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ES ACEITEI PARTICIPAR DE uma conferéncia do Instituto de Humanida- des da Universidade de Nova York ha um ano, entendendo que eu comentaria artigos que tratavam do papel da diferenga na vida das mulheres americanas: diferengas de raga, sexualidade, classe e idade. A auséncia dessas consideragées enfraquece qualquer debate feminista sobre o pessoal ¢ 0 politico. E uma arrogancia particularmente académica iniciar qualquer discuss4o sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas diferencas, sem uma contribui¢ao significativa de mulheres pobres, de mulheres negras e do Terceiro Mundo, e de lésbicas. E, ainda assim, aqui estou, uma lésbica negra e feminista, convidada a falar na unica mesa-redonda nesta conferéncia em que as quest6es das mulheres negras e lésbicas esto representadas. E lamentavel 0 que isso diz sobre a visao dessa conferéncia, num pais onde o racismo, 0 machismo e a homofobia séo insepardveis. Ler essa programacao é presumir que lésbicas e negras nada tém a dizer sobre 0 existencialismo, 0 erdtico, a cultura eo siléncio das mulheres, sobre o desenvolvimento da teoria feminista ou sobre heterossexualidade e poder. E 0 que isso significa ' Fala na mesa-redonda “The Personal and the Political”, na Second Sex Conference, realizada em Nova York, em 29 de setembro de 1979. 1as e politicos, quando as duas tinicas mul em termos pesso: here regras que se apresentaram aqui foram literalmente encongn gt as de tiltima hora? O que isso significa, quando as ferramentas de um patriarcado racista séo usadas para examinar 0s frutos desse me. mo patriarcado? Significa que hé limites estritos para as mudanesy possiveis e admissiveis. A falta de qualquer consideragio sobre a consciéncia lésbica oy acconsciéncia das mulheres do Terceito Mundo cria uma séria lacung nesta conferéncia e nos artigos apresentados nela. Em um artigo sobre relacdes materiais entre mulheres, por exemplo, ficou claro para mim, um modelo dicotémico de cuidado que despreza completamente 9 meu conhecimento enquanto uma lésbica negra. Nesse artigo nag havia uma andlise do mutualismo entre as mulheres, nenhum sistema de apoio compartilhado, nenhuma interdependéncia como a existente entre as lésbicas e as mulheres-que-se-identificam-com-mulheres, No entanto, ¢ apenas no modelo patriarcal de cuidado que as mulheres “que tentam se emancipar pagam um prego talvez alto demais pelas consequéncias”, como afirma o artigo. Defender a mera tolerancia das diferencas entre mulheres ¢ 0 mais grosseiro dos reformismos. E uma negacio total da fun¢éo criativa da diferenga em nossas vidas. A diferenca nao deve set dialética. $6 entao a necessidade de interdependéncia deixa de set ameacadora. Apenas dentro dessa estrutura de interdependénci# de diferentes forcas, reconhecidas e em pé de igualdade, é que o poder para buscar novas formas de ser no mundo pode ser gerado, assim como a Coragem € 0 sustento para agir onde ainda nao se tem acesso. E na interdependéncia de diferengas miituas (nao dominantes) que se encontra a seguran¢a que nos permite submergir no caos do conhecimento € retornar com as verdadeiras visdes do nosso futu- ro, acompanhadas pelo poder simultaneo de realizar as mudangas capazes de fazer nascer esse futuro. As.di a uma mulher € sua opressao. No entanto, comunidade na 10 deve implicar um descarte de nossas diferengas, nem o faz de conta patético de que essas diferencas nao existem. Aquelas entre nds que estao fora do circulo do que a so- ciedade julga como mulheres aceitaveis; aquelas de nés forjadas nos cadinhos da diferenca — aquelas de nés que sao pobres, que sao lésbicas, que séo negras, que so mais velhas — sabem que a E aprender a estar s6, a ser impopular e as vezes hostilizada, e a unir forgas com outras que também se identifiquem como estando de fora das estruturas vigentes para definir e buscar um mundo em que todas Mulheres pobres ¢ mulheres de cor sabem que existe uma dife- Tenca entre as manifestacoes didrias da escravidao matrimonial e a Ptostituicao, porque sao as nossas filhas que ocupam as calgadas da 137 Em um mundo de possibilidades para todas nés, nossas vise, pessoais ajudam a estabelecer as bases para a aco politica. A inca. pacidade das feministas académicas de reconhecer a diferenca como uma forga crucial é uma incapacidade de ulerapassar a primeira licéo patriarcal. Bm noss6 mundo, dividir ¢ conquistar deve se transformar "Por que nao foram encontradas outras mulheres de cor para participar desta conferéncia? Por que os dois telefonemas feitos para mim foram considerados uma consultoria? Serd que sou a tinica fonte disponivel de nomes de feministas negras? E ainda que o texto da conferencista negra se encerre com uma poderosa ¢ importante arti- culagao de amor entre mulheres, como fica a cooperagao interracial entre feministas que nao se amam? Nos circulos do feminismo académico, a resposta a essas pet guntas com frequéncia é: “Nao sabiamos a quem recorrer”. Entretan- to, esse € 0 mesmo subterftigio, a mesma desculpa esfarrapada que mantém a arte de mulheres negras fora das exposicdes de mulheres, o trabalho de mulheres negras fora da maioria das publicagoes femi- nistas, exceto na ocasional “Edi¢do Especial Mulheres do Terceiro Mundo”, ¢ os textos de mulheres negras fora das suas recomendagoes de leituras. Mas é como Adrienne Rich destacou em uma fala re cente: feministas brancas se educaram a respeito de uma quantidade enorme de coisas nos tiltimos dez. anos, como é possivel nao terem *° educado sobre as mulheres negras ¢ as diferengas entre nds — brancas ® Ruta de Manhattan, Nova York, na regido da Broadway. Foi, durante le" anos, um local de prostituicao e uso de drogas. (N-E.) 138 e negtas — quando isso é fundamental para a nossa sobrevivéncia enquanto moyimento? ‘As mulheres de hoje ainda estao sendo convocadas para se des- rem sobre © abismo da ignordncia masculina e educarem os dobr homens éuma das m: sores para manter senhor. Agora ouvimos que é tarefa das mulheres de cor educar as a respeito da nossa existéncia e das nossas necessidades. Essa ais antigas e primarias ferramentas usadas pelos opres- 0 oprimido ocupado com as responsabilidades do mulheres brancas — diante de uma imensa resisténcia —a respeito de nossa existéncia, nossas diferengas, nossos papéis no que diz respeito 4 nossa sobrevivéncia conjunta. Isso é uma dispersdo de energias € uma tragica repeticao do pensamento patriarcal racista. Simone de Beauvoir uma vez disse: “E do conhecimento das dices auténticas de nossa vida que devemos extrair a forca para con vivermos e as taz6es para agirmos”.? O Racismo ea homofobia sao condigoes reais de todas as nossas vides aqui e agora. Rego a cada wma de nds agus que mergulenagucle Em francés: “Crest dans la connaissance des conditions authentiques de notre vie qu'il nous faut puiser la force de vivre et des raisons dagir”. Trecho do livro The Ethics of Ambiguity, de 1947. (N.E.) 139 Copyright © 1984, 2007 Audre Lorde Publicado mediante acordo com a Lennart Sane Agency AB. Titulo original: Sister Outsider Todos 0s direitos reservados pela Autentica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicacso poder ser reproduzida,seja por meios mecdnicos, eletrOnicos, ea via cOpia xerogratica, sem a autorizacao prévia da Editora, EDTORAS RESPONSAVES ‘CAPA E PRONTO GRABCO Rejane Dias Diogo Droschi Ceclia Martins (capa sobre imagem de Jack Mitchell? ‘COORDENADORAS DA COLECAD. Genty images) Cecilia Martins Ssplicis Rafaela Lamas Waldénia Alvarenga ewsio Bruna Emanuele Fernandes Samira Vilela Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lorde, Audre Irma outsider / Audre Lorde ; traducao Stephanie Borges. -- 1. ed,; 1. reimp. -- Belo Horizonte : Autentica, 2020. Titulo original: Sister Outsider ISBN 978-85-513-0434-1 1, Feminismo 2. Lesbianismo 3. Mulheres afro-americanas 4, Poesia |. Titulo. 18-2047 coD-814 Indices para catélogo sistematico: 1. Ensaios : Literatura norte-americana 814 Maria Alice Ferreira -Bibliotecdria - CRB-8/7964 @ cruro aurentica Belo Horizonte $0 Paulo Rua Carlos Turner, 420 Ay, Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa | Silveira . 31140-520 23° andar . Conj, 2310-2312 . Cerqueira Cés2" Belo Horizonte . MG (0131-940 . Sao Paulo . SP Tel.: (55 31) 3465 4500 Tel.: (55 11) 3034 4468 www.grupoautentica.com.br

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