifundismo, 0 absenteismo eas tiendas de raya foram as trés causas principais do mal-estar no cam- po mexicano.’ A posigdo de Herzog com relacao a Revolugéo 6 claramen- te agraria e popular, pois, na sua opinido, os mestigos e indigenas explo- rados do campo mexicano foram os sujeitos da luta contra a hacienda, a sacristia e o quartel. Nesse sentido, esse autor aproxima-se de alguns historiadores contemporéneos quando questiona a introdugo acelerada do capitalismo em uma estrutura “atrasada”. Como veremos, John Hart caracteriza a Revolugdéo como uma reac4o 4 quebra de uma economia de cunho nacional e tradicional contra a introdugao do capitalismo inter- 3 Tannenbaum foi um intelectual que deu suporte 4 campanha de Roosevelt. Quatro anos ands escrever esse livro, redige outro onde projeta a Revolugo Mexicana para o futuro, nesse devir ima- ginava um desenvolvimento industrial urbano tendo por base ume forte produgao agricola respal- dada fundamentalmente nas pequenas e médias comunidades rurais, os efidas. Esse seria 0 caminho do desenvolvimento mexicano, paralelamente a melhorias sociais para os trabalhadores da cidade e do campo (Tannenbaum, 1968). 4 As tiendas de raya eram lojas ou armazéns das haciendas que mantinham 0 trabalhador vinculado 0 grande proprietério pela obrigagao da compra dos mantimentos necessérios 4 sua eubsisténcia por um prego supervalorizado, acarretando uma divida praticamente eterna, 168 Hist6ria, $40 Paulo, 20: 163-198, 2001 nacional. Cabe até mesmo notar um trago comum a respeito da perspec- tiva de longa durag&o, quando aquele autor lembra que a estrutura me- xicana da propriedade provém de mais de quatrocentos anos, ou talvez até de antes do periodo espanhol. Veja essa proxima passagem de Tan- nenbaum (1929, p.142-3) Esse feudalismo industrial, deve ser lembrado, era muito complexo. Era uma estrutura politico e social que tinha sido construida pela forga, conquista e imposig&o. Era uma estrutura social, que tinha por base o que sobrou de uma populagéo india que nunca tormou-se completamente “europeizada”, que conservou, apesar dos 400 anos de dominagao branca, o essencial da raga e organizacao social dos dias pré-hispanicos. Para Herzog, a primeira parte da Revolugéo, comandada por Fran- cisco I. Madero, surge de um movimento de carater eminentemente po- litico: “Outra vez se observa claramente que a Don Francisco I. Madero importavam sobretudo os problemas politicos, ocupando um lugar se- cundério em seu quadro de idéias e principios os de carater econémico e social”. Enquanto a adesao popular se da com objetivos bem definidos — a resolugdo do problema agrario, como se nota de maneira patente no caso de Zapata: “A nosso entender, o caso de Zapata e seus companhei- tos é bem claro. Ele e os seus se langaram rapidamente 4 Revolugao, nao porque lhes houvessem eletrizado as palavras magicas de sufragio efe- tivo e nao reeleigao ... mas porque acreditavam nas promessas agrarias do pardgrafo...”, terceiro do Plan de San Luis Potosi redigido por Madero e seguidores. Na concepgao desse autor, apesar de Madero falhar por ndo ter resolvido o principal problema econémico-social do Mexico, ou seja, a questao agraria, a partir do momento em que se realiza uma nova coalizéo liderada por Venustiano Carranza - que aglutina os setores mais populares em pugna contra o general Victoriano Huerta, em 1913 -, inicia-se, propriamente dita, a fase da luta de classes dentro da Revolu- go Mexicana (Herzog, 1969, p.153). Essa luta é bem definida quando ele estabelece a composigao das facg6es sociais em disputa: do lado de Huerta estavam os banqueiros, os grandes industriais e comerciantes, 0 exército federal, os hacendados @ o alto clero. Carranza e os chefes que o secundaram foram apoiados pelos intelectuais, pelos trabalhadores das minas, das oficinas, das fa- bricas, ¢ sobretudo pelos camponeses. Dessa forma, apenas 0 programa carranzista foi capaz de plasmar um projeto nacional e aglutinar os dife- rentes grupos armados. Segundo esse autor, tanto os revolucionarios do Norte, liderados por Francisco Villa, como os do Sul, encabegados por Hist6ria, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 169 Emiliano Zapata, néo tinham um projeto nacional de governo. No caso do lider nortenho, era considerado despreparado intelectualmente para assumir a lideranga do pais, pois carecia de um programa ideoldgico. A respeito do movimento zapatista, Herzog ressalta duas caracteristicas: de um lado, considera que o Plan de Ayala se referia basicamente aos problemas agrarios e, de outro, enfatiza 0 fato de que o grupo liderado por Zapata estava restrito militarmente a uma pequena regiao geogra- fica do pafs, o Estado de Morelos, o que tornava a sua posigdo muito fra- gil em face de suas pretensées politicas. No entanto, apesar dessa debi- lidade politico-militar, Herzog reconhece a forga ideolgica do projeto agrario zapatista e sua importancia no contexto revolucionario, sobre- tudo porque parte dessas propostas foi incorporada nos planos carran- zistas de governo. A periodizacao do livro de Herzog baliza a Revolugéo Mexicana entre 1910 e 1917. Sua explicagdo sobre as raizes dos problemas agrarios mexicanos fica restrita ao primeiro capitulo do livro, no qual analisa o periodo compreendido entre a conquista no século XVI até o inicio do XX. Essa divisdo esclarece sua posi¢éo quanto ao final da Revolugdo. Herzog identifica 1917 — a data da promulgagdo da Constituigéo pés-re- volucionéria - como 0 momento conclusivo do movimento armado e, portanto, como 0 evento fundador do novo Estado revolucionario. A se- * melhanga de Herzog, Frank Tannenbaum concebe 1917 como uma oca- siao-chave de consolidagao das principais demandas revolucionérias, e, apesar de este Ultimo autor estender sua andlise até os anos 30, seu ob- jetivo 6 ressaltar o significado do projeto de Estado carranzista e as re- formas institucionais promovidas por essa facgao a partir de 1915. Tannenbaum divide a Revolugao em dois momentos. A primeira fase vai de 1910 a 1920, considerada como o periodo de eclosdo da revo- lugao popular contra a tirania militar e a “aristocracia feudal”. O autor compreende que na fase inicial da Revolucdo surgiram diversos movi- mentos armados que careciam de um programa ideolégico definido, po- rém paulatinamente vao incorporando demandas sociais, tais como a resolugéo do problema agrario e a promulgagao de novas leis trabalhis- tas para os grupos urbanos. A segunda fase compreende os anos 1920 a 1928, quando a Revolucdo se restringe a uma seqiiéncia de rebelides militares contra as conquistas sociais, ou seja, as leis agrarias e traba- Ihistas instituidas pela Constituigao de 1917. O autor entende que um le- vantamento armado que surgiu de maneira turbulenta, sem planos ou formulacées ideologicas, resultou numa revolug&o democratico-burgue- sa que incorporou algumas demandas populares. Na visdo de Tannen- baum, a Revolucéo representou uma espécie de “ponte” entre um regime 170 Histéria, S40 Paulo, 20; 163-198, 2001 “aristocratico-feudal” para outro “democratico-burgués”, que se crista- lizou com a promulgag4o da Constituigao de 1917 e a resolugao do prin- cipal problema mexicano, a questao agraria, plasmado no artigo 27. De acordo com os dados fornecidos por Tannenbaum, no inicio do século XX, o México era um pais predominantemente rural, tendo quase 74% da sua populagdo morando no campo, dos quais cerca de 80% resi- diam em lugares com menos de quatro mil individuos, na sua grande maioria mesticos e indigenas. Em 1910, uma alta porcentagem dessa populagéo rural estava classificada como peones acasillados (residiam numa hacienda) e vecinos de los pueblos (free villages). O industrialismo incipiente do porfiriato trouxe consigo um rapido incremento do custo de vida sem uma correspondéncia no aumento dos salarios. Existe uma relagdo ldgica entre o rapido crescimento industrial e o inicio da Revolu- gdo em 1910. O isolamento do pais do resto do mundo até meados do século XIX fez que nao sofresse influéncia direta do que acontecia em outros paises. Essa autonomia relativa foi quebrada com o desenvolvi- mento da politica econémica de Porfirio Diaz, cujos resultados mais sig- nificativos foram: a introdugao das estradas de ferro, o desenvolvimento de uma classe operaria relativamente independente, o crescimento das cidades, a expansao do mercado e 0 incremento do custo de vida, além de atrelar definitivamente a economia mexicana a norte-americana. No plano politico, temos uma forte centralizagao disfargada por um governo democratico encobrindo um controle de um pequeno grupo social sobre o pais. Socialmente ocorre uma politica de discriminagao racial que fa- vorecia 0 branco contra os indigenas, considerados “parias em sua pré- pria terra", Essa “modernizagéo", segundo o autor, politica, econdmica e social, propiciou conseqiiéncias que seus idealizadores nao previam, assim a violenta destruigao das propriedades comunais, a alienacéo de extensos territérios a estrangeiros, o surgimento de um movimento ope- rario com novos ideais e as disputas internas ao grupo dominante cria- ram uma complicada teia politica que fomentou o surgimento da Revo- jucdo Mexicana (Tannenbaum, 1929, p.26-7, 144-54). Os principais protagonistas revoluciondrios sao descritos de forma muito sumaria por Tannenbaum. Madero é considerado um rico proprie- tario sonhador que ficou entre duas opgées: de um lado, o velho regime representado pelo general Bernardo Reyes, por Pascual Orozco e Felix Diaz, que simbolizavam o conservadorismo e a manutengao da antiga politica porfirista; e, de outro, a rebeliéo zapatista. Apesar de Tannen- baum considerar Zapata como um dos principais lideres da Revolugao, tessalta 0 fato de que sua “obsessdo” pela devolugao das terras levou o Estado de Morelos a ruina. A importancia de Zapata residiria no fato de Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 171 que © movimento por ele liderado tornou-se sinénimo de agrarismo e de sua imagem ter influenciado o indigenismo, um dos pilares da ideologia gerada durante a Revolugao. Carranza é descrito como um personagem secundario, apoiado por Obregén, que concretizou uma alianga com os trabalhadores urbanos, formando os Batalhdes Vermelhos, que ajuda- ram a derrotar 0 antigo aliado Pancho Villa.® Este Ultimo 6 visto como um bandido com extraordinéria energia militar e o suporte do governo dos Estados Unidos. Tannenbaum considera que Carranza, o chefe da Tevolugao constitucionalista, nao tinha uma proposta agraria durante grande parte da luta armada, vindo apenas posteriormente incorporar leis que captaram a atengao dos combatentes oriundos das facgdes agrarias. Por esse motivo, apenas com a chegada de Obregén e posterior- mente com Plutarco Elias Calles, a Constituicdo de 1917 foi efetivamente colocada em pratica e a estabilidade politica alcangada. Cabe uma Ultima observacao, que marca essa obra, considerada classica, pois os pontos de vista de seu autor ainda sao atuais e retoma- dos pela historiografia contemporanea sobre os anos 1910-1917 no México. Tannenbaum (1929, p.393-4) ressalta a complexidade da Revo- lugéo Mexicana no cenario intemacional. A revolugao mexicana continua. Seu futuro e influéncias poderao ser tdo variados e importantes como outras que jé aconteceram, Olhando de fora, a revolugao mexicana é mais uma das séries de convulsées nacionais que aconteceram desde 1910. Pode ser vista como uma parte de uma série de fendmenos gerais, os quais incluem as revolugées turca, chinesa e russa, assim como as amplas mudangas nacionais resultado da Grande Guerra. Olhando mais restritamente do ponto de vista do continente americano, a revolug4o mexicana representa uma nova nota na politica latino-americana, nova ndo somente nas idéias geradas pelas politicas formuladas, mas na composi¢ao racial e econémica dos grupos que participam do governo. O México 6 o primeiro pais da América Latina no qual a massa da populagao abaixo da linha da pobreza alcangou o acesso ao dominio do politico além do aspecto figurativo. Olhando internamente, a revolugdo mexicana signifi cou uma tentativa de deter o imperialismo estrangeiro, destruir a autocracia militar, ressuscitar aos indigenas, e diminuir a distancia entre 0 feudalismo e a democracia. 5 Os Batalhdes Vermelhos surgem apés a assinatura do pecto de Venustiano Carranza com a Casa del Obrero Mundial (central sindical mexicana). Realizado por iniciativa do general Alvaro Obregon ‘om fevereito de 1916, so organizados seis batelhdes formados com operdrios em trova de leis tra- balhistas e uma maior toleréncia para com as greves. 172 Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 A obra de Eyler Simpson, The Ejido Mexico's Way Out, néo 6 um es- tudo especifico sobre a Revolugdo Mexicana. O objetivo central do autor é apresentar uma caracterizagdo sobre um dos principais resultados de 1910: a propriedade ejidal. Nesse sentido, apesar de Simpson comparti- Ihar determinados pontos de vista a respeito da Revolugéo com seus contemporaneos, 6 necessario ressaltar algumas discrepancias, princi- palmente porque seu interlocutor direto 6 Tannenbaum. A demanda pela terra e a posterior implementa¢ao do sistema ejidal foram, de acor- do com Simpson, os aspectos que fundamentaram e deram um sentido a Revolugao e aos camponeses sem objetivos ideoldgicos claros, que se levantaram em distintas partes do México a partir de 1910, Na concep- Gao desse autor, 0 ejido representou um dos poucos resultados verdadei- ramente revolucionarios das lutas de 1910 e 1917. Tal como Herzog e Tannenbaum, Simpson (1937, p.43 ss.) considera o elemento agrério como uma das causas fundamentais da Revolucao e agrega outros fato- res: a influéncia dos emigrantes mexicanos que haviam estado nos Es- tados Unidos e experimentado niveis de vida diferentes, a ampliagéo do mercado de trabalho que acabou por propiciar salarios mais altos e abrir novas possibilidades para os peones acasillados, 0 aumento do custo de vida nos primeiros anos do século XX, entre outros fatores, mas discorda dos autores que véem na reforma agraria e no sistema ejidal uma linha de continuidade do “coletivismo” mexicano legado do periodo anterior 4 conquista, De fato esse autor 6 bastante critico com respeito a eficacia do sis- tema ejidal como provedor de produtos agricolas para o mercado interno mexicano. De certa forma, Simpson ja comegava a desenhar, contradi- zendo seus contemporaneos, uma critica 4 Revolugéo como redentora de todos os males da sociedade mexicana. Apesar de a sua tese funda- mental tender a confirmar que 0 ejido representava o melhor caminho para o desenvolvimento econémico mexicano, na sua perspectiva tam- bém era necessario fazer algumas alteragdes para que esse sistema de propriedade fosse capaz de revitalizar a produgaéo agricola e que pudesse ser o principal meio para “socializar” as terras e Aguas nacio- nais. Em suma, Simpson elabora uma série de conselhos que visam manter algumas das principais demandas dos grupos revolucionarios - no ambito da terra — e transformar o ejido num sistema de propriedade “produtivo", congruente com o processo de industrializagéo que se estava desenvolvendo no México na primeira metade do século XX. Outro historiador que compartilha algumas caracteristicas com os autores anteriores, Francois Chevalier, escreve o artigo “Un factor deci- Historia, $40 Paulo, 20: 163-198, 2001 173 sivo de la revolucién agraria de México: el levantamiento de Zapata (1911-1919)", que consideramos um marco dentro da historiografia so- bre a Revolug&o Mexicana. Chevalier, apesar de estar ainda dentro dos parametros do que nés caracterizamos como primeira geragao de histo- riadores sobre a Revolugao, anuncia em seu trabalho uma proposta de pesquisa de uma realidade regional especifica. No caso desse artigo, ele desenvolve uma argumentagao bem-fundamentada ~ até por seus estu- dos precedentes sobre a origem das haciendas no México - sobre a ecloséo da Revolugao no Estado de Morelos, fruto da tensdo constante entre as haciendas e as comunidades indigenas. O levantamento zapa- tista surge, segundo esse autor, como “o ultimo elo de uma larga cadeia que abarca” todo o México e vem de um passado de varias lutas. Apesar de reconhecer que o movimento zapatista tinha todas as caracteristicas de outras rebelides camponesas anteriores, a sublevag&o de Morelos assumiu proporgao de uma revolugao social, enquanto os outros grupos tinham um carater apenas politico. Essa firme posi¢do zapatista forgou as diferentes tendéncias revolucionarias a incorporarem em seus planos clausulas sociais. Com seu trabalho, Chevalier (1960, 1985) elabora uma sintese rigorosa e fecunda, langa novas luzes sobre 0 estudo da Revolu- ¢do e influencia diversos pesquisadores com suas novas propostas metodoldgicas e analiticas de estudo de um grupo particular desse mo- vimento Essa primeira geragdo de historiadores e escritos sobre a Revolugdo Mexicana apresentou as bases dos estudos posteriores que se fizeram sobre o tema. Apesar das criticas que receberam e do fato de algumas teses terem sido questionadas, alguns postulados permanecem vigentes, aos quais ainda se recorre para compreender e conhecer as “primeiras impressdes" sobre a Revolugao. Prova é que alguns contemporaneos re- gressaram aos classicos confirmando a importancia de suas interpretagdes. A revolugado questionada: os revisionistas Asegunda geragao de autores que se dedicou ao estudo da Revolu- cao Mexicana 6 denominada “revisionista", porque esses autores utili- zaram uma nova abordagem metodolégica e foram os primeiros a tradu- zir criticas severas as interpretagdes classicas do tema. Em razdio da heterogeneidade da produgao historiografica desse grupo, subdividimos este item em duas partes. Num primeiro momento, dedicamo-nos aos 174 Hist6ria, SAo Paulo, 20: 163-198, 2001 escritos de carater tedrico que questionaram a base fundamental dos precedentes, negando o titulo de “revolugdo" para os acontecimentos registrados entre 1910 e 1917 no México. Como veremos, alguns desses autores estabelecem esse postulado a partir da convicgao de que os li- deres e as facgdes revolucionarias mais radicais foram derrotados pre- maturamente e de que a sintese revolucionaria de 1917 refletiu tao-so- mente os interesses dos grupos mais conservadores; por esse motivo, propdéem um regresso analitico aos projetos vencidos. Num segundo momento, analisaremos os trabalhos dos historiadores que propuseram, além de uma nova interpretagado da Revolucéo, uma aproximagao meto- dolégica regional ao mosaico de movimentos armados que ocoreram, a partir de 1910, em quase todo o México. O auge dessa ultima tendéncia deveu-se em grande parte a um processo de “descentralizagao” da pes- quisa histérica no México. A partir da década de 1960, fundaram-se novos centros dedicados exclusivamente ao estudo das “historias regio- nais" como a Sociedad Mexicana de Estudios Regionales, processo que coincidiu com o fortalecimento das universidades do interior do pais e que permitiu uma maior e melhor divulgagao das pesquisas que se faziam fora dos grandes niicleos de investigagao, em sua maior parte concentra- dos na cidade do México (Wasserman, 1990; Ronz6n Ledn, 1994, p.16; Fowler-Salamini, 1993). Estudos teéricos e novos personagens Uma das criticas mais contundentes a visdo tradicional da Revolu- Gao Mexicana foi elaborada pelo historiador Ramén Eduardo Ruiz (1980, p.5e 7), cujo livro The Great Rebellion. México, 1905-1924 talvez seja um dos exemplos mais representativos da historiografia revisionista: “con- siderando a definigaéo de Revolugéo como uma catarse repentina, vio- lenta, social e econémica, 0 que faz o levante mexicano de 1910 ser caracterizado como uma Revolugéo?”. O questionamento desse autor acerca das premissas fundamentais de 1910 - tomadas até a década de 1970 como “verdadeiras" e quase universalmente aceitas - é tao sério que, na sua viséo, 0 tinico termo valido 6 “rebeliado". “A Grande Rebe- lido, talvez seria uma descrigéo mais exata do que aconteceu entre 1911 6 Um recurso imprescindtvel para a histéria regional da Revolugo & 0 Diccionario histérico y biogré- fico de la Revolucién Mexicana (1984). Hist6ria, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 175 e 1923, foi tanto um fenédmeno do século XIX como um sinal do futuro” Ainda que os ideais de 1910 no México refletissem principios revolucio- narios, na concepgao desse autor, a continuidade do projeto de socie- dade do porfiriato e, o que é mais contundente, o impulso dado ao sis- tema capitalista esvaziariam o termo de sentido no caso mexicano. Em contrapartida, aquelas figuras que propuseram as transformagées sociais mais radicais, como Emiliano Zapata e Ricardo Flores Magén, foram pra- ticamente eliminadas; dessa forma, afirma Ruiz, pouco do que restou de 1910 foi realmente popular e revolucionario Ainda que Ruiz aceite como causas explicativas da Revolugao aquelas que foram estabelecidas pelos estudos classicos, sua maior dis- crepancia reside na caracterizagdo de alguns revolucionérios e nos “re- sultados" do movimento armado. Na sua opiniao, a classe média - aliada com certas facgdes da elite mexicana — pretendia somente estabelecer mudangas de cunho administrativo, pois Porfirio Diaz havia dificultado sua participagao politica; isso fez que a classe média contivesse o movi- mento dentro de certos limites. A classe operaria — numericamente in- significante ~ nao teve forga suficiente para propor um projeto de socie- dade alternativo. Os camponeses, que compunham a grande maioria da forga de trabalho mexicana, nao constituiam um grupo homogéneo, e suas demandas politicas nao foram além da reivindicacdo pela pequena propriedade. Entretanto, a influéncia econémica e politica dos Estados Unidos — um dos principais sinais do avango do capitalismo no México - néo s6 permaneceu, como cresceu depois de 1920; em suma, houve pouca ou quase nenhuma mudanga social “revolucionaria” no pais depois de 1917. Essa interpretagéo é bastante proxima 4 que Amaldo Cérdova (1992, p.34-7) estabelece no seu livro, La ideologia de la Revolucién Mexicana. Na viséo desse autor, uma das caracteristicas fundamentais do Estado pds-revolucionério foi a incorporacéo tutelada das massas populares num regime de governo “paternalista e autoritario”, que obje- tivava 0 aperfeigoamento do capitalismo. Nesse processo, os sindicatos, assim como o partido oficial, transformaram-se nos veiculos que possi- bilitaram a participagdo popular num projeto de desenvolvimento eco- némico contrario a seus interesses que, em ultima instAncia, se submetia aos interesses do capital internacional. Nessa linha de argumentagao, insere-se 0 livro La revolucién interrumpida, escrito por Adolfo Gilly entre 1966 ¢ 1971, quando esteve na prisdo. Essa publicago ganha sen- tido na trajetéria da participagao politica de Gilly e de duas interpreta- Ges originais para a época: sua periodizacdo que coloca como climax 176 ' Hist6ria, $40 Paulo, 20: 163-198, 2001 da luta de classes a tomada da Cidade do México pelos exércitos popu- lares de Villa e Zapata, em dezembro de 1914, e a afirmacdo de que o zapatismo foi o fator decisivo na evolucéo dos acontecimentos, reto- mando, de uma certa forma, a tese central j4 esbocada por Frangois Chevalier. Gilly (1994, p.348) recupera a participacéo dos camponeses, ressaltando, porém, que a Revolugao foi interrompida por causa da debili- dade do proletariado urbano e da conseqiiente inexisténcia de um partido que fosse capaz de costurar uma alianga operdrio-camponesa, dai sua conclusao de que o Estado surgido da pés-revolugao é “bonapartista”: De aht el cardcter peculiar del bonapartismo de Obregon, cuyo instru- mento politico es el ejército y cuya base social se apoya en las masas a través del control de sus organizaciones sindicales mediante una burocracia ligada al aparato estatal. Reunia rasgos del bonapartismo clasico pos-revolucionario y del bonapartismo sui generis de la burguesia de los paises atrasados. Nessa mesma linha de argumentagao, novos estudos comegaram a buscar as causas das limitadas mudangas sociais no México durante a década de 1920, no fato de que as vozes revolucionarias mais radicais foram caladas prematuramente. Uma das tendéncias mais importantes de um grupo destacado de trabalhos revisionistas se concentrou na “re- cuperagao" de alguns personagens “esquecidos" da Revolugéo Mexi- cana e numa revalorizagéo dos projetos vencidos. O exemplo é absoluta- mente claro para as figuras de Francisco Villa e Emiliano Zapata. Ainda que, no caso deste tltimo, possamos encontrar um consenso e uma certa “simpatia historiografica” com relagaéo ao conteudo eminentemen- te agrarista de suas propostas, Zapata sempre foi, de algum modo, um herdi da Revolugao. No entanto, em relacdo a Villa a situacdo é bastante diferente. Sua figura sempre esteve atrelada a uma série de mitos, con- tos e historias que tornam essa personagem atraente para qualquer pes- quisador. Foi somente a partir da década de 1960 que se comecou a res- gatar o cardier “revolucionério" da Divisién del Norte e seu lider, e o principal responsével foi, sem divida alguma, o historiador Friedrich Katz. Apesar de o livro mais importante desse autor sobre Villa ter sido Publicado somente ha alguns anos, suas propostas gerais acerca do movimento villista e seu lider j4 haviam sido divulgadas em diversas pu- blicagées anteriores. Os trabalhos de Katz (1989, p.95) partem da se- guinte interrogagao: como podia un peén semianalfabeta y un bandido como Pancho Villa conse- guir la organizacién de un ejército de treinta mil hombres, administrar uno de dos estados mds vastos y evolucionados de México, como lo era Chihuahua, y Hist6rla, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 177 obtener paralelamente una enorme popularidad en México y, al menos en los afios 1913-1914, un fuerte respeto en los vecinas Estados Unidos? Durante os ultimos anos do século XIX, os Estados do norte do Mé- xico atravessaram um periodo de desenvolvimento econémico. Em ge- ral, os setores agricola, pecuarista e mineiro apresentaram altos indices de crescimento, abrindo novas perspectivas de trabalho para os habi- tantes da regido. De fato, os salarios oferecidos no norte eram mais altos do que aqueles que se pagavam no centro e sul do México. A diversifi- cagao econémica regional também refletiu-se na composigao social dos villistas: trabalhadores semi-agricolas e semi-industriales que se alterna- vam como pedes de fazenda, colonos, mineiros, vaqueiros e campone- ses, fizeram parte da legendaria Divisién del Norte. Na compreensdo de Katz (1991, p.89-90), a dificuldade em situar o movimento villista no qua- dro de facgdes revolucionérias resulta precisamente da composigéo heterogénea da Division del Norte. De forma que as propostas dessa fac- co refletiram esse mosaico de opiniées adequado as condigées regio- nais. A fragmentagao da grande propriedade néo era a tinica demanda dos seguidores de Villa e nem o motivo pelo qual lutavam, como no caso do movimento zapatista, cujos membros orientaram sua a¢ao politica e militar em nome do Plan de Ayala; em Chihuahua, por exemplo, um dos bastiées do villismo, 0 problema da terra néo se resumia num conflito entre "pueblos e hacendados, mas sim de contradi¢ées muito mais com- plexas” (Katz, 1992, p.280). Outra figura revolucionéria resgatada durante os anos 70 e 80 foi Pascual Orozco, um dos primeiros revolucionarios a declarar franca opo- si¢éo ao “conservadorismo” maderista. Segundo Alan Knight (1996a, v.1, p.337), Orozco liderou “o movimento antimaderista melhor organi- zado, o maior e abertamente politico ...", que ultrapassou os limites do norte do México, Quando Emiliano Zapata proclamou o Plan de Ayala em novembro de 1911, reconheceu como jefe da Revolugao aquele lider. O plano orozquista publicado em margo de 1912 revelava um forte con- teido politico, propunha a autonomia dos municipios e a supressao das jefaturas politicas, Entre as reformas socioeconémicas planejava a re- forma agraria e a redugao da jomada de trabalho (Meyer, 1984, p.71ss.). A busca por novos personagens a partir da década de 1960 é plas- mada noutros dois trabalhos que tém como objeto de andlise a participa- ¢4o e influéncia dos intelectuais na Revolugao. No livro Precursores inte- Jectuales de la revolucion mexicana, James D. Cockcroft (1994) pesquisa a intervengao de seis importantes personagens da Revolugao: Camilo 178 Histéria, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 Arriaga, Juan Sarabia, Librado Rivera, Antonio Diaz Soto y Gama, Fan- cisco I. Madero e Ricardo Flores Magn. Outro trabalho que segue essa mesma tendéncia é 0 livro de Enrique Krauze (1994), Caudillos culturales en Ja revolucién mexicana, resultado de uma tese de doutoramento apresentada no El Colegio de México em 1974, que investiga a geragéo de 1915, também conhecida como “os sete sdbios” - Antonio Castro Leal, Alberto Vasquez del Mercado, Vicente Lombardo Toledano, Teé- filo Olea y Leyva, Alfonso Caso, Manuel Gomez Morin e Jess Moreno Baca ~ e sua posterior relagéo com o Estado pés-revolucionario. Essa tentativa de construir uma biografia politica coletiva, ou melhor, dos grupos intelectuais surgidos durante o periodo armado, tem como fios condutores dois personagens: Vicente Lombardo Toledano e Manuel Gomez Morin. Nesse sentido, entendemos que a historiografia nado é um bloco monolitico e homogéneo, mas se encontra permeada por fios que interli- gam as diferentes andlises e influéncias recfprocas nos diversos movi- mentos histéricos. Durante os anos 60 e 70, talvez o marco politico mais importante que influenciou a forma como se entendia a Revolucdéo Mexi- cana foi o massacre da Praga de Tlatelolco em 1968. A desilusdo com a represséo governamental motivou a busca de uma nova compreensdo do Estado pés-revolucionario e incentivou uma revalorizacao dos proje- tos vencidos.” Estudos regionais O livro de Romana Falcén, uma versao da tese de doutoramento de- fendida no principio da década de 1980 na Universidade de Oxford, é um dos expoentes mais importantes da chamada historiografia “revisionis- ta". Em primeiro lugar, porque rompe com a tradigao de estudos globais publicados até esse periodo e propde uma andlise profunda do curso da Revolugao num Estado do pais que aparentemente nAo foi cendrio des- tacado durante os combates armados. Essa perspectiva metodologica regional permitiu que a autora incorporasse ao seu discurso atores pou- co conhecidos no panorama nacional, tais como os denominados seto- 7 Durante o ano de 1968, uma onda de contestacéo a falta de democracia sacode a capital mexicana. ‘As manifestagdes so organizadas principalmente por estudantes e setores da classe média ¢ ocor- rem entre julho ¢ outubro. No dia dois de outubro, o exército ea policia reprimem com extrema vio- léncia os manifestantes, causando varias mortes, Historia, $40 Paulo, 20: 163-198, 2001 179 tes médios e um grupo de lideres locais que se responsabilizou pela con- tinuidade da Revolugao em suas zonas de atuagao. Em segundo lugar, Falcon estabelece uma aguda critica aos trabalhos “tradicionais" acerca da Revolugdo que a interpretaram como um movimento fundamental- mente agratio, orientado por lideres populares que reivindicavam o fim do sistema porfiriano e a devolugdo de suas propriedades comunais. Segundo a autora, “a revolugao em San Luis Potosi nao foi, ao menos em suas origens, um movimento impulsionado pelo repiidio e pela mobiliza- go generalizada de operarios e camponeses contra a ordem estabele- cida. Pelo contrario, e paradoxalmente, a revolta foi organizada em grande medida pelos beneficiarios do antigo regime" (1984, p.271). A discusséo de fundo da obra diz respeito as conseqliéncias da dis- persdo do poder politico que ocorreu durante a fase inicial da Revolugao Mexicana. De acordo com a autora, quando Porfirio Diaz abandonou o México em 1911, 0 pais foi privado de seu mediador e da “figura central que, na falta de verdadeiras instituicdes, havia conferido unidade e coe- réncia a todos os atores e procedimentos politicos durante décadas” (ibi- dem, p.13). Nesse sentido, a Revolugdo atuou como um movimento que desintegrou a estrutura centralista porfiriana e que permitiu o fortaleci- mento dos lideres locais. Diante da auséncia de um poder central organi- zado, comecaram a brotar liderancas locais armadas que se incorporavam @ Revolugao, néo necessariamente em razdo das “injustigas" cometidas durante o porfiriato, mas com objetivos meramente politicos e pessoais. Nessa linha de argumentacdo, Falcon introduz 0 conceito tedrico que conduz sua anélise durante todo 0 trabalho: 0 caciquismo, que de acordo com sua interpretagao constituiu a base do sistema politico que prevaleceu no México entre 1876 e 1910. Ao final da década de 1870, Porfirio Diaz foi o tinico lider que conseguiu organizar o governo federal, conquistando 0 apoio dos jefes locais e regionais que haviam dominado 0 cenario politico mexicano, ante a debilidade do Estado central, prati- camente desde as guerras de independéncia. No entanto, o desmantela- mento do sistema politico porfiriano, durante a fase inicial da Revolugao, provocou 0 ressurgimento desses chefes locais. Por outro lado, como Francisco Madero nao conseguiu impor sua autoridade, os mecanismos informais de poder fortaleceram-se, dando a esses lideres forga suficiente para manterem-se relativamente afastados dos interesses do exército central ou das facgées revoluciondrias mais importantes, para que pudes- sem lutar por metas pessoais circunscritas aos “interesses” de sua regido, Os seguidores desses lideres — de diferentes grupos sociais ~ incor- poraram-se na luta armada por causa dos vinculos pessoais e dos com- promissos que haviam estabelecido com seus jefes, em troca de recom- 180 Hist6ria, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 pensas materiais ou protecao. Essa “mobilizagao vertical” fragilizou e, em alguns casos, praticamente anulou os levantamentos genuinos de cardter popular que ocorreram noutras partes do México, da mesma for- ma que eliminou a construgdo de um programa agrario, Na auséncia de lideres populares, argumenta Falcén, surgiu outra lideranga que aprovei- tou da Revolugao para conquistar espagos na estrutura politica que a oli- garquia porfiriana havia limitado a um grupo seleto. Essas peculiaridades explicariam o fato de que esses lideres se con- verteram em verdadeiros obstaculos durante o processo de consolida- gao do Estado “revolucionario”, pois durante essa fase eles ja haviam abandonado a luta armada para ocupar postos politicos nos seus Esta- dos, com amplo apoio de seus antigos seguidores. Como membros da estrutura administrativa, esses lideres converteram-se nos intermedia- tios entre o Estado central e sua regiao de origem, aplicando as politicas “revolucionarias" de acordo com seus interesses pessoais. Motivo pelo qual resultaram em forgas centrifugas que debilitavam o governo e que paralelamente fortaleciam os mecanismos informais de poder. Parado- xalmente os novos presidentes, especialmente Lazaro Cardenas, tive- ram que utilizar os mecanismos de coopta¢ao ou eliminagao porfirianos para minimizar a influéncia desses grupos locais de poder. Assim, as metas populares da Revoluc&o Mexicana sé foram implementadas nes- sas zonas a partir do momento em que o Estado alcangou certa estabili- dade, utilizando medidas que subjugavam os interesses dos Estados aos do centro de poder da Republica. Mas, segundo Falcon (1984, p.277), essa reorganizagéo se fundamentou noutros mecanismos; “em vez de uma centralizag&o e controle politico caudilhista e pessoal como o de Diaz, surgiram outros mecanismos de mediacéo mais complexos, eficien- tes, e institucionais ...uma das grandes inovagées da estrutura de poder ctiada pela Revolugao foi, certamente, a incorporagao dentro da cena po- litica, dos trabalhadores organizados, processo que culminou com a for- macao do partido dominante e a criagao posterior de seus setores opera- rio e camponés”. Era, de certa forma; um regresso as metas principais da Constituigéo de 1857 aperfeigoadas por Porfirio Diaz entre 1876 e 1910, mas agora revestidas de novas legitimidades. O livro de Romana Falcén se converteu num “estudo protétipo", ‘tanto para os historiadores que procuraram conhecer as especificidades regionais da Revolugao Mexicana como para aqueles analistas que co- mecavam a questionar os alcances e limites de 1910, e é uma referéncia obrigatéria no debate historiografico atua! sobre o México dos primeiros anos do século XX. Ao lado desse trabalho, também devemos mencionar a obra de Héctor Aguilar Camin (1977) sobre o Estado de Sonora, na qual Historia, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 181 esse autor realiza um estudo detalhado sobre um grupo politico, conhe- cido como “dinastia de Sonora”, que comandou a politica mexicana no perfodo pés-revolucionario e que teve um papel importante na reorgani- zagaéo do Estado nacional. Da produgao estrangeira, sem duivida alguma o livro de Frangois- Xavier Guerra, México. Del antiguo régimen a la revolucin, é um dos mais polémicos. Esse trabalho nao adentra a andlise da Revolugao em si, 0 corte temporal da pesquisa se inicia antes de 1876 e termina em 1911, com um capitulo sobre o levantamento de Madero. No entanto, as idéias centrais propostas sobre o porfiriato fizeram que esse trabalho se tor- nasse imprescindivel para o estudo das causas, em longo prazo, da Re- voluc&o Mexicana. Inspirado pelos trabalhos de Francois Furet sobre a Revolugéo Francesa, assim como pelas propostas de Fernand Braudel acerca da analise de longa duragao, Guerra propde uma aguda critica aos alcances revolucionérios de 1910. O objetivo central do autor 6 com- preender as caracteristicas principais de funcionamento do sistema por- firiano e a “singularidade” do liberalismo que foi adotado no México durante as ultimas décadas do século XIX. Denominado pelos revoluci narios como “ditadura” e pelos contemporaneos como patriarcal, o “re- -gime porfirano” conseguiu subsistir por mais de trinta anos. Para expli- car essa longevidade, Guerra baseia-se fundamentalmente na andlise das relagGes de caciquismo que, de acordo com sua interpretagdo, cons- ‘titufram o pilar estrutural do porfiriato. A metodologia utilizada pelo autor consiste na andlise do perfil de um amplo grupo de politicos vinculados 4 administrac4o porfiriana nas diversas regides do pais. Esse estudo abarca uma minuciosa pesquisa biografica dessas personagens, incluindo: estado de origem, grupo étnico, formagao escolar, profisséo ou grau militar, filiacdo politica e/ou partidaria, aliados, cargos politicos, adeséo ou oposigao aos sucessivos Jevantes precedentes ao porfiriato, entre outros. Com base nesse levan- tamento documental, Guerra (1988, p.21) conclui que um dos pontos de equilfbrio do sistema porfirlano foram os vinculos pessoais: “Pode defi- nir-se este como a formalizagao das relagdes entre os atores visiveis e o funcionamento do sistema politico. Em outras palavras, a relacdo, sem- pre fechada, de um ator com outros atores: parentesco, amizade, inimi- zade, solidariedades sociais, relagdes militares, lagos de clientela etc.” A partir dessa constatagao, esse autor colocou em evidéncia a exis- téncia de um conflito latente no México do século XIX: uma sociedade regida de acordo com principios estritamente liberais, que eram viola- dos permanentemente pela realidade social, “o que percebiamos, pois, era uma divergéncia, um imenso fosso, entre a referéncia tedrica do re- 182 Hist6rla, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 gime — os principios democraticos da Constituigao liberal ... e a realidade de seu funcionamento”, ou seja, eleigdes manipuladas, liberdades limita- das e Estados controlados, Ent&éo, se pergunta Guerra (1988, p.22-4), como Diaz permaneceu na presidéncia por tanto tempo? As respostas esto nas relagdes pessoais de poder, manejadas diretamente a partir do Palacio Presidencial por Porfirio Diaz e na sua interagao com uma socie- dade dividida em “estamentos” que conviviam com a “sociedade mo- derna" de individuos e cidadaos. O porfiriato foi a forma acabada de equilibrio entre esses dois mundos heterogéneos. Equilibrio que possibilitou levar adiante a marcha do “progresso” econémico no final do século XIX junto com o aumento populacional, expans&o das cidades e com o crescimento de um setor médio, compos- to por mineiros, pequenos empresérios, comerciantes, empregados mu- nicipais, entre outros. Mas essa modernizagao também acabou por agu- dizar as tensdes inerentes da sociedade mexicana: as comunidades, “indigenas ou nao", comegaram a sofrer uma pressdo externa que as ameagava de priva-las de suas possessées e do grau de liberdade politica e juridica que possufam; enquanto as elites locais iniciavam um questio- namento do regime, que havia limitado e, algumas vezes, impossibili- tado sua participacdéo em certas insténcias da administracao politica. Paralelamente vao criando-se novos espagos de discussdo politica, como os “clubes liberais", que, segundo Guerra, foram os primeiros micleos da futura oposicao revolucionaria. A Revolugéo, nesse sentido, nao foi resultado exclusivo dos campo- neses sedentos por justiga social, ainda que esse elemento estivesse presente, Guerra introduziu um componente politico-ideologico, a rela- gGo de contradigéo e posterior ruptura do pacto entre dois tipos de ato- Tes, os “antigos” e os “modernos” que, de acordo com 0 autor, mantive- ram-se em relativo equilibrio em razio da mediagao de Porfirio Diaz durante o periodo em que esteve no poder. Nesse aspecto, Francisco Madero foi um representante paradigmatico dessa elite deslocada, que nao questionava 0 liberalismo em si, mas somente reivindicava algumas reformas dentro do proprio sistema. O programa maderista captou preci- samente essas necessidades e, em esséncia, fez um apelo 4 democracia: Aqui es donde se forja el éxito de Madero y el cardcter de concentra- cidn de todas Jas tendencias y medios que tiene el movimiento antirreelec- cionista: desde los catélicos a los antiguos radicales del PLM, desde los estudiantes a los profesores, desde Jos grupos intermedios del “nuevo pue- blo” alos obreros agrupados en las sociedades mutualistas y en los sindiica- tos nacientes... este lenguaje transfiere progresivamente la representacién Hist6ria, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 183 implicita del “pueblo” a Madero, antes de toda eleccién. Hace, por esto mismo, ilegitimo el poder de Diaz, (Guerra, 1988, t.2, p.341). Embora o autor nao estenda a pesquisa durante o perfodo revolucio- nario e da reconstrugao, seu trabalho nos leva a conjeturar que sua con- clus&o acerca da Revolugao seria a seguinte. Os dez anos de guerra civil no México puseram em evidéncia as contradigdes fundamentais que caracterizavam a sociedade mexicana durante a segunda metade do século XIX: por um lado, uma constituigdo estritamente liberal que legis- Java uma sociedade — quase imagindria, ideal ~ de individuos, que asse- gurava as liberdades e os direitos dos cidadaos e que respeitava a inde- pendéncia legislativa e judiciaria dos Estados; por outro, um amplo setor da sociedade que se definia como “indigena”, vivia em comunidades que mantinham “direitos” especificos; nestes e noutros ambitos de poder, 0 manejo cotidiano da politica se fazia por meio de vinculos pessoais, quase corporativos, que afiangavam os valores politicos do antigo regime, A Revolugao, ainda que resultado da “incompatibilidade momentanea” entre esses dois mundos, nao resolveu esses conflitos e nem os governos pés-revolucionérios elaboraram um novo sistema politico ou social, pelo contrdrio, a tarefa primordial destes ultimos concentrou-se na Teconstmgao de um regime que pudesse pér “em marcha uma nova ficgao aceitada” e que voltasse a estabelecer o equilibrio entre esses grupos de poder. A exemplo desses estudos de carater politico, que enfatizam as continuidades sobre as alteragGes nos resultados da Revolugdo Mexica- na, os trabalhos revisionistas de histéria econémica reivindicam uma mu- danga modesta nesse campo. Em geral se afirma que, a longo prazo, a Revolugéo nao reverteu a tendéncia de concentragao da riqueza nas maos de algumas familias ou do capital estrangeiro. As empresas criadas na raiz das politicas de abertura porfirlana sobreviveram aos levantamentos armados, da mesma forma que problemas, tais como a existéncia de um mercado interno limitado e altos custos de produgo industrial, persisti- ram; no entanto, também consideram que o impacto da reforma agraria no setor agricola foi limitado, pelo menos até 1938 durante a presidéncia de Lazaro Cardenas (Henderson, 1995, p.237-42) A revolugdo resgatada soy, sin pudor, conservador o antirrevisionista. Es decir, creo que Tannen- baum y su generacion captaron el cardcter esencial de Ja revolucién de 1910 como movimiento popular y agrario — precursor de la “revolucién” étatiste Posterior al decenio de 1920. (Knight, 1996a, v.1, p.15) 184 Hist6ria, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 Essa epigrafe de Alan Knight resume a tendéncia geral dos tiltimos livros que se escreveram sobre a Revolucgdéo Mexicana - que na sua grande maioria resultaram de uma refinada sintese historiogrdfica e de uma extensa pesquisa nos arquivos mexicanos e estrangeiros —, susten- tados por uma ampla discusséo tedrica sobre o status da Revolugao, numa perspectiva comparada, no contexto mundial. Nesse terceiro gru- po de trabalhos, selecionamos as obras recentemente publicadas que fazem balangos gerais da Revoluco, a partir de uma critica 4s tendén- cias revisionistas que tendiam a minimizar a raiz agrdria e popular dos levantamentos de 1910. Os autores contemporaneos mais destacados dessa nova geragao sao: Alan Knight, John Mason Hart e Hans Werner Tobler. Como na maioria dos trabalhos publicados no final da década de 1980, os livros desses autores comegam com uma exposigéo dos anos precedentes a Revolugao, 0 denominado porfiriato. Esse retorno anali- tico ao periodo 1876-1910 é considerado um recurso metodoldgico imprescindivel para entender as condigées socioeconémicas, nas quais viveram os principais atores que compuseram os exércitos revoluciona- rios, assim como o panorama das diversidades ideoldgicas e regionais desses ultimos. Como 0 objetivo fundamental desses autores é resgatar o carater eminentemente “agrario" e “popular” da Revolugéo, eles esta- belecem, ao longo de seus livros, uma interessante polémica com os his- toriadores “revisionistas” que questionaram essa interpretagao. Hoje em dia é praticamente impossivel separar a historia da Revolu- cdo da andlise do porfiriato, E por causa da acumulagao de uma grande quantidade de trabalhos sobre as condigdes de vida no campo mexicano durante a era Diaz — numa perspectiva local e regional — que se questio- naram “verdades” aceitas sobre os motivos do movimento popular que se iniciou em 1910 nesse pais. Em conjunto, esses estudos mostraram que a vida fora das cidades era muito mais complexa. Sabemos que um numero consideravel de camponeses eram proprietérios de pequenas parcelas de terra, que se empregavam temporariamente nas fazendas, como um mecanismo de protecdo durante os periodos de seca ou con- tragao econédmica; ¢ que, inclusive, aqueles trabalhadores que estavam permanentemente nos grandes latifandios puderam, por meio de recur- sos paternalistas, proteger-se durante um contexto de crise conjuntural. Respaldados nesses trabalhos, alguns analistas comegaram a questio: nat uma das bases fundamentais dos primeiros estudos que se escreve- ram sobre a revolugaéo mexicana: sua raiz agrarista, e com ela certos modelos tedricos que os sustentavam. De que forma a combinag&o de dois fatores, centralizacdo politica e desenvolvimento econémico, que caracterizaram o periodo 1876-1910 ‘Hist6ria, Séo Paulo, 20: 163-198, 2001 185 no México, afetou a classe popular mexicana? Para responder a essa Pergunta, Alan Knight nao despreza esses novos estudos agrarios, mas reafirma que, sobretudo nos primeiros anos do século XX, a pressdéo sobre os grupos populares cresceu, Além do processo de concentragao da propriedade, de um lado, os impostos também penalizavam com mais dureza os setores mais desamparados da sociedade mexicana. De outro lado, as comunidades locais — fossem elas indigenas ou nao - so- friam mais intensamente as conseqiiéncias da “intromissao” do governo central nos seus assuntos politicos, situagao que os impedia, por exem- plo, de eleger seus proprios representantes. Nessa linha de argumenta- do, esse autor constrdi um novo aparato explicativo. Em primeiro lugar, esclarece que a moldura marxista, relativa ao conceito de classe, nao serve como modelo para analisar as causas e os motivos da Revolugao Mexicana ou para explicar a divisao de tendéncias internas das facgdes revolucionarias. Pois, ainda que o México atravessasse um desenvolvi- mento econémico sem precedentes no século XIX, este nao foi suficien- temente revoluciondrio para transformar as Telagdes de producdo. A grande maioria da populacao se dedicava aos trabalhos no campo, e, ainda que em algumas partes do pais a agricultura passasse por um pro- cesso de mecanizagao, a divisdo social do trabalho permaneceu quase intacta. No norte do México, os trabalhadores das minas, que poderiam haver constituido o “potencial proletariado mexicano”, estiveram muito Jonge de sé-lo; varios estudos mostraram ue Os mineiros se empregavam. de forma temporaria nas minas e que dificilmente abandonavam o traba- tho nas fazendas ou nas suas propriedades: “muitos trabalhadores manti- nham seus vinculos com a agricultura de subsisténcia, desse modo, evita- vam depender completamente de um salario e do mercado. Esses trabalhadores formavam parte de uma populagéo flutuante que enfurecia a classe média porfiriana e os administradores norte-americanos das mi- nas” 8 (French, 1990, p.238). Com base nessa constatacdo, Alan Knight (1993, p.62-5) propée uma nova divisao tedrica dos grupos que tiveram Participagdo desta- cada na Revolugao: a rebelido dos “serranos” e a dos “agraristas". A pri- meiza recebe essa denominagéo nao hecessariamente porque seus membros estavam localizados nas regides proximas as serras do Méxi- co, mas porque se encontravam relativamente “independentes” — geo- grafica e politicamente - do centro administrativo de seus Estados e do 8 Sobre o tema da participagao dos mieiros na Revolugdo, ver o excelente debate entre Alan Knight (1983) e Frangois-Xavier Guerra (1981). 186 Hist6ria, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 pais. De acordo com o autor, essas caracteristicas delinearam suas de- mandas durante a Revolugdo, as quais néo se limitaram a defesa da reforma agraria, antes questionaram, sobretudo, a ingeréncia do Estado central nos assuntos politicos de sua comunidade. A segunda categoria abarca os levantamentos daqueles camponeses que haviam perdido suas terras nas maos dos grandes latifundiarios da regido, e que se rebe- laram com 0 objetivo primordial de reverter esse quadro. As manifesta- gdes exemplares dessas duas tendéncias podemos encontré-las, grosso modo, no norte e sul do pais, nas figuras de Francisco Villa nos Estados de Chihuahua e Durango, e de Emiliano Zapata em Morelos. Nessa classificagéo, como se nota, nao estéo incluidos elementos de classe por varios motivos: de um lado, porque, de acordo com Knight, as relagdes entre esses grupos nao se teceram em razéo do espago que eles ocupavam no sistema de produgdo; de fato, entre os serranos, por exemplo, podiam estar camponeses sem terra, rancheros, pequenos proprietarios, aparceros, mineiros, “grupos médios” (professores, milita- res profissionais, estudantes, entre outros). De outro, nem todos os agra- tistas ou seguidores do zapatismo eram modelos perfeitos do camponés “despojado”, alguns eram pequenos proprietérios, como o seu préprio lider. Com base nessas reflexdes, esse autor explica a filiacdo ideolégica desses setores aos exércitos revolucionarios, por meio dos postulados tedricos do fenémeno do caudilhismo. Alan Knight identifica quatro programas ideoldgicos que estiveram em disputa desde 0 principio da Revolugdo até a construgao do Estado pés-revolucionério: 0 velho regime sustentado por figuras como Porfirio Diaz e Victoriano Huerta; os civis liberais representados por Francisco Madero; os movimentos populares liderados por Francisco Villa e Emilia- no Zapata; e a sintese nacional na qual se destacaram Venustiano Car- ranza, Alvaro Obregén e Plutarco Elias Calles. Segundo o autor, tanto setranos como agraristas filiaram-se a um ou outro grupo, durante os quase dez anos que duraram os combates armados da Revolugéo Mexi- cana, e esse apoio se definiu muito mais por fidelidades pessoais ou vin- culos de autoridade tradicional-carismatica entre os membros dos exér- citos e seus lideres do que pelo programa politico destes ultimos. A excecdo que merece um destaque especial na andlise de Knight 6 0 za- patismo, eminentemente agrario e com um programa de acdo previa- mente definido, o Plan de Ayala. Estabelecidas essas referéncias gerais, voltemos a questao central defendida por Alan Knight ao longo de seu livro: a Revolugao foi agraria, e Carranza, por meio de um governo de sintese nacional, foi o unico lider capaz de agrupar diferentes setores da sociedade mexicana, caracteristi- Historia, Sé0 Paulo, 20: 163-198, 2001 187

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