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JORGEN HABERMAS ESTUDOS ALEMAES Série coordenada por EDUARDO PORTELLA. EMMANUEL CARNEIRO LEAQ. MONIZ SODRE, GUSTAVO BAYER Consciéncia Moral e Agir Comunicativo Ficha catlogrfica elaborad pela Equipe de Pesquisa da ORDECC Habermas, Jorgen Hi14""Conscignsia morale ssi comunicatvourgen Haber mas; traugio de Guido A. de Almeida. — Rio de Janeiro: Tempo Brsilero, 198. P. Biblioteca Tempo Universtrio n. 84. Estudos ‘lems “Tradugio de:Moralbewussisci und kommunikatives Handel t 1. Série sofia? Eistemologia —Ciéncias Soci 1 Titulo pu 6s ISBN 45.242-008-6 tempo brasileiro ‘Ro de Janeiro — RJ — 1989 BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO — 84 ‘Colesio dirgida por EDUARDO PORTELLA Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro ‘Traduzido do original alemiio Moralbewusstsein und Lommunikatives Handeln Copyright © Subskamp Verlag Frankfurt am Main Capa de: AntOnio Dias © Yolanda Espinoso — desenho representando o Deus Hermes. rogramagio Editorial: Katia de Carvalho rogramagio Textual: Daniel Camarinha da Silva Direitos reservados as EDICOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rua Gago Coutinho, 61 — Tel: 205-5949 Caixa Postal 16.099 — CEP 22 221 io de Janeiro — RI — Brasil Nota biobibliogréfica: Jurgen Habermas n 192, lecionou flosofia em Heidelberg de 1961 a 1964 e flosfa ¢sociologia cm Frankfurt-sobre-o-Meno de 1964 @ 1971. De 1971 a 1983 digi em Starnberg 0 Instituto Max Planck para Pesquisa das Condgdes de Vida do Mundo Teeicor CGiemfico. & partir de 1983 voliow a lectonar na Universidade ‘Fohann Wolfang Goethe em Frankf. ‘Publcou ene ouros: Student und Polk (Estdante e Poit- a, em colaboragdo com Ls. Friedeburg. Ch. Ocler eF. Wels) 1961," Stukturwandel der Offentichkeit (Mudanga Exircural da Esfera Publica, 1962; Theose und Praxis (Teoria ¢ Prtica), 1963: Erkennnis und Intereste(Conhecimento Increse) 1968: Tech nik und Wissenschaft als Ideologie (Teenca e Ciencia como Ideo~ logia), 1968; Proesttewepung und Hochschuireorm (Movimento de Protestoe Reforma Universiti), 1969; Zt Logik dx Sor Wwissenschafl (Para a Ligice da Ciencia Social), 197, edigdo ame Plada 1982: Theorie der Gesellachat oder Soialtchnologe — ‘Was lestet die Systemforschung (Teva da Sociedade ou Teenolo- sia Social De que ¢ Capes a Invesigacdo de Sistemas, em con- Junto com Niklas Lukmann), 1971; Palosophisch politische Profile (Perfs police flosefieas, 1971 edigéo ampliada 198: Legtima- tionsprobieme im Spitkapitalismus (Problemas de Legitimagdo no Captalismo Tardo), 1973; Zat Rekonsrution des Historischen Materiaismus (Pare « Reconstusdo do Materilismo Histrico), 1976; (org), Stchworte zur Geistigen Situation der Zeit" (Verbe tes paraa "Simagao Iniclectual da Atalidade’) 1980; Kleine pol- tische Schriften LIV (Pequenos Etertos Police), 1981; Theorie des Kommunitaiven Handelns Teoria do Agir Comunicaivo), 1961; Moralbewussisein und kommunikatives Handein(Conscien. cia Morale Agir Comunicaivo. 1983; Vorstulin und Ergiazun- fn zur Theore des Kommunikatven Handel (Estudos Prelim Mares e Complementos& Teoria do Agir Comunicativo), 1984; Der Pilosophische,Diskurs der Modeme (0 Discurso Plosofico da Modermidade), 1983. Nota Preliminar do Tradutor Na presente tradugio, “Diskurs" foi verido por “Discurso” (com inicial maidscula), enquanto “Rede” foi vertido como "fala" ‘ou *discurso” (com miniscula). “ Diskursv foi tradusido sempre or “discursivo" (com miniscula), uma vez que pode se refer ieja a “Diskure™, seja a""Rede” ‘A opedo de traduzir “‘Diskurs" por “discussao" (como nas Iradugées francesas, que usam "discussion" fol deixada de lado pelas seguintes razées: 1) 0 alemdo também possul “Diskussion” € 4 traducao nao deitaria mais ver quando 0 original usa 0 termo técnica "Diskurs"e quando 0 termo comum Diskussion"; 2) hd uma acepedo de “discurso” que corresponde exatamente, como veremos, a" Diskurs"; 3) seria preciso traducir “‘diskursiv” ora por "discursive" ora’ por "discussional”. Outras altemativas, como 0 recurso a “didlogo’, padecem das mesmas dificuldades. 'Na linguagem comum, “Diskurs"” é um termo antiquado que significa algo como uma conversacio animada ou uma discussao ‘minuciosa ou ainda 05 arrazoados ou explanagdes que um dirige 120 outro. O Sprach-Brockhaus limita-se @ defni-lo genericamente ‘como sindnimo de "Gesprach” (conversa, dilogo). Wahrig é mais especifco ¢ defineo como "lebhafte Erarterung, Unterhaltung”” (explanacdo, conversagao animada) — alls, de maneira quase ldéntica a "Diskussion", que ¢ definida por sua vez como "leb- hajte Erdrterung, Meinungsausiausch” (explanacdo, troca de opi- rides animada). O “Lexikon der deutschen Sprack” (Uilsein) define-o, por sua vez, como 0 mesmo que .‘Erarterung, (wissens- ‘chafiliche | Unterhaltung, Wortwechsel"(explanagéo, conversagdo (cienifica} altercacdo) ¢ dé os seguintes exemplos: “sich langat- ‘mige Diskurse mit ankOren missen” (ter que acompanhar “Dis: lurse” prolizos ou compridos e sie hatten des Ofteren angeregte, lebhafte Diskurse miteinander” fzeram-se muitas vezes “Diskur- se" animados, cheios de vivacidade). Dessas definicées e exemplos resulta que a palavra ‘Diskurs" cexprime wrés aspecios semanticos distintos: 1 0 aspecto intersubjetivo de uma relagdo dialogal e eventwal- ‘mente polémica, que serve para classificar 0 "Diskurs™ como um Caso da conversacdo ou da discusséo, debate ou disputa de opi- 2) 0 aspecto subjetivo da vivacidade ou da animagao com que ‘os arrazoatdor réo feitos pelos partiipantes ¢ acompanhados por 3) 0 aspecto ldgico conceitual (igado a “explanacio") e ar- ‘gumentativo (ligado a “discusséo" ow “debate de opinides”). “Habermas, por sua ver, introduz “Diskurs” como um termo tecnico para referi-se a uma das duas formas de comunicagéo (Kommunikation) ou da “Rede” (discurso, fala) e que consistees- ecificamente na comunicasdo, fala ou discurso destinado @ fun- ‘damentar as pretensdes de vaidade das opinibes € normas em que se baseia impliciamente a outra forma de comunicagéo, fala ou discurso, que chama de “agir comunicativo" ou “interagao" (cf. Vorbereitende Bemerkungen zu enter Theorie der kommunikativen Kompetenz, p. 115 ¢ 117). Habermas retém, pois, para seu termo téenico, apenas 0 aspecto intersubjeivo (que serve para ‘classfcé-lo como uma espécie do género “comunicagéo”) € 0 as- ecto légico-argumentativo (que serve para determiné-lo como 0 aso especifico da fundamentagao de pretensdes de valides pro- blemarizadas) “Discurso” em portugués (como seus correspondentes nas lin ‘was latinas em geral) parece conotar apenas 0 aspecto ldgico- ‘conceituale argumentaivo, sem nenhuma implicacao intersubjeti- va Eo caso.em que "discurso" tem o sentido de um arrazoado ou de uma exposigao metddica sobre um certo assunto (como, Por fexemplo, um discurso sobre o método, sobre as letras e as artes, fete). Esce uso corresponde, alls, a um uso classico na filosofia, fem que “discursivo” se entende por oporigdo a "inuitivo" (e, ‘ndo, individual ou monoldgico) ou seja, no sentido da expressio dde nossos pensamentos em proposigdes ¢ silopismas (cf. a defii- ‘io de “dlscurso” na Logica Menor, de J. Maritain, p. 105, ena ‘Logica de Kant, ed. Jasche, Introducdo ¥). “Em outro sentido muito comum, “discurso” é também usado ‘no sentido de uma peca orator (acepeao I no diciondrio de Auré- lio) ou no sentido linguisico da oragdo ou da fala (acepeéo 3 no ‘Aurdlio, que corresponde, em aleméo, néo a "Diskurs", mas a “Rede” — por exemplo — “os dscursos do chanceler Adenauer” = "die Reden des Kanclers Adenauers", “discurso diretoe indre- “direkte und indirekte Rede”. , porém, em portugués (e, de resto, também em francés, f. a 1#acepeao de "discours” no Petit Robert) uma acepgao bem Conhecida em que “discurso” tem os trés aspectos semanticos ‘mencionados acima, logo o intersubjetivo inclusive, que é 0 que Conta para o uso técnico do termo em Habermas. Esse uso corres- onde a acepgio 6 do Aurélio, que é expicada da seguinte manei- ra: “Fam, Fala longa e fastdiosa, de natureza geralmente moral ante: toda ver que chega tarde, 0 pai faz-Ihe um discurso". Na definigdo, Aurdio destaca apenas 0 aspecto subjetivo e ndo tema taza’ aspect ligico da concatenagdo dos pensamentos (impli, no enianto, nas caracterizagdes “longo” ¢ “'moralizante™). de {ando totalmente de lado 0 aspecto intersubjetivo, que no entanto ‘ressala claramente do exemplo. Mesmo que ndo se trate de uma discussio ou debate de opinides, a intengdo de fundamentar em face de outrem uma opinido — tedrica ou pritica — parece ser ‘onstttivo daguilo que a palavra exprime nessa acepedo. Eis por (que é possivel complerar, agora, a traducao dos exemplos do Le- xtikon alemdo, com toda propriedade, da seguinte mancira: “ter, ‘que acompanhar dscursos prolixos ou comprides”, "fzeramse ‘muitas vezes dscursos animados, cheios de vivacidade ‘Por que enido —o leitor hd de perguntar —ndo detsar de lado as surllezas grafico-semanticas e traduair “Diskurs™ muito sim- plesmente por ““discurso"'? Pela igualmente simples razio que "rdiscurso" tem outras acepedes além daquela que coresponde a “Diskurs". Por iss0, se quisermos usar “discurso” para traduzir ‘Diskurs”serd preciso distinguir a situacdo em que nos referimos ‘20 uso concatenado da linguagem em geral ito 6, “Rede”, "fax a" ow “diserso")e a situagdo em que nos referimos especifica- ‘mente ao discurso organizado argumentativamente ¢ numa inten- ‘o polémica ("Diskurs”, "Discurso". O uso da matiscula serve Drecisamente para isso. ‘A KarlOtto Apel, a0 completar a sexta ‘década de sua vida, em gratido por seis decénios de ensinamentos 1 2 3 4 SUMARIO [A Filosofia como Guardador de Lugar ¢ como Intrprete «17 Ciéncias Socinis Reconsirutvas versus Citnias Socais Compreensivas os... : o 7 Notas Programiticas para a Fundamentagéo de uma Ftica do Discurso st Consciéncia Moral e Agir Comunicativo «2+... 13 {Indice onoméstico : B PREFACIO As trés contribuigdesincludas neste volume devem sua origem 1 diversos ensejos, mas tém uma unidade temitica. 'Na primeira delas, desenvolvo teses em prol de uma diviséo de trabalho entre as investigagGes flosoficas eas investigagées empi- ricas, eses estas inspiradas no exemplo da epistemologia genética dde Jean Piaget. Na segunda, sirvo-me da teoria do desenvolvi ‘mento moral de Lawrence Kohlberg como um modelo para aclarar © entrosamento entre explicagdes causais e reconstrugées hipotéi as. A terceira destnava-se orginariamente ao volume comemora- tivo de Karl-Outo Apel; seu objetivo é ajudar a tormar mais claro 0 onto de partda da ética do Discurso. Finalmente, gostaria que o ‘ensao-titulo fosse entendido como uma expressio da boa vontade ‘em praticar (a partir de um dos lados) a divisio de trabalho propos- ta A dedicatsria explica-se 4 si mesma: entre 0s flésofos vivos, singuém determinou mais duradouramente meus pensamentos do aque Karl-Ono Apel Frankfurt-sobre-o-Meno, em Maio de 1983, 1H. — A FILOSOFIA COMO GUARDADOR DE LUGAR E COMO INTERPRETE* *Conferéncia proferida por ocasiio de um congresso promovide pela Astociagho Hegeliana Internacional, para a comparagio de todos de fundamentagio transcendentas e dialéticos, em Stul- ‘art, Junho de 1981 (Os mestres-pensadores calram em deseréit, Para Hegel isso é erdadehé mato tempo, Popper desmasearouo ta dade do ‘Quarenta como inimigo da sociedade at ‘mesmo vale, uma ‘ver mais, para Marx. Os Uitimos a abjurélo como um flso profeta tna dada dos Setenta foram 08 Novos Filsofos. Hoje, até mesmo ‘Kant vé-se colhido por essa fatalidade. Se vejo as coisas correta- mente, €a primeira ver que ele se vé tatado como mestre-pensa- dor, isto 6, como 0 mago de um paradigma falso, de cujo dominio intelectual temos que nos desvencilhar. E possivel que, aqui, & maioria esteja com o ndmero daqueles para quem Kant ainda ‘Kant, Mas basta langar um olhar por cima do muro para ver que reputagéo de Kant esté ficando mais pélida — e passa, uma vez ‘mais, para Nietzsche. 7 De fato, Kant introduziu um novo modo da fundamentagéo na {losofia. Kant considerou 0 progresso do conhecimento aleangado ra fisica contempordnea como um fato signficativo que deveriain- teressar aos filsofos, nao como uma ocorréncia no mundo, mas ‘como uma confirmacéo das possibilidades do conhecimento huma- rn, A fisica de Newton precisa em primero lugar, ndo de uma ex- plicagio empirice, mas da expliagio no sentido de uma resposta transcendental & questio: como € possivel em geral 0 combeci- mento empirco? Kant chama transcendental a uma investigagao ‘oltada para as condigées a priori da possiblidade da experiéncia, ” Para ce, trats-se ai de comprovar que as condigSes da experiéncia possivel sio Menticas as condigoes de possibilidade dos objetos da Cxperincia. A primeira tarefa consiste, portanto, na analise dos ‘onceitos de objetos em geral, conceitos esses que jé empregamos desde sempre de modo intitvo. Esse género de explicagio tem o fariter de uma econstrusio néo-empirica daquelas operacdes pré- vias de um sujeito cognoscente que no comportam alternativa hnenhuma experiéncia poderia ser pensada como possvel sob ou tras pressupostos. O que esta na base da fundamentagio transcen- ‘ental nao 6, pois, a idsia de uma derivagio a partir de principio, mas antes aida de que podemos nos certficar do carter insubs- tituivel de determinadas operacées intuitivamente executadas desde sempre segundo regras. ‘Ora, Kant calu em deserédito porque, valendo-se das funds rmentagies transcendentas, eriow uma nova diseiplina: a teria do Cconhecimento, Pois, a0 fazer isso, definiu a tarefa, ov melhor a missio da flosofia de uma maneira nova e,aliés, mais exigent. ‘io sobretudo dois o$ aspectos sob os quas essa vocagao do flé- ‘sofo tornou-se duvidosa, 'A divida prende-se imediatamente ao fundamentalism da teo- rin do conhecimento. Quando a flosofia se presume capaz de um ‘conhecimento antes do conecimento, ela abre entre sie as cién- ‘ias um dominio proprio, do qual se vale para passar a exercer fun. {g0es de dominagio. Ao pretender aclaar de uma vez por todas os fundamentos da ciéncia e de uma vez por todas definir os limites do experiencidvel, a filosofia indica is cigncias o seu lugar. Ora, parece que esse papel de indicador de lugar excedeu as suas forgas. ‘Mas isso ni € tudo, A flosofa transcendental ndo se espota na teoria do conhecimento, Com a anlise dos fundamentos do conbe- Cimento, a critica da razio pura assume também a tarefa de riticar ‘abuso de uma faculdade cogritiva que, em nés, est talhada & ‘medida dos fenémenos. Kant coloca no lugar do conceito substan cial de razo da tradigdo metafsica 0 conceito de uma razio que se Gividiu em seus elementos ¢ cija unidade de agora em diante 56 {em carter formal. Com efeito, ele separa do conhecimento te6- rico as faculdades da razio prica e do poder de julgar e assenta ‘cada una delas em fundamentos prdprios. "Ao fazer isso, ee aribui também & flosofia © papel de um juiz supremo perante a culture em seu todo. Ao demarcar os limites, Como Max Weber drs mais tarde, das esferasaxiolépicas culturais 8 dda cigncia eda técnica, do direitoe da moral, da arte e da critica da arte, segundo caracterstcas exclusivamente formais, ¢ 20 legit imivias a0 mesmo tempo dentro de seus limites, filosofia se com ‘porta como suprema instincia juridca no somente em face das igncias, mas perante a cultura em seu todo.” Hii, portanto, uma conexio entre a teoria do conhecimento {fundamentalisia, que confere i flosoia 0 papel de um indicador de lugar para as ciacias, e um sistema de conceitos ahstérico, sis- tema este que € enfiado sobre a cultura como um todo e 20 qual a filosofia deve o papel nio menos duvidoso de um uiz a presidir un tribunal sobre as zonas de soberania da ciéncia, da morale da arte ‘Sem a certfcasdo transcendental-floséfica dos fundamentos. do ‘onhecimento, também ficaria solta no ara iéia de que 0 fil6sof0 poderia decidir quaestiones juris relativamente as pretenses do resto da cultura... Se renunciarmos a idéia de que o flésofo possa cconhecer algo sobre © conhecimento que ninguém mais poderia Jqualmente conhecer isso significa que nio devemos mais partir da suposigdo de que sua vor possa tera pretensio de ter ouvida pelos

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