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| peer | Aristételes | | POETICA ) Edigao bilingue editoral34 TradugZo,intcodugo e notas de Paulo Pinheiro Introdugao Paulo Pinheiro © que devemos considerar quando nos dedicamos a lei- tura de uma poética e, mais precisamente, de uma poética proposta por Aristételes? © que é uma poésica? Eis uma boa questo que pode nos servir de mote para abordar esse pe- queno, porém complexo, tratado. A Poética de Aristételes é tida por grande parte dos comentadores como obra incom- pleta e lacunar, cujas partes conservadas parecem constituir ‘uma compilacao de notas destinadas a ajudar 0 autor duran- te uma exposigao oral. Nada disso, entretanto, a impediu de se constituir como obra fundamental tanto para o estudo de um género especifico de produgo literaria quanto para a propria definicao de poética, pois, além de Aristételes se dedi- car A poesia mimética, de modo geral, ¢ & t-agédia, de modo, privilegiado, a sua Poética se apresenta como um método — normativo, presctitivo e, muitas vezes, apenas descritivo — para a composicio do poema mimético. De fato, a Poética de- ve ser compreendida como uma obra de cunho escolar orien- tada aos estudiosos que frequentavam o Liceu onde Aristé- teles ensinava e, no decorrer dos anos, a tocos os que preten- deram aprofundar o conhecimento sobre 0 modus operandi do poema mimético e as suas implicagées filosoficas. Como o préprio termo nos indica, a poética (poiétiké) de Aristételes deve ser compreendida como uma discussio “sobre o modo de composicio do poema” (peri poiétikés). Ela deveria nos ensinar a compor ou produzir um poema mimético (uma tragédia), evidentemente segundo os critérios expostos e defendidos pelo seu autor. Para tal fim, a questéo eminentemente poética para Aristételes nao deve se confun- dir, a0 menos in extremo, com a questo ética, que um autor como Plato certamente privilegiaria. Antes, o que interessa a0 estagirita é a possibilidade de compreender a utilizagao artistica de uma nogao estética como a de mimesis (mimese),! ainda que nos deparemos, no contexto da Poética, com as questdes relativas a formagao do éthos, isto é, do carater e da caractetizagao das personagens. Assim, a Poética nos remete, antes de tudo, & produgéo do miméma, ou, para sermos ain- da mais precisos, & produgao de uma imagem poética — ve~ rossimil ou mesmo necesséria — que nao se confunde com a experiéncia objetiva que temos das coisas ¢ das acbes, pois encontra a sua medida no apenas no objeto da representa- ao mas também, e sobretudo, no efeito mimético produzido. ‘Assim sendo, um poema mimético-dramatico serd tragico se, entre outros motivos e ao contrario do que se passa com a comédia, for capaz de produzir uma caracterizagao enobre- cedora da personagem e da ago levada a cena. Sem excluir a possibilidade de uma referéncia anterior, o poema miméti- co no se limita a ser o espelho (ou 0 reflexo) de tal referén- cia. O miméma jamais ser4 tomado como uma imagem de eventos tal como estes ocorreram e sim como uma imagem poética que introduz algo de novo, ou seja, que introduz uma diferenca, como, por exemplo, o caréter enobrecedor da mimésis tragica. De fato, 0 agente primeiro da mimésis é, para Aristételes, 0 poeta, ou seja, aquele que elabora uma * Ao longo da Poética, optei por traduzir mimésis por *mimese ‘mas, para manter a fidedignidade face aos textos citados nesta breve in- ‘odugo, mantenho aqui o termo transliterado, ou seja, mimésis. A tea- dugie de mimésis por “mimese” & sem ddvida alguma, questionsvel, mas de fato possuimos em portugués 0 termo “mimese”, que, sobretudo quan- {0 a0 aspecto fonético, se aproxima muito do termo grego miinésis. De todo modo, ser sempre oportuno lembrar que mimesis uma palavra que deveria constar num dicionério de termos gregos intcaduatveis. releitura dos antigos mitos da civilizagéo grega e que, no caso do poeta tragico, seria capaz de produzir, por meio des- sa releitura mimética, um efeito catartico, fruto da mani- pulagdo de emogies precisas que nos levariam depuracéo (katharsis) do pavor e da compaixdo evocados. Como nos explica M. Canto-Sperbes, a mimésis designa a inclinagao do homem a representar as coisas tal como poderiam ou deve- riam set endo como sio.” Ela é, portant, téo criativa quan- to imitativa, ou seja, ela nos remete a uma agao ocorrida que 6 no entanto, retomada e recomposta pela dtica inventiva do poeta mimético.’ As dificuldades de tradazir 0 termo mimesis sio intimeras ¢ as solugdes de que dispomos hoje em dia transitam, de modo geral, em torno de quatro possibilidades: a manutengao do termo grego mimésis, solugao de Halliwell; *processos imitativos” (“imitative processes”), de Else; “re- presentagées” (“représentations”}, de Dupont-Roc e Lallot; ¢, simplesmente, “imitacdes”, de Eudoro de Souza. A opcao adotada de traduzir mimésis por “mimese”, que se justifica pela proximidade fonética e por um certo aportuguesamento do termo grego, jamais agradaré a “gregos e troianos”. “Mi- mese” foi a solucéo aproximativa utilizada para fazer refe- réncia & “mimética produtiva” ou “inventiva”, que se distin- gue da ideia que temos de representacio e de imitacao, assim como da imitatio latina, pois nao se trata da reapresentacao imitativa de um modelo, mas de um modus operandi deter- minado para reunir, dispor ou compor as agées ¢ aconteci mentos trgicos “ocortidos”. ‘Como dizemos com certa frequéncia, 0 objeto proprio da poética nao é a obra literéria em si mesma e sim a sua 2 M, Canto-Sperber, Philosophie grecque, Paris, PUF, 1997, p. 435, 3 Avisroceles deverto privilegia a nogdo aqui exposta de mimesis, mas {sso ndo 0 impede de remeter 0 seu pilico a exemplos de tragédia em que ppersonagens ¢ agdes sio inteiramente inventados, como ocorre no Anthew cde Agithon (ver Poética, 145120). fungao: seu objetivo nao é diretamente descritivo, mas teéri- co, e nela s6 se introduz o poema na condigio de exemplo. De fato, em sua Poética, Aristoteles se serve de intimeros episddios (retirados da poesia épica, dos ditirambos, das tra- gédias e das comédias), mas é especialmente a questio teéri- ca que esté em voga, como a definicao, ¢ distingio, das partes ou dos elementos que constituem 0 poema mimético, 0 pro- cesso de hierarquizagdo dessas mesmas partes, os modos de se produzir cada uma dessas partes, assim como a anslise de questdes mais pontuais como o estudo de problemas lexicais especificos que afetariam a leitura (ea mé leitura) do poema, ‘© comportamento em cena dos atores, a produgao dos cené- trios ¢ mesmo os procedimentos musicais. Ainda que tais com- ponentes facam parte da Poética, nao é possivel deixar de perceber que Aristételes prefere remeter os problemas lexicais e elocutérios & Retdrica; os problemas musicais, aos Trata- dos de Harmonia (sabemos que em sua escola Aristoxeno redigin um tratado de harmonia) ¢ os assuntos relativos & cena ou ao espetaculo propriamente dito (psis), a cendgrafos e diretores de cena. A Poética é, acima de tudo, um tratado sobre 0 poema mimético, isto é, sobre o poema tragico, em- bora Aristételes trate também do pocma épico, que é uma modalidade de poema mimético. possivel, no entanto, que Arist6teles ndo tenha apreendido o que modernamente se considerou o auténtico sentido da experiéncia trégica (a sua dynamis poética, 0 seu fundamento, como dizemos hoje em dia, dionisfaco ¢ entusiastico) e que ele tenha nos legado ape- nas o fruto tardio de um vasto conhecimento que provinha das antigas pegas do teatro trigico. Como observa Vernant, “[.] a tragédia surgiu na Grécia no final do século VIa.C., ¢ antes que se tenham passado cem anos ela ja tinha silenciado a sua voz; pois quando, no século IV a.C, Aristoteles resolve, em sua Poética, estabelecer a teoria da tragédia, ele ndo compreen- 10 de mais 0 que é 0 homem tragico, que se Ihe tornow, por assim dizer, estrangeiro.”* Assim, se pot um lado Aristételes pode ser considerado um “estrangeiro” analisando teoricamente a tragédia e, de ‘um modo geral, o conjunto das artes poftico-miméticas, por outro nfo podemos esquecer que ele é um inovador em rela~ Go a Plato, pois a sua compreensio da mimésis tragica se afasta sensivelmente da concepedo platénica. De fato, assim como tivera em Plato o seu adversaric de respeito, nos diz Costa Lima, a mimésis antiga encontrou em Aristételes “o seu grande sistematizador”.’ Em verdade, Aristételes ndo se cansa de elogiat a tragédia ¢ a sua Poética termina mesmo com a afirmagao da supremacia da tragédia sobre a poesia épica.! ‘Teoria PoeTICA ‘A tragédia, tema central do que nos restou da Postica, além de instituir 0 objeto de uma teoria sobre a atividade poética, constitni, para Aristételes, uma espécie de apogeu das manifestagdes artisticas do seu tempo. Isso porque ela serd tomada como o resultado de um conjunto de expresses artisticas que envolve a miisica (a composicéo da melodia), a poesia (a elaboracao do enredo e da métrica, assim como a caracterizagao das personagens ¢ a reflexdo ou o pensamen- to introduzido) ea cena teatral propriamente dita (abrangen- do 0 trabalho dos atores e a produgac dos cendrios). Nada 4 Jean-Pierre Vernant e Pierce Vidal-Nacuet, Mythe et tragédie en Gréce dncienne, Paris, La Découverce, 2001, p-21. 5 Luiz Costa Lima, Mimesis: desafio ao pensamento, Rio de Janci- +0, Civilizagdo Brasileiz, 2000, p. 31. 6 Postica, 1462b13, uu disso, no entanto, se constituiria como espetéculo trégico se 1ndo fosse o trabalho primeiro do poeta. Aristételes conside- aa tarefa do poeta tragico, isto é, a composi¢ao do enredo (mychos), como a parte fundamental da tragédia. A atividade do poeta é pensada, sobretudo, a partir da nogao de “trama (composicao) dos fatos (acontecimentos)”, expresso que em grego se diz syscasis On pragmatdn, a reunido das agdes na forma especifica de um enredo tragico. As outras partes da tragédia sio sem diivida importantes, mas certamente nao incidiriamos em erro se disséssemos que sio tomadas por Acistoteles como categorias da syscasis ton pragméton. Assim, consideramos a hipdtese de que Aristételes nos apresente a composicéo do poema mimético por exceléncia, a tragédia, como sendo formada, primeira e essencialmente, pela com- posigéo do enredo, que nos remeteria diretamente & consti- tui¢éo das personagens (éthé}, ao pensamento introduzido (didnoia), & elocugao (léxis), ao espetaculo visual (dpsis) e & composigéo do canto (melopoifa). E possivel imaginar que cada uma dessas partes, A excecio do mythos, constitua 0 objeto de uma ciéncia prépria. Embora nem todos estejam de acordo, é possivel pensar que a Poética constitui para Aristételes uma eékhné — desde que se entenda essa nogo no apenas como um conjunto de regras a ser seguido pelo autor mimético, mas também como um sistema de divisio, que contempla o niimero de partes envolvidas no processo de criagao, e de valoragio, que per- mite determinar o grau de importéncia das partes envolvidas nesse proceso. Originalmente, a cékhné é a atividade que permitiu a distingao entre o homem e o animal selvagem, a-légos — literalmente, 0 “sem discurso”. Todos, homens animais sem l6gos, destinam-se & morte ¢ esto submetidos a temporalidade. A sékhné foi tomada como uma atividade divina que s6 veio a pertencer aos homens apés 0 roubo co- metido por Prometeu, o benfeitor das criaturas indefesas ¢ limitadas que sobrevivem em um ambiente hostil e selvagem, 2 Foram essas criaturas indefesas que receberam, das maos do deus, o fogo ¢ as habilidades técnicas necessarias ao uso do fogo. A tékhné seria, portanto, a condigéo primeira para 0 desenvolvimento de uma civilizagao ou mesmo de uma “hu- manidade”. E se levarmos em consideracio 0 que diz Esqui- Jo em seu Prometeu Acorrentado (v. 252), os homens teriam recebido, junto com o fogo e a capacitagio técnica, as “cegas esperancas” (cyphlis elpidas), que Ihes permitiriam nao co- nhecer a sua inexordvel condi¢io. Assim, a racionalidade das ‘operagées técnicas ou artisticas levaria o homem a um terri torio de idealizacdes que, paradoxalmente, 0 conduziria ao desconhecimento da morte, pois sem esse “desconhecimento” eles nao seriam capazes de suportar o peso da propria exis- téncia. A tékhné seria entao um pharmakos — um remédio, mas também um veneno —, que caracterizaria a propria con- digdo humana, pois ao mesmo tempo em que capacitaria homem para a vida num ambiente hostile selvagem, o faria esquecer a sua propria condigao, em proveito de uma idea- lizagao técnica, ou seja, em proveito da idealizagao de um procedimento que se prestaria repeticio, & imitagao, a c pia, & simulagao e, de um modo geral, a todos os termos que acrescentariam sentido 4 nogio grega de mimésis. E verdade que Aristételes praticamente nao se refere ao caso de Prome- teu em sua Poética (uma tnica citagao na segio 18), mas a questdo se impde a toda prova, afinal ¢ 0 proprio estagirita que insiste em tratar a poiétiké como um procedimento (uma atividade e mesmo uma inclinac&o natural) que nos remete, diretamente, & mimesis, pois, como ele préprio afirma: “g agdo de mimetizar se constitui nos homens desde a infancia, e eles se distinguem das outras criaturas porque sao os mais miméticos e porque recorrem & ‘mimésis (mimese) para efetuar suas primeiras for- mas de aprendizagem, ¢ todos se comprazem com as miméseis (mimeses) realizadas”. (Poética, 1448b5) 3B Sopre a mimésis E inegavel que a reflexo de Aristételes sobre a mimésis recebeu forte influéncia dos poetas trégicos, mas é sobretudo 0 didlogo e 0 confronto com as hipéteses platénicas sobre a -mimésis que marcam © posicionamento aristotélico. De um modo geral, Plato reprova a mimésis. O que nela se apre- senta pode determinar um distanciamento face ao conheci- mento verdadeiro e face & prépria ética, pois nem sempre a atuagaio mimética esta envolvida com 0 conhecimento do bem e do belo (da verdade). E como se Plato nos dissesse que um artista mimético pode representar a virtude sem nada saber sobre a virtude, pior ainda: sem ser absolutamente virtuoso. Um ator pode aparecer em cena como um homem corajoso e nao ser, de fato, um homem corajoso, Por meio da minésis, também se poderia difundir a representagio de uma aco viciosa, pois o poeta mimético se duplica e se multiplica e nao esta comprometido unicamente com a mimésis das ages vir- twosas (corajosas, sébias, prudentes). Essa é uma das grandes acnsagées que pesa sobre as artes miméticas e que, desde Platéo, separa — ou pretende ao menos separar — o univer- so mimético das artes do campo das agGes propriamente re- guladas pelo conhecimento ético. E bem verdade que para Platéo 0 aprendizado das artes exerce um papel fundamental na educagao das novas geragdes, mas isso no impede que por meio da mimeésis se produza até mesmo o contrdrio de um procedimento verdadeiro ou ético. Como sabemos, Plato condena o artista por causa da sua atividade mimética, que 6 em outras palavras, o que mais caracteriza a atividade do artista no mundo antigo. Por meio da mimesis, os agentes envolvidos no processo mimético poderiam ter a falsa ideia de que sabem o que em realidade nao sabem, visto que apenas mimetizam. Assim, a questo propriamente ética, e é bom 14 Iembrar que Plato avalia as artes sob o ponto de vista de uma ética, pode se afastar quase que inteiramente dos pro- blemas relativos as artes miméticas. Esse 6, sem diivida, 0 motivo central que leva Platao a condenar a mimética. Aristoteles, por sua vez, retoma a mimésis como proce- dimento artistico puro e simples. Ele quer determinar 0 cam- po de atuagio do que se poderia chamar de “mimético”, quer saber quais so essas artes, como funcionam, quais os seus limites e relagbes miituas, Arist6teles nao mistifica a mimésis, referindo-a a um ideal assim como o fez Plato, mas ele de- certo encontra nas manifestagGes miméticas principios e ele- ‘mentos constitutivos que terminam propondo, de um modo bastante diverso do de Plato, uma hierarquia para as expres sdes miméticas. ‘Ao contrério do que ocorre em Plata, Arist6teles nos situa diante da arte poética em si mesma, em suas espécies consideradas a partir de suas prOprias finalidades, no modo como se deve realiz4-la, no niimero e na natureza de suas partes. Nao é preciso ser um leitor muito atento de Arist6te- les para perceber que, em seu tratado de Poética, ele segue um plano de exposigio extremamente coerente com a sua Légica, Mas é relevante lembrar que Aristoteles estd se refe- indo a uma atividade poética. Ele praticamente descreve a seus contemporaneos ¢ aos frequentadores de sua escola 0 que € uma obra poético-mimética, como defini-la, como di- ferencié-la das demais obras, e, sobretudo, como realiza-la a contento. SOBRE A TRAGEDIA A tragédia 6, para Arist6teles, uma forma magistral de arte poético-mimética. Por essa razdo ele opta por se dedicar, preferencialmente, a essa forma de expresso mimética. Aris- toteles esta basicamente preocupado em apresentar 0 que as 15 artes poéticas tém em comum, assim como os elementos em funcdo dos quais é possivel diferencié-las. A primeira preo- cupacao é, portanto, com a definigao. Aristételes ¢ certamen- te um dos maiores taxonomistas da histéria. Sua Poética po- de ser tomada como uma grande categorizagdo, um compén- dio, capaz de situar cada uma das partes constituintes de um conjunto bastante complexo. Jé sabemos que, em sua “cate- gorizagio”, a tragédia € um caso da arte poético-mimética, ‘Agora € preciso saber — se queremos seguir a metodologia aristotélica — como chegar ao que € a arte poética tragica. Para isso é preciso saber como esse conjunto maior, o das artes poéticas, se diferencia. Arist6teles nos fornece os elementos com uma precisio excepcional. Ele se serve de um jogo de palavras que seria certamente dificil de traduzir para o nosso idioma. Normal- mente se diz que as artes posticas se diferenciam segundo os meios (herérois}, os objetos (Aécera) e os modos {hecérds). No caso de heeérois, as artes se diferenciam na medida em que utilizam tais e tais meios de expresso, como o ritmo, a lin- guagem e a melodia (on harmonia). No que tange & Aétera, as artes poéticas se diferenciam na medida em que represen- tam situagdes melhores, piores ou semelhantes 4s que supos- tamente ocorreram. No que diz respeito a herérds, as artes miméticas se diferenciam quanto ao modo da aco descrita, ou seja, quando sao apresentadas por meio de uma simples narrativa — quando o autor se apresenta na condigio de narrador descrevendo uma determinada ago ou assumindo a forma de uma personagem — ou no modo dramético, on- de tudo 0 que temos so personagens em acio sem a figura central de um narrados. Essas tr8s modalidades de diferenca (héteros) permitem a Aristételes classificar a vasta gama das atividades poéticas, levando o leitor (ou 0 seu piiblico ouvin- te) & primeira definigdo da tragédia. A tragédia é uma arte poético-mimética que se diferencia das demais por utilizar todos os meios — ritmo, linguagem e melodia —, por quali- 16 am | ficar uma acio nobre e por apresentar o enredo de forma dramitica, isto é, nao por meio de uma narrativa, mas de atores em cena, Ela nada tem a ver, portanto, com a histéria, pois Aristételes se refere a unidade de uma aco e néo a com- plexidade de um acontecimento hist6rico. O que se opde & “histéria® (mychos) verossimil e necesséria, compreendida como enredo, é a “hist6ria” do particular, sem unidade poé- tica ou sem unidade de composigao. A verossimilhanga ¢ a necessidade se opdem assim & narrativa di'spangelias, isto é “hist6rica”, no sentido de narrativa particular e nao no senti- do atistotélico de composi¢ao do myths. Arist6teles insiste: “Com efeito, o historiador e poeta diferem centre sino por descreverem os eventos em versos ‘ou em prosa (poder-se-ia apresentar os relatos de Herddoto em versos, pois nao deixariam de ser re- latos histéricos por se servirem ou nao dos recursos da metrificagao), mas porque um se refere aos even tos que de fato ocorreram, enquarto 0 outro aos que poderiam ter ocorrido.” E Snalmente conclui “Eis por que a poesia é mais filos6fica e mais nobre do que a historia, pois a poesia se refere, de preferéncia, a0 universal a hist6ria, ao particular.”” Ora, o que diferencia a mimesis trégica da narrativa his- t6rica é, além do modo dramético, a presenca de um eélos, de uma finalidade para a agdo representada, Para Arist6teles, a historia tomada como apangelia nao tem finalidade, ou seja, no possui um desfecho necessario, enquanto que 0 enredo ? Poética, 1451237-1451b7. 7 trdgico se orienta, justamente, pela finalidade a ser alcangada. Por meio do enredo trégico a catarse deve ser alcancada. A catarse constitui o acontecimento final para 0 qual concorrem, todos os elementos da tragédia, mas, como o enredo tem predominancia sobre as demais partes — Aristételes 0 con- sidera como a parte mais importante (mégiston) —, a sua composicao deve ser considerada como um elemento prepon- derante na promogao do acontecimento trégico por excelén- cia, ou seja, a catarse. O fato de o mito, ou seja, a trama dos fatos ou o enzedo, ter finalidade (rélos) gera a necessidade de que a sua composicao seja elaborada segundo uma precisa ordenagao técnica. Reza a boa técnica de composicio de mi- tos (entendendo 0 mito como enredo dotado de finalidade e suscetivel & representago cénica) que eles constituam um todo — com principio, meio e fim— e que possam dispor de uma extensdo precisa — que ndo sejam nem muito extensos nem muito curtos. Em outras palavras, que 0 mito, ou enre- do, tenha uma ordenagao com encadeamento necessario ¢ com extensao determinada, expressa no ato mesmo de repre- sentar ou de dramatizar, capaz de produzir uma mecdbasis, uma transformagio ou uma passagem, em geral brusca, na ordem dos acontecimentos, Edipo, por exemplo, passa o tempo todo se esquivando do seu “destino”, para, num determinado momento, realizar ‘0 que fora prescrito pelo ordculo. Ao agir de um determina- do modo, Edipo estava, sem o saber, agindo de outro modo; ou melhor ainda: estava agindo de modo contrério ao que julgava agir. Essa mudanga de direcionamento é propria & znimdsis tragica. Ao se distanciar dos pais adotivos, que con- siderava como legitimos, estava se reunindo aos pais verda- deiros, que Edipo tomou como inimigo a ser vencido ¢ mor- t0, no caso do pai, e como amante ou esposa, no caso da mae. Quando se revela a Edipo essa modificagdo no sentido da ao, pois tanto Edipo quanto a plateia passam a conhecer que antes nao conheciam, a catarse ja deveria estar prestes a 18 ocorrer. Pois nela, todo 0 pavor € a compaixao, suscitados pela dramatizagao, serdo purgados ou depurados. A catarse € esse ato derradeiro de “purificagio” ou de “descarga” emo- cional, sem 0 qual a tragédia nao atingiria o seu objetivo. Como bem define no livro VI de sua Poética: “E pois a tragédia a mimésis (mimese) de uma agio de cardter elevado, completa e de certa exten- so, em linguagem ornamentada, com cada uma das espécies de ornamento distintamente distribui- das em suas partes; mimésis que se efetua por meio de ages dramatizadas e nao por meio de uma nar- rago, e que, em funcao da compaixao e do pavor, realiza a catarse de tais emogoes.”* Tal definigao é esclarecedora. E possivel que Aristoteles tenha deixado escapar algum aspecto, mas certamente nin- guém antes dele conseguiu determiner tao bem 0 teor, a abrangéncia e a funcdo dessa modalidade de arte mimética que ele privilegiou em sua Poética. Contrariamente a Platao, Atist6teles investe no enredo (systasis eon pragmdron) como critério maior da produgio tagica, ou seja, como a parte determinante para a atividade poética que ele tentou definir. Platdo se afastou da tragédia justamente por que a considerou istante dos preceitos éticos para ele determinantes. Arist6- teles, por sua vez, enaltece o mito, to:nando o carter da personagem (aquilo que a caracteriza) um efeito construido, sobretudo, na composicao do enredo, e que, se bem realiza- do, deveria produzir a mecsbasis(peripéieia, anagndrisise pé- thos, traduzidas, respectivamente, como “reviravolta”, “re- conhecimento” e “comocao emocional”) pela qual o drama * Poética, 1449624. 19 tragico atinge o seu termo com a catarse do pavor e da com- paixao gerados pela prépria agdo dramatizada. Eis entio algumas poucas prelegées iniciais sobre a for- ma como Aristételes articula os principios, os elementos (as partes) € a finalidade da atividade poético-mimética, cujo pice ele acredita poder situar numa manifestagao mimética por exceléncia: a tragédia. A Poética de Aristételes é, de fato, tardia. Ela 6 bem posterior ao perfodo dureo da tragédia — em que Esquilo, S6focles ¢ Euripides compuseram e “mime- tizaram” os mais conhecidos eventos da poesia tragica —, ‘mas constitui a primeira formulago abrangente e teorica- mente fundamentada da qual temos conhecimento e, desde que foi escrita, jamais deixou de influenciar geragées e mail geragdes de poetas draméticos — voltados para a busca ou para a recusa dos critérios estabelecidos por Arist6teles —e estudiosos — interessados em saber 0 que é uma poét mais precisamente, 0 que uma poética aplicada a atividade mimética. E ainda que a tragédia seja uma produgiio até cer- to ponto datada, a sua verve originéria nunca deixou de pro- duzir 08 seus efeitos e inquietagdes, isto é, desde que Téspis de lcdtia compés os seus primeiros versos dramaticos.? Vipa Fora Aristoteles nasceu em 384 a.C, (ano da 99° Olimpiada), nna cidade de Estagira, na regido da Calcidica, sob domi do reino da Macedénia, ou seja, numa cidade situada nos limites da civilizacao helénica. Sua mae possufa uma proprie- dade em Calis, na ilha da Eubeia, onde mais tarde Aristote- les ird se refugiar e morrer. Seu pai chamava-se Nicémaco ¢ » Considerado pela tadigio o inventor da teagédia como forma tea tral, dramaturgo Tésps nasceu em Ieéria no século VI a.C., teria ven- ido 0 primeiro concurso de tragédias, realizado em Atenas em $33 .C 20 foi médico pessoal do rei Amintas II (pai de Filipe Il ¢ avé de Alexandre). Habitualmente um médico deveria educar 0 seu proprio filho, seguindo assim a tradi¢ao da época, mas no caso de Arist6teles isso nao foi possivel, e a influéncia do deus Asclépio, do qual Nicémaco se considerava um des- cendente, néo péde ser passada, ao menos integralmente, a seu filho. Nicémaco morre deixando Atist6teles 6rfo ainda bem cedo, antes, portanto, de receber do pai a formacao in- tegral em medicina. Costumamos, no entanto, dizer que a influéncia do pai ndo deixou de marcar a inteligéncia de Aris- tteles, que sempre concebeu 0 conhecimento como um oF- ganismo, elaborando um método experimental fundado no respeito aos fatos, Plutarco, em seu estudo sobre a vida de Alexandre (Li- vro VIII), !° nos remete a uma passagem em que o préprio Alexandre teria indagado Aristételes a respeito de sua for- magio, querendo saber quem de fato eram os seus mestres. A resposta obtida ndo poderia ter sido mais elucidativa: “aprendi com as préprias coisas ¢ elas no me ensinaram a mentir”, o que atesta o cardter empirico e cientifico dos in- teresses (praticos e tedricos) do estagirita, De fato, Arist6reles foi educado por um tutor, Proxeno de Atarnea, ¢, aos dezes sete anos (por volta de 366 a.C.), ele se muda para Atenas, tornando-se membro da Academia de Pletdo. Ele deverd ficar na escola platénica por cerca de vinte anos, mais precisamen- te até a morte de Plato. Sua vida intelectual se divide em dois periodos atenienses, intercalados pelo periodo em que viveu fora de Atenas como preceptor de Alexandre da Macedénia. No final da sua vida, ele retorna a ilha de Eubeia. Admite-se que Arist6teles logo se distinguiu na Acade- ia, passando de mero discfpulo a “explicador” ou “comen- 2A série de biografias intitulada Vidas paralelas dos homens ilus- tres ou, simplesmente, Vidas paralelas (Biot napaXhnhor, Broi pailllo), constituida de 46 biografia, foi composta entre os anos 100 ¢ 110. a tador”!! e, em seguida, a encarregado dos cursos de Retorica. Plato apreciava muito Aristételes e o chamava, alguns dizem que com certa dose de ironia, de “o leitor” (anagnéseés), por conta, certamente, da sua avidez pela leitura e pelo seu noti- vel enciclopedismo, ou de “o cérebro” ou “0 espitito” (notis) da escola. A possivel ironia platénica talvez se deva ao fato de que os gregos nao tinham o habito de ler, mas sim de ou- vir a leitura, via de regta feita, como podemos observar em diversos relatos, por um escravo. Aristételes tinha, portanto, hébitos que no condiziam com os dos nobres atenienses. ‘Apesar de sua origem grega por parte materna, ele foi sempre considerado, em Atenas, um “meteco”, um estrangeiro que tinha autorizagao para residir na pélis, distinto do cidadao, © eupatrida, e do escravo. Ao meteco cabia pagar uma taxa especial ¢ a obrigacdo de cumprir o servico militar, endo direito & protegio judicial, mas sem poder ser proprietirio fundidrio. A derrota dos atenienses na guerra do Peloponeso, a incapacidade politica de Atenas para unir as cidades gregas formando uma federagio pan-helénica ¢ a ascenséo do po- derio militar macedénico devem ter criado situacées dificeis para Aristoteles em Atenas. Além disso, a morte de Plato, em 347 a.C., € a escolha do nove dirigente da Academia, Espeusipo — que suscitou certo rancor no estagirita —, cer- tamente constituiram fatores decisivos para Aristételes deixar Atenas. Finalmente, em 343 a.C., Filipe da Maced6nia o re- ‘ctuta como preceptor de Alexandre, na época com treze anos de idade. Nesse momento de sua vida, Arist6teles parece ter desfrutado do mesmo sonho de Plardo em Siracusa, ou seja, 1 de ver suas ideias aplicadas a uma situagao politica efetiva, tendo como discfpulo um descendente real. Alexandre tinha grande consideracdo por Arist6teles, ¢ 0 mestre jé havia, nes- sa época, adotado o modelo peripatético, pois preferia ensi- 21 Aristételes explicava, a outros discipulos e a0 piiblico em geral, pontos especificos da obra e do pensamento de Plato. 2 nar passeando (peripacein), provavelmente pelos jardins da corte de Pela. Plutarco nos conta que a admiragao de Alexan- dre por Aristételes era tio grande que chegava a consideré-lo como um pai, devendo a Filipe a vida e ao estagirita a arte de bem viver. Em 335 a.C., com a partida de Alexandre para a Asia, Aristoteles retorna a Atenas por um periodo de treze anos. Ele passa entio a ensinar pelo método peripatético per- to do bosque consagrado a Apolo Lykeios (um local destina- do a ginastica e a palestras, muito utilizado pelos atenienses, € que provavelmente acabou dando nome a sua “escola”, 0 Liceu). £ possivel que Alexandre tenha ajudado Aristételes nessa empreitada de retorno a Atenas, sem que possamos saber se de fato assim ocorreu. © que sabemos que Arist6- teles entra em conflito com os representantes da Academia platénica, sobretudo Xenécrates, entao seu diretor, o que justificaria o sew interesse em fundar uma nova escola (ainda que o Liceu como escola aristotélica s6 exista a partir de Teofrasto, sucessor de Aristételes), Sobre a sua obra, Diogenes Laércio nos diz que Arist6- teles redigiu cerca de 445.270 linhas. Admite-se (a partir de I. Bekker, Berlim, 1831) a seguinte cronologia para Seus es- critos: Logica (Organon) e Fisica (livros escritos antes da fundagio do Liceu), Da geragao e da corrupeao, Do cosmos, Do céu, Dos meteoros, Da alma, Parva Naturalia (pequenos tratados de fisica,fisiologia e estudos sobre a alma), Histéria dos animais, Das partes dos animais (e trés outros tratados de zoologia}, diversos tratados “menores” (de 6tica, botani- cae meteorologia), Problemas (Problemas homéricos), Re- t6rica a Alexandre, Metafisica, Economia, Grande moral, Etica a Eudemo, Etica a Nicémaco (Etica Nicomaqueia), Constituicao de Atenas (ou dos atenienses), Das virtudes ¢ dos vicios, Politica, Retorica e, por fim, a Poética. Temos ainda os Diélogos de juventude, escritos & moda de Platao, dos quais poucos fragmentos chegaram aos nossos dias. E preciso falar ainda do vasto trabalho “Sobre a filosofia”, cujo 23 desaparecimento nos deixa to frustrados quanto o desapa- recimento da parte dedicada 3 comédia em sua Poética. No Liceu, o estagirita costumava reservar as manhas para os “passeios” (periparésis) com os jovens “iniciados” (epéprés), quando versava sobre assuntos esotéricos, vedados ao gran- de piblico; a tarde, ele se ocupava com os assuntos exotéri- cos, isto é, abertos a um piiblico maior, quando abordava temas politicos, retoricos e morais. Aristételes morreu em 322 a.C., com cerca de 63 anos de idade, de uma doenca do sistema digestivo. Deixou Atenas em 323 a.C., ano da morte de Alexandre. As razbes para sua partida s4o, pelo menos, duas: a forte reagao antimaced6ni- ca suscitada pela morte de Alexandre ¢ um processo por im- piedade, por ter composto um hino honrando “como a um deus” o tirano Hérmias, seu amigo. Ele teria se lembrado do processo movido contea Sécrates, tendo dito que nao era possivel dar aos atenienses uma outra ocasiao para se come- ter um segundo crime contra a filosofia. Refugiou-se entio em Caleis, patria de sua mae, deixando a sua “escola” ¢ a biblioteca aos cuidados de Teofrasto, Se os dados histéricos de que dispomos esto corretos, entéo Aristételes morreu um ano apés 0 inicio do seu exilio voluntario em Calcis. © LUGAR DA POETICA NA OBRA DE ARISTOTELES Quanto & posigdo da Postica na obra de Arist6teles ain- da nao se chegou a um consenso determinante. A maior par- te dos estudiosos consideram a possibilidade de que 0 proje- to da Poética envolva a obra de Aristételes como um todo. © que significa dizer que a Poética é um tratado, uma arte ‘ou uma técnica, que se dissemina por todos os perfodos da vida intelectual de seu autor e que, muito provavelmente, recebeu um tratamento especial no iltimo periodo, ou seja, quando se encontrava em Atenas. 4 Considera-se a obra de Aristételes como compreenden- do trés periodos. O inicial, correspondente A primeira estadia do estagirita em Atenas na condicéo de discipulo de Platao, se daria entre 367 e 347 a.C. Nesse periodo, Aristételes es- taria sob forte influéncia do mestre e, ainda que a sua per- cepcio da poesia épica e da poesia dramitica se distinga subs- tancialmente da de Platao, é possivel admitir que a reflexdo plat6nica sobre as artes — desenvolvida em didlogos como Ton, Hipias Maior, Fedro, Repiiblica (Livro Ill) e Leis (Livro Tl), entre outros — tenha suscitado em Arist6teles o interesse por desenvolver a sua propria teoria sobre a representagio artistica, No entanto, nao é possivel avaliar o quanto Arist6- teles jd se interessava pelos temas abordados na Poética nes- se primeiro perfodo, jé que, infelizmente, suas obras entio produzidas nao chegaram aos nossos dias.!2 O segundo periodo se daria na core da Macedénia, na condig&o de preceptor de Alexandre, entre 342 ¢ 336 a.C. Sabemos o quanto Arist6teles se interessou, nessa época, pe- las questdes relacionadas & obra de Homero. O estagirita teria oferecido a Alexandre um exemplar da Ilfada, que te se tornado o livro de cabeceira do jovem rei dos maced6nicos. O terceira periodo ocarreria durante a segunda estadia oficial do estagirita em Atenas, momento em que Aristételes teria ensinado em Atenas no Liceu, por volta de 335 a 323 a.C. A seco Ill da sua Poética parece oferecer os indicios necessérios para se acreditar que a redacao desse tratado se deu em Atenas. Como afirma Magnien, Aristételes parece se posicionar geograficamente em Atenas quando nos diz. que “[..] também os déricos reivindicam para si a ori- gem da tragédia e da comédia (a comédia é reivin- 52 $6 nos restam algumas linhas do dilogo Sobre os poetas, perten- cente & primeira fase da obea de Arist6tees. 25 dicada a uma s6 vez pelos megiricos daqui, que dizem que ela surgiu no momento em que estavam sob regime democratico; e pelos megaricos da Sict- lia, pois é desse local que advém o poeta Epicarmo, bem anterior a Quidnidas e a Magnes; a tragédia & requerida por alguns dos déricos que habitam 0 Peloponeso).” (Poética, 1448430)? ‘Além disso, 0 cardter de incompletude da Postica, assim como as iniimeras frases inconclusas, com varias oraces su- bordinadas, nos permitem notar o quanto a obra ainda esta- va aberta a novas investidas e complementos, provavelmente apresentados durante as suas “aulas” no Liceu. O apéndice n° 1 do livro de Stephen Halliwell, Aristotle's Poetics (1998), nos oferece uma excelente discussio sobre a possivel datacao do texto, Mas 0 autor constata que mesmo os trabalhos mais recentes (Solmsen, Lienhard, De Montmolin ¢ Else) nao con- seguem determinar uma data precisa para a composicao des- se polémico trabalho de Arist6teles. Uma constatagao é, no entanto, definitiva: a Poética, primeira obra do género, inau- gura uma tradigao. Nesse sentido, repetindo a frase de H. Laizé, podemos dizer, com alguma seguranga, “que a Poética constitui o pré-texto de toda poética furura”."* O piano Da Pos rica O texto de Aristételes, tal como chegou aos nossos dias, € composto de 26 secdes ou capitulos que sao tradicional- mente apresentados do seguinte modo: 1 Aristote, Poétigue, traduglo de Michel Magnien, Paris, Librairie Générale Francaise, 1990, p. 20. Hlubect Laizé, Avstote: Poétique, Paris, PUF, 1999, p. 24. 26 Secdes 1 a S: Introdugao a Poética Segio 1 Consideragdes basicas: delimitacio do tema e definigao da poética (144728); As artes miméticas (47a13); Critério de diferenciagio: médium (meio), qualis (qua- lidade ou objeto) e modus (modo) de se produzir a mimese (4715); ‘A diferenca segundo os meios (47218). Segio 2 A diferenca segundo as qualidades ou segundo os obje- tos (48a1). Segio 3 A diferenga segundo os modos (48220); A semelhanca entre a tragédia e a comédia (48424); Erimologia de drama e comédia (48430). Segio 4 - Origens da arte pogtica: a tendéncia natural do homem & mimese (4864); Historia da literatura e do teatro (48620); Nascimento da tragédia e da comédia (49a2). Segao 5 Definigao de comédia e de cémico (49232); Origens da comédia (49437); Relacao e diferenca entre epopeia ¢ tragédia (4969), Seo 6: Definigao da tragédia A tragédia e suas partes constitutivas (4924); 27 As seis partes constitutivas da tragédia: enredo, caracte- res, elocucio, pensamento, espetéculo e melopeia (5047); Importancia relativa das seis partes: a mais importante dessas partes € a trama dos fatos (50a15)s Reviravolta e reconhecimento (50335); Classificagao das seis partes da tragédia (50238). Segdes 7 a 18: Composicao da tragédia Segdes 7e 8 Principios gerais do enredo tragico: a tragédia é a mime- se de uma aco conduzida a seu termo, formando um todo ¢ tendo certa extenséo (50b21)s Definigao de “todo”: comego, meio e fim (50626); A beleza como extensao ordenada (50b35); limite da extensGo: a extensio segundo a verossimi- thanga ou a necessidade (5126); A unidade da agao (S1a16). Seca 9 Poesia ¢ hist6ria: a verossimilhanga ea necessidade (51 236), 0 universal e o particular (51bS); (Os nomes dos personagens: arbitrarios ou forjados ¢ conhecidos ou existentes ($1b11); As duas emogdes da tragédi al). pavor e compaixao (52 Segao 10 Enredos simples e complexos (5282). Seco 11 A reviravolta [peripéceia] (52422); O reconhecimento [anagndrisis] (52a29); A comogio emocional: pathos (52b9). 28 Segao 12 A extensio da tragédia e as suas divisdes: prélogo, epi- s6dio, éxodo e canto do coro (52614); Definigdes (52b19). Seco 13 A situagio trégica por exceléncia (52628)s (O her6i tragico: situagdo intermedidria (5347). Segio 14 ‘A origem das emogGes tragicas: pavor e compaixao (53 bi) O prazer proprio A tragédia (53b8); Os acontecimentos temerosos e dignos de compaixio (piedosos) (53b14); Historia das familias que se prestam a tragédia (5429). Seco 15 Sobre os caracteres: verossimilhanga e necessidade. Os quatro objetivos: bondade, conveniéncia, semelhanga ¢ coe- réncia (54a16); Eliminacao do artificio ao deus ex machina [apd mékha- (54237); ‘A mimese de homens melhores (54b8).. Seco 16 reconhecimento por meio de signos inatos ou adqui- ridos (9419); 0 reconhecimento produzido pele poeta (54b31); O reconhecimento em funcao da meméria (S4b37)s O reconhecimento que provém do raciocinio (5524); melhor reconhecimento: 0 que advém dos préprios fatos (S4a16). 29 Secao 17 Os episédios na tragédia e na epopeia: a visi cena (SSa22); desenvolvimento dos episédios (5Sb14). Seco 18 O enlace ¢ o desenlace [désis e lysis] (S5b24); ‘As quatro espécies de tragédia: complexa, patética, de caracteres ea de “epis6dio” (55b32) ‘Tragédia e epopeia: estrutura e extensao (56a10);, coro (56425) Seges 19 a 25: Teoria e elocucao poética Segao 19) Pensamento e elocugao: 0 pensamento ¢ o dominio da Retérica (56233); As figuras de elocugao: a arte do ator (5668). lefinicao e partes da elocugao — letra (ele~ mento/stoikhefon), silaba, conjungao, nome, verbo, articula~ Ho, flexio e enunciado (56620); Definigdes (56b22). Seco 21 A clocuco poética: espécies de nomes (57431); Genealogia dos nomes (57b1); Definigdo de metafora (57b6); Os outros nomes (57633); ‘Nomes masculinos, femininos e intermediérios (neutros} (58a8). 30 Segio 22 Clareza e nobreza da elocugao poética (58a18); A elocugio que convém (58b15). SegGes 23 ¢ 24 Poesia épica e poesia tragica: a composicao do poema (59a17); O exemplo de Homero (59a29)s Espécies e partes (59b8); A extensio (59631); O assombro (60a11); O impossivel e o verossimilhante (60226). Secdo 25 Problemas criticos: problemas e solugdes (6065); As trés situacdes miméticas (609); Duas modalidades de erro: segundo a prépria arte poé- tica e 0 erro acidental (60b13); Objecdes e solugdes (60622). Seco 26: Conclusdo Mimese épica e mimese trégica (61626); Superioridade da tragédia sobre a epopeia (62b12).. 31 Noma sonre A TRADUGAO A tradugio foi realizada diretamente a partir do texto grego, editado por R. Kassel (1965),!8 mais tarde retomado por D. W, Lucas (1968). Procurei confrontar, sempre que possivel, a traduco que ora apresento com as mais recentes tradugdes, 0 que significa dizer que muitas vezes me apropriei de solugdes jd apresentadas por outros tradutores. Fiz.0 pos- sivel para, como se diz no jargio, “nao reinventar a pélvora”. E bom lembrar que nao apresento aqui uma tradugio comen- tada e sim uma tradugdo com algumas notas explicativas, onde procuro, sempre que julguei necessdrio, acentuar as opgdes de outros tradutores. Espero, em nome da considera- gio que se deve ao pesquisador, ao estudioso e ao leitor de um modo geral, que as préximas edig6es possam incorporar 20 texto todas as modificagdes e corregdes necessarias; estas mesmas que s6 a passagem dos anos e as investidas, contra e a favor da obra traduzida, podem suscitar. As fontes para 0 estabelecimento do texto € 0 aparato critico da Poética de Aristételes so constituidas, fundamen- talmente, de cinco documentos, a saber: dois manuscritos aregos, dois manuscritos latinos e um manuscrito arabe. A numeracao utilizada nesta tradugao € a que foi empregada por Immanuel Bekker (Berlim, 1831), que se apoia, sobretu- do, no manuscrito grego A (Parisinus). Mantive a convenga0 adotada por Kassel para indicar os trechos duvidosos, ou seja, [...] para as supressdes (delenda); <...> para as adigdes (addenda); +...¢ para texto corrompido, que se encontra em estado precério ou mesmo impossivel para a leitura; e *** para lacunas. Introduzo ainda, no inicio de cada seco e antes de al- gumas partes especificas, subtitulos que nao esto presentes 15 4 ceimpressfo utlizada foi a de 1982, publicada na colegdo dos textos clissicos da Oxford University Press 32 no tratado de Arist6teles. Eles foram introduzidos unicamen- te no afa de facilitar a leitura e o reconhecimento dos temas tratados pelo estagirita (esses acréscimos, que nao pertencem a0 texto de Aristételes, bem como transliteragdes e um ou ‘outro termo estratégico para a compreensao, introduzo tam- bém entre colchetes).. Mawuscarros A = Parisinus Gr. 1741 (séculos X-X1) B = Riccardianus 46 (século XID) Ar= Parisinus Arab. 2376 (c. século X) Lat = Traducio latina de G. de Moerbeke (1278) [0 = Etonensis, Bibl. Coll. 129 (c. 1300), € T = Toletanus, Bibl. Capit. 47, 10 (c. 1280)] Rec = apégrafos de A ou de B. 33

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