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Stare Decisis Edward D, Re é Professor na Faculdade de Di- teito da St. John’s University — New York ¢ Juiz Presidente Eménto da Corte de Coméreio Interna ional dos E.U.A. Teadugo de Ellen Gracie Northflect Brasilia a. 31 n® 122 mai.jul. 1994 Epwaro D. Re Nota da Tradutora Pedra angular do sistema do Commnon Law, o poder vinculante dos precedentes judi- ais ow stare decisis, como é usualmente refe- rido, tem sido objeto de constante curiosida- de entre nds. A aplicagao da doutrina nas ju- risdigdes anglo-americanas demonstra vanta- _gens que podem ser resumidas em trés aspec- tos. Ela permite que o jui2 se beneficie da ex- periéncia de seus predecessores; uniformiza a aplicacao do direito ¢, sobretudlo, forna esse direito mais previsivel, acrescentando ao ide- al de seguranga juridica. Mas pode, também, em contrapartida, introduzir wm indesejdvel elemento de rigidez no ordenamento juridico ¢ propiciar o estabetecimento de cerebrinas ¢ didfanas distingdes entre decides semelhantes. A doutrina do stare decisis evoluiu e conti- mua a evoluir através de uma intrincada rede de decisdes vinculativas e néio vinculativas. As itltimas, embora sem fora de precedente, podem ter efeito persuasivo sobre as futuras ‘manifestacdes jurisdicionais. O peso espectfi- co das decisoes (a hierarquia da corte de que promanam), bem como o peso relativo desses Julgados (qualificagao de seus projatores, bem ‘como a fato de derivarem de manifestacdes undnimes ou apenas, eventualmente, majorité- rias), faz do sistema um suiil jogo comparativo. No trabalho que se segue, o Prof. Edward D. Re apresenta, com extrema clareza de ex- posigao, o processo evolutivo da doutrina nos Estados Unidos da América e seu estdgio atu- al de aplicagao, Juiz Federal perante a Cus- toms Court (tribunal alfandegério hoje extin- to), desde 1968, 0 Prof. Re assumiu em no- vembro de 1980 como primeiro Presidente da entéo formada Corte Norte-Americana de Coméreio imernacional, fungao que exerceu até sua aposentadoria, em maio de 1991. Re- tornou, entdo, em dedicagdo exclusiva ds ati- vidades de magistério, na Faculdade de Di- reito da St. John's University, em Nova forque onde teciona desde 1947. “O dircito deve ser estavel, no entanto, nao pode ser estatico”. A frase ¢ de Roscoe’Pound. Ela aponta dois ideais que precisam ser har- monizados ¢ conciliados: estabilidade ¢ mu- danga. A estabilidade exige uma continuidade ‘com o passado e ¢ necesséria para permitir que ‘0s membros da sociedade conduzam suas ati- vidades didrias com unt razodvel grau de cer- teza quanto as conseqiiéncias juridicas de seus tos, A mudanga implica numa variagHo ou al- teracdo daquilo que esta fixo ou estavel. Sem mudanga, no entanto, n&o pode haver progres- so. Vamos explorar as fungdes do stare decisis no processo judicial, como tentativa de alcangar cesses objetivas aparentemente contraditérios. A compreensiio de que, no sistema do com- mon law, umta decisto judicial desempenha dupla fungdo ¢ fundamental para nossa andli- se. A decisto, antes de mais nada, define a controvérsia, ou seja, de acordo com a doutri« na da res judicata, as partes no podem reno- var o debate sobre as questdes que foram deci- didas, Em segundo lugar, no sistema do com- mon law, consoante a doutrina do stare deci- sis, a deciséo judicial também tem valor de precedente. A doutrina, cuja formulagao é sta- re decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisio e nio se disturbe o que foi decidido) tem raizes na orientagao do common law, se- gundo a qual um principio de direito deduzido através de uma decisdo judicial seré conside- rado ¢ aplicado na solugdo de um caso seme- Thante no futuro. Na esséncia, esta orientagéo indica a probabilidade de que uma causa idén- tica ou assemelhada que venha a surgir no fu- turo seja decidida da mesma maneira. No sistema do common law, onde o direito € enunciado e desenvolvido através das deci- s0es judiciais, a doutrina do stare decisis & absojutamente essencial. Ela era indispens4- vel nos primérdios do common law quando as provisbes legislativas eram poucase, geralmen- te, limitavam-se ao campo do direito pablico. O stare decisis foi recebido nos Estados Unidos da América como parte da tradigao do common law, Além de prestigiar a estabilida- de ¢ permitir 0 desenvolvimento de um direito consistente e coerente, também servia a outras benéficas fungdes. Ele preservava a continui- dade, manifestava respeito pelo passado, asse- gurava igualdade de tratamento aos litigantes em idéntica situagdo, poupava os juizes da ta- refa de reexaminar as regras de direito a cada caso subseqiiente ¢ assegurava a lei uma dese- ‘jével medida de previsibilidade. Esses concei- tos, desenvolvidos ao longo de séculos de ex- periéncia judicial, necessitam ulterior consi- deracdo como resultado da massiva atividade Iegislativa dos dias atuais. Uma vez que a dou- trina do precedente continua a servir a uma fungdo itil e benéfica, é sempre apropriado que se examine e reexamine sua aplicabilidade ¢ limitagbes. O que é a doutrina do stare decisis e quais fo suas inerentes limitagdes? E preciso com- preender que 0 caso decidido, isto é, o prece- dente, ¢ quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida, Diz-se que 0 caso decidido estabelece um principio, e cle € na verdade um principium, um comego, na ver~ dadeira acepedo etimolégica da palavra. ‘Um principio é uma suposigao que nao poe obstéculo a maiores indagagdes. Como ponto de partida, 0 juiz, no sistema do common law afirma a pertinéncia de um principio extraido do precedente considerado pertinente. Ele, de- ois, trata de apticd-lo, moldando e adaptando aquele principio de forma a alcangar a reali- dade da decis4o do caso concreto que tem di- ante de si. O processo de aplicagdo, quer re- sulte numa expansio ou numa restriggo do principio, € mais do que apenas um verniz, Tepresenta a contribuigao do juiz para o desen- volvimento ¢ evolugao do dieito. Ao discorrer sobre precedemtes em seu The Nature of the Judicial Process. Cardozo, Mi- nistro da Suprema Corte Americana. escreveu': “num sisterna tZo altamente desen- volvido quanto o nosso, os precedentes J cobriram o campo de tal forma que eles fixam o ponto inicial a partir do qual © trabalho do juiz comera. Quase inva- riavelmente, seu primeiro passo € es miné-los ¢ compard-los. Se cles forem adequados. talvez nada mais seja neces- sirio. O stare decisis & pelo menos a fer- ramenta de trabalho didiria do nosso di- ito,” ! CARDOZO, The Nature of the Judicial Pro- cess 20 (1921). Revista de Informa: Na aplicagao de um precedente, o jurista precisa determinar a autoridade desse prece- dente. Seri ele vinculativo ou meramente per- suasivo? Se ele for vinculativo. 0 principio es- tabelecido no caso antecedente deve ser apli- cado e define o julgamento do caso subseqiien- te, Se for apenas persuasivo. uma variedade de fatores adicionais deve ser considerada para que se decida sobre sua aplicagao ¢ sobre a extensdo ¢ 0 grau desta aplicagZo. Uma acurada descrigao da doutrina do sta- re decisis devera conter uma declaragao das limitacdes postas a sua aplicabilidade. Algumas definigées adiantadas por aque- les que estudaram a doutrina em profundidade podem ser iteis. Por exemplo, Henry Camp- bell Black. em seu Law of Judicial Precedent, afirmou’ “Uma decisio nao faz autoridade em relagdo a quaisquer questdes de direito que ndo tenham sido suscitadas ou apre- sentadas perante a Corte © que nao te- mham sido levadas em consideragao decididas por ela, ainda que estivessem logicamente presentes no caso e possam ter sido abordadas, ainda quando tais questdes conduzissem a uma decisio diversa da que foi proferida, se houves- sem sido apreciadas pela Corte.” Black salienta assim a importincia_das questoes apresentadas no caso anterior, Teri- am essas questdes sido suscitadas. considera- das ¢ decididas? Se nao foram, embora pudes- sem ter sido. a decisdio anterior nfo é um pre- cedente vinculativo. Naturalmente as quest6es suscitadas mum processo derivam dos fatos apresentados. Os fatos do caso. conseqilentemente. sio da mai- ‘or importincia, A maxima latina ex facto ori- tur jus nos afirma que o direito deriva dos fa- tos. As seguintes observagdes do Professor Brumbaugh sto de especial relevancia’ “As decisdes niio sto proferidas para que possam servir de precedentes no fu- turo, mas antes. para solver as disputas entre os litigantes. Sua utilizagdo em casos posteriores ¢ uma decorréncia in- cidental, Uma decisto. conseqtientemen- fe, extrai suas peculiares qualidades de ® BLACK, Law of Judicial Precedent.37 (1912) * BRUMBAUGH, Legal Reasoning and Brie- fing, 172, (1917). justica, solidez ¢ profundidade dos fatos ‘ condigdes particulares do caso que cla pretendeu adjudicar. Consequientemen- te, para que essa qualidade possa ser transmitida com absoluta acuidade, tor- na-se is vezes necessario limitar expres- samente sua aplicagdo ao peculiar con- junto de circunstncias que the deram onigem.” Dai que a autoridade do precedente depen- de ¢ é limitada aos “fatos e condigdes particu- lares do caso” que o processo anterior “preten- deu adjudicar”. Consegiientemente, os precedentes nao se devom aplicar de forma automatica. O prece- dente deve ser analisado cuidadosamente para determinar se existem similaridades de fato de direito ¢ para determinar a posigao atual da Corte com relagdo ao caso anterior. Estuda-se © precedente para determinar se o principio nele deduzido constitui a fundamentagao da decisdo ou t2o-somente um dictum. Apenas 0 fundamentos da decisio mereeem reconheci- mentoe acatamento com forga vinculativa. Um dictum & apenas uma abservagao au opiniao c, ‘como tal, goza to-somente de forga persuasi- va, Os fatores que afetam ou determinam o grau de persuasio que podem alcangar os dicta so muitos de diversa natureza. Que grau de per~ tinéncia ou relevancia tem o dictum no con- texto da decisto de que é integrante? A Corte ou 0 Juiz que o proferiu goza de especial res- peito por sua sabedoria ou cultura juridica? O dictum & razoiivel? A distingao entre os fundamentos de uma decisio ¢ seus dicta é garantida pela natureza do sistema adversario que prevalece no com ‘mon law. A razdo para a distingao foi assim ‘expressada por John Marshall. Presidente da Suprema Coste ““Constitui maxima que nao deve ser desconsiderada o fato de que as expres- sbes gerais em qualquer decisdo devam ser consideradas em relagdo a0 caso no qual ais expressdes sio utilizadas. Se clas tiverem uma amplitude que exceda a0 caso, elas podem ser respeitadas, mas no devem controlar o julgamento em processo subseqiiente, quando a questo propriamente dita for apresentada para decisio. A razio dessa maxima é dbvia *Cohens v. Virginia, 19 U.S. (@ Wheat.) 264. 399 (1821) Brasilia a. 31 n® 122 mai.jjul. 1994 A questo que de fato esté submetida a0 juizo é cuidadosamente investigada e em toda sua extensfo. Ou- tros principios que podem servir para ilustrd-la so considerados na sua rela- ‘¢4o com 0 caso decidido, mas sua possi vel influéncia sobre todos 0s outros ca- sos ¢ raramente investigada em profun- didade.” Logo, a forga vinculativa de um caso ante- rior limita-se ao principio ou regra indispen- sdvel&solugto das questoes de fato ede dre to efetivamente suscitadas ¢ decididas, Todos 95 pronunciamentos que no sfo indispensé- veis & decisfo constituem dicta. Que uma decisdo vinculativa surja apenas como resultado do litigio tem conduzido a cri- ticas da doutrina dos precedentes. Allen, em Law in the Making, observow’: “Nem constitui critica inteiramente injusta afirmar que os precedentes ten- dema fazer com que desenvolvimento do direito dependa de acidentes do pro- cesso fitigioso. Pontos importantes po- dem permanecer obscuros, simplesmente porque ninguém se interessou em ques- tiond-los, Um julgamento erténeo pode permanecer ¢ adquirir autoridade ime recida, simplesmente porque a parte su- cumbente deixa de recorrer — geralmen- te pela boa raz4o de que ndlo pode mais arcar com os énus do litigio.” Uma limitagao adicional a respeito da au- toridade vinculativa do precedente pode ser notada nesta citagdo de uma deciso da Corte de Apelagdo do Estado de Nova lorqueé: “Mas a doutrina do stare decisis, como quase todas as outras regras de direito, comporta excegdes. Ela no se aplica a um caso onde possa ser demons- trado que o direito foi mal compreendido ‘ou mal aplicado ou onde a decisdo anteri- or seja evidentemente contriria a razao. Séo to numerosas as manifestagdes a advogar que, em tais casos, constitui de- ‘ver dos tribunais reexaminar a questo.” Também merece referéncia manifestagdo semelhante partida do Chanceler Kent”: S ALLEN, Law in the Making, 313 (1964). "Rumsey ». New York & New England RR. Co, 133 N.Y. 79,85 (1892). KENT. Commentaries, 475 (12th ed. 1896). “Uma deciséo formal a respeito de uma questéo de direito suscitada em qualquer processo torna-se paradigma para caso semelhante porque constitui- se na maior evidéncia que podemos ter do direito aplicavel a hipdtese ¢ os jul- zes Gevem acompanhar tal decisto en- quanto ela nao for superada, a menos que possa ser demonstrado que a lei foi mal compreendida ou mal aplicada na- quele caso Para o Chanceler Kent apenas uma deci- sdo solene merece valor de precedente, com forga vinculativa. A regra de direito deduzida através do caso anterior precisa ter sido neces- sdria para a decistio daquele caso, € somente tem aplicago num caso idéntico. Evidente- mente, um caso subseqiiente pode dele se dis- {inguir quanto aos fatos ou questo de direi- to suscitada, O Chanceler Kent também discorreu sobre a possibilidade de uma revisdo do caso anteri- or, com base na demonstrago de que o direito foi “mal compreendido ou mal aplicado na- quele caso especifico”. Em reflexdo sobre a possibilidade de se demonstrar que um caso precedente foi decidido de forma incorreta, 0 Ministro da Suprema Corte, Field. afirmou que “é mais imporlante que o tribunal decida cor- retamente com base em andlise posterior ¢ mais, elaborada dos casos do que cle seja consistente com as decisdes anteriores”, Essas citagdes denotam as limitagSes que cercam a aplicagdo da doutrina do stare deci- sis. A experiéncia indica que na maior parte ‘dos casos os. ites podem ser identifica dos com base nos fatos ou nas questdes de di- reito suscitadas. Existe também a possibilida- de de demonstrar que 0 caso anterior foi deci- dido de forma erronea ou contraria razéo. Desta forma, embora todos os casos anteriores tenham forga de precedentes, seu valor enquan- to precedentes pode diferir radicalmente. Indaga-se se 0 principio deduzido do caso anterior esta contide numa deciséo bem fun- damentada que, por sua vez. tenha sido basca~ da em precedentes claros ¢ vinculativos. Ow sera que 0 precedente se encontra enfraqueci- do por um contundente voto divergente ou por ‘um voto que, embora concorrente. lance divi- da sobre 0 acerto da decisto da maioria? O "Barden v. Northern Pacific Railroad Co., 154 US. 288 (1894 principio aplicavel verificou-se nunt unico caso ou tera tido seu valor e adequagdo social rea- firmados? A toda evidéncia a autoridade dos precedentes varia consideravelmente. Num extremo esto os precedentes tidos como vin- culativos: noutro, aqueles que se consideram de todo inaplicaveis ao caso em exame A doutrina do stare decisis conseqiiente- mente ndo exige obediéncia cega a decisoes passadas. Ela permite que os tribunais se be- neficiem da sabedoria do pasado, mas rejei- tem o que seja desarrazoado ou erréneo. Antes de mais nada é necessério que o tribunal de- termine se o principio deduzido através do caso anterior ¢ aplicavel. Em seguida, deve decidir em que extensdo 0 principio sera aplicado. Um tribunal pode preferir estender um principio mais além dos limites de um caso antecedente se entender que assim estara pro- movendo justiga. Caso a aplicagao do princi pio, entretanto. possa produzir resultado inde- sejivel, 0 tribunal estreitaré ou restringira 0 principio, ou ainda aplicara precedente diver- 50. Por iss0, é preciso assinalar que stare deci- sis nao é apenas uma doutrina de estabitidade € uniformidade, Suas restrigdes ¢ limitagdes inerentes, bem. como os fatores que determi- nam a inaplicabilidade de decisées anteriores, tornam possivel a necessaria flexibilidade, in- dispensave! para a mudanga e 0 progresso, Num sistema de common law, as discus- SOes sobre 0 stare decisis freqientemente se desenvolvem como se o sistema fosse idéntico a0 que vigorava ha alguns séculos. O nosso ainda é um sistema de common aw no qual os casos anteriormente decididos tém forca de precedentes, Um novo elemento muito impor tante, no entanto, foi acrescentado ao conjun- to de fontes a ser considerado pelo juiz em sua decisfio. No passado, particularmente no cam- po do direito privado. os juizes consultavam essencialmente os prevedenies jurisprudenci- ais, Raramente os atos legislativos tinham in- fluéncia sobre as decisées. O sistema do com- ‘mon faw no mundo maderno, no entanto, pre~ cisa tomar em consideragao a politica legis- Iativa expressa ou implicita numa multidao de dispositivos legais pertinentes. Porque o sistema do cummon Jaw se desen- volveu caso a caso ¢ a presenga de uma politi- ca legislativa cra minima ow ndo-usual, a le- gislagdo passou a ser encarada quase como um ‘campo estranho, Cardozo, Ministro da Supre- ma Corte. reconhece! 0 senso de descon‘orto com a legislacdo quando disse’ : “A verdade ¢ que muitos de nds, criados nas tradigdes do common law, encaramos a legislagaocom uma desconfianga que podemos deplorar. mas nao negar.” Stone, Presidente da Suprema Corte, discorrendo sobre a atitude de desconfianga em relagdo a legislagao, afirmou: “os tribunais do common taw tém dado relativamente pouco reconhecimento a legislagdo, enquanto ponto de partida para formacdo de suas decisdes, se acompararmos a forga que emprestam aos pre- cedentes”* A legislagdo pode direta ¢ abruptamente alterar ou tepelir uma definigdo legal. princi- pio ou regra. E os tribunais s6 podem legislar ara preencher uma amissao ou lacuna na pro- visto legal. Para usar as palavras do Ministro da Suprema Corte, Holmes: “Eu reconhego sem hesitagao que os juizes legislam ¢ que preci- sam fazé-lo, desdé que 0 fagam intersticialmen- (c...""!, Nao hé davida de que os juizes, natu- ralmente. devem decidir um casus omissus, ou seja. na falta de proviso legal. Tanto quanto nos precedemtes judiciais, os tribunais podem ¢ de fato fazem por expandir ou restringir a aplicagao da politica legislativa. Isso, como se sabe, € feito no exercicio da funcao judicial de imerpretar a intencdo expressa ou implicita do legislador ao redigir determinado provimento aplicavel a0 caso, Atuaimente a legistagao cobre tao extensa~ mente quase todos os ramos do dircilo. tanto piiblico como privado, que nao se pode mais ressupor que o ponto de partida seja um pre- cedente judicial. Comumente o ponto de parti- da deve ser a politica legislativa expressa num texto legal significativo. Os tribunais, natural- mente, devem interpretar ¢ aplicar a legisla- ao. O sistema, no entanto, exige que os tribu- hais examinem os precedentes judiciais que a imterpretaram ¢ aplicaram anteriormente, Nes se ponto, no entanto, uma questao mais seria é introduzida no processo. Os juizes podem ten- der a atribuir maior significado aos preceden- tes do que 4 legislagao que aqueles preceden- tes pretenderam interpretar ¢ aplicar. Os tri- bunais se defromtam portanto com a dificil ta- ¥ CARDOZO, The Paradoxes of Legal Science 8 (1928). "STONE, The Common Law in the United Sta- tes. 0 Harv, L. Rev. 4.12 (1936) " Vide Southern Pacific Co. ¥ Jensen, 244 US. 205, 221 (1917) (voto divergente), Brasilia a, 31 n* 122 994 285 refa de determinar o peso relativo a ser atribu- ido a politica legistativa de um lado ¢ ao pre- cedente jurisprudencial de outro. Naturalmen- te, constitui fungao judicial interpretar ¢ apli- car um texto legal. Sob nosso sistema triparti- e de governo, entretanto, o tribunal deve ser fiel aos propésitos e politica legislativa. O juiz do pode olvidar-se de que o governo compor- ta trés poderes e que. ao decidir 0 processo. ele est cumprindo uma responsabilidade institu cional da Corte. O apoio indevido ou injustificado nos pre- cedentes jurisprudenciais. em face da relevan- tee, quem sabe, derrogatéria politica legislati- ‘ya, fez com que Erwin Griswold denunciasse ‘0 que ele chamou de avango aos saltos ¢ quei- mando etapas. Embora suas afirmagdes fossem dirigidas contra uma atitude judicial constru- tivista exageradamente expansiva em relagao 4 Constituigdo norte-americana, sua critica é também aplicdvel interpretagdo ¢ aplicagao da legislagdo ordinaria, Griswold descreveu os riscos desse desenvolvimento com as seguin- tcs palavras? “0 perigo aqui, como em toda a par- te, é de que uma espécie estabelega um avango aos saltos, a medida em que um principio se desenvolva: a primeira de- cisdo€ destilada da linguagem da Cons- tituigdo, mas a proxima expanso come+ gaa partir do raciocinio da dltima deci- sio e, assim por diante, até que alcance- mos um ponto onde as palayras da Cons- tituigdo se encontrem to distantes que sejam virtualmente ignoradas. No final, podera nos restar apenas algo como, “Bem, ¢ mesmo uma boa idéia! Quere- mos uma sociedade livre onde todas ¢s- sas coisas possam ser feitas ¢ queremos ‘que 0 Governo deixe as pessoas em paz!” Existem processos governamentais para produzir tais resultados, mas € dificil pensar que tais caricaturas da Consti- tuigdo sejam um exercicio apropriado do Poder Judiciario.” As possibilidades ¢ variagdes sfo infinitas, Muitos exemplos podem scr cncontrados na Jiteratura juridica. Um deles se encontra no caso Girouard y, United States, decidido pela Su- prema Corte em 1946. Girouard requereu sua "2 CRISWOLD, The Judicial Process, 28 The Record of the Association of the Ber of the City of New York. 14, 24-25 (1973). 9328 US. 61 (1946). naturalizagao. Ele declarou que compreendia 08 os prncipios de politica dos Es- tados Unidos, acreditava em sua forma de go- verno ¢ estava disposto a assumir 0 compro- misso de fidelidade. Tal compromisso corres- ponde a afirmacdo de manter ¢ defender a ‘Constituigao ¢ as leis dos Estados Unidos da ‘América contra todos os inimigos. externos ou internos. A uma das questdes inseridas no for- ‘mulério de naturalizagio: “ Vooé esta disposto, ‘se necessario for, a pegar em armas na defesa deste pais?” Girouard respondeu: “Nao (ndo- combatente), Adventista do Sétimo Dia.” ‘Num esforgo para fazer justiga no caso ¢, talvez por uma aplicago inconsciente da epi- keta (epletketa) aristotélica, a primeira instan- cia outorgou a cidadania a Girouard. Com base em trés cristalinas decisdes da Suprema Cor- tes, o Tribunal de Apelagfo reformou a sen ‘tenga afirmando que os fatos se subsumiam exalamente no principio derivado dos prece- dentes invocados. A questo suscitada nos trés precedentes era a interpretagdo construtivista de uma disposigao do Congresso, a qual esta- belecia que qualquer estrangeiro, para ter sua naturalizagdo deferida, deveria declarar em ‘compromisso solene que estava disposto a “de- fender a Constituicdo ¢ leis dos Estados Uni- dos contra quaisquer inimigos, externos ou internos e manter-se fiel ao cumprimento das mesmas”. Tal interpretacdo foi adotada pela le- gislagdo posterior. Apesar de tio clara indica- Gio da aprovacao do Congreso as razdes de decidir nos casos Schwimmer-Macintosh- Bland. a decisdo do caso Girouard reverteu essa orientagao. principio dos casos antecedentes era cris- talino. A menos que 0 estrangeiro estivesse disposto a tesponder pela afirmativa ao ques- tionamento sobre a sua disponibilidade para, se necessfrio, pegar em armas na defesa do pais, sua naturalizagao no seria deferida, Re- afirmando esses és casos, a Suprema Corte manifestara-se no mesmo sentido numa quar- ta oportunidade's, Os casos Macintosh Bland apresentavam votos divergentes do Presidente da Corts. o Mi- nistro Hughes. que fora acompanhado pelo Mi- nistro Stone, No caso Giroward, a Suprema Corte 4 United States ». Schwimmer, 279 US. 644 (1929): United States » Macintosh, 283 US. 605 (1931 © United Staies » Bland, 285 US. 636 (1931). 'S Summers, 32 US. $61 (1945), adotou substancialmente a mesma fundamenta- gd0 expressa Naquelas divergéncias para refor- mat a decisio do Tribunal de Apelaco. Ao de- ferir a cidadania a Girouard, emmbora ele se recu- sasse a declarar que estava disposto a pggar em armas, 0 Tribunal afirmou: “Concluimos que os casos Schwimmer, Macintosh © Bland nao de- duzem corretamente a norma legal”. Seria possivel imaginar que o Ministro-Pre- sidente Stone ¢ os outros Ministros que diver- giram nos casos anteriores iriam encarar essa expressa rejeigdo daqueles precedentes ¢ a ado- go de seu ponto de vista como uma vitéria No entanto, 0 Ministro-Presidente Stone dis- sentiu novamente no caso Girouard. Ele deu inicio a seu voto afirmando'* “Entendo que a decisto deva ser con- firmada, pois 0 tribunal ad guem, a0 aplicar a legislagéio que rege 0 processo de naturalizagdo, 0 fez tal como anteri- ormente construida por este Tribunal, inlerpretacao esta que foi a seguir ado- tada ¢ confirmada pelo Congresso.” Stone indicava que, nos casos anteriores, a “Anica questo consistia na interpretago cons- trutivista do estatuto 0 qual 0 Congresso, em qualquer tempo, tinha plena liberdade de alte~ rar, desde que se manifestasse disconforme com a solugdo adotada pela Conte”. Ele disse ainda que, com trés outros juizes, havia dissentido nos casos Macintosh e Bland, por razées “que agora o Tribunal adota para reverté-las”. Dada sua conviogio de que o Congreso havia assi- milado e confirmado a interpretacdo construe tiva da Corte nos casos anteriores, relativamen- te a legislagiio que rege a naturalizagdo, ele entendia que a reverstio desses precedentes correspondia a uma ingeréncia judicial que poderia desencorajar, se no mesmo denegat, “a responsabilidade legistativa” ‘Coma adestio dos Ministros Reed ¢ Frank- furter, o Presidente Stone conciuin que: “Nao & fungdo desta Corte desatender a vontade do Congreso no exercicio de seus poderes cons- titucionais”. ‘Tais casos claramemie demonstram os di- ferentes pontos de vista que prevalecem. Sto- ne, com efeito, afirmou que seus votos diver- gentes ndo constituiam a lei do pais, Se eles devessem set adotados, para produzir altera~ 40 na lei, tal como declarada nos casos ante- riores, tal modificagao politica deveria ser fei- '6Giroward y, United States 328 US 61,70 (1946) ta pelo Legislativo, Naturalmente, era preciso saber se o prin- cipio de direito enunciado nos casos anterio- res havia sido adotado pelo Congresso. Era preciso definir se houvera aquiescéncia legis- lativa para com a constnugdo jurisprudencial do estatuto. Em sua divergéncia. 0 Ministro- Presidente assinalou que scis legislaturas su- cessivas haviam declinado de adotar projetos ou emendas que teriam revertidg as decisdes de Schwimmer, Bland e Macintosh — os trés casos expressamente desconsiderados pelocaso Girouard. Ele também assinalou que antes de Girouard os tribunais federais ¢ estaduais ha- viam consistentemente aplicado a regra ou principio adotado nos trés casos antteriores. Nao havia diivida de que tais precedentes, ‘enquanto ndo revertides pelo caso Girouard, representavam a fei do pais. Coaseqiientemen- te, os tribunais federais ¢ estaduais tinham agido corretamente ao aplicar o principio atra- ves deles deduzido. O Presidente Stone, de fato, citou de um caso anterior ao caso Girouard uma decisdo na qual o Tribunal de Apelacdo assi- nalava que as emendas propostas A legistagao haviam sido rejeitadas, ¢ afirmava: “Devemos portanto concluir que esses requisitos estatu- ‘varios, na forma como foram construidos pela Suprema Corte, gozam de sangio e aprovacao ‘do Congresso” ‘O cxemplo Girouard sugere que a filosofia de cada um a respeito da separagio de poderes entre os trés ramos do governo também pode desempenhar um papel vital a0 determinar as atitudes judiciais em relac&o aos precedentes € Apolitica legislativa, Sdo muitos os fatores que intuitiva, deliberada ou, mesmo, inconscien- temente influenciaro um juiz ao determinar 0 ‘peso a ser dado aos precedentes judiciais. Tra- ta-se de um precedente isolado ou de uma sé- rie de decisées bem fundamentadas? Tera o precedente sido corroido por outras decisdes que restringiram sua aplicacao? As altcragdes da situagio fatica terdo, tornado o precedente obsoleto? Com que grau de autoridade a Corte se manifestou? Certamente s¢ 0 Tribunal pode decidir em termos definitivos sobre uma de- terminada questao, ele determinard o equili- brio a ser alcangado entre estabilidade alte- tagdo. O Tribunal fara um julgamento de va- Jor quanto a conveniéncia de seguir 0 passado- ow efetuar mudangas. Se a decistio for peia mudanga, s6 podemos desejar que seja no sen- tide do progresso, Brasilia a. 31 n? 122 mai./jul. 1994 287

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