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O Trabalho do Antrop6logo: Olhar, Ouvir, Escrever Roberto Cardoso de Oliveira Unicamp RESUMO: O Olhar, o Ouvir e 0 Escrever sao destacados pelo autor como constituindo trés momentos especialmente estratégicos do métier do an- trop6logo. Através de exemplos concretos fornecidos pela etnografia, pro- cura-se mostrar como cada um desses momentos pode aumentar a sua efi- cAcia no trabalho antropolégico, desde que sejam devidamente tematizados pelo exercicio da reflexio epistemolégica. Se o Olhar etnografico, tanto quanto o Ouvir, cumpre sua fungio basica na pesquisa empitica, € 0 Escre- ver, particularmente no gabinete, que surge como 0 momento mais fecundo da interpretagao; ¢ € por meio dele — quando se textualiza a realidade socio- cultural — que o pensamento se revela em sua plena criatividade PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretagiio, textualizagiio. Rowerto Carvoso DE OLiveira. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO Introdugéo Pareceu-me, na oportunidade desta conferéncia, que um antropélogo, dirigindo-se a uma platéia de cientistas sociais, poderia falar um pouco so- bre a especificidade de seu métier, particularmente quando, na realizagao de seu trabalho, articula a pesquisa empfrica com a interpretago de seus resultados.' Nesse sentido, o subtitulo escolhido —€ necessério esclarecer —nada tem a ver com 0 recente livro de Claude Lévi-Strauss, Regarder, Ecouter, Lire (Plon, 1993), ainda que nesse titulo eu possa ter me inspi- rado, ao substituir apenas 0 Lire pelo Ecrire, o Ler pelo Escrever. Po- rém, aqui, ao contrdrio dos ensaios de antropologia estética de Lévi-Strauss, trato de questionar algumas daquelas que se poderiam chamar de princi- pais “faculdades do entendimento” sociocultural que, acredito, sejam ine- rentes ao modo de conhecer das ciéncias sociais. Naturalmente que ao falar nesse contexto de faculdades do entendimento, é preciso dizer que nao estou mais do que parafraseando, e com muita liberdade, o significa- do filos6fico da expressao “Faculdades da Alma”, como Leibniz assim en- tendia a percepcao e o pensamento. Pois, sem percepgdo e pensamento, como entéo podemos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de minha disciplina, a Antropologia, quero apenas enfatizar o caréter consti- tutivo do Olhar, do Ouvir e do Escrever na elaboragao do conhecimento proprio das disciplinas sociais, i.e., daquelas que convergem para acla- boragao daquilo que um sociélogo como Anthony Giddens muito apro- priadamente chama de “teoria social” para sintetizar com a associago des- ses dois termos 0 amplo espectro cognitivo que envolve as disciplinas que denominamos Ciéncias Sociais (Giddens, 1984). Rapidamente, porquan- tono espaco de uma conferéncia nao pretendo mais do que fazer aflorar alguns problemas que comumente passam despercebidos nao apenas para ‘0 jovem pesquisador em Ciéncias Sociais, mas algumas vezes também para 0 profissional maduro, quando este nao se debruga para as questdes epis- temol6gicas que condicionam a investigagio empirica tanto quanto a cons- aide REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SAo PauLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. trugao do texto, resultante da pesquisa. Desejo, assim, chamar a atengao para trés maneiras — melhor diria, trés etapas — de apreensdo dos fen6- menos sociais, tematizando-as (0 que significa dizer: questionando-as) como algo merecedor de nossa reflexdo no exercicio da pesquisa e da pro- dugiio de conhecimento. Tentarei mostrar como 0 “Olhar, o Ouvir e 0 Es- crever” podem ser questionados em si mesmos, embora num primeiro momento possam nos parecer tao familiares e, por isso, tao triviais, a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizé-los; todavia, num segundo momento — marcado por nossa insergo nas ciéncias sociais—, essas “fa- culdades” ou, melhor dizendo, esses “atos cognitivos” delas decorrentes, assumem um sentido todo particular, de natureza epist€mica, uma vez que €com tais atos que logramos construir o nosso saber. Assim sendo, pro- curarei indicar que, enquanto no Olhar e no Ouvir “disciplinados” — a sa- ber, disciplinados pela disciplina —se realiza nossa “‘percep¢ao”, sera no Escrever que 0 nosso “‘pensamento” se exercitar4 da forma mais cabal, como produtor de um discurso que seja tao criativo quanto préprio das ciéncias voltadas & construgao da teoria social. O Olhar Talvez a primeira experiéncia do pesquisador de campo (ou no cam- po) esteja na domesticagao tedrica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigagao empirica, 0 objeto sobre o qual dirigimos o nos: alterado pelo préprio modo de visualiz.4-lo. Seja qual for esse objeto, ele nao escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina for- madora de nossa mancira de ver a realidade. Esse esquema conceitual, disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerario académico (dai o termo disciplina para as matérias que estudamos), funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um pro- cesso de refragiio — se me é permitida a imagem. E certo que isso nao é -15- Rorerto Carboso DE OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO exclusivo do Olhar, uma vez que esta presente em todo processo de co- nhecimento, envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que men- cionei, em seu conjunto. Mas é certamente no Olhar que essa refragao pode ser mais bem compreendida. A propria imagem éptica— refragio — chama a atengao para isso. Imaginemos um antrop6logo iniciando uma pesquisa junto a um deter- minado grupo indfgena e entrando numa maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de individuos, sem ainda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa moradia de to amplas proporgées e de estilo tao peculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tiiktina do Alto SolimGes, no Amazonas, teria 0 seu interior imediatamente vasculha- do pelo “Olhar etnografico”, por meio do qual toda a teoria que a discipli- na dispGe relativamente as residéncias indigenas passaria a ser instru- mentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida. Nesse sentido, o interior da maloca nio seria visto com ingenuidade, como uma meracuri- osidade diante do exdtico, porém com um olhar devidamente sensibiliza- do pela teoria disponivel. Tendo por base essa tcoria, o obscrvador bem preparado, enquanto etndlogo, iria olhd-la como um objeto de investiga- ¢do previamente ja construido por ele, pelo menos numa primeira pre- figuragao: passaria, entio, a contar os fogos (pequenas cozinhas primiti- vas), cujos residuos de cinza e carvio indicariam que em torno de cada um deles estiveram reunidos nao apenas individuos, porém “pessoas”, por- tanto “'seres sociais”, membros de um tinico “grupo doméstico”; o que Ihe daria a informagao subsididria que pelo menos nessa maloca, de confor- midade com o niimero de fogos, estaria abrigada uma certa porgdio de gru- pos domésticos, formados por uma ou mais familias elementares e, even- tualmente, de individuos “agregados” (origindrios de um outro grupo tribal). Saberia, igualmente, a totalidade dos moradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos mourdes da maloca dos membros de cada gru- po doméstico. Observaria, também, as caracteristicas arquiteténicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetario so- bre estilos de residéncias, ensinada pela literatura etnolégica existente. - 16- Revista DE ANTROPOLOGIA, SAO Pauto, USP, 1996, v. 39 n° 1 Tomando-se, ainda, os mesmos Tiiktina, mas em sua feig&o moderna, co etndlogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas se diferenciavam radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes que, no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verifica- ria que as amplas malocas, entio dotadas de uma cobertura em forma de semi-arco descendo suas laterais até 0 solo e fechando acasa a todae qualquer entrada de ar (e do olhar externo), salvo por portas removiveis, acham-se agora totalmente remodeladas. A maloca jd se apresenta am- plamente aberta, constituida por uma cobertura de duas dguas, sem pare- des (ou com elas precdrias); €, internamente, impondo-se ao olhar exter- no véem-se redes penduradas nos mourGes, com seus respectivos mosquiteiros — um elemento da cultura material indigena desconhecido antes do contato interétnico e desnecessério para as casas antigas, uma vez que seu fechamento impedia a entrada de qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, para esse etndlogo moderno, ja tendo ao seu alcance uma documentacio historica, a primeira conclusao sera sobre a existéncia de uma mudanga cultural de tal monta que, se de um lado veio a facilitar a construcio das casas indfgenas, uma vez que a antiga residéncia exigia um esforgo muito grande de trabalho, dada a sua complexidade arquitetonica, por outro lado veio afetar as relagées de trabalho (por no ser mais ne- ces: edificagio da maloca), ao mesmo tempo em que tornava o grupo residencial mais vulnerdvel ao: setos, posto que Os mosquiteiros somente poderiam ser titeis nas redes, ficando a familia 4 mercé deles durante todo o dia. Observava-se, assim, literalmente, 0 que 0 saudoso Herbert Baldus chamava de uma espécie de “natureza-morta” da aculturagdo. Como torn: aio pela pene- tragiio na natureza das relagdes sociais’ Retomando o nosso exemplo, verfam la viva, sel s que para se dar conta da natu- reza das relagdes sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial (c delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas de uma mesma aldeia ou “grupo local”), somente o Olhar nao seria sufi Como aleangar apenas pelo Olhar o significado dessas rela -17- Roserto Carboso ve Otiveirs. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual pode- remos ter acesso a um dos sistemas simbélicos mais importantes das soci- edades dgrafas e sem a qual nao nos serd possfvel prosseguir em nossa .ca- minhada? O dominio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-se, entao, indispensavel. Para chegar, entretanto, 4 estrutura dessas relagdes sociais, 0 etndlogo deverd se valer, preliminarmente, de um outro recurso de obtengiio dos dados. Vamos nos deter um pouco no Ouvir. O Ouvir Creio nao ser ocioso mencionar que o exemplo indigena, tomado como ilustragao do Olhar etnogréfico, nao pode ser considerado como sendo incapaz de gerar analogias com outras situagdes de pesquisa, com outros objetos concretos de investigagao. O sociélogo ou 0 politélogo por certo ter&o exemplos tanto ou mais ilustrativos para mostrar 0 quanto a teoria social pré-estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de ob- servagao. Julguei, entretanto, que exemplos bem simples sdo geralmente os mais inteligiveis. E, como a Antropologia é a minha disciplina, continu- arei a me valer dos seus ensinamentos e de minha prépria experiéncia pro- fissional com a esperanga de, assim fazendo, poder proporcionar uma boa nogao dessas etapas, aparentemente corriqueiras da investigagao cientffi- ca. Portanto, se o Olhar possui uma significacdo especifica para um cien- tista social, o Ouvir também 0 tem. Evidentemente tanto o Ouvir quanto 0 Olhar nao podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercicio da investigagio. Ambos se complementam e servem para 0 pesquisador como duas mule- tas (que no nos percamos com essa metéfora tao negativa...) que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimen- to. A metéfora, propositadamente utilizada, permite lembrar que a cami- nhada da pesquisa é sempre dificil, sujeita a muitas quedas... E nesse im- peto de conhecer que o Ouvir, complementando o Olhar, participa das -18- Revista DE ANTROPOLOGIA, SAO PauLg, USP, 1996, v. 39 n° 1. mesmas precondigées deste Ultimo, na medida em que estd preparado para eliminar todos os ruidos que lhe paregam insignificantes, i.e., que nao fa- ¢am nenhum sentido no corpus te6rico de sua disciplina ou para o para- digma no interior do qual o pesquisador foi treinado. Nao quero discutir aqui a questao dos paradigmas; pude fazé-lo em meu livro Sobre o pen- samento antropoldgico (1988b), € nao temos tempo aqui de abordé-la. Bastaria entendermos que as disciplinas e seus paradigmas sao condi- cionantes tanto de nosso Olhar quanto de nosso Ouvir. Imaginemos uma entrevista por meio da qual 0 pesquisador sempre pode obter informagées niio alcangaveis pela estrita observagdo. Sabemos que autores como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observacdo de rituais para estudarmos sistemas religiosos. Para ele, “no empenho de compreender uma religiado devemos primeiro concentrar atengfio mais nos ritos que nas crengas”(Radcliffe-Brown, 1973). O que significa dizer que areligido podia ser mais rigorosamente observavel na conduta ritual por ser ela “o elemento mais estavel e duradouro” se acompararmos com as crengas. Porém isso nao quer dizer que mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia ser inteiramente compreendida. Descrito ritual, por meio do Olhar e do Ouvir (suas misicas e seus cantos), falta- va-lhe a plena compreensao de seu “sentido” para 0 povo que 0 realizava easua “significagao” para o antropdlogo que o observava em toda sua exterioridade.’ Por isso, a obtengio de explicagées, dada pelos préprios membros da comunidade investigada, permitiria se chegar aquilo que os antropdlogos chamam de “modelo nativo”, matéria-prima para o entendi- mento antropoldgico. Tais explicagdes nativas s6 poderiam ser obtidas por meio da “entrevista”, portanto, de um Ouvir todo especial. Mas, para isso, ha de se saber Ouvir. Se aparentemente a entrevista tende a ser encarada como algo sem maiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limitagao lingiiistica —i.e.,0 fraco dominio do idioma nativo pelo etndlogo -, ela torna-se muito mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade esta na diferenga -19- Ronrrto Carnoso pk OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO entre “idiomas culturais”, a saber, entre o mundo do pesquisador e o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar. De resto, hé de se entender o nosso mundo, o do pesquisador, como sendo ocidental, cons- tituido minimamente pela sobreposigao de duas subculturas: a brasileira, no caso de todos nés em particular; e a antropolégica, aquela na qual fo- mos treinados como antropdlogos e/ou cientistas sociais. E € 0 confronto entre esses dois mundos que constitui 0 contexto no qual ocorre a entre- vista. E, portanto, num contexto essencialmente problematico que tem Iu- gar o nosso Ouvir. Como poderemos, entdo, questionar as possibilidades da entrevista nessas condigdes tao delicadas? Penso que esse questionamento comega com a pergunta sobre qual a natureza da relagiio entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que h4 uma longa e arraigada tradigdo na literatura etnolégica sobre a relagao. Se to- marmos a classica obra de Malinowski como referéncia, vemos como essa tradigdo se consolidae, praticamente, trivi se na realizacao da entrevis- ta. No ato de ouvir o “informante”, 0 etndlogo exerce um “poder” extraor- dindrio sobre o mesmo, ainda que ele pretenda se posicionar como sendoo observador mais neutro possivel, como quer 0 objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente as relagGes humanas — que autores como Foucault ja- mais se cansaram de denunciar -, jd na relagdo pesquisador/informante vai desempenhar uma fungiio profundamente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas, feitas em busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz (com ou sem autoritarismo), criam um campo ilus6rio de interago. A rigor, niio ha verdadeira interagdo entre nativo e pesquisador, Porquanto na utilizago daquele como informante 0 etnélogo nao criacon- digdes de efetivo “didlogo”. A relagiio nao é dialégica. Ao passo que, trans- formando esse informanteem “interlocutor”, uma nova modalidade de rela- cionamento pode (e deve) ter lugar.* Essa relagao dialdgica, cujas conseqiiéncias epistemolégicas, todavia, nao cabem aqui desenvolver, guarda pelo menos uma grande superiori- dade sobre os procedimentos tradicionais de entrevista. Faz com que os -20- REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SAO PauLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. horizontes semanticos em confronto — 0 do pesquisador e 0 do nativo — se abram um ao outro, de maneira a transformar um tal “confronto” num verdadeiro “encontro etnografico”. Cria um espago semintico partilhado por ambos os interlocutores, gragas ao qual pode ocorrer aquela “fusiio de horizontes” (como os hermeneutas chamariam esse espago), desde que © pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmen- te ouvido, encetando um didlogo teoricamente de “iguais”, sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu proprio discurso. Mesmo porque acreditar ser possivel a neutralidade ide- alizada pelos defensores da objetividade absoluta é apenas viver numa doce ilusdo... Trocando idéias e informagGes entre si, etndlogo e nativo, ambos igualmente guindados a interlocutores, abrem-se a um didlogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente falando, a antiga relagao pesquisa- dor/informante. O Ouvir ganha em qualidade e altera uma relago, qual estrada de mio tinica, numa outra, de mao dupla, portanto, uma verda- deira interagdo. Tal interagio na realizagio de uma etnografia, envolve, em regra, aquilo que os antropdlogos chamam de “observagao participante”. o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerivel pela sociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitagdo senao ati- ma pelos membros daquela sociedade, pelo menos afiivel, de modo a no impedir a necessdria interagdo. Mas essa observagio participante nem sempre tem sido considerada como geradora de um conhecimento efeti- vo, sendo-Ihe freqiientemente atribuida a fungiio de “geradora de hipdte- ses”, a ser testa las por procedimentos nomoldgicos — estes sim, expli- cativos por exceléncia, capazes de assegurar um conhecimento proposicional e positivo da realidade estudada. No meu entender, ha um certo equivoco nessa redugao da observ participante e a empatia que nela tem lugar, a um mero processo de cons- trugiio de hipsteses. Entendo que tal modalidade de observagao realiza um inegiivel ato cognitivo, desde que a compreensio (Verstelren) que Ihe -21- Roserto Cardoso DE OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO: € subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de “excedente de sentido”, i.e., aquelas significagGes (por conseguinte, dados) que escapam. a quaisquer metodologias de pretensdo nomolégica. Voltarei ao tema da observacdo participante na conclusdo desta exposigao. O Escrever Mas se o Olhar e 0 Ouvir podem ser considerados como os atos cog- nitivos mais preliminares no trabalho de campo (trabalho que os an- tropdlogos se acostumaram a se valer da expressao inglesa fieldwork para denomind-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto na configura- ¢ao final do produto desse trabalho, que a questo do conhecimento se torna tanto ou mais critica. Um livro relativamente recente de Clifford Geertz, Trabalhos e vidas: 0 antropélogo como autor, infelizmente, a0 que eu saiba, ainda nao traduzido para o portugués, oferece importantes pistas para descnvolvermos esse tema.‘ Geertz parte da idéia de separar e,naturalmente, avaliar, duas etapas bem distintas na investigagao empirica: a primeira, que ele procura qualificar como a do antropélogo “estando 1a” (being there), isto é, vivendo a situagiio de estar no campo; e a segunda, que se seguiria Aquela, corresponderia a experiéncia de viver, melhor di- zendo, trabalhar “estando aqui” (being here), a saber, bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convivio com seus colegas e usufruindo tudo 0 que as instituigGes universitarias e de pesquisa podem oferecer. Nesses termos, o Olhar e 0 Ouvir seriam parte da primeira etapa, enquanto o Escrever seria parte inerente da segunda. Devemos entender, assim, por Escrever 0 ato exercitado por excelén- cia no gabinete, cujas caracteristicas o singularizam de forma marcante, sobretudo quando 0 compararmos com o que se escreve no campo, seja ao fazermos nosso difrio, seja nas anotagGes que rabiscamos em nossas cadernetas. E se tomarmos ainda Geertz por referéncia vemos que, na maneira pela qual ele encaminha suas reflexdes, € o Escrever “estando -2% Revista DE ANTROPOLOGIA, SAO PauLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. aqui”, portanto fora da situagiio de campo, que cumpre sua mais alta fun- iio cognitiva. Por qué? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no ga- binete o processo de textualizacao dos fenédmenos socioculturais obser- vados “‘estando 14”. Jé as condigGes de textualizacio, i.e., de trazer os fatos observados (vistos e ouvidos) para o plano do discurso, nao deixam de ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel definitivo tanto no processo de comunicagio interpares (i.e., no seio da comunidade profis- sional), quanto no de conhecimento propriamente dito. Mesmo porque ha uma relagao dialética entre o comunicar e o conhecer, uma vez que am- bos partilham de uma mesma condi¢do: a que é dada pela linguagem. Embora essa linguagem seja importante em si mesma, como tema de re- flexdo, haja vista aquilo que poderiamos chamar de “‘guinada lingiiistica” (ou dinguistics turn), que perpasse atualmente tanto a filosofia como as ciéncia sociais, 0 aspecto que desejo tratar aqui, se bem que de modo muito sucinto, é unicamente o da disciplina e de seu proprio idioma, por meio do qual os que exercitam a antropologia (ou, mesmo, qualquer outra ciéncia social) pensam e se comunicam. Alguém jd escreveu que o homem nao pensa sozinho, num mondlogo solitario, mas o faz socialmente, no interior de uma “comunidade de comunicagiio” e “de argumentagiio” (Apel, 1985). Ele esta, portanto, contido no espago interno de um horizonte socialmente construido (no caso o da sua propria sociedade e/ou de sua comunidade profissional). Desculpando-me pela imprecisao da analogia, diria que ele se pensa no interior de uma “representagiio coletiva”: expresso essa, afi- nal, bem familiar ao cientista social e que, de certo modo, da uma idéia aproximada daquilo que entendo por “idioma” de uma disciplina. Como podemos interpretar isso em conexiio com os exemplos etnografic Diria inicialmente que a textualizagao da cultura, ou de nossas observa- Ges sobre ela, € um empreendimento bastante complexo. Exige que nos despojemos de alguns habitos de escrever, validos para diversos géneros de escrita, mas que para a construgiio de um discurso que esteja discipli- nado por aquilo que se poderia chamar de “(meta)teoria social” nem sem- -23- RoserTo CARDOSO DE OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO pre parecem adequados. E, portanto, um discurso que se funda numa ati- tude toda particular que poderfamos definir como antropolégica ou soci- oldgica. Para Geertz, por exemplo, poder-se-ia entender toda etnografia (ou sociografia, se quiserem) nfo apenas como tecnicamente dificil, uma vez que colocamos vidas alheias em “nossos” textos, mas, sobretudo, por esse trabalho ser “moral, politica e epistemologicamente delicado” (Geertz, 1988b). Embora Geertz niio desenvolva essa afirmagao, como seria de se desejar, sempre podemos fazé-lo a partir de um conjunto de questées. Penso, nesse sentido, na questo da “autonomia” do autor/pesquisador no exercicio de seu métier. Quais as implicagdes dessa autonomia na con- versio dos dados observados (portanto, da vida tribal, para ficarmos com nossos exemplos) no discurso da disciplina? Temos de admitir que mais do que uma tradugio da “cultura nativa” na “cultura antropolégica” (i.¢., no idioma de minha disciplina), 0 que realizamos é uma “interpretagio”” que, por sua vez, esta balizada pelas categorias ou pelos conceitos basi- cos constitutivos da disciplina. Porém, essa autonomia epistémica no est4 de modo algum desvinculada dos dados (quer de sua aparéncia externa, propiciada pelo Olhar, quer de seus significados intimos ou do “modelo nativo”, proporcionados pelo Ouvir). Est4 fundada neles, em relago aos quais tem de prestar contas em algum momento do Escrever. O que sig- nifica dizer que ha de se permitir sempre o controle dos dados pela comu- nidade de pares, i.e., pela comunidade profissional. Portanto, sistema con- ceitual, de um lado, e, de outro, os dados (nunca puros, pois — j4 numa primeira instéincia—construidos pelo observador desde o momento de sua descricao)’ guardam entre si uma relacao dialética. Sao interinfluencidv ‘Sendo que o momento do Escrever, marcado por uma interpretagiio “de’ “no” gabinete, faz com que aqueles dados sofram uma nova “refragio”, uma vez que todo 0 processo de escrever, ou de “inscrever”, as observa- es no discurso da disciplina esta contaminado pelo contexto do being here, a saber, pelas conversas de corredor ou de restaurante, pelos de- bates realizados em congressos, pela atividade docente, pela pesquisa de -24- Revista DE ANTROPOLOGIA, SAo PAULO, USP, 1996, v. 39 n° 1. biblioteca ou library fieldwork (como jocosamente se costuma chama- la) etc, etc, enfim pelo ambiente académico. Examinemos um pouco mais de perto esse processo de textualizagao, tio diferente do trabalho de campo. No dizer de Geertz (1988b), seria pergun- tar o que acontece com a realidade observada no campo quando ela é embareada para fora? (“What happens to reality when it is shipped abroad?”). Essa pergunta tem sido constante na chamada antropologia pés- modema-—um movimento que vem tendo lugar na disciplina a partir dos anos 60e que, malgrado seus muitos equivocos (sendo, talvez, o principal a iden- tificagéio que faz da objetividade com a sua modalidade perversa, o “objeti- vismo”), conta a seu favor o fato de trazer a questo do texto etnografico como tema de reflexio sistematica, como algo que niio pode ser tomado tacitamente como tende a ocorrer em nossa comunidade profissional (cf. Cardoso de Oliveira, 1988a). Apesar de Geertz poder ser considerado 0 verdadeiro inspirador desse movimento, que retine um extenso grupo de an- tropdlogos, seus membros nao participam de uma posi¢gdo univoca cventu- almente ditada pelo mestre.° A rigor, a grande idéia que os une, ademais de possuirem uma orientagio de base hermenéutica, inspiradas em pensado- res como Dilthey, Heidegger, Gadamer ou Ricoeur, € se colocarem contra que consideram ser 0 modo tradicional de se fazer antropologia, ¢ isso, a0 que parece, com o intuito de rejuvenescer a antropologia cultural norte-ame- ricana, érfa de um grande tedrico desde Franz. Boas. Que pontos poderiamos assinalar, ainda nesta oportunidade, nos con- duzem a questao central do texto etnografico? Texto, alias, que bem po- deria ser sociogrifico, se pudermos estender, por analogia, para aqueles mesmos resultados a que chegam os cientistas sociais, nao importando sua vinculagao disciplinar. Talvez o que torne o texto etnografico mais singu- lar, quando 0 comparamos com outros devotados a teoria social. seja a articulagiio que ele busca fazer entre 0 trabalho de campo e a construgio do texto. George Marcus e Dick Cushman chegam a considerar que a io do trabalho de Roserto Carposo bt OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO campo'em textos”(Marcus & Cushman, 1982). Mas isso tem varios com- plicadores, como eles mesmos reconhecem. Vou tentar indicar alguns, seguindo esses mesmos autores, além de outros que, como eles (e, de certo modo, muitos de nds atualmente), buscam refletir sobre a peculiaridade do Escrever um texto que seja controlavel pelo leitor, e isso na medida em que distinguimos tal texto da narrativa meramente literdria. JA mencio- nei, momentos atrds, o didrio e a caderneta de campo como modos de escrever que se diferenciam claramente do texto etnogrdfico final. Poderia acrescentar, seguindo os mesmos autores, que também os artigos € as teses académicas devem ser considerados “versGes escritas intermediarias”, uma. vez que na elaboragiio da monografia (esta sim, o texto final) exigéncias especificas devem ou deveriam ser feitas. Vou simplesmente mencionar al- gumas, preocupado em nao me alongar muito nesta conferéncia. Desde logo uma distingao cabe ser feita entre as monografias classicas e as modernas. Enquanto as primeiras foram concebidas de conformida- de com uma “estrutura narrativa normativa” que se pode aferir a partir de uma disposigao de capitulos quase canénica (Territério, Economia, Or- ganizagao Social e Parentesco, Religiio, Mitologia, Cultura e Personali- dade etc), as segundas, as monografias que podemos chamar de moder- nas, priorizam um tema, através do qual toda a sociedade ou cultura passam a ser descritas, analisadas e interpretadas. Gosto de dar como um bom exemplo de monografias deste segundo tipo a de Victor Turner, sobre 0 Processo de segmentagio politica e a continuidade observaveis em uma sociedade africana (cf. Turner, 1957), uma vez que ela expressa com muita felicidade as possibilidades de uma apreensao holistica, porém concen- trada num tinico grande tema, capaz de nos dar uma idéia dessa socieda- de como uma entidade extraordinariamente viva. Essa visao holistica, to- davia, nao significa retratar a totalidade de uma cultura, mas somente ter em conta que a cultura, sendo totalizadora, mesmo que parcialmente des- crita, sempre deve ser tomada por referéncia. ‘Um terceiro tipo seria o das chamadas “monografias experimentais” ou pés-modernas (defendidas por Marcus & Cushman), mas que, neste -26- Revista DE ANTROPOLOGIA, SAO PAuLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. momento, nao gostaria de tratd-las sem um exame critico preliminar que me parece indispensavel, pois iria envolver precisamente minhas restrigdes aquilo que vejo como caracteristica dessas monografias: o desprezo que seus auto- res demonstram relativamente a necessidade de controle dos dados etno- graficos, tema, alids, sobre o qual tenho me referido diversas vezes, quando procuro mostrar que alguns desenvolvimentos da antropologia pos-moderna resultam numa perversdo do préprio paradigma hermenéutico. Essas mono- grafias chegam a ser quase intimistas, impondo ao leitor a constante presenga doautor notexto. E um tema sobre o qual tem havido muita controvérsia, mas, infelizmente, nao posso aprofundé-lo neste momento.’ Porém, 0 fato de se escrever na primeira pessoa do singular —como pa- Tecem recomendar os defensores desse terceiro tipo de monografia — nao nente que o texto deva ser intimista. Deve significar sim- plesmente —e nisso creio que todos os pesquisadores podem estar de acor- do—que 0 autor niio deve se esconder sistematicamente sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente e onisciente, valendo-se da primeira pessoa do plural: “nds”. E claro que sempre haver situagdes em que esse “nds” pode ou deve ser recorrido pelo autor. Mas cle nao deve ser 0 padrao na ret6rica do texto. Isso me parece importante porque, com o crescente reconhecimento da pluralidade de vozes que compdem acena de investigagiio etnografica, essas vozes tém de ser distinguidas e jamais cala- das pelo tom imperial e muitas vezes autoritdrio de um autor esquivo, es- condido no interior dessa primeira pessoa do plural. A chamada antropolo- gia polif6nica, na qual teoricamente se daria espago para as vozes de todos os atores do cendrio etnogréfico, remete sobretudo, no meu entendimento, para a responsabilidade especifica da voz do antropdlogo, autor do discur- so proprio da disciplina, que nao pode ficar obscurecido (ou seja substitu- fdo) pelas transcrigdes das falas dos entrevistados. Mesmo porque, sabe- mos, um bom reporter pode usar tais transcrigdes com muito mais arte... Um outro aspecto do processo de construgao do texto que quero crer seja importante resgatar ainda nesta exposi¢do, antes de a darmos por terminada, é mostrar que, apesar das criticas, esse terceiro tipo de mono- -27- Ronerto CArDoso bE OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPGLOGO grafia traz uma inegdvel contribuigao para a teoria social. Marcus & Cushman observam, relativamente & influéncia de Geertz na antropologia, que, com ele, a “etnografia tornou-se um meio de falar sobre teoria, filo- sofia e epistemologia simultaneamente ao cumprimento de sua tarefa tra- dicional de interpretar diferentes modos de vida"(1982:37). Evidentemente que no elevar a produgiio do texto ao nivel de reflexaio sobre o Escrever, adisciplina est orientando sua caminhada para aquelas instancias meta- teéricas que poucos alcangaram realizar. Talvez 0 exemplo mais conheci- do dentre os antropélogos vivos seja o de Lévi-Strauss e no Ambito de seu método estruturalista, ainda que de reduzida eficdcia na pesquisa etnografica. Com Geertz e sua antropologia interpretativa, verifica-se o surgimento de uma pratica metate6rica em processo de padronizagao, em que pesem alguns escorregdes de seus adeptos para o intimismo, ha pou- co mencionado. Entendo que o bom texto etnografico, para ser elabora- do, deve ter pensadas as condi¢des de sua produgao, a partir das etapas iniciais da obtengiio dos dados (0 Ollhar e 0 Ouvir), tal nao quer dizer que ele deva se emaranhar na subjetividade do autor/pesquisador. Antes, 0 que estd em jogo é a “intersubjetividade” —esta de carater epistémico-, gragas 4 qual se articulam num mesmo “horizonte teérico” os membros de suacomunidade profissional. E é 0 reconhecimento dessa intersubjetividade que tornao antropélogo modemo um cientista social menos ingénuo. Te- nho para mim que talvez seja essa uma das mais fortes contribuigdes do paradigma hermenéutico para a disciplina. Conclusio Examinados o Olhar, 0 Ouvir e o Escrever, a que conclusées pode- mos chegar? Como procurei mostrar desde 0 inicio, essas “faculdades” do espirito tém caracteristicas bem precisas quando exercitadas na érbita das ciéncias sociais ¢, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o Olhar e o Ouvir constituem a nossa “percep¢do” da realidade focaliza- -28- REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SAO Pauto, USP, 1996, v. 39 n° I. da na pesquisa empirica, o Escrever passa a ser parte quase indissocidvel do nosso “pensamento”, uma vez. que 0 ato de escrever € simultaneo ao ato de pensar. Quero chamar a atengio sobre isso, de modo a tornar cla- ro que — pelo menos no meu modo de ver — é no processo de redagio de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando solugGes que difi- cilmente apareceriio “antes” da textualizago dos dados provenientes da observagio sistematica. Sendo assim, seria um equivoco imaginar que, primeiro, chegamos a conclusGes relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos inscrever essas conclusées no texto. Portanto, dissociando-se o “pensar” do “escrever”. Pelo menos minha experiéncia indica que 0 ato de escrever ¢ 0 de pensar so de tal forma soliddrios entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso signifi- ca que nesse caso 0 texto ndo espera que 0 seu autor tenha primeiro to- das as respostas para, s6 entio, poder ser iniciado. Entendo que ocorra na elaboragiio de uma boa narrativa que o pesquis S observacgdes devidamente organizadas, jd inicie o processo de textuali- zagilo, uma vez que esta nao é apenas uma forma escrita de simples expo- sigdo (uma vez que hd também a forma oral), porém é a produgio do tex- to também producio de conhecimento. Nao obstante, sendo 0 ato de escrever um ato igualmente cognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessdrio; portanto, ele é escrito e reescrito repetidamente, nao apenas para aperfeigoar o texto do ponto de vista formal, mas também para melhorar a veracidade das descrigdes ¢ da narrativa, aprofundar a andlise e consolidar argumentos. Mas isso, por si mesmo, nao carateriza o Olhar, o Ouvir ¢ 0 Escre- ver antropolégicos, pois suponho que ele esta presente em toda e qual- quer escrita no interior das ciéncias sociais, Mas no que tange 4 Antropo- logia, como procurei mostrar, esses atos estZo previamente comprometidos com 0 proprio horizonte da disciplina, onde Olhar, Ouvir ¢ Escrever es- tao desde sempre sintonizados com 0 “sistema de idéias e valores” que so préprios dela. O quadro conceitual da antropologia abriga, nesse sen- -29- RoperTo CARDOSO DE OLIVEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO tido, idéias e valores de dificil separagao. Louis Dumont, esse excelente antropélogo francés, chama isso de “idéia-valor’™ unindo assim, numa: tinica expressio, idéias que possuam uma carga valorativa extremamente gran- de. Trazendo essa questio para a pratica da disciplina, dirfamos que pelo menos duas dessas “idéias-valor” marcam o fazer antropolégico: “a ob- servaciio participante” e a “relativizacao”. Entre nds, Roberto Da Matta chamou a atengao sobre esta tiltima em seu livro Relativizando: uma intro- dugdo 4 antropologia social,’ mostrando em que medida o relativizar é constituinte do proprio conhecimento antropolégico. Pessoalmente, enten- do aqui por relativizar uma atitude epistémica, eminentemente antropol6- gica, gracas 4 qual o pesquisador logra escapar da ameaca do etnocen- trismo—essa forma habitual de ver o mundo que circunda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir nao foi disciplinada pela antropologia. E se poderia estender isso ao Escrever na medida em que, para falarmos com Crapanzano,'° “o Escrever etnografia é uma continuagao do confronto” intercultural, portanto entre pesquisador e pesquisado. Por conseguinte, uma continuidade do Olhar e do Ouvir no Escrever, este tiltimo igualmen- te marcado pela atitude relativista."! Uma outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do officio antropol6gico é a “observacao participante”, que j4 mencionei momentos atras. Permito-me dizer que talvez seja ela responsdvel por caracterizar 0 trabalho de campo da antropologia, singularizando-a, enquanto discipli- na, dentre suas irmis nas ciéncias sociais. Apesar de essa observacio par- ticipante ter tido sua forma mais consolidada na investigagao etnolégica, junto a populagGes Agrafas e de pequena escala, tal nao significa que ela nao ocorra no exercicio da pesquisa com segmentos urbanos ou rurais da sociedade a que pertence o préprio antropdlogo. Dessa observagiio par- ticipante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, nao acrescentarei mais do que umas poucas palavras; apenas para chamar a atengo para uma modalidade de observagao que ganhou, ao longo do desenvolvimento da disciplina, um status alto na hierarquia das idéias-valor que a marcam -30- Revista DE AntropoLoaia, SAo PauLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. emblematicamente. Nesse sentido, os atos de Olhar e de Ouvir sao, a ri- gor, fungdes de um género de observagao muito peculiar (i.e., peculiar 4 antropologia), por meio da qual o pesquisador busca interpretar (melhor dizendo: compreender) a sociedade ¢ a cultura do Outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade. Tentando penetrar nas formas de vida que Ihe siio estranhas, a vivéncia que delas passa a ter cumpre uma fungio es- tratégica no ato de elaboracao do texto, uma vez que essa vivéncia — 6 assegurada pela observagdo participante “estando 14” — passa a ser evo- cada durante toda a interpretagéo do material etnografico no processo de sua inscri¢do no discurso da disciplina. Costumo dizer aos meus alunos que os dados contidos no diario e nas cadernetas de campo ganham em. inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; 0 que equi- vale dizer que a mem6ria constitui provavelmente o elemento mais rico na redagdo de um texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja sig- nificagdo é mais bem alcangdvel quando o pesquisador a traz de volta do passado, tornando-a presente no ato de escrever. Seria uma espécie de presentificagio do passado, com tudo que isso possa implicar do pon- to de vista hermenéutico, ou, em outras palavras, com toda a influéncia que 0 “estando aqui” pode trazer para a compreensdo (Verstehen) e a interpretagao dos dados entao obtidos no campo. Paremos por aqui. Em resumo, vimos, através da experiéncia antropo- légica, como a disciplina condiciona as possibilidades de observagiio e de textualizagiio sempre de conformidade com um horizonte que Ihe é pr6- prio. E, por analogia, poder-se-ia dizer que isso ocorre também em ou- tras ciéncias sociais, em maior ou em menor grau. Isso significa que o Olhar, 0 Ouvire o Escrever devem ser sempre tematizados, ou, em outras pala- vras, questionados enquanto etapas de constituigdo do conhecimento pela pesquisa empirica — esta dltima sendo vista como o programa prioritario das ciéncias sociais. Trazer esse tema para uma conferéncia nesta casa me pareceu, enfim, apropriado pelo fato de estar me dirigindo a colegas oriun- dos de outras disciplinas, o que me leva a imaginar estar contribuindo para -31- Roperto Carposo DE OLIvEIRA. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO: ampliar a indispensavel interagio entre nossos diferentes (porém aparenta- dos) oficios, redundando, assim, a proporcionar (quero crer) um certo estf- mulo A interdisciplinaridade, que entendo necessria no Ambito de um de- partamento devotado ao estudo dos Trépicos. Ao mesmo tempo, ficarei muito feliz se houver conseguido transformar atos aparentemente to trivi- ais, como os aqui examinados, em temas de reflexiio e de questionamento. Notas A primeira versio desta conferéncia foi destinada a Aula Inaugural do ano académico de 1994, relativa aos cursos do Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pre- sente verséo, que agora se publica, foi elaborada para uma conferéncia mi- nistrada a uma platéia multidisciplinar na Fundago Joaquim Nabuco, em Recife, em 24 de maio do mesmo ano, em seu Instituto de Tropicologia. Aqui fago uma distingdo entre “sentido” ¢ “significagao”. o primeiro termo: destinado a dar conta do horizonte semfntico do “nativo” (como no exem- plo de que estou me valendo), enquanto o segundo termo serve para desig- nar o horizonte do antrop6logo (que é constituido por sua disciplina). Essa distingdo se apéia em E.D. Hirsch Jr. (196721 1), que, por sua vez, apéia-se na l6gica fregeana. Esse é um tema que tenho explorado seguidamente em diferentes publica- es, porém indicaria apenas a mais recente: uma conferéncia ministrada na Universidade Federal do Parand, no Ambito do Semindrio “Ciencia e Socie- dade: A Crise dos Modelos”, realizado na cidade de Curitiba, em 9 de no- vembro de 1993 (cf. Cardoso de Oliveira, 1994). O titulo da edigo original € Works and lives: the anthropologist as author (cf. Geertz, 1988). H4 uma tradugdo espanhola, publicada em Barcelona. Meyer Fortes ja nos anos 50 chamava esse processo quase primitivo de investigagao etnogréfica realizada no Ambito da antropologia social de = 32 10 REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SAO PauLo, USP, 1996, v. 39 n° 1. “analytical description” (cf. Fortes, 1953), indicando com isso a rejeig&o de qualquer pretensio a uma etnografia “pura”, no permeada pela andlise. Para uma boa idéia sobre a variedade de posiges no interior do movi- mento hermenéutico, vale consultar os ensaios contidos em James Clifford & George E. Marcus, 1986. De uma perspectiva critica, ainda que simpatica a essas monografias ¢x- perimentais, leia-se o artigo da antropéloga Teresa Caldeira (1988); ja de uma perspectiva menos favordvel, ver, por exemplo, o artigo-resenha de Wilson Trajano Filho (1988), ¢ o de Carlos Fausto (1988) ambos publica- dos no Anudrio Antropoldgico; e 0 de Mariza Peirano, “O encontro etno- grifico e 0 diilogo te6rico” (cf. Peirano, 1991). Para uma apreciacdo mais genérica dessa antropologia pés-moderna, onde se procura apontar tan- to seus aspectos positivos (no que se refere a contribuigdo do paradigma hermenéutico para o enriquecimento da matriz disciplinar da antropologia) quanto os aspectos negativos daquilo que considero ser 0 “desenvolvi- mento perverso” desse paradigma, (cf. Cardoso de Oliveira, 1988b; ver- sfio final de conferéncia proferida no Centro de Légica, Epistemologia e Historia da Ciéncia da Unicamp, em 1986, cuja primeira publicagio foi feita no Anudrio Antropolégico, 86, conforme Cardoso de Oliveira, 1988a). CF. Louis Dumont, “La valeur chez les modernes et chez les autres”, in Dumont, 1983, cap.7. Editado pela Vozes, em 1981, 0 volume é uma boa introdugio 2 antropolo- gia social que recomendo ao aluno interessado na disciplina, precisamen- te por nao se tratar de um manual, porém de um livro de reflexo sobre o fazer antropoldgico, apoiada na rica experiéncia de pesquisa do autor. J& numa diregdo um pouco diferente, posicionando-se contra certos exage- ros anti-relativistas, Clifford Geertz escreve seu “Anti anti-relativismo” (1988a:5-19), que vale a pena consultar. Cf. Vincent Crapanzano, 1977. Muitas vezes por razdes estilisticas ~ obser- va Crapanzano — “isola-se 0 ato de escrever, ¢ seu produto final [o texto], da prépria confrontagdo, Qualquer que seja a razo para essa dissoci = 332 Roserto Carposo pe Oxtverra. O TRABALHO DO ANTROPOLOGO permanece o fato de que a confrontagio no termina antes da etnografia, mas, se se pode dizer ao fim de tudo, é que ela termina com a etnografia"(:10). 11 Bu fago uma distingdio entre “atitude relativista”, que considero ser ineren- te A postura antropolégica, e “relativismo” como ideologia cientifica. Esse relativismo, por seu caréter radical e absolutista, nao consegue visualizar adequadamente questdes de moralidade e de eticidade, sobrepondo, por exemplo, “hébito” a “norma moral” e justificando esta por aquele. Tive a ocasido de tratar desse tema mais detalhadamente em outro lugar (cf. Car- doso de Oliveira, 1993:20-33). 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KEY WORDS: ethnography, interpretation, textuality. Aceito para publicagao em maio de 1995. -37-

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