A Tradição Viva - Amadou Hampaté Bâ (Texto Basico)

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Rg 8 capituLosA tradigao viva A, Hampaté Ba “A escrita é uma coisa, e o saber, outra, A escrita é a fotografia do saber, mas ro o saber em si, O saber 6 uma luz que existe no homem, A heranga de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo (© que nos transmitiram, assim como 0 baoba ja existe em potencial em sua semente” Tierno Bokar! Quando falamos de tradigao em relagdo a histéria afticana, referimo -nos & tradigdo oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histéria e 0 espirito dos povos africanos terd validade a menos que se apdie nessa heranga de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a Aiscipulo, a0 longo dos séculos. Essa heranga ainda nao se perdeu e reside na meméria da iltima geragao de grandes depositirios, de quem se pode dizer so @ memoria viva da Africa. "Tierno Bokar Saif, felecido em 1940, pasou toda a sua vida em Bandiagaa (Mali). Grande Mestre de ‘ofdem mogulmana de Tyaniyya, ft igualmentstradicionalisa em assuntsafveanas. C7. HAMPATE. BA. A. CARDAIRE, M, 1957, 168 Metadelopise pre -hisvinga Arica Entre as nagdes modernas, onde a escrita tem precedéncia sobre a oralidade, onde 0 livro constitui o principal vefculo da heranga cultural, durante muito tempo julgou -se que povos sem escrita eram povos sem cultura, Felizmente, esse conceito infundado comegou a desmoronar apés.as duas iltimas gueras, gragas a0 notivel trabalho realizado por alguns dos grandes etndlogos do mundo inteiro. Hoje, a ago inovadora e corajosa da UNESCO levanta ainda um pouco mais 0 véu que cobre os tesouros do conhecimento trarsmitidos pela tradigfo oral, tesouros que pertencem a0 patriménio cultura! de toda a humanidade. Para alguns estudiosos, 0 problema todo se resume em saber se & possivel conceder & oralidade a mesma confianga que se concede & escrita quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, ndo é esta a maneira correta de se colocar 0 problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim no é mais que testemunho humano, ¢ vale o que vale o homer. ‘Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no proprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram 0 cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou 0 estudioso mantém um didlogo secreto consigo mesmo, Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como Ihe foram narrados ou, ro caso de experiéncia prépria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geragdo a geragdo. As crénicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na Africa), cada partido ou nago “enxerga o meio -dia da porta de sua casa” — através do prisma das paixdes, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda; da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os préprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificagdes ou alteragdes, intencionais ou ndo, ao passarem sucessivamente pelas méos dos copistas — fenémeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”. O que se encontra por detrés do testemunho, portanto, é 0 préprio valor do homem que faz 0 testemunho, o valor da cadeia de transmissdo da qual ele faz parte, a fidedignidade das memérias individual e coletiva ¢ 0 valor atribuido & verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligagfo entre o homem a palavra. E, pois, nas soviedades orais que nao apenas a fungdo da meméria é mais desenvolvida, mas também a ligagdo entre o homem e a Palavra é mais forte. Lé onde nao existe a escrita, o homem esté ligado A palavra que profere. Esté comprometido por ela. Ele é a palavra, ¢ a palavra encerra um testemunho ‘Arai viva 169 daquilo que ele € A propria coesto da sociedade repouse no valor € no respeito pela palavra. Em compensagdo, a0 mesmo tempo que se difunde, ‘vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando -se a nica prova e o Gnico recurso; vemos a assinatura tornar -se 0 tinico compromisso reconhecido, enquanto. 0 laga sagrado e profindo que unia 0 homem & palavra desaparece progressivamente para dar lugar a titulos universitarios convencionais. Nas tradigdes afticanas — pela menos nas que conhego e que dizem respeita a toda a regio de savana ao sul do Sara — a palavra falaca se empossava, além de um valor moral fundamental, de um carter sagradc vinculado a sua origem divina e as forgas ocultas nela depositadas. Agente magico por exceléncia, grande vetor de “forgas etéreas”, nfo era utilizada sem prudéncia, Indimeros fatores — religiosas, magicos ou sociais - concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmiss4o oral. Pareceu -nos indispensavel fazer ao leitor uma breve explanagao sobre esses fatores, a fim de melhor situar a tradigdo oral africana em seu contexto e esclarecé -la, por assim dizer, a partir do seu interior. Se formulssemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista* africano: “O que ¢ tradigio oral?”, por certo ele se sentiria muito embaragado. Talvez. respondesse simplesmente, apés longo siléncio: “E 0 conhecimento total”. © que, pois, abrange a expresso “tradigio oral”? Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciéncias ensina e quem sio os transmissores? Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradigao cral africana, com efeito, ndio se limita a histérias ¢ lendas, ou mesmo a relatos mitolégicos ou historicos, e os griots estéo longe de ser seus tnicos guardifes e transmissores qualificados. AA tradigdo oral é a grande escala da vida, ¢ dela recuperae relaciona todos 08 aspectos. Pode parecer castica aqueles que nao Ihe descorinam o segredo desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradigao oral, na verdade, o espiritual e 0 material néo esti dissociados. Ao passar do esotérico para 0 exotérico, a tradig&o oral consegue colocar- se ao alcance dos homens, falar -Ihes de acordo com o entendimento humano, revelar- se de acordo com as aptidées humanas. Ela € a0 mesmo tempo religido, conhecimento, ciéncia natural, iniciago arte, historia, divertimento e recreagdo, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar & Unidade primordial 70 Metodloniae pe -hisriada Attica Fundada na iniciagio e na experiéneia, a tradigAo oral conduz 0 homem & sua totalidade e, em virtude disso, pode -se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma afticana. Uma vez que se liga a0 comportamento cotidiano da homem ¢ da comunidade, a “cultura” africana nao é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visdo particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presenga particular no mundo ~ um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem, ‘A tradigdo oral baseia -se em uma certa concepgao da homem, do sew lugar e do seu papel no seio do universo, Para situé -la melhor na contexto global, antes de estudé- la em seus varias aspectos devemos, portanto, retomar a0 proprio mistério da criagao do homem e da instauragdo primordial da Palavru: © mistério tal como ela o revela do qual emana, A origem divina da Palavra Como no posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradigBes que nfo tenha vivido ou estudado pessoalmente — em particular as relativas aos paises da floresta — tirarei os exemplos em que me apdio das tradigdes da savana ao sul da Saara (que antigamente era chamada de Bafur e que constituia as regies de savana da antiga Africa ocidental francesa). ‘A tradigao bambara do Komo? ensina que a Palavra, Kuma, & uma forga fundamental que emana do préprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela € 0 instrumento da criagdo: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. O mito da criagao do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que & sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela -nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. Antigamente a histéria da génese costumava ser ensinada durante os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida, passavam mais 21 anos estudando -a cada vez mais profundamente. ‘Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado entoava ritmadamente as seguintes palavras: “Maa Ngalal Maa Ngala Quem é Maa Ngala? * Uma as grandes esclas de iniciagdo do Mande (Mali.

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