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Ble) OEHLER O Velho Mundo Desce aos Infernos FUE Nasa.) Besse O TRAUMA DE JUNHO Decree us) Junho de 1848, mais que mera data De CCM als L Ty Mich TeS ae MMOL) DS eee Chie eal ic ie Deselect Cet Blo Pre Meer er ie WC (OR Pot te UCM CC ce stray DO eS CSM Ree CROC Dai em diante, a luta sera intestina, ou seja, de classes. etm Rom T es ett Lee Pec me tory me ma ae eles I} ‘OS nexos entre o trauma dos eventos de Paris e o surgimento da grande li- teratura moderna — tarefa que em- PUD St OR eC ESE tT tores prediletos: 4 maneira de Bau- CE aC ace Ca Ca) se dedica a uma empresa rigorosa de Cee ERC N I R rte) Dee MMs C aM (omni mento. 0 resultado é, sob qualquer an- PORT Sach Gee tele ai SSCA Cora er cet Le ec Pe SU ee EC oe Ue DECOM ORO Comey) Ee eC LCi este Der CUCM TTT od res e figurdes da politica, cada qual contribuindo com o que pode para o a UL Ra ema mer a URC Ce ee ic bee CRU ee Meng Crea a eR oe Coca MS ca ct TOS ee ee Rar) est Li ae TO ese mee Sc Rett eR Tex ed A) TL td SO MMS Te ey Pee MC Cm CLC mee) Pree nL RCS eC too O Heine penitente e devote dos ali mos an0s mostra as Cartas que guar- dara na manga; 0 satanismo de Bau- delaire perde sua aura de perversao elegante e revela o corte analitico; e Fe a CM CUE CMU LED UatU) papel-biblia das edigdes Pléiade. é Oyen Ona CC Fema NVC ae ae Cae CS ie corpo-estranho na Educagéo senti- mental, revela-se pega-chave de um romance que expoe sem do os nexos entre romantismo e repressao, senti- OLS IL Cec DC a Sat a Le a tudou filosofia, filologia germanica e Peer Rca Ut emt! (ela Lo Per aa CEU Ce RT CE ce nem aestética antiburguesa em Heine, Dau- PC Cm ea cy rE eee DOLF OEHLER O VELHO MUNDO DESCE AOS INFERNOS Auto-andlise da modernidade apés o trauma de Junho de 1848 em Paris ‘Tradugao: JOSE MARCOS MACEDO COMPANHIA Das LETRAS. » Frankfurt am Main Copyright © 1988 by Subrkamp Verlag Titulo original: Ein Héllensturz der Alten Welt — Zur Selbsterforschung der Modeme nach der Juni 1848 Capa: Ettore Bottini sobre Pornokrater (detalhe), leo sobre tela de Félicien Rops (1878) Preparagao: Eliane de Abreu Mantrano Santoro Revistio: Carmen. da Costa Beatrizde Freitas Moreira Dados Interacionaie de Cacslogagio na Publicasio (ct) (Camara Brasileira do Linto, st, Beal) Othlec, Dol, 1949 — 1D velho mitndo desee aos imfemos + auro-andlise de smodernidade apés 0 trauina de Jushe de 1848 em Pars! Dol? (Gehler ; raduzao José Marcos Macedo. — Sto Paulo Companhia as Letras, 1999. Tia original: Ein Hellonsture dor Alten Welt — Zur ‘Selbsterforschung der Moderve nach dem Jur 1848 Bibliografic ISBN 85-7164.905.7 1. Civilizago moderna — Influéncias faneesas 2, Franga = Historia — Revelugac de Fevereico, 1848 3. Literatura € sociedede — Francs — Histéria — Séeulo 19 4. Literaura francesa — Século 19 — Histriae erica |, Tul. 99-2004 0p-$40.935805084 indices para eatloge sistemiticn |, Literaura francesa : Revolugan de 1848 2 Historia eerticn 849,935809034 2 Rovolugto de 1848 Literatura francesa Hititis © erica 340,935869054 1999 Todos os direitos desta edigdo reservados & EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702,¢}. 72 04532-002 — Sao Paulo — sr Telefone: (011) 866-0801 Fax: (O11) 866-0814 e-mail: coletras@mteonetsp.com.br i SUMARIO Prefécio. Introdugao.... Primeira Parte CRISE DOS SIGNOS: ASEMANTICA DO JUNHO DE 1848 E SUA CRITICA PELA MODERNIDADE LITERARIA Carfter unico, incomparavel, do acontecimento .. Barbaros e bestas / Monstros, dem6nios — o inferno, Sata / Omal.. Santos e martires / Deus / Jesus Cristo Socialistas / Utopistas / Comunistas / Anarquistas Sonho/ Sonhadores / Menbriage / Banbagiog Loucura/Furor.. Tolice.. Burguesia / Pequena burguesia / Povo, proletariado Guerra social /Luta de classes versus fraternidade /Caim ce Abel. Odio. Misantropia / Pessimismo. Natureza Exterminio / Aniquilacao / Erradicagéo Morte / Fim do velho mundo / Apocalipse ou renascimento. Paris .. 27 31 45 53 55 ST 62 65 76 83 86 89 90 94 97 Franga/Franceses . Europa .. Repiiblica .... Imagens femininas / Papel das mulheres. Perdoar / Esquecer / Recalear versus jamais esquecer/ Recordar .. Junho: a magia de uma data .. Analogias histéricas Metéforas de teatro Coincidéncias e correspondéncias............ Segunda Parte “PELOS ESCRITOS O MAL RESSUSCITADO”: SOBRE UM TRAUMA RECALCADO DO SECULO XIX I. MENSAGENS DESAPARECIDAS DE JO: HIPPOLYTE Dois panfletos: Le Dernier banquet de la bourgeoisiee e La Place publique .... Excurso: 0 anarquismo satanico de Ernest Coeurderoy A Mona Lisa do combatente das barricadas; tentativa de um romance-folhetim socialista.... Ohistoriador ¢ 0 poeta filésofo: passeio com Monsieur Baudelaire... I. O MUNDO (DAS AVES) COMO ELE E£. E COMO ELE DEVERIA SER: A “ORNITHOLOGIE PASSIONNELLE DEALPHONSE TOUSSENEL Osonho do exterm{nio da pega Exercicios elementares de classificagao das aves soci: Odio da esquerda aos judeus: Sartre criticado a luz de Toussenel ...... Ul. AINFELICIDADE DO SABER: ALEXANDER HERZEN O Jeremias russo nas as barticadas de Junho. . Um drama faniliar: a Education sentimentale de Herzen..... 104 108 11 113 121 130 139 144 147 455 155 169 172 183 192 192 198 206 212 212 220 Filosofia da revolugio Epilogo sobre a Europa. IV. ULTIMAS PALAVRAS: A LICAO DO CATRE-SEPUL- TURA. O outro Lazaro: a ressurreigao do poeta Heine. Uma publicidade infernal: os tltimos aniincios parisienses de Heine..... “ V. INDICACOES DE LEITURA PARA O TEXTO DA MO- DERNIDADE: CHAR: BAUDELAIRE, Aniincios e titulo.. Excurso sobre 0 processo contra Les Epigraies . Adedicatéria. Au Lecteur O preambulo da Révolte e textos aparentados Projets de préface... ‘VI. LOUCURA ILUMINISTA: SOBRE TRES POEMAS EM PROSA DO “SPLEEN DE PARIS”. Jogo ir6nico com o mal... Avioléncia como facanha em Le Mauvais vitrier e em Assommons les pauvres!... Le Géteau ou a linguagem da fome. VIL. CRITICA DO CONSUMO PURO: FLAUBERT E OS ILUMINADOS DE FONTAINEBLEAU .. Notas... Bibliografia.... 230 235 239 239 253 268 270 273 275 278 281 286 287 291 291 294 301 PREFACIO Escrever historia significa dar as daias a sua fisionomia, Walter Benjamin, Obra das Passagens Les journées de Juin me révélerent I état vérita- ble de l'Europe. Alexander Herzen, Lettres de France et d'ltalie Este livro pretende elucidar um aspecto ainda em grande parte desconhecido — apesar de Lukées, Benjamin e Sartre — da relagao entre histéria social e histéria das mentalidades no século XIx.A empresa consiste na apresentacao sistemiatica das relagdes entre um dos grandes temas recalcados da hist6ria recente da Europa — o fra- casso da revolucdo de 1848, que culminou nos acontecimentos san- grentos de junho em Paris — e uma modernidade literdria suficien- temente conhecida, j4 que canonizada nesse meio tempo, mas cujo contetido critico permanece, tanto ontem como hoje, objeto de con- trovérsia. Em outras palavras, indaga-se sobre a parcela da experién- cia traumatica do ano de 1848 na nova orientacdo dos autores que revolucionaram a literatura romantica e fundaram a modernidade critica. A complexidade do objeto e do método a ser desenvolvido para exp6-lo ea riqueza do material hist6rico e literdrio a ser classi- ficado — e que foi posto a descoberto no curso de minhas pesquisas — sao responsdveis pela demora deste projeto, que na origem fora 9 pensado como continuagdo de meu Quadros parisienses (1830- 1848) e que, em certo sentido, tornou-se também uma nova versao daquele livro, na qual a problemdatica da “estética antiburguesa” € aproveitada num outro nivel de reflexdo. Alguns contemporaneos conceberam as jomadas de junho de 1848, esse primeiroembate de vulto entre a reptiblica liberal eo pro- letariado insurrecto em Paris, como um genocidio social, uma ten- tativa sem precedentes de exterminar toda uma classe da sociedade. Em razdo de sua monstruosidade, esse acontecimento logo foi pre- sa dorecalque,e com ele a literatura que, de uma forma ou de outra, quisera Ihe dar voz, De modo algum a literatura foi cimplice — € nem preparou o caminho — do recalque dos horrores de 1848; antes, ela propria tornou-se vitima desse recalque, exatamente na medida em que tentou opor-se a ele. Além disso, o protesto literério contra o esquecimento nao se limitou a insistir na culpa histérica da socieda- de burguesa. A modernidade critica apés 1848 reinscreveu 0 acon- tecimento no contexto do século e transformou as reminiscéncias hist6ricas em imagens dialéticas, no sentido de Benjamin, e portan- toem imagens nas quais, ao mesmo tempo em que o passado, 0 pré- prio presente vem a luz. Ora, a fim de compreender as imagens dialéticas da moderni- dade literdria parisiense, é indispensavel familiarizar-se antes com a linguagem e o mundo das idéias a que ela se reporta de modo criti- co e irénico. Por esse motivo, estabelecemos aqui a ligagdo entre literatura e histéria mediante a apresentacdo, ordenada segundo temas, da semAntica social do século xXIx, com base numa “literatu- rade junho”. No sentido amplo do termo,uma literatura que vai de testemunhos das préprias jornadas de junho, mais ou menos apécri- fos ,nunea antes apresentados nesse contexto — proclamacées ,arti- gos de jomal, cangées, cartas, didrios etc. — , passa pelos grandes comentarios politicos de Blanqui, Proudhon, Marx/Engels, Toc- queville, até chegar aos autores que levaram ao extremo a pesquisa literdria sobre a patologia da modernidade, sob o signo da catdstro- fe que foi a Revolugao de 1848: de um ladoos dois exilados,Alexan- der Herzen e Heinrich Heine; de outro, os verdadeiros fundadores da modernidade européia. Baudelaire e Flaubert. Os hiatos, todavia, entre Os textos abertamente discursivos e aqueles cifrados pela iro- 10 nia, devem-se a natureza do assunto, mas derivam também de um ato deliberado de redugao ou imediatismo, com o qual certos textos poéticos sao inseridos na primeira parte em conjuntos tematicos determinados sem que seja fornecida, a cada vez, a interpretagio que serve de base ao respectivo rapprochement do texto em questao Ascitagdes de Heine, Baudelaire ou Flaubert, na primeira parte, pre- ludiam as exposigdes mais sistemdticas da segunda. Ao situd-las no contexto semantico de 1848 ,deve-se fazer ver sua inscrigfo histori- ca, mas nfio prové-las com rigor impositivo. (De resto, toda com- preensfio de textos literdrios pode apenas tornar-se plausivel, mas nunca ser irrefutavelmente demonstrada.) Talvez nao seja de todo supérfluorealgar que a abordagem pro- posta aqui da modernidade de Paris s6 desenvolve um aspecto — embora essencial — daquela literatura € no tem pretensdes, abso- lutamente, 4 exausto ou ao monopdlio exegético. Polémicas aqui e acold contra interpretagdes divergentes nao devem atingi-lasem razao de sua simples diferenga, mas por sua tendéncia a contestar fundamentalmente a possibilidade de compreender a arte, por elas vista como auténoma, sob os aspectos histrico e critico. Resta-me agradecer a todos os amigos, colegas, bibliotecarios, estudantes ¢ instituigdes que contribuiram para a realizagio deste livro. Agradego & Deutsche Forschungsgemeinschaft por conceder- me uma bolsa de dois anos, que me possibilitou, apés 0 perfodo de docéncia em Frankfurt, dar seguimento a minhas pesquisas em Paris. Entre todos — e foram muitos — os que me auxiliaram neste trabalho, citarei Pierre Missac amigo desinteressadoe intérprete de Benjamin, falecido em outubro de 1986, Susanne e Leo Léwenthal, Marthe Robert, Karl Heinz Bohrer, Ross Chambers, Michel Delon, Gerhard Goebel-Schilling, sob cujaégide fluiuo processo de docén- cia entre 1986 € 1987, Youssef Ishaghpour, Hans Jérg Neuschifer, Fritz Nies, Claude Duchet ¢ as equipes “Heine” e “Flaubert” do Institut des Textes et Manuscrits Modernes do Centre National de la Recherche Scientifique. Mas minha gratidao mais fntima é para com Ulrike. Paris, 23 de junho de 1988 dl INTRODUCAO ... fartmoderne a une tendance essentiellement démoniaque. Ft il semble que cette part inferna- lede l’homme, que Uhomme prend plaisir as’ex- pliquer a lui-méme, augmente journellement... Charles Baudelaire, L’Art romantique Raramente politica e literatura tiveram ligacao mais fatima do que durante a Revolugiio de 1848.0 que Victor Hugo, uma de suas testemunhas e um de seus atores, diz de sua capital Paris — que sua dignidade peculiar consistiria no fato de ela ser de esséncia inteira- mente literaria — poderia também ser afirmado da propria Re- volugdo de 1848. Sabe-se que um poeta, Lamartine, foi seu porta- voz, que o Governo Provis6rio da Segunda Reptiblica compunha-se basicamente de literatos e publicistas — cuja escolha, alias, dizia-se recair nasinsinuagées de um editor —.quenaAssembléia Nacional, como no Parlamento da igreja de S20 Paulo em Frankfurt, os escri- tores encontravam-se desproporcionalmente representados. Isso contribuiu para que a Revolucao de 1848 se tornasse, antes de tudo, uma revolucio das belas palavras. Com o que selou-se, naturalmen- te, 0 veredicto sobre ela, e isso nfio apenas no aspecio politico, mas também literdrio, Uma coisa é dizer que uma cidade é literdria, outra, que uma revolugao é literaria; 0 epfteto que, se seguirmos Hugo, “coroa” uma,implicacertamente para a outra um, calcanhar- de-aquiles. Se, no caso da cidade, ser literaria significa uma transfi- 13 guragdo de sua realidade, no caso da revolugao ocorre exatamenteo oposte: uma revolucio literéria ndo é real, mas imaginada, nao é idéia, mas mentira, pois nela a literatura nao eleva a vida a um grau superior, sendo tal superagéio meramente ficticia. A histéria da bela revolugao de fevereiro, 0 fato de ela desembocar na feia revolugao de junho de 1848, sobretudo nas carnificinas sangrentas que puse- ram termo a esse levante de trabalhadores, aparece entio, aprés coup, como inevitavel.“Os fogos de artiffcio de Lamartine transfor- maram-se nas bombas incendiarias de Cavaignac”:’ a amarga cons- tatagao do jovem Marx, ao tracar um primeiro balanco dos aconte- cimentos de Paris, contém a percepgao de uma época, a percep¢o do nexo de causalidade entre a exaltagao poético-forense e 0 colap- so revolucionario. Ela nao langava no descrédito somente a mé lite- ratura, que se comprazia nos higares-comuns, mas a literatura como tal.A frase com que 0 operario Marche certa vez interrompera acan- tilena de Lamartine — “Chega de lira!” — tornou-se proverbial durante certo tempo, citada também pelos inimigos da reptiblica, de tanto que todos os partidos estavam saturados das belas frases que haviam embafdo uns e infundido angtstia e medo nos outros. Odes- tino do abominavel quadro enaltecedor do progresso que o banquei- ro Dambreuse, na Education sentimentale de Flaubert, expde em sua mansao enquanto hd razes para tremer diante da revolucdo,e que desaparece tio logo o perigo vermelho € conjurado e a ordem, restabelecida, é um exemplo tipico da sina da arte e da literatura na Republica de Fevereiro, Enquanto convinha apaziguar uma opiniao publica revoltada, que clamava pelo domfnio do povo, havia um sentido para a literatura, que, como se sabe, ¢ sempre também pro- messe de bonheur — ¢,cm sua forma kitsch, até mais que simples promessa, a saber, imagem iluséria de felicidade — ; os conservado- Tes secretos, que suspiravam pela monarquia e se declaravam da boca para fora a favor da republica, habituaram-se, rilhando os den- tes,ao que no momento parecia inelutavel e portanto também ao fato de que poetas e escrevinhadores miserdveis dayam o tom na nova sociedade. Mas assim que o perigo de um real desabamento politi- co-social tinha sido afastado, o povo insurgente de Paris vencido e dizimado, 0 estado de sitio decretado, a repiiblica dividida e despo- jada de seu carisma, nao era mais preciso tolerar a literatura como 14 um mal necessdrio: ela foi de imediato revogada, posta sob a tutela da Igrejae da moral,e, quando se subtraiu as garras das autoridades, expulsa da cena politica com decretos da censura. O objetivo imediato deste trabalho nao ¢ tanto dar o significado histérico do junho de 1848, mas propor sua relevancia para a historia da literatura ¢ das idéias, sobre ¢ qual nao existe ainda uma pesquisa coerente — ¢ isso apesar de junho de 1848, inclusive na critica ena ciéncia literéria, ao menos de um prisma histdrico-sociol6gico, cons- tarcomo uma data decisiva. Autores tio dispares como Georg Lukacs, ‘Walter Benjamin, Jean-Paul Sartreemesmoojovem Barthes, queain- danfio se pronunciara por uma separagao tio categérica quanto c6mo- dacntre literatura e hist6ria. estabelecem um vinculo entre essa data co inicio da literatura moderna no sentido enfatico do termo, quando niio véem nela o seu verdadeiro ponto de partida histérico. Sem di da, ndo faltam razGes para a auséncia de uma tal pesquisa. Pois as jor- nadas de junho de 1848 nfo representam apenas uma das datas mais dolorosas da histéria do século xIx, um “pecado original da burgue- sia”’ (Sartre), que dividiu a nacao francesa em dois campos, & cujo recalque — ao contrario da hist6ria andloga da Comuna — nunca foi realmente superado; houve recalque também dos testemunhes literé- tios, de um modo ou de outro: esquecidos, ignorados, arrancados do contexto, erroneamente interpretados. As instituigdes tiveram e tém sua parte nesse recalque,bem como o publico leitor,que ainda hoje = eas teses provocativas de Sartre sobre a enfermidade crénica da psi- que coletiva, causada pelos massacres de junho, em nada modifica- ram 0 quadro —‘ mostra pouca inclinagdo para se ilustrar sobre aque- les delicados acontecimentos.A issose soma que o substrato hist6rico dos textos candnicos (Heine, Baudelaire, Flaubert) foi tanto cifrado pelos pr6prios autores quanto sotesrado pela historia de sua recepgao; 08 textos que teriam podido langar uma nova luz sobre o proprio junho esualiteraturaclassica permaneceram até agora praticamente inaces- siveis. Quando um escritor tao relevante como 0 russo Alexander Herzen, que foi abalado como poucas testemunhas oculares pelos combates do junho parisiense, que ruminou com uma paixao tenaz sobre seu significado e que permaneceu durante toda a vida fixado nessa data, vista por ele como a da morte do velho mundo: quando o i5 pr6prio Herzen nunca foi lido como um pensador do junho de 1848, tem-se a prova cabal de que o junho foi recalcado na hist6ria das idéias. Até hoje, nao foi nem sequer registrada a existéncia de uma literatura sobre esse assunto. A razio bdsica dessa “negligéncia” poderia residir nas condigGes de produgao e recepcdo dessa literatu- ra. Alguns textos inspirados pelo junho (por exemplo, os dos anar- quistas Joseph Déjacque e Ernest Ceeurderoy, os de Louis Ménard — amigo préximo de Blanqui e Proudhon),assim como muitas can- Ges politicas, foram ou interceptados, destrufdos e proibidos pela policia, ou entéo impressos no exflio em editoras mais ou menos obscuras, nao raro as expensas do prdprio autor. Se, décadas mais tarde, esses textos foram desenterrados ¢ reeditados, isso se deu sempre de maneiraisolada, separados de seu contexto tematico, his- térico ¢ literario. Intimeros textos haviam desaparecido de facto — nao segundo 0 titulo, pois os catélogos das bibliotecas atestam sua exist@ncia — como textos sobre os acontecimentos de junho: isso vale para 0s escritos de Job le Socialiste alias Hippolyte Castille, de quem trataremos em pormenores, cuja obra literdria, assim como a historiografica, caiu no esquecimento, ¢ que, a exemplo de Herzen, retornou durante toda sua vidaao trauma do verdode 1848, sem pre- juizo das varias mudangas de sua opiniao e de sua escrita. Em rela- go ao naturalista fourierista Alphonse Toussenel é dificil decidir se cabe ordend-lo na categoria dos autores esquecidos ou dos desco- nhecidgs. A favor da Ultima hipdtese depde sua prdpria escrita, que se poderia designar como um hermetismo a iluminar asi proprio — ecujo estudo, no capitulo sobre a Ornithologie passionnelle ,é reco- mendado como propedéutica aos clAssicos da literatura antiburgue- sa apés 1848 —, bem como o fato de que o Esprit des bétes de Toussenel parece jamais ter sido lido como uma satira da época — ao menos nao fui capaz de descobrir vestigios de uma tal leitura na histéria da recepgao desse texto. As mais eminentes vitimas literarias do recalque de junho sao ao mesmo tempo as figuras emblematicas da modernidade literaria: Baudelaire, que hoje é visto como o fundador da lirica moderna, e Flaubert, como o do romance moderno, Esses dois autores — € de certo modo também 0 precursor deles ,o Heine da tiltima fase — sio vitimas do recalque na medida em que uma leitura conformista reti- 16 rou de seus textos o contevido eritico, A prova mais contundente dis- 0 60 fato de o. acontecimento de junho de 1848 ser insignificante na interpretacao tradicional de Baudelaire ¢ Flaubert. Walter Ben- jamin, que como se sabe revisou de alto a baixo a imagem tradicio- nal de Baudelaire, caracteriza com razao os trabalhos de critica lite- rdria que ignoram deliberadamente a importancia das experiéncias hist6ricas do ano de 1848 para a constituigdo da modernidade como “folhetins ampliados”.’ Porém o ciimulo do paradoxo nessa histéria de recepgdo marcada pelo cquivoco ¢ fornecido justamente por Jean-Paul Sartre — ele, que, como nenhum outro, esforgou-se tao cnérgica e metodicamente por estabelecer 0 nexo entre a génese da modernidade literdria c a histéria do fracasso da Revolugiio de 48 ou das conseqiiéncias dos massacres de junho. O autor do Idiot de la famille logra ern centenas de pdginas intepretar Flaubert como 0 romancista que, por ter perdido 0 rendez-vous de 48 e passado as escuiras os massacres de junho (por razdes que ja haviam feito dele, por decisiio prépria, um misantropo e um neurdtico), beneficia ou mesmo antecipa, na Madame Bovary, as necessidades espirituais € ideoldgicas da burguesia do pés-junho; ele, Sartre, simplesmente ignora 0 fato de que a obra de critica social romanesca de Flaubert culmina numa explicacio memordvel do trauma de junho de 1 848. De fato, a Education sentimentale € toda ela uma teflexao sobre a histéria prévia e posterior da revolugao fracassada — uma reflexao sobre as condigées econémicas, sociais ¢ intelectuais que tornaram, possivel passar da euforia de fevereiro aos massacres de junho, reflexfo esta que, em acuidade analitica e critica engajada, nada deve A de Sartre, antes penetra de modo muito mais profundo na complexidade do acontecimento do que 0 filésofo existencialista. que, apesar de toda engenhosidade de seus achados biograficos, carece de sutileza, em particular quando se trata da relagao de Flaubert com a burguesia. O erro de Sartre no seu juizo da Educa- lion,que é 40 monumental como a prépria monografia cuja tese his- t6rico-literaria deve sustenté-lo, seria incompreensfvel sem o influ- xo da imagem tradicional de Flaubert, a qual Sartre — leitor decerto independente, mas nao como Benjamin, que escova a hist6ria lite- raria a contrapelo — sacrifica involuntéria e inconscientemente as percepgGes mais valiosas do autor da Education.' I7 Mas, para ser incontestavel, uma leitura a contrapelo dificil- mente pode prescindir de uma reconstrucfo do contexto semantico em que se situam as obras ou os textos esparsos. Semelhante recons- truco inexiste nao somente em Sartre, que, no tocante ao material hist6rico-literdrio, é de grandiosa modéstia e que, na descrigéo daquilo que ele denomina a névrose objective da sociedade francesa, suscitada apds os massacres de junho ¢ seu recalque, confia quase exclusivamente em sua fantasia especulativa. Parece que Sartre jamais pés seriamente a prova sua hipétese de trabalho, segundo a qual o recalque dos honrores dejunho tornaria simplesmente impen- sdvel a exist@ncia de tomadas de posigio ou testemunhos litcrarios. Contudo, uma reconstrug&o semantica falta também no outro grande modelo da exegese histérica da modernidade parisiense, no Ben- jamin dos ensaios sobre Baudelaire e dos fragmentos da Passagen- Werk [Obra das passagens |]; e isso em razio do postulado hermenéu- tico pelo qual os textos, a fim de aflorarem numa tensio frutiferacom o proprio presente do intérprete, teriam de ser destacados de seu con- texto interno. No entanto, se os comentarios de Benjamin no agri- dem os textos, se eles na maioria das vezes causam espanto, nao sé por sua originalidade,mas também por sua acuidade isso se deve ,de um lado, ao fato de Benjamin ter sondado, de maneira nao sistemati- camas com incomparavel intensidade, o contexto histérico-literario doséculo XIX ,e, deoutro lado, ao fato de eleser ainda um filho daque- laépoca,cuja linguagem ele domina como sua lingua materna. Nesse meio tempo, porém,essa lingua perdeu muito de sua obviedade, mes- mo que nem sempre tenhamos consciéncia disso. Ora, a inovacdo essencial da modernidade literdria depois de 1848 consiste justamente na distancia que ela toma da linguagem de seu século. Assim como o ptiblico afastou-se da literatura, a litera- tura afastou-se do palavrGrio; em outros termos, a literatura moder- na caracteriza-se pelo fato de denunciar toda cumplicidade com 0 espirito do tempo. Mas essa rentincia nao coincide em todos os casos ¢ incondicionalmente com o esforgo de uma purificagao da lingua por meio do refiigio buscado fora do mundo no qual elaé falada. Ao contrario dos representantes da/'art pour l’art ou dapoésie pure — 18 um Leconte de Lisle, o Gautier dos Emaux et camées, um Mallar- mé —, Baudelaire e Flaubert abandonam-se delideradamente embora com repulsa,a prosa de sua época, a fim de “trabalhd-la até seus limites”. Asua escrita vive da idée fixe de que h4 de se transfor- mar aquela prosa em arte: uma operacdo alquimista em que a ironia servird de catalisador. Porém isso significa que 0 conhecimento do contexto semAntico em nenhum lugar é tao indispensdvel quanto justamente na obra dos representantes dessa corrente critica da modernidade literaria. Em busca do material concreto para esclarecer esse contexto,0 ano de 1848 se oferece novamente como paradigmatico, porque a linguagem de 1848 é talvez a expressao mais pura do espfrito de que amodernidade critica quer desvencilhar-se: 0 espirito do século xix sentimental em toda sua contradigao inconsciente entre a pretenséo humanista e a vontade de progresso industrial. Que a literatura de 48, em sentido esirito, tenha malogrado e seja hoje simplesmente ilegivel, em nada fere o seu interesse histérico. A perda de qualida- de estética e conceitual a que os autores de 48 acomodaram-se ao saborear sem escrtipulos a rara felicidade, para escritores, de serem atuais — uma felicidade que arevolugio lhes ofereceu de modo pér- fido por meio da imprensa — , essa perda foi de certa forma compen- sada por um ganho em representatividade. Se eu afirmei,no inicio, que literatura ¢ politica se imbricam ao maximo em 48, agora posso acrescentar que 1848 é 0 tnico instante da hist6ria mundial da fra- ternizagdo nao somente do povo com a burguesia, mas também da literatura com a opiniio publica. O principal meio dessa iltima fra- temizacio 6a imprensa. Em junho de 1848, vem A luz.a problemati- cade uma e de outra fraternidade — 0 junho cava um fosso entre ambas as classes da sociedade moderna; ele também tem por efeito, contudo, fazer com que escritores e artistas, desclassificados e mar- ginalizados, sintam-se como uma classe 4 parte, uma classe entre a cruz e a caldeirinha, por assim dizer. Esses marginalizados preten- dem, em opoigio as “frases volantes” (Marx) de 1848 e contra 0 palayrério dos contemporaneos em geral, desenvolver uma lingua- gem propria, mais consistente, o que muitas vezes impelird varios de seus adeptos As raias do anarquismo, do blanquismo ou até do mar- xismo, ainda que,no mais tardar depois do golpe de Estado de Luis 19 Bonaparte, eles nfo contem mais com 0 povo como destinatério imediato de sua literatura. se é que alguma vez o tenham considera- do como ptiblico possfvel. Mas a resignagao no tocante ao pove nao significa que todos esses literatos, como quer Sartre tenham toma- do parte no recalque de junho. Antes, radicalmente avessos ao espi- rito do tempo, cedo ou tarde eles so confrontados com esse recal- que, e nado é de modo algum por acaso que os escritores mais significativos do Segundo Império sAo os que, ao mesmo tempo, refletiram com mais profundidade 0 aleance dos acontecimentos de Junho, que integraram o junho 8 textura de sua escrita. Cabe aqui constatar — o que éestranho e certamente nao se explica s6pelacen- sura — que a intensidade do debate /iterdrio sobre o trauma de ju- nho nao para de crescer entre 1848 e 1871, 4 medida que os aconte- cimentos se afastam. Ao contrario das publicagées politicas, das quais 0 texto mais marcante sobre 0 junho — um texto que possui alto nfvel literdério —, o artigo “A Revolucao de junho” de Marx, publicado na Newe Rheinische Zeitung, foi redigido sob 0 calor da hora, ao contrério das publicagGes politicas, em que a literatura tor- na-se palida 4 medida que a recordacdoesvanece — até serreanima- da com a Comuna, como em Victor Marouck —, 0s monumentos mais relevantes, em poesia ou ficgio, da literatura de junho datam dos anos 1855 ¢ 1869. Os escritores necessitam de tempo para liber- tar-se dos estereétipos com auxflio dos quais os burgueses de 1848 imaginavam furtar-se a si proprios da novidade histérica de junho. E como esse proceso de libertacao é simultaneamente um proces- so que cles movem contra a linguagem de 1848 ,é natural uma opo- sigio sistemitica entre a semfntica de 1848 ¢ a de seus criticos modernos, a ser abordada na primeira parte desta obra. Por caminhos dialéticos, é possivel remontar a eficdcia desse processo de libertagdo a despolitizagdo forgada da literatura de 1850, Como lhes é proibido, dali em diante e por longo periodo, tomar partido, atacar abertamente a sociedade da Restauragio e 0 novo Império, exprimir As claras 0 seu luto pela liberdade perdida,a sua compaixao pelo povo miseravel ¢ derrotado, os escritores se véem, enquanto permanecem no pais a fim de seguir a carreira lite- raria, literalmente relangados sobre si mesmos, sobre seu préprio mundo privado. F, entao, esses desdenhadores dos burgueses des- 20 Ainsutreig#o, de Daumier (cerca de 1850) cobrem que a melancolia da impoténcia pode tornar-se uma forga literéria produtiva, umalento para origorismo estético e intelectual, que, concentfando-se ostensivamente no mundo interior dos sujei- tos isolados, é capaz de pér a descoberto as relagGes secretas ou as correspondéncias entre 0 universo pessoal reduzido ao siléncio € 0 universo politico a ser reduzido ao siléncio. (Pouco importa que essa. descoberta j4 estivesse preparada esteticamente: ela s6 ganharia 21 relevo, no plano literdrio e politico, depois de 1848-51.) As auto- anilises desses Heautontimoroumenoi nio sao testemunho, como quer Sartre, de uma “consciéncia volante”, distante da realidade; pelo contrario, o erotismo, o inconsciente e o subconsciente, a lin- guagem, 0 cotidiano, em suma, a vida moderna que eles dissecame expem 4 execracao ptiblica como subjugados A mentira s4o justa- mente 0 erotismo, o inconsciente e 0 subconsciente, a linguagem,o cotidianoe, portanto, a vida de uma sociedade contra a qual eles tes- temunham com uma ferocidade que faz lembrar a seus contempora- neos a frieza da maquina fotografica. Ignorou-se que a acusacio contra os burgueses, por intermédio de um her6éi romanesco ou de umeu lirico,possui depois de 1850 uma referéncia hist6rica: 0 mas- sacre de junho em Paris. Se Marx escreve, no tiltimo ntimero da Neue Rheinische Zeitung, que a Revolucdo de junho foi a alma de seu periddico,” pode-se dizer dos autores a serem aqui apresentados ou reanalisados — no essencial, os seis escritores a que se consa- gram os capitulos monograficos da segunda parte — que aderrota de junho ou os massacres de junho estéo no centro de sua escrita, pelo menos quanto sua dimens@o estética. Uma mudanga de acen- to que revelaseresse olhar sobreo junhonao tantoo do pensador que indica o futuro para as massas, que busca retirar um sentido da car- nificina ao interpreta-la, numa Gialética escatolégica, como o “batismo do proletariado”, “nascimento da revolucao social” etc. Antes, esse olhar é 0 do intelectual atingido, obcecado pela recorda- ¢&o de junho como um crime coletivo,no qual cle, por maior que seja a ruptura com sua classe, tem, no obstante, uma parcela de culpa. Se quarante-huitards assombrados como Ménard, Toussenel ou Castille se oferecem ao povo como testemunhas no processo politi- co-moral que 2 imprensa democratica,logo amordagada, move con- tra o vitorioso partido da ordem, Baudelaire e Flaubert, em certo sentido na esteira de Heine e Herzen, pdem em prética, com maior distancia, uma nova andlise hist6rica da consciéncia e da auto-acu- sag&o do burgués. Sua perspicdcia deve-se acima de tudo A sutileza artistica, que Nietzsche denomina certa vez a “seriedade parisiense par excellence”, a uma “paixfio” inandita “pelos problemas da for- ma”." Do poema introdutério de Les Fleurs du mal até a Education sentimentale € os poemas em prosa do Spleen de Paris, igualmente 22 publicados pela primeira vez em livro no ano de 1869, emergem continuamente nos representantes mais avangados da modernidade antiburguesa, na forma de fios condutores, as reminiscéncias ir6ni- cas do junho de 1848, que sugerem uma afinidade oculta entre & experiencia hist6rica recalcada ¢ a experiéncia cotidiana do indivi- duo mergulhado no tédio.” A técnica das correspondéncias, mane- jada sobretudo por Baudelaire e Flaubert, mas também por Heine, consiste, entre outras coisas, em iluminar a obscuridade do passado pelo que Emst Bloch chama “a obscuridade do instante vivido”, e, inversamente, cm elucidar um presente opaco com a ajuda do pas- sado obscuro. Assim, pode-se compreender 0 acontecimento das jornadas de junho, que parecem absolutamente inimaginaéveis num século x1x civilizado, como o paradigma da vida moderna, como 0 fruto tio monstruoso quanto natural do cotidiano burgués. Mas néo por aqueles que — em consonancia com o espirito eo tom da época — permanecem incuravelmente otimistas. Contra seu ascnrso, quase sempre negligente e por vezes pomposamente alegorico, que celebraardpida tecnicizagia como se fora uma ascensio irresistfvel das forgas do bem, os representantes da modernidade estética pro- testam com sua ironiae seu culto da diferenga semantica. Mas como a linguagem da época — a exemplo de sua ret6rica — f o€ mais imediatamente compreensivel , esse protesto, qué 0s proprios con- temporaneos desnorteados nao notaram, ameaga tornar-se cada vez mais incompreensivel. A quem, entre aqueles que hoje cruzam a Place Saint-Michel, as figuras da fonte de mesmo nome, cercada de garrafas de cerveja e de Coca-Cola, tem ainda algo a dizer? Quem seria capaz, de decifrar historicamente aquela alegoria para turistas, de reconhecer que 0 arcanjo de espada em punho, nos ombros de Satands, devia representar na época a vit6ria da ordem imperial e burguesa sobre a revolugao, 0 triunfo do bem sobre o povo mau de junho de 1848? Se jamais passou pela cabega de alguém procurar confrontar 0 grupo de esculturas da fonte inaugurada em 1860 com © monumento imagindrio em versos que Baudelaire, na mesma época e pelo mesmo motivo, erguia para o seu cisne visiondrio na Place du Carrousel, um outro ponto estratégico da metr6pole, € por- que a chave da compreensio de ambas as obras de arte — 0 oe 0 alegérico da época — foi perdida. Sem o conhecimento da semanti- 23 ca histérica da modemidade incipiente, somos naturalmente tenta- dos a tomar 0 carater indecifravel das alegorias como uma caracte- rfstica do uso moderno da alegoria, como fizerm Jau8 ou De Man, cada um a sua maneira.'* Numa perspectiva atenta 4 semantica his- t6rica, ao contrario, € possivel ler Le Cygne, o grande poema de Baudelaire,como uma contrapartida de Saint-Michel,como um sig- no (signe) de que o otimismo obrigatério da Paris de Haussmann teria de contar com a resisténcia da melancolia ¢ que esta cra solidé- tia aos vencidos de junho. Talvez nao exista mais bela cristalizagio do gesto da modemidade parisiense do pés-junho que esse poema. Fa melancolia contra o jiibilo, a obscura recordagaio do mal, de tudo que era tido como superado e que se manifesta, quase sempre da maneira mais inoportuna, quando é recalcado com toda araiva. 24 Primeira Parte CRISE DOS SIGNOS: A SEMANTICA DO JUNHO DE 1848 E SUA CRITICA PELA MODERNIDADE LITERARIA Segui vossas frases até 0 ponto em que elas ganham corpo. Biichner,A morte de Danion L’dme dort maintenant, ivre de paroles enten- dues. Gustave Flaubert a Louise Colet (1852) Jamais on n'a été plus béte qu’en 48! Cette épo- que est féconde; mais on ne peut pas tout dire, hélas! Gustave Flaubert a Emile Zola (1878) ... he was genuinely incapable of uttering a sin- gle word that was not a cliché... Hannah Arendt, Fichmann in Jerusalem CARATER UNICO, INCOMPARAVEL, DO ACONTECIMENTO Jamais, depuis que le monde esi le monde, on niavait vi une pareille tuerie. Joseph Déjacque, La Question révolutionnaire “4 Revolugao de junho proporciona o espetaculo de um com- bate encarnigado como nem Paris nem o mundo jamais viram”, escreve a 28 de junho de 1848 Friedrich Engels na Neue Rheinische Zeitung.' (Na véspera, Marx falara da “maior revolugao j4 ocorri- da”.) E acrescenta: “Para tragar os contornos gigantescos dessa revolugGo de junho nao bastam trés dias como para a Revolucdo de fevereiro” ? Mas erra quem pensa que s6 os fervorosos comunistas de Colonia teriam visio na insurreicdo, que cles se apressam em qua- lificar como revolugao, a “maior crise histérica que j4 eclodiu”:> observadores de outros campos também sublinham o cariter total- mente inaudito do acontecimento.Alexandre Dumas, mais tarde um bonapartista e que durante as jornadas de junho corre de barricada em barricada como redator ¢ repérter do Le Mois, seu periddico “suprapartidério”, pensa que, comparados a esse combate, tanto a queda da Bastilha quanto 0 levante monarquista de 13 vendemidrio de 1795, esmagado com sangue — é a primeira vez que se usam canhdes em Paris — ,forammeras brincadeiras de crianga,o mesmo yalendo para a revolugdo de julho de 1830 ea Revolucio de feverei- 27 Tomada das barricudas junto a Petit Pont. ro de 1848.‘ Proudhon — teérico, representante do povo e jornalis- tanuma s6 pessoa — anota em seu didrio: “Essa insurreigio é por si 36 mais terrivel do que todas as outras juntas que ocorreram nos tilti- mos sessenta anos”.* Com outro acento, porém de modo comparé- yel, formula Le Constitutionnel ,o porta-voz famigeradamente filis- teu de Adolphe Thiers: “Jamais a patria teve de inscrever nos seus anais dias mais funestos e mais lamentaveis”’ e, dois dias depois, a 27 de junho, quando a vitéria da ordem esta assegurada: “Nao se acharé nos anais de outro povo o exemplo de uma luta tao encarni- cada e tlio assassina”, ou seja, a mesma avaliagio de Engels citada noinicio,coma diferengade que a folha reacionaria recusaao levan- teo titulo honorffico de “revoluciio” e o difama como “motim”. Por mais contraditérias que sejam em suas apreciagdes, OS jornais euro- peus — dos grandes periédicos parisienses, passando pelo Indépen- dance Belge, Telegraph de Londres, 0 Northern Star dos cartistas, aNeue Rheinische Zeitung, a Presse de Viena até os Grados de pro- vincia — siio undinimes em reconhecer fundamentalmente a dimen- Jo tinica da batalha de junho. Assim escreye a liberal Freie Zeitung Wiesbaden, a3 de julho de 1848: “[...] 0 combate com que estamos s voltas hoje é muito mais terrivel, muito mais significativo na hit téria mundial do que aquele que eclodiu na sala do trono das Tulhe- tias,em frente ao hdtel Guizot” — alude-se & revolugio de feverei- ro — ou ocorrespondente do Frankfurter Journal que chama “essa sublevacao [...] a mais terrfvel. [...] amais desesperada jd ocorrida aqui” (3 de julho dé 1848). Ora, alguns poderiam supor que se trata de impressGes momen- taneas dos contemporaneos ¢ que, de uma distéincia maior, 0 acon- tecimento teria sido medido com outros critérios. Esse nio € 0 caso, porém, a menos que se perca totalmente a memoria das jornadas de junho de 1848: essa data-chave da modernidade sé perde em rele- vancia quando recalcada. Donoso Cortés, 0 conservador espanhol que Carl Schmitt quis reabilitar como um dos mais hicidos pensado- res da histéria, um dos grandes homens “mantidos em siléncio no século xix”, qualificou a batalha de junho, num discurso que se tor- nou célebre dianie do Parlamento de Madri em janeiro de 1849, como a mais sangrenta de que os séculos ja tiveram noticia no inte- rior dos muros de uma cidade.! No mesmo ano, Alfred Meifner, 29 jovem alemao de Praga, define “aquela monstruosa batalha do pro- letariado” como o “maior e mais imponente acontecimento danova era”. O liberal Alexis de Tocqueville, em scus Souvenirs, qualifica ainsurreigdo de junho como “a maior e a mais singular que ocorreu em nossa histéria, e talvez em qualquer outra’”," Dez anos mais tarde, em Les Misérables, Victor Hugo sentencia que o junho foi “a maior guerra de rua vista pela hist6ria”," “um fato a parte, e quase impossivel de classificar na filosofia da hist6ria”.!? Os romancistas republicanos Erckmann-Chatrian julgam a batalha de junho “mil vezes mais terrivel que a de Waterloo”,'' e Tomasi de Lampedusa apaziguao herdi de seu Gattopardo, pouco antes de estourar a revo- lugao siciliana, com a idéia de que todas as revolucées logo se trans- formam em comédias e que mesmo na Franga, “com ressalva do ju- nho de 1848”,'* no fundo nunca se deu nada de sério. Herzen, Baudelaire e Flaubert — e também Heine — nao economizam superlativos; 0 significado peculiar que eles conferem As Journées de Juin ressuma do teor e da estrutura de seus prdprios textos, 0 que serd esclarecido de perto na segunda parte. Pardigon, um estudante de direito que, na condigao de insur- recto ¢ prisionciro, viveu os horrores das jornadas de junho, faz a distingdo no inicio de seu relato, que causou sensacdo ao ser publi- cado, entre uma historia visfvel ¢ outra invisfvel desse “perfodo tni- co nos fastos revoluciondrios”: * uma registra 0 que ocorreu nas Tuas, @ outta o que se deu nos porGes que serviam de prisao e por tras dos muros fortificados.' Essa tiltima, que por certo nunca poderd ser completamente elucidada, seriaa histéria verdadeirados massacres de junho. Resta constatar que, quando os contemporancos designam as jornadas de junho de 1848 como algo tnico ¢ novo, na maioriadas vezes eles se referem mais a um ov a outro destes aspectos: & bata- Tha das ruas ou a carnificina que se seguiu, No inicio, foi certamen- te a insurreigdo, a luta por si sé, que marcou os observadores como uma novidade. Pela primeira vez, 0 “poyo” ou ainda 0 “proletaria- do” enfrentaa “burguesia” numa guerra civil; a opiniao publica fala de “guerre sociale” ou “guerre servile”, ou mesmo de uma “luta de classes” ou “castas’”. Porém, com 0 tempo, a impressao deixada nos espiritos pelo junho coincidiu com a produzida pelos massacres. Nao é exagero algum afirmar que a repressao sangrenta do verao de 30 1848 influenciou a evolucdo da sociedade francesa até a Quinta Repiiblica, e isso nao a despeito, mas justamente porque foj recalea- dae nunea trabalhada teoricamente. Além disso, essa repressao influiu — para muito além das fronteiras da Franga — na formagao da teoria e da ideologia tanto burguesa quanto socialista, ¢ marca, finalmente, um ponto de inflexao decisivo na hist6ria da literatura moderna. BARBAROS E BESTAS/MONSTROS, DEMONIOS — O INFERNO, SATA/O MAL Em fevereiro de 1848, 0 povo ¢ a burguesia haviam trocado olhares apaixonados. Depois de poucos meses, se ndo semanas, a aimostera modificara-se, a percepgio social mudara radicalmente: as antigas imagens do inimigo, tidas por superadas, emergiram hovamente, Seu tso demagégico pela imprensa contribuiu para 0 desenrolar catastréfico da repressio, que por sua vez so fez confir- mar vencedores e vencidos em seus fantasmas de classe. Desse modo, 0s acontecimentos de junho de 48 puderam reforgar perene- mente um maniquefsmo social ja existente na Franga. A férmula “novos barbaros” aplicada ao proletariado remonta A primeira insurrei¢So dos teceldes lioneses, de 1831.""Le Constitu- tionnel e,comele, todos os adversarios dos insurgentes € dos socia- listas advertem, em junho de 1848,com mais urgéncia do que nun~ ca, sobre os “barbaros do século xIx” "*tomados como 0 perigo mais manifesto para a civilizagdo. Quer se trate da Kéinische Zeitung" ou de um érgio da grande burguesia como a Revue des Deux-Mondes (“Que requinte de barbarie!”) 2” ou ainda do Frankfurter Journal (“esses atos refinados de barbdrie selvagem cometidos pelos insur- rectos”): qualquer um que teme pela ordem sente os trabalhadores, tao logo fagam reivindicagdes e desgam as ruas para pleited-las, como barbaros — ouage como seeles 0 fossem. A metéfora dos bar- baros impde-se como por si mesma a inimeros contemporaneos, € nao s6 aos jornalistas: Balzac fala do “longo duelo entre a barbirie da Mao parisiense a civilizagao da Cabega”.” Lamartine batiza os insurrectos de “os Barbaros da reptiblica”;® Tocqueville, a partir de 31 fevereiro,e Musset, somente em junho, sentem-se impelidos a lem- branga dos “vandalos”;* a elite intelectual e o burgués mediano recorrem, com espantosa prontidao, a f6rmulas como essas ou a bes- tializagaio dos adversérios sociais ¢ ideoldgicos, a qual nao é mais sentida, por assim dizer, como metaforica. Se em teoria o barbaro ainda pode ser salvo, jd que civilizdvel — quando ele surge em hor- das, é claro, essa possibilidade diminui sensivelmente — , abesta é incorrigfvel em qualquer hipétese: 0 inimigo puro e simples, anatu- rezamé, impermedvel a motivos razodveis, movida unicamente por “instintos” e “paixées doentias”. Um protétipo da época como Eugéne Pelletan, partiddrio de Lamartine em 1848, expressa uma opiniao corrente quando chama os trabalhadores “a classe tenebro- sa que tem paixées e instintos,mas nunca idéias” 5 c cle nao se acha 86 ao formular com tamanha franqueza a arrogancia do burgués em junho. A todo “cidadao honesto” impunham-se nos labios e napena tais referéncias animais, e isso sem prejuizo de seu grau de cultura; Mérimée, Musset ou Berlioz falam e escrevem com a mesma natu- ralidade, a propdsito dos insurrectos, como de animais selvagens, Ces raivosos, tigres, hienas, lobos e parasitas imundos, a exemplo dos escrevinhadores de segunda, dos romancistas de folhetim ou dos filisteus. Nao hd mais diferenca digna de mengao entre 0 que se diz privadamente e 0 discurso publico. Berlioz vé a Franga como “uma floresta povoada de homens inquietos e lobos raivosos”;?6 Mérimée pergunta a uma amiga se ela é capaz de compreender “es- ses enraivecidos” ¢ logo arremata: “Eles aprendem do melodrama umas migalhas de herofsmo, ¢ todos tém os mesmos instintos de ani- mal feroz”.” Em outra ocasido,eleelogiaum amigo da provincia por ter atirado nos trabalhadores como se fossem coelhos de sua fazen- da;* depois, cle se rejubilanovamente com as delagGes entre a popu- lagiio operaria: “Sabeis que é um bom sinal quando os lobos se batem entre si”.” Nao cra nada incomum — ¢ isso também foi dito do republicano Cavaignac — falar do povo como da “canalha” que devia ser fuzilada tao logo arreganhasse os dentes. Seria possivel coligir volumes inteiros com tais citagdes, que no se restringem ao momento especifico do junhode 48 ,mas pertencem ao repert6rioda tetérica contra-revolucionsria e florescem especialmente nas situa- cGes de crise. Quanto mais os conflitos se agravam, menotes sA0 os 32 excriipulos, parece, em recorrer A bestializagio do inimigo, 0 que explica por que, na histéria da Franga moderna, esse fenémeno nun- foi tio observado quanto na época da Revolug&o Francesa, no veriio de 1848 e durante a Comuna de Paris. (Dessa perspectiva, também, o maio de 68 foi um eco remoto.) Masa bestializacao, como reflexoe instrumento de demagogos, nio € privilégio tinico da reagdo. Carl Schmitt recorda certa vez com raziio, a propésito de Donoso Cortés, as ideologias do terror revolu- ciondrio que “se server da idéia da humanidade absoluta a fim de bes- tializar todo adversario” * sem se dar conta, porém, do papel desem- penhado pela bestializagao no terrorda reagdoeuropéia,de que Cortés tornou-se, como se sabe, o locutor aprés coup. Se os combatentes de junho € aqueles que os defendem abandonam-se, por sua vez, & bes- tializagao do adversario, tal se dé mais como uma reagao, nascida da indignagao, do que como um jacobinismo doutrindrio. Decidir qual indlignagdo é auténtica e qual é hipécrita, qual é legitima ¢ qual nao é, significaria tomar partido por este ou aquele lado. Limitemo-nos a eonstatar © que Proudhon declara numa carta de junho: “Os burgue- Ses viloriosos siio ferozes como tigres”;" que Baudelaire, em agosto de 48 ,aconselha ao mesmo Proudhon que fique atento As “bestas fero- yes la propriedade”;* e que Alexander Herzen, quando dé noticia, no verdio de 1850, dos recentes debates parlamentares sobre as deporta- gbes dos prisioneiros de junho, chama a maioria da Camara “esses einibais da religiio, esses chacais da virtude e da vida em famiflia”* @ninda ampliaessas imagens ao estabelecer comparagSes comhienas @ jib6ias.“ E de notar, no sarcasmo de tais assergdes, que se tratava de inversGes conscientes, embora apaixonadas, das met4foras animais Antiproletarias correntes. Na prdpria cangiio operdria, a comparagiio animal para “tiranos”, “aristocratas” , “ricos” ou “burgueses” parece Menos irrefletida do que em textos de jornais conservadores ou em declaracGes espontaneas de pessoas cultivadas. Quando Eugéne Pot- fler, porexemplo, compara 0s “burgueses” com bestas, ratos e bichos 6 sempre evidente que ele nada mais quer senao rebater a difa- 1 com difamagio. [sso se aplica até mesmo para 0 tapos talvez mais maldoso da bestializagao. o do bebedor de sangue. Na cangao Les Buveurs de sang, datada de junho de 1848, esse nefasto titulo honorifico é devolvido expressamente a seus inventores: “Buveurs de 33 sang! c’est le nom qu’on nous donne/ Quand nous montrons pour but VEgalité/ Buveurs de sang! ceux-la qu’on emprisonne/ Ceux qu’on fusille! Est-ce 1d un nom mérité?/ Riche. aveugle, vois ,pouremplirton verre / Sous le pressoir un peuple agonisant./ L’or que tu bois,c’est le sang de ton frére:/ Les buveurs d’or sont des buveurs de sang’ [Bebedores de sangue! é 0 nome que nos é dado/ Quando temos por objetivo a igualdade/ Bebedores de sangue! aqueles que sao aprisio- nados,/ Aqueles que sao fuzilados! Sera este um nome merecido?/ Rico cego, vé, para encher teu copo,/ Sob o lagar um poo agonizan- te./Oouro que tu bebes é sangue de teu irmio:/Os bebedores de ouro S40 os bebedores de sangue]. Muito mais direta é uma declaragia epis- tolar de George Sand, escrita sob o influxo da journée de 16 de abril de 1848, quando pela primeira vez as ameagas de morte aos comunis- (as safram dos labios da Guarda Nacional burguesa: “[... era um ban- do de bestas sanguindrias” “° Mas por mais compreensiveis que elas sejam em razao da experiéncia de injustica e de Opressao, também as bestializacées por reagéio parecem fazer parte de uma sindrome uni- versal que se pode caracterizar como racismo social, e que nio existe apenas desde 1848 ou mesmo desde a revolugio. Particularmente revelador sob tal aspecto € 0 vinculo, tao fatidico para a histéria do movimento operario, entre anticapitalismo e anti-semitismo (cf. segunda parte, capitulo 1). Ele atua também no verao de 1848: “Que 0 ocioso, essa vibora medonha, Nao nos roaaseu bel-prazer”,’ dese- ja um cantor operdrio, Victor Rabineau, que numa outra cang&o trata 08 ricos por chacais ¢ judeus.* com o que ele nao se afasta muito de certas opinides de Fourier ou Proudhon. A conseqiiéncia tiltima desse racismo 6, igualmente, a idéia de extermfnio, sobre cu jo significado para ahist6ria dojunho de 48 aindase voltard mais adiante. Em alguns revolucionérios ou socialistas, a vontade de exterminio dirige-se de modo difuso contra judeus ¢ burgueses. Proudhon, ao dizer que os judeus teriam plasmado A sua imagem a burguesia de toda a Europa, taz este apelo lapidar: “O judeu é 0 inimigo do género humano. £ necessario mandar essa raga de volta para a Asia ou exterminé-la” > Baudelaire, certa vez, joga com a mesma idéia: “Bela conspiragdo a organizar, parao exterminio da Raga Judia”.““ Aqui aindanao estamos longe de suas alusées animais a race d’Abel, a raga dos proprietarios estimada por Deus, da qual o burgu8s moderno é 0 tiltimo descenden- 34 te, Este, desde que se ergueu ao trono em 1830, tornou-se objeto de bestializacaio,” com a diferenga de que alguns de seus criticos, antes de junho, distinguiam claramente entre as classes médias, que ainda podiam mostrar-se confidveis, e os “capitalistas” manifestamente fAnguinirios. O insulto épicier visava sobretudo a estes ttimos, € ficredilava-se saber que ele era “mais selvagem que 0 animal selva- gem c mais implacavel que a morte”, como expressa V, G. Belinski. Mais drdstico que original. Apés es acontecimenios de junho, peque- nos e médios burgueses foram inclufdos nesse julgamento. Os erflicos dos vencedores de junho ora se prendem a tradigéo da erftica da burguesia, ora s6 invertem, como foi dito, a compara- glo animal voltada contra 0 poyo insurrecto, Também ocorre uma inversio quando a burguesia é recriminada pela barbarie. “A classe media tomou-se mais barbara que os trabalhadores”, diz o London Telegraph, resumindo a impressao de muitos observadores neutros ha Europa“ Mais decidida, a esquerda, com a Neue Rheinische Zeltung a frente, estigmatiza a conduta “barbara” s6 dos burgueses, @ mesmo Victor Hugo, que marchara contra as barricadas, estreme- ee em segredo diante “dessa civilizagiio atacada pelo cinismo, que se defende com barbérie”.“ Tocqueville resume seu mal-estar dian- te do fanatismo dos defensores da ordem numa férmula espirituosa, que pressupée tacitamente a bestializagao mais nociva do outro eampo: ao tratar os membros da Guarda Nacional, dvides de morte, por “carneiros raivosos”, ele ao mesmo tempo toma sua defesa ontra os lobos ou cfes raivosos e seus mandatérios. Nem sempre se pode separar nitidamente a bestializag4o publi- tistico-lorense da satfrico-literdria, Nao somente a cangiio operdria — porsua essénciauma literatura compromissada, que quer ser can- fadac tomada a peito — , mas também a literatura elevadae “burgue- a” encoraja a fragao da sociedade da qual ela tomou partido ao bes- Halizar os representantes do pélo oposto. A qualidade estética de tais textos depende essencialmente do grau de reflexao sobre as respec- fivas metaforas, da originalidade de sua contextualizagao. E. Prarond eG. Le Vavasseur, dois amigos de Baudelaire, porém ainda Mais amigos liricos da ordem, em seu curioso livro de versos, Dix Mois de révolution, comparam Blanqui a uma hiena,os democratas @M seu Conjunto a serpentes pegonhentas e p6em na boca dos insur- 35 rectos de junho o seguinte slogan, em todos os sentidos revelador: “Rujamos ¢ mordamos como rugem ¢ mordem/ Os ledes liberta- dos!” Isso dé uma idéia do nivel das tiradas em verso que entdéo estavam na moda. Pode-se opor-lhes os versos raivosamente anti- burgueses do Baudelaire de Abel ef Cain, que, ao lado dos poemas de Louis Ménard, constam do que de mais radical produziu a derro- ta de junho no plano lfrico, Neles, as comparagGes com os animais so introduzidas de modo demagégico, mas nao sem inteligéncia artistica: “Race de Cain, dans ton antre/ Tremble de froid, pauvre chacal!/ Race d’ Abel, aime et pullule!/ Ton or fait aussi des petits. [..-] Race d’Abel, tu crois et broutes/Comme les punaisesdes bois!” [Raca de Caim, em teu antro/Treme de frio, pobre chacal!/ Raga de Abel, amae pulula!/ Teu ouro também dé cria. [...] Raga de Abel, tu cresces e pastas / Como os percevejos dos bosques!].? Essa bestia- lizagao, ainda inspirada pela amargura, mais tarde dé lugar,na obra de Baudelaire a umemprego muito mais sutil de metdforas animais, que serve nao tanto A polémica quanto anflise: pense-se no poema introdutorio de Les Fleurs du mal,em que a fauna das lutas de clas- ses retorna como “o zooldégico infame de nossos vicios”, ou seja, como as projegdes da psique de toda uma sociedade, a sociedade burguesa do pés-junho. Além disso, resta mencionar o aspecto positivo da bestializa- ¢ao do povo, a sua conversao em emblema. Como emblema,o povo antes de tudo ledio, mas também elefante, galo (gaulés) ou cordei- rode Deus. Um curioso cruzamento entre metaforas embleméticas © bestiais encontra-se em Les Misérables, na parte em que Hugo caracteriza duas barricadas de junho, uma como “animal feroz” e “javali”, outra como “dragiio” e “esfinge” “* As bestializagGes servem a polémica @ a andlise nos textos do Heine da tiltima fase, que, como a lirica popular e especialmente a lirica operéria, retoma com predilegao os animais tradicionais das fabulas ¢ dos contos de fada,” mas também se permite inspirar de bom grado pela linguagem politica da época — ambas no so, de resto, claramente separdveis — e se langa no jogo satirico com ela, talvez da maneira mais virtuosa nos Wanderratien [Ratos migrado- res] ,no qual todos os esterestipos reaciondrios sobre a “plebe rude”, os “comunistas” e os “agitadores” so postos em cena numa visio 36 Proudhon, de Dawnier, O anarquista au- reolado, o livro, os ratos: “Proudhon, ap6s tolo do socialismo, inimigo da proprie- dade 2 seu destruidor diplomado” (Le Charivari, 6 de janeiro de 1849), apocaliptica, grotescamente matizada, que, por seus exageros histé- ricos, desmascara-se em seu filistefsmo: “Der sinnliche Ratter- haufen / Er will mur fressen und saufen,/ Er denkt nicht, wihrend er siiuft und frit, DaB unsere Seele unsterblich ist. Die Wander- ratten, 0 wehe!/ Sie sind schon in der Nahe...” [O bando sensual de ratos/ S6 quer empanturrar-se e embebedar-se / E nao pensa,enquan- to se embebedae se empanturra / Que a nossa alma éimortal. [...] Os ratos migradores, 6 desgracal!/ J4 esto na vizinhanga].* Mais sério, porém ainda irénico, é 0 tom de um poema do Romanzero, Im Okto- ber 1849 [Em outubro de 1849], no qual as “bestas honradas”, que teriam “muito honestamente” vencido a Hungria revolucionaria, compéem uma antitese com “os lobos, porcos e caes vulgares” , sob © jugo dos quais se achariam 0 poeta e os que a ele se unem, sendo que, ao aplicar os atributos sinénimos “*honrado” e “honesto” aos 37 bois austriacos e aos ursos russos, estabelece-se uma relagao irénica entre as poténcias da reagio européiae os representantes da “hones- ta” reptiblica francesa. Que tais jogos de linguagem sejam melindro- 80S € possam acarretar-lhe dores de cabecaé oque Heine insinua nos versos finais do poema: “Mas siléncio, poeta, isso te faz mal —/Tu estas t20 doente que mais vale calar-te”. Tocamos aqui num dos moti- vos pelos quais a “contrabestializagao” Por parte daqueles que estio do lado dos vencidos é, geralmente, menos brutal do queabestializa- ¢o praticada pelos vencecores: a censura $6 permite a escolha entre o siléncio e a sutileza. Em tais condigdes, que ele conhecia como a palma da mo, Heine est4 em seu elemento, e, mesmo na agonia do Jeito de morte, de seu Catre-sepultura, é patente que isso lhe propor- ciona um prazer francamente sddico em ludibriar uns ¢ alfinetar outros. Assim, ele evoca as temidas bestas insurrectas stodas elas ta- bus — “o lobo e o abutre/ Tubardes e outros monstros marinhos” — 5! para jogd-las cerimoniosamente contra as “bestas muito piores” da nova Paris pacificada de Napoleao m. Em poemas como Babylonis- che Sorgen [nquietagées babilon icas] (1854), a poesia se torna, sob a pressdo dos fatos, um rébus profundo, que sé mesmo os i ‘iciados sao capazes de decifrar,O Preco para tao espirituosa arte é caro: mui- tosniioa compreendem,eamaioriaa compreende mal. Isso vale tam- bém para a ironia com que Heine lanca mio da censura de iconoclas- tia feita ao proletariado, censura esta que representa um caso particular do cliché dos bérbaros, Como nao ficaram claros essa iro- mia e esse procedimento, caracteristicos nao sé de Heine, de inverter um veredicto ideoldgico por meio do exagero parddico, as respecti- vas passagens em Heine — assim como em Baudelaire — foram tidas como confisses antidemocraticas,* Flaubert, que nao pode deixarde ser mencionado nesse contex- to, também se mostra interessado, em seus apontamentos para a Educationsentimeniale, pela linguagem do junhode48 e retomaem varias ocasides ao topos dos barbaros embora nada fale sobre o nfo menos Costumeiro recurso 4 bestializag&o. No préprio romance encontra-se a descri¢fio bastante sugestiva dos rochedos em forma de animais na floresta de Fontainebleau, que subitamente parecem movel-se € Calsam uma sensagio de vertigem no casal, que busca- ta na natureza refiigio contra a insurreigéo, Numa das raras passa- 38 : i is diversos: Proudhon a ifico, aclimata-se aos campos mais diver: emo Nietzsche etc. Em suas cartas de junho, Renan esten- fis die le Renan, que supde como dbvio que o povo barbaro se ci qlié 0 wutor Flaubert intervém como comentador, ele come- #6) (e um lapso particularmente notével em vista do nivel de alia exposigio hist6rica); aqui se peicebe mais 0 = erilo do que 6 romancista distanciado: [...]eadespeito | | wigualdade se manifestava, uma igualdariede bestas. ffiesmo nivel de torpezas”.* A repugnancia universal - ais Flaubert s6 representa por meio de seu bere, a0 passo se deixa contaminar por ela — é uma reayiio, particular- findlida entre os intelectuais, as fiunesies journées. io hii mais, salvo a forja de emblemas, nenhuma bestiali- lente positiva,o cliché do povo barbaro pode ai bem bom uma apreciacao positiva deste tltimo. Nesse eae z parte integrante do “grande paralelo” que, segundo Car! *oonstitui o nticleo das ciéncias humanas do século coe eflexo da convicyao de que desponta uma nova era mundial i j nado | poyo ou o proletariado — ou também os jovens povos = silo chamados a cumprir o mesmo papel que os cristaos NOs NO inicio de nossa era. Tal idéia, cada vez com um acen- {auto como os socialistas utdpicos, Quinet como aan aitier como David Friedrich Strau8, Heine como Michelet. gamente sobre esse paralelo e, com uma certeza pepe da : Pe * Bie shama os novos barbaros 0 “germe da nova flor” * Ao co: © tempo, um pensador como Alexander Herzen insisle fefite na incompatibilidade entre o velho mond eo mund lo },80 Interrogaros vencedores de junho: “Ou sera quenio vedes ms cristiios que chegam para construir, os novos barbaros que A para destruir?”” farbaros, bestas,deménios — uma triade Hnieratanica das ine a inimigos sociais do século XIX. O barbaro € conte i ° jeaga a ser repelida e sd excepcionalmente ens oagen da renovagao; a besta significa, em todes os 28055 um | que se tem de dar caca, ou antes abater; as duas imagens 39 do inimigo implicam a necessidade de uma autodefesa contra os poderes naturais grossciros que irrompem. Na imagem do deménio. ° aspecto escatolégico dessa luta passa ao primeiro plano: pense-se na tradicAo das processos catélicos ¢ cristéos contra Os heréticos ci pagéios 0 adversario social ou idcolégico, o que pensa e deseja de forma diversa,é designado sem rodeios como uma criatura.um ins- trumento ou um servigal do diabo: “Direi eu os excessos de vossa barbarie/ Monstros que em sua firia/ O inferno parece teren, Betta do?" pontifiea aos insurgentes um certo F, de la Boullaye num breve poema épico, Les Journées de Juin, amalgamando exemplar- mente Os trés mativos basicos da proscrigio. Dessa gama de idéias faz parte também a imagem dileta da “hidra da anarquia”, a que a Education de Flaubert se refere alusivamente em certa passagera = A bestlializagio ea demonizagao se acham ironicamente entrelaga- Gas da forma mais bela nos jé citados Ratos migradores de Heine ou no Au Lecteur de Baudelaire. Segundo uma interpretagao religiosa difundida, a Revolugiio Francesa de 1789 foi uma rebeliaio do povo contra Deus e seu repre- Sentante na Terra, 0 monarca.” Essa idéia se renova no século xIx: 08 Poderes das trevas, segundo 0 entendimento conservador, sao 65 radicais, os democratas, os republicanos vermelhos, os socialistas 08 comunistas ¢ anarquistas, os agitadores, raivosos e subversivos, Eles desviam o povo,bomem si mesmo, docaminho direitoe ocon- duzem ao erro. Todo tribuno popular € um anticristo em potencial Em 1848, um tal andtema recai sucessivamente sobre Cabet — a 16 de abril — ssobre Blanqui, Barbés e Raspail — depoisdo 15 de maio =f sobre o cidadao Proudhon,na seqii€ncia das jornadas de junho. o inferno em que todos esses deménios faze das suas, Paris, é a cidade condenada, a anti-Roma. , , De novo, para essa demonizagao ha uma resposta simples e outracomplexa. A simples consisteem rejeilara difamaciio, no mais das vezes pela simples inversio de termos.Assim, Job le Socialiste, num didlogo entre duas vitimas de junho, faz o antigo soldado dic ordem narrarcomo'9 haviam instigado entao contra os trabalhado- “Vocés nos eram pintados como um bando de celerados, profes- 40 sundo doutrinas selvagens em que todos os crimes eram prescritos; voces nos eram apresentados como seitas estranhas,filhas do dem6- iio, que queriam ensangtientar a Terra, destruir a sociedade e con- duzirao cataclisma final da humanidade” “' Herzen vai mais alémao virar o feitigo contra o feiticeiro e retratar os parlamentares da Sepunda Reptblica, supostamente to moderados, como “oitocen- tos homens que agem como [...] um tinico e mesmo rebento do inferno”: A resposta complexa, a0 contrario, consiste seja na acei- lugiio “satanica” do juizo — professa-se obstinadamente o culto a Sata, celebra-se nele o depositario da luz,o libertador ¢ orago, con- frontando-o ao Deus injusto da Biblia, o pai dos ricos etc., como faz. Baudelaire no ciclo Révolte de Les Fleurs dumal — ,seja num jogo irGnico com o temor dos infernos que todos nutrem pelos vermelhos , como Heine adora fazer, ao gabar-se no prefacio da Lutécia por ter previsto bem antes de 1848 0 demGnio do comunismo, de lhe haver feito “uma publicidade infernal” ,ou ao confessar ter cedido “talvez. somente a insinuagdes diabolicas”® em favor do comunismo,como detalhe, antes diabélico do que estritamente dantesco, de que 0 demOnio seria um Iégico; ou ainda ao zombar em rima, nos Ratos migradores: “Es selvagem rato/ Nao teme inferno nem gato”, ou ao blasfemar contra a ressurreigdo: “O céu para 0 cordeiro pio e bom, Para o bode lascivo,s6 0 inferno!” ete. Acontaminagio do politico pelo sexual nao é sé caracteri das réplicas sarcdsticas de Heine, mas também dos ataques conser- vadores aos “batalhdes infernais” (Heine) da revolugao.™ Suposta- mente, a palavra de ordem mais vergonhosa des insurrectos de ju- nho aconselhava a violagtio das senhoras finas. Seja como for, alguns jornais parisienses, a fim de mostrar a que ponto a proprieda- dc estava ameagada, fizeram correr 0 boato de que as bandeiras nas barricadas traziam inscrigdes tais como “Pilhagem e estupro”, re- matadas pela exortagao ao incéndio, o que, de forma elementar, era capaz de tornar evidente a origem infernal da insurreicao. Os versos de Baudelaire “Si le viol, le poison, le poignard , incendie f N'ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins/ Le canevas banal de nos piteux destins / C’est que notre ame, hélas! n'est pas assez hardie” {Se oestupro, o veneno, o punhal, 0 incéndio/ Ainda nao bordaram com seus agradaveis desenhos/ A tela banal de nossos lastiméveis ica 4! destinos E que nossa alma, ah! nao é atrevida © bastante] sdo tik indubitavelmente uma reagao tardia 4 campanha “diabdlica” de difamagaio do junho quanto 0 prefacio francés Lutécia, publicado no mesmo ano de 1855. Também na Education sentimentale alude- sé ao fato, quando justamente a mulher adtiltera do banqueiro pede. no curso de sua soirée, para que nao se aborde 0 tema da lubricida- de dos insurrectos,em consideragao as jovens presentes Ainda €m outros contextos o ano de 1848 depara com a ima- gem do inferno: primeiro, no contexto das condiges assombrosas que reinavam em Paris ¢ na Franga, particularmente em relacio 8 atrocidades cometidas e aos tormentos padecidos — na descrigéio dos massacres, é invaridvel a associago com o inferno em geral ou 0 Inferno de Dante —,e, a seguir, no tocante as conseyiiéncias do acontecimento, Asso vai desde 0 mote de Mérimée, “O certo é que todos iremos aos diabos!” até o “Chaque jour vers I’Enfer si descendons d’un pas/ Sans horreur, & travers des ténébres qui puent” [Cada dia descemos um Passo rumo ao Inferno / Sem fia através das trevas que fedem] do poema Au Lecteur,de Baudeleine Finalmente, se a metdfora do inferno tem seu lugar cativo nas ies crigdes da condition ouvriére em geral,a frase “o inferno da existén- cia Proletéria”, com qué topamos repetidamente na literatura de ju- oho, Jéera urn topos dacritica socialem 1848.Mas ahipétese de ie to logo © povo saisse de seu inferno, a vida se tomaria um inferno para os endinheirados, correspondia a uma con vicgao amplamente ditundida, expressa, por exemplo,na observagiio de De Moléne,que Paris, e sobretudo o bairro operdrio Saint-Antoine, havia side ne semanas que antecederam a batalha de 0. nferno dos pro- junho, “o d prietarios” '* ' ° ; Oséculo XIX tende a pensar o movimento histérico em cate O- rias teolégico-morais; uma dessas idéizs fixas € 0 mal, le Mal. Para os conservadores como para os defensores do progressoe mesmo da tevoluc&o, a histéria e a atualidade apresentam-se como uma luta entreo bem eo mal, entre os poderes da luz ¢ os das trevas A insur- reigda de junho aparece aos contemporaneos como 0. apogeu absolu- to dessa luta, para alguns até mesmo como a batalha decisiva: “A 42 Jifio que o inferno, para o mal, nos envia”,” canta um panegiris- da ordem como Diigge, que nessa avaliagao se compadece tanto no republicano de Lyon® quanto com os grandes oradores da fig ¢ di Europa, com um Victor Hugo, um Thiers ou um Donoso és, “Comunismo” e “socialismo” tornam-se sinénimos do mal, 88 excrilores e os publicistas criticos da sociedade passam por seus cursores. “Em seguida, as pessoas sérias atacaram os jornais”,* 46 tia descrigdo da soirée dos Dambreuse, com 0 que € retomado 4H Apontamento de Flaubert, citando a dicgao dos conservadores: “Todo o mal vem da imprensa” ” Outros focos do mal sao a filosofia e 4 literatura, nas quais se incluem nao s6 autores engajados como Leroux, Lamennais, Sand ou Sue, mas também autores insuspeitos #omo Balzac, Lamartine, Musset, Dumas, Hugo e outros, na condi- go de suspeitos por dispersarem uma semente perversa, desabro- ehadaem junho.' O titulo Les Fleurs du mal, ostentadoem letras ver- melhas na capa da edigdo original, pode ser compreendidocomo uma vonfirmagao ambfgua dessa opinido, e era de se prever que um volu- me de poemas que prometia redespertar Je Mal seria tido como uma provocaciio c suscitaria a desconfianga das autoridades, [gualmente, On artigos de acusagiio dos processos literdrias dos anos 50 nao dife- rem {undamentalmente daqueles contidos nos processos posteriores 4 junho contra Proudhon, Ménard ou Déjacque. A bem dizer, 0 pro- cesso contra 0 “realismo” é somente um episédio, ainda que signifi- vativo,do longo combate do século xIx contra “o mal”. Contudo, também os partidérios da “nova ordem” social tomam a peito expulsar “o mal” do mundo. Em sua brochura sobre 4 insurreigao de junho, Cabet recomenda infatigavelmente sua for- ma de comunismo como remédio contra le Mai. Na linguagem da época esse “Mal” tem duplo aspecto, morale patolégico, dele pade- condo a sociedade. Para uns, le Mal consiste noegoismo das classes dominantes, o que significa reduzir implicita ou explicitamente as relagdes sociais injustas 4 depravacao dos privilegiados; para outros, ele consiste na proverbial “inveja dos pobres”” ou, como parafraseia Tocqueville de modo mais elegante na “inquietacdo do espirito”,a“doenga mais difundida do século”.* Alguns reformis- lus e revolucionarios, mesmo depois de 48, ainda apelam para que a sociedade tente uma vez mais suas receitas contra le Mal, Em retros- 43 pectiva aos combates de 1848 e 1851, George Sand aconselha: “Que aburguesia abra sinceramente os bracos ao povo”.” Partindo de suas experiéncias na Assembléia Nacional, Proudhon chega 4 seguinte conclusdo,em suas Confessions d’un révolutionnaire: “O temor 20 povo € 0 mal de todos os que pertencem a autoridade”.” O prisionei- ro de junho Charles Guerre tenta,com 0 auxilio de uma cang¢ao, tor- nar atraente aos vencedores o grande postulado socialista de 48,0 direito ao trabalho, ao prometer: “E vés podeis fechar o precipicio do mal Pelo direito ao trabalho [...]".”"O mesmo diz Heine, s6 que menos ingenuamente, quando responsabiliza a fome, nas Confis- sdes, pela “maldade”™ do povo e aconselha a “cuidar para que 0 povo soberano tenha sempre 6 que comer”.” A nogao de que a propria sociedade estaria acometida de um mal mortal — ou, numa defini- gio diversa: ora como a miséria de muitos, ora como a soberania do povo; uma vez comoatefsmo, outra como credulidade ¢ supers etc. — é amplamente difundida. Com maior ou menor conviccao, todos 0s partidos acreditam ver no adversario ideolégico um repre- sentante do Mal. Cabetchama a pobreza, la Misére,de“o grande mal,o mal prin- cipal”;” Herzen fala com ironia do principio democratico como um cancer que r6i o velho mundo por dentro;” ultramontanos como Cortés, Montalembert, Veuillot, Barbey d’Aurevilly deploram 0 ateismo como 0 mal do século; Baudelaire constata, numa mimica astuciosa dos discursos destes tiltimos: “Sur |'oreiller du mal c’est Satan Trismégiste/ Qui berce longuement notre esprit enchanté” [Sobre o travesseiro do mal, Sata Trismegisto embala/ Longamente nosso espitito encantado], mas, por outro lado, ao apelar que a raga de Caim suba ao eéu e lance Deus por terra, suplanta a blasfémia de Proudhon: ‘Deus é 0 mal”. Na literatura de 48 hé também um reco- nhecimento dialético do mal como uma forga em filtima instancia benéfica. Isso vai do encorajamento de um J.-P. Géréme, outro pri- sioneiro de junho (“Entendamos essa verdade eterna: o bem sempre. nasce da enormidade do mal”),* até a reabilitagao estético-satanica do mal em Baudelaire, que nio se cansa de louvar em Paris, “capital infame”’, 0 “goiit de l’infini/ Qui partout, dans le mal méme, se pro- clame” [gosto do infinito/ Que por toda parte, mesmo no mal, se pro- clama] (Projerd’ Epilogue). Mesmo Marx ¢ Engels participam dessa 44 fetrica do mal, na medida em que opéem a difamagao moralizante dog revolucionérios uma versao contraria e na medida em que tam- bém neles a imagem do proletariado avizinha-se fortemente da de Cristo: quando, seguindo o gosto da época, Engels relaciona 0 soldo dia Guarda Movel as trinta moedas de prata®! ou Marx apresenta os “plebeus” como os martires de uma burguesia sem peias, 0 leitor vé insinuar-se a idéia do Gélgota, mesmo que Marx nao fale da coroa de espinhos, mas da de louros, que a imprensa democratica teria 0 privi- Jéyio de “tecer nas frontes ameacgadoramente sombrias”” dos ple- beus. Em 1871, Marx acentuaré sua resposta maniquefsta ao mani- queismo da reagdo e jogard a serena Paris operaria da Comuna, tal qual um Eden reencontrado, contra a “Paris galante”,o “pandem6- iio” dos “cZes sanguindrios da ‘ordem’”: a nova ordem, “toda ver- dade”; a antiga, “toda mentira”* © que em Heine soa como gracejo — Paris como “o inferno dos anjos,o paraiso dos demSnios” (Inquie- faces babiiOnicas) — éna verdade a sangrenta gravidede das lutas de classes do século passado. E 0 inferno, os diabos — estes sio sem- pre os outros. SANTOS E MARTIRES/ DEUS/ JESUS CRISTO Nos manuscritos de Michelet encontra-se a mengao de um pro- jeto: miartires e os herdis de 1848” De fato, a mitologia repu- blicana nao conhece somente herdis, mas também miartirese santos. O representante do povo Alphonse Esquiros publica em 1851 uma Histoire des martyrs de la liberté que comega com Prometeu e tet~ mina com os irmaos Bandiera, Lamennais e Robert Blum.® Adolf. Stahr relata como foi convidado por um velho trabalhador, num dos banquetes vermelhos do pés-junho, “a erguer um brinde @ memoria de todos og martires da liberdade”: “Consolai-vos, cidadaos! A fra- ternidade é uma religiao, e toda religiao precisa de martires. Em ju- nho, tivemos martires aos milhares, e meu tinico filho foi um deles!”, teria exclamado 0 homem.** Alexandre Dumas, ao contra- rio, exalta-se com a indec8ncia desses brindes erguidos “aos marti- res da revolugao” nos banquetes socialistas.” Na cangao operdria, sobretudo depois da derrota de junho, os martires nao param de ser 45 pectiva aos combates de 1848 ¢ 1851 George Sand aconselha: “Que aburguesiaabrasinceramente os ‘bragos ao povo”.* Partindo de suas experiéncias na Assembléia Nacional, Proudhon che; ga 4 seguinte conclusao, em suas Confessions d’un révolutionnaire: “OQ temorao Povoéomal de todos os que pertencem a autoridade” ’°O prisionei- to de junho Charles Guerre tenta, como auxilio de uma cangao, tor- har atraente aos vencedores o grande postulado socialista de 48,0 direito ao trabalho, ao prometer: “E vés podeis fechar 0 precipicio do mal / Pelo direito ao trabalho L...1°*O mesmo diz Heine, 36 que menos ingenuamente, quando responsabiliza a fome, nas Confis- ses, pela “maldade” do povoeaconselhaa “cuidar para que 0 povo soberano tenha sempre 0 que comer”.” A nogio de que a prépria Sociedade estaria acometida de um mal mortal — ou, numa defini- go diversa: ora como a miséria de muitos, ora como a soberania do Povo; uma vez como ateismo, outra como credulidadee superstigao ete. — 6 amplamente difundida. Com maior ou menor convicgao, todos os partidos acreditam ver no adversdrio ideolégico um repre- sentante do Mai. Cabetchama a pobreza, /a Misére,de“o grande mal,o mal prin- cipal”;”* Herzen fala com ironia do Principio democrético como um cancer que réi o velho mundo por dentro;” ultramontanos como Cortés, Montalembert, Veuillot, Barbey d’Aurevilly deploram o ateismo como o mal do século; Baudelajre constata, numa mimica astuciosa dos discursos destes tiltimos: “Sur oreiller du mal c’est Satan Trismégiste/ Qui berce longuement notre esprit enchanté” [Sobre 0 travesseiro do mal, Sati ‘Trismegisto embalaf Longamente nosso espirito encantado], mas, por outro lado, ao apelar que a raga de Caim suba ao céu e lance Deus Por terra, suplanta a blasfémia de Proudhon: “Deus é o mal”. Na literatura de 48 ha também um reco- nhecimento dialético do mal como uma forga em Ultima instancia benéfica. Isso vai do encorajamento de um J -P. Gér6me, outro pri- sioneiro de junho (“Entendamos essa verdade eterna: 0 bem sempre nasce da enormidade do mal”), até a reabilitagao estético-satanica do mal em Baudelaire, que no se cansa de louvar em Paris, “capital infame” ,o “goiit de l’infini/ Qui partout, dans le mal méme, se pro- clame” [gosto do infinito/ Que por toda parte, mesmo no mal, se pro- clama] (Projet d’ Epilogue). Mesmo Marx e Engels participam dessa 44 a do nedida em que opdem a difamagio moralizante mal, na medida em que op " inha-se fortemente da de Engels relaciona 0 soldo retoric: a Ger Si a dos revoluciondrios uma versao contrar bém neles a imagem do proletariado avizi Cristo: quando, seguindo 0 gosto da époea, ee en da Guarda Mével as tinta moedas de prata" le alcies “plebeus” como os martires de uma barevestt ae e enna insinuar-se a idéia do Gélgota, mesmo que Marx AoE ee ae hos mas dade louros, que aimprensademocr cn tela p Veni de" : doramente sombrias”™ 4 ont ees A ccamitaned a resposta maniqueista a0 a a ne ? ca ido e jogaré a serena Paris operdria da Conuna, ta qual: ion jeaieanieadas contra a “Paris belamte ° oad a0 indi ‘ ’”: anova ordem, i O pont’# O que emblene can B50 re s mo infetie dos anjos,o paraiso dos demonios” (Inquie- a” er kabloiced — éna verdade a sangrenta gravidade ee oe eclies do século passado.E 0 inferno, os diabos — estes pre os outros. SANTOS E MARTIRES/ DEUS/ JESUS CRISTO itos de Micheletencontra-se a mengao de ua pro- jeto: Dt esest herdis de 1848.“ De fato, a eS ie a8 sonhece somente herdis, mas também mértires e al Canna do povo Alphonse Esquiros publics em Bl am Tibet des martyrs de la liberté,que comega cr ee a ina com os irmaos Bandiera, Lamennais ¢ Rol ee Staht relata como foi convidado por um velho a I i ‘ emule banquetes vermelhos do pés-junho, ' a steve pat I ate de todos os mirtires da liberdade’ : ‘Consol oa i Sh: ternidade é uma religiao,¢ todareli io precisa ¢ Soild ivemos méartires aos milhares, e meu unt ee oe i ia exclamado o homem* Alexandre Dumas, a0 t rome ai cai a indecéncia desses brindes eee ke ord on olugio” nos ocialistas.” Na canga : Sas oun os martires nao param de ser 45 evocacos € glorificados: o proletério é 0 “martir do trabalho”, o combatente de junho é 0 “mértir da teptiblica”, a mulher do depor- tado é um “anjo do globo terrestre”,e assim por diante.* “Diaa dia aumentamos/De mirtires a lista herdica”’ canta A. Dalés; Gustave Leroy celebra“‘a causa santa/ Dos soldados do desespero” Ménard ptofetiza aos vencedores que um dia eles irdo “heijar cada lugar/ Onde correu o sangue dos martires” e desejaria ter nas maos “a impassivel faca da santa vinganga”.” De fato, nem sempre a meté- fora dos mirtires csté ligada a idéia de perdi; muitas vezes a evo- cagao de martires equivale aum grito de vinganga,como em Charles Gille: “E os mértires dao luz a vingadores!””” Na véspera da insur- rei¢do, Pujol prometera imortalidade aos mirttires da liberdade, mas as vitimas da repressio de junho permaneceram anénimas. Protestando contra a politica de Ocultacio promovida pelos vence- dores, Herzen pergunta Por que “niio se deu ao povo 0 direito de conhecer seus mdrtires”.* Le Reniement de Saint-Pierre, de Baudelaire, inclui uma variante satanica desse topos dos mairtires; esses versos mostramum Deus sadicamente filisteu, em cujos ouvidos os solugos dos mérti- tes saio musica das esferas: “Les sanglots des martyrs et des suppli- ciés/ Sont une symphonie enivrante sans doute / Puisque, malgré le sang que leur volupté cofite/Les cieux ne s’en sont pointencore res- sasiés!” [Os solugos dos mattires e supliciados/ Sao uma sinfonia inebriante,sem divida, J4que, apesar do sangue que custa sua voltt- pia/ Os céus ainda nao se fartaram dele!],em que justamente esse “point encore” pode ser compreendido como uma alusdo aos mas- sacres do passado recente. Aessa evocagéo de um banho de sangue airoz e absurdo” corresponde, na lirica operdria radical, uma inter- Pretacdo esperangosa do martirio dos combatentes de junho, que tem como base a mesma idéia da célebre frase de Marx: “S6 depois de mergulhada no sangue dos insurrectos de junho a bandeira trico- lortornou-se a bandeira da revolugao européia — abandeiraverme- that”; “E gracas ao sangue vertido por nossas feridas/ O socialis- mo torna-se a luz do universo”.” Também Proudhon consola os vencidos: “Vosso martirio vos engrandeceu”;* ele os compara, alids, a Galileu e Giordano Bruno” que também figuram no marti- 46 © bom pastor. Na Praca da Bastilha, Monseigneur Affre tenta dissuadir os insurrectos; atrés dele, a coluna de Julho com 0 génio da liberdade. rolégio republicano de Esquiros,'” ¢ partilha a erenge deraue eles conheceram “o martirio, a sina de todo grande inovador ‘cus A parte contraria, a dos yencedores, tem. a seus martires , dos quais alguns — generais, deputados, o eel ne = -aris — portam nomes de televo” O tema predileto dos i ues . res de junho é a morte de Monscigneur Affre, a quem se oa crue atributo “o santo martir” ou “o sublime martir”. O espirito a “arte” é resumido em titulos como L'Emeute et les martyrs, a Martyrs morts pour Vordre | ostentados em litografias e epopéias 47 curtas. Nao somente o arcebispo, “le bon pasteur”, mas também 0 general Cavaignac, que entretanto nao sofreu um tnico arranhio, recebem nessas representagdes tragos messidnicos. Na maioria das vezes,o reconhecimento dos “miértires” vai de par coma detragaio de seus“algozes” ,como no texto em verso que acompanha uma seqiién- cia de imagens intitulada Vie civile, politique et militaire du Général Duvivier, que por sua vez traz.o titulo Chant funebre sur les martyrs, em que se 1é: “Ah! Paris nao é mais que uma hecatombe;/ Mas nos- sos martires por Deus sero abengoados./ [...]/ Vis revoltosos, a Franga vos maldiz!”.'° E 9 mesmo se repete em Prarond e Le Vavasseur, Diigge ou Alexandre Dumas. Ressalta dos textos contem- pordneos que a descrigio de Flaubert da soirée dos Dambreuse — na qual Cavaignac é festejado como salvador, Affre e Bréa como marti- res ena qual se exprimem, ao mesmo tempo, desejos de morte contra aesquerda e seus lideres — é simplesmente 0 inventario dos hébitos lingiifsticos da reagdo, e de modo algum uma hipérbole satirica. Mencione-se ainda que alguns atores de 1848 tendem a repre- sentar a si mesmos como martires ¢ a transfigurar romanticamente suas ages efetivas ou seus sofrimentos. Victor Hugo, cujo engaja- mento “herdico” pela ordem the valeu 0 devido reconhecimento, eleva-se a si préprio,num poema dos Chdtiments,Ce que le podte se disait en 1848, como um Affre melhorado. Lamartine sente-se tam- bém como um miartir de junho, como Cabet ou Louis Blane. Para o jovem Renan, esse papel é ocupado, para tode o sempre, por sua irma Henriette, a confidente de suas angtistias de junho.' Heine, embora sempre tente desfigurar ironicamente suas lamentacoes, parece também fascinado pela idéia do martirio e profundamente convencido de que o sacrificio é inevitdvel. Sua dor pessoal torna- se para ele o simbolo da dor coletiva; no tom do Lézaro, porém, per- cebe-se sempre um acento de revolta e escérnio contra os “poderes selvagens, animais”, diante dos quais tem de sucumbir “o heréi a antiga” como se diz no Romanzero.'"” Nao 86 os her6is reais das jor- nadas de junho, mas também os herdis romanescos sao representa- dos como mértires ou redentores; isso vale tanto para 0 romance popular — Lebrenn de Sue ou Noél Toussaintde H. Castille — quan- to para 0 romance mais importante da Revolugao de 48, cujo herdi 4 revoluciondrio, Dussardier, deveria a principio morter nas barrica- das de junho, coma defensor da ordem malgré lui." Carl Schmitt escreve sobre Kierkegaard: “Ele sabia que, naera das masgas, nfo sfio nem os homens de Estado, nem os diplomatas, nemos generais, mas os martires que decidem os fatos hist6ricos”."" Essa crenga na missao dos martires nao € caracteristica sé de Kierkegaard, mas da religiosidade peculiar de 1848 , que nunca dei- xou de causar espanto a Flaubert, ao trabalhar na. Education senti- mentale e no Bouvard et Pécuchet. Em meados do século passado, Deus ainda faz parte essencial da vivéncia da histéria, que se desenrolava, no sentimento dos parti- dos, sob Seu olhar. Quando, nas cartas de junho, Victor Hugo empresta voz A sua convicgao de que Deus esté com os bons e jus- tos, "ele nao fala somente em nome dos vencedores, mas também do grosso do vencidos que mesmo com a derrota nao vacilaram na sua confianga em Deus. Pois embora se quisesse vislumbrar entao, no fraquejar do sentimento religioso, uma das principais causas da insu- bordinagiio, da impaciéncia revolucionaria de povo,"' 0 atefsmo era aindamenos popular nas camadas inferiores; acentos anti-teligiosos yém principalmente das fileiras da elite intelectual. No poema Glo- ria Victis, dirigido as vitimas de junho, assim escreve Louis Ménard: “Vocés deixam diante de nds uma terra maldita/ Onde mesmo Deus estd sempre ao lado do mais forte”;* e Baudelaire fortalece sistema- licamente essa idéia em seus poemas da Révolte nos quais ele acon- selha a raga de Caim a arrematar sua obra subindo ao céu e precipi- tando Deus sobre a Terra." Isso é retomado, numa forma atenuada, em Le Cygne, a grande elegia sobre o fracasso da Revolugao de 1848, por meio do simbolo do passaro sedento, que estende seu pescogo para o céu, “Comme s’il adressait des reproches a Dieu!” [Como se ele langasse censuras a Deus! |. Em 1848, porém, a revolta contra 0 criador parece ter sido privilégio da elite intelectual da revolugao. Reboul, um poeta artesio saido do povo e deputado legitimista da Segunda Reptiblica, volta-se a Deus, num poema escrito durante as jornadas de junho, quase com o gesto do cisne, nfo para pedir que desabe a trovoada, mas para que faga tempo bom: “Ah! por que Tu 49 Me Jogaste nessa tempestade,/ Eu, fraco pssaro a busca da fenda no rochedo?/ A prépria 4guia veria desmaiar sua coragem,/ EF desse céu em fogo ndoousaria aproximar-se”. Heine numa carta a seu editor, comenta os acontecimentos de junho com uma mistura de espanto. z humor negro: “€a loucura divina tornada evidente! Se a coisa conti- nuarassim serd preciso trancafiaro Velho. — Tudo é culpadosateus que O puseram louco de raiva”."s , Nos potas operérios, o quadro é diverso. Pierre Dupont. a menina dos olhos do proletariado, comeca Manso como um condel: To 0 refrao de seu canto de consolo, Les Journées de Juin: “Ofe- regamos a Deus o sangue dos mortos”,"* e até os mais militantes como Gustave Leroy ¢ Charles Gille, confiam em Deus ainda nt esperanga da desforra: “Avante, abram alas a Némesis!/ Deus see bei nossa queixa,’ Vés tendes apenas que querer;/ Protegei a causa santa/ Dos soldados dodesespero” ,!” clama Leroy, eGille recomen- daa fraternidade como mandamento de Deus, certo de que Ele pro- lege, impulsiona mesmo, os corajosos: “Deus com seu sopro, Sine 0 operario”,""* um otimismo de contradigaio gritante com o cisne emblemiatico de Baudelaire. Vé-se que os versos dos Ratos migradores de Heine, segundo os quais 0 bando de radicais nao quer saber de Deus, comesporileti antes — apesar de Blanqui, Proudhon e Marx — as angitistias bur- guesas do que a realidade social de 1848. Os poetas operérios part- Iham sua confianga em Deus com George Sand, que escreve a um celes: “Deus vird em nosso auxilio, nao duvideis disso, e nossos esforgos. estéreis na aparéncia, darao seus frutos num futuro point: mo -'°E uma das maximas mais citadas da Reptiblica de 48 era: Vox populi, vox Dei”, ‘ _ Desde a Reyolucao Francesa, Jesus foi objeto de interpreta- g0es antagonicas: para os conservadores, 0 garante da ordem: para 0s republicanos ¢ amigos da liberdade,o modelo dignode ser imita- do — em 1792, 0 primeiro sans-culote;em 1848 ,le Christ républi- eain, le Peuple Christ, “o primeiro proletario”, herdi de barricada socialista, comunista ou anarquista, conforme o gosto,'” um 1a que se manteve até o século xx. Em 1848, numa enxurrada de publi- 50 cugées, 0 povo foi celebrado como o novo Jesus ou, inversamente, Jesus 0 foi como o primeiro representante do povo. A Franga, uma yes mais, tornou-se o “Cristo das nagdes” — Paris, a “nova Jerusalém”; alguns socialismos de pimeira hora, o sansimonismo por exemplo, apresentaram-se como o Novo Cristianismo. Os ino- vadores, tal como aquele orador no Club de Vintelligence de Hlaubert, referiam-se com predilecdo ao “fundador do socialismo, 0 Mestre de todos nés, Jesus Cristo!”."* Dessa analogia resultaram diversas conseqiiéncias, em parte contraditérias: {numa mudanga dle época, na redencao do velho mundo, no término da violéncia,na necessidade do martirio ou da morte na cruz, e até da traigao como o pressuposto da salvacdo. Os republicanos de fevereiro censuraram os insurrectos de junho por se terem distanciado do caminho de Cristo; estes por sua veZ,ou seus defensores, podiamreportar-se ao lato de que também o proprio Cristo fora tratado como agitador e arruaceiro: “Enfim, o que Cristo pregava aos homens de seu tempo, acaridade,o amor fraternal, tornou-se uma prédica incendidria,e, se Jesus reaparecesse entre nés, ele seria preso pela Guarda Nacional como sedicioso € anarquista!”,”* como formulou George Sand, tes mesmo da insurreig&o de junho, numa carta a Giuseppe Maz- zini.No album de um amigo, Baudelaire inscreve este aforismo: “Se. Jlesus] C[risto] descesse uma segunda vez sobre a Terra, diria Frank-Carré: houve reincidéncia” . Cabe recordar que Frank-Car- 16 atuon como promotor de acusagio tanto em 1839, no processo contra Barbés e Blanqui,quantoem 1848 ,apés os massacres de abril em Rouen. O tema da reincidéncia de Cristo acha-se na base de uma brochura muitas vezes reeditada do fourierista Victor Meunier, Jésus Christ devant les conseils de guerre que, fundada em inume- ras citagdes do Novo Testamento e dos Pais da Igreja, quer provar que as doutrinas pelas quais se acusam e deportam os socialistas de junhe sio de origem crista. E 0 impulso anticapitalista de Cristo que a esquerda de 1848 salienta de bom grado quando se refere a expul- so dos vendilhdes do Templo. Um tema de critica social que, como a maioria dos outros, nao foi inventado so na revolugao de junho; no Conto de inverno, por exemplo, em retrospectiva ao caminho trilha- do pelo juste-milien desde a revolucao de julho, Heine ja zombara: “Agentes de cfmbio, banqueiros, tu os expulsaste/, DoTemploachi- 5! cotadas —/Infeliz entusiasta, agora tu pendesna Cruz/Comoexem- plode adverténcia!”."* Depois do junho de 1848 ,essa ironiatornou- se de atualidade candente; ela se encontra, sem dtivida abrandada, na constatagao de Meunier: “o mesmo édio do coméreio observa-se em todos 0s anarquistas [...]. Jesus Ihes dera o exemplo, tratando os yendilh6es, os agentes de cambio e os banqueiros como ladrées [...]. Que escéndalo, cidadao! e que insurrecto!”.2° A apologia implicita de Heine de uma imitacao eritica de Cristo é radicalizada no primeiro poema do ciclo Révolre, de Baudelaire, no qual se elo- giao Cristo que age com violéncia contrao bando de vendilhdes,em detrimento do homem votado a Deus, que se deixa capturar e cruci- ficar sem opor resisténcia: “Révais-tu de ces jours si brillants et si beaux/ [...] Od, le cceur tout gonflé d’espoir et de vaillance / Tu fouettais tous ces vils marchands a tour de bras,/ Ou tu fus maitre enfin?” [Sonhavas com aqueles dias tao brilhantese belos/[...] Nos quais, 0 coragio inflado de esperanga ¢ valentia/ Tu fustigavas todos aqueles vis mercadores,/ Nos quais enfim tu foste mestre?]. No fim do poema, ha uma abjuragio solene em relagao ao obedien- te filho de Deus: “Puissé-je user du glaive ct périr par le glaive!/ Saint Pierre a renié Jésus... il a bien fait!” [Pudesse eu usar daespa- dae morrer pela espada!/ Sao Pedro renegou Jesus... ele fez bem!], com o que Baudelaire posiciona-se expressamente contra seu ami- go Pierre Dupont, que, repetidas vezes, condena com resolugao a violéncia revoluciondfia, certa vez referindo-se também a frase de Jesus a Pedro: “Se Jesus disse a Saio Pedro:/ A espada deve repousar na bainha,/ Por que vemos seu vigario/ E seus cardenis ensangiien- a. ~7" Voltar-se ao Anticristo como o melhor padroeiro dos de- serdados € a conseqiiéncia ldgica da posigaio de Baudelaire, Posigiio mais cozrente, em todo caso, do que a transposigao interpretativa da historia do salvador em Ménard, que usa a imagem do crucificado para justificar de modo blasfematério a vinganca dos massacres de junho: “E de medo que fosse dito que essa lei suprema [a de taliao]/ Pudesse ser uma vez esquecida/ 0 homem acreditou que 0 proprio Deus, para absolver 0 céu/ Devesse expiar sobre uma cruz”! Isso para dar uma idéia das entorses artisticas a que, vez ou outra,a fixa- cao na analogia de Cristo podia dar lugar. Num homem de Estado como Thiers, o simbolo do crucificado, citado ao final de seu escri- 52 tosobrea propriedade, tem naturalmente a fun¢ao. elassicaide ade liro pobre de “um furor impio” que “se voltaré contra ele” '* como é dito numa alusdo beata ao junho, e de Ihe dar forgas para suportar com paciéncia seu gravoso destino. Qual seria a grande vantagem do cristianismo em relacao a todas as outras religiGes, pergunta Thiers, para responder ele prdprio: “Sua vantage [.. .] € ter dado um senti- do ador”.'” Alias, a onipresenga da figura de Cristo no mundo das repre- sentagdes da época observa-se também namaneiracomo oscontem- pordneos, ¢ no somente os protagonistas, julgam-se asi mesmos.] £ raro um poeta ou um fildsofo que, ao menos esporadicamente, nao tenha flertado com aidéiade que se devia vernele umnovo Mesias. Seja Hugo, Heine, George Sand ou Baudelaire, seja Saint-Simon, Fourier, Lamennais, Proudhon ou Auguste Comte, todos, parecen- do por vezes beirar o patoldgico, tendem a confundir-se com 0 redentor."' A atitude messifinica vai até ao cabotinismo, no estilo de Lamartine ou de Delmar,em quem se pode veruma caricatura de La- martine por Flaubert; e nao é apenas a equiparacao cistente entre ° povo ¢ Cristo,mas também as obsessdes supra-individuais da época que esto em jogo quando, ao final da Education, 0 caixeiro Dus- sardier jaz com os bragos em cruz sobre 0 pavimento: 0 unico heréi doromance, que desconhece qualquer ambigiio, fez por merecer tor- nar-se um Cristo. SOCIALISTAS/ UTOPISTAS/ COMUNISTAS/ANARQUISTAS Todos esses termos so utilizados no verao de 1848, pelo lado conservador, sem qualquer discriminagdo, sempre pejorativamente e como insultos mais ou menos sin6nimos.'* Em 1846, Baudelaire ja havia ridicularizado a equiparagao dos republicanos com os icono- clastas e anarquistas:” depois da jornada de 15 de abril de 1848, 0 poeta operario Lachambeaudie protestava, numa cangao tornada célebre, contra o grito “Abaixo os comunistas!” ,que ressoara aque- le dia pelas ruas da capital." No inicio de julho, o correspondente parisiense da Newe Rheinische Zeitung nota que a palavra is Psosialis- la exprime a ira do burgués, exatamente como ‘comunista’ dois 53 meses ats”. Numa cena de junho da Education, Flaubert evoca 0 6dio do banqueiro Dambreuse a todos os politicos que despertam a minima suspeita de radicalismo,a comegar por Lamartine até chegar a Lamennais: “todas essas cabegas fogosas, todos esses socialis- tas...”°° Nos apontamentos para a Education, encontra-se uma explicacao etimoldgica do termo socialismo, explicacao claramente em voga na €poca: “os que incriminam a ordem social”. Os Ratos migradores, de Heine, sao um resumo virtuoso das angtistias burgue- sas diante dos socialistas, comunistas, agitadores e outros subversi- vos, sob a forma parddica de uma balada ou uma fabula de terror sobre as hordas de radicais que, sem bens, dinheiro, fé ou moral, desejam repartilhar o mundo. Que essa parddia pouco tenha de exa- gerada nao se constata somente pela leitura da imprensa “moderada” de 1848; mesmo um liberal tao inteligente como Tocqueville faz uma idéia aventureira dos socialistas ,que ele pensa poder verificar diari mente sua volta: eles sdo os “partilhadores” ,/es partageux, que que- rem devorar as coxas de galinha dosricos ¢ vestir seus belos trajes — socialistas por causa de sua avidez ¢ inconstancia. Em junho, quan- do seu porteiro embriagado faz mengio de querer mata-lo, Toc- queville entrevé nele um “socialistanato” | Em suas Letires Républicaines , Daniel Stern cré dever descul- par-se por niio utilizaro termo socialismo de maneira exclusivamen- te negativa: “E a custo se, nesses dias nefastos em que a irritaciio foi levada a seu extremo, ousamos pronunciar uma palavra que parece sinénimo de anarquia ¢ guerra civil”, e distingue trés espécies de socialismo: um socialismo inofensivo, porém alheio ao mundo, 0 socialismo dos “utopistas”; um socialismo perigoso e brutal, o das “seitas”; e por fim 0 socialismo util e reformista dos “homens de Estado” ,o que desemboca numa distingdio bem difundida, represen tada por Victor Hugo em seu primeiro discurso de deputado sobre as oficinas nacionais ou, em Flaubert, pelo velho republicano Arnoux no curso da soirée dos Dambreuse: aquela entre um bom e um mau socialismo, um voltado sensatamente para o que se pode fazer, 0 outro, seja por mania ou maldade, cismado com a revolugao. Por essa distingao,o mau socialismo é sempre ut6pico, “uma utopia que se torna criminosa tao logo queira realizar-se’”’.“” como Marx nota certa vez amargamente. 54 A represso de junho, mas também a respectiva regulamenta- fio da linguagem tem por efeito desenvolver pela primeira vez um purtido socialista, uma consciéncia socialista.”' Para essa conscién- ein, importante que a insurreigéo seja compreendida como socia- liyta. — e nado como bonapartista, monarquista ou insuflada pelo ealnungeiro — ,comoo fazem, entre outros,Proudhon, Marx/ Engels, Herzene, referindo-se a Proudhon, 0 Baudelaire do Représentantde ['Indre. Mas intimeros conservadores também concedem sem reser- yas que a insurreigdo foi socialista ou, como expressa com elegan- fia Tocqueville, que ela surgiu das idéias socialistas “como o filho fasceu da mae”,'* ¢ isso para munir-se de um pretexto contra 08 jnentores tedricos, para poder langar-se numa “cruzada contra as fieresias sociais”.'® Proudhon ocupa aqui, como de habito, uma ‘suriosa posigfo intermediaria ou peculiar; ele ressalia, diante da vomissdo de inquérito: “tudo que € socialista tomou resolutamente {partido dos insurgentes”, para logo acrescentar, porém, que se tleve considerd-los “como vitimas infelizes das idéias do tempo” ,'" ‘uc ele explica em suas Confissées pelo fato de os combatentes de junho terem sido guiados “por utopias funestas”.'* Assim, Proud- jin aproveitaa oportunidade, falando com voz burguesa, para “pre- ‘gir uma pega” em seus adversirios socialistas, em especial os fou- ristas; pois foi como vitimas de provocagées socialistas que os ‘enirios insurrectos de Paris foram apresentados justamente pelos iicedores. Sob essa luz deve-se compreender também a exclama- 40 de Proudhon, citada por Hugo, quando é tachado de socialista: flu, um socialista! Ora, essa!” !*° Nao obstante, Proudhon também 4, como Blanqui,” Herzen ou Marx: quem se declarapartidario do yante de junho declara-se partidério do socialismo,e vice-versa. jepois de junho, a revolugao no pode mais permanecer republica- fa, ela tem de tornar-se socialista. INHO/ SONHADORES/ EMBRIAGUEZ/ EMBRIAGADOS Quase todos os que tomaram parte no verdio de 1848 vivencia- 4-110 como 0 momento do grande despertar; depois do “pesadelo quatro dias” !“* terminou 0 “sonho da reptiblica”. Granier de Cas- 55 sagnac diz que a batalha de junho foi “o despertar terrfvel [...] aque conduziram [...] os sonhos de fevereiro”.'” De maneira um pouco mais amarga, fala-se da “sobriedade” apds a “embriaguez de feve- teiro”. Em geral, a idéia de sonho é objeto de sarcasmo: os adversd- tios sAo os sonhadores. Seu sonho, sua quimera, seu desvario era o novo mundo de unio e harmonia universais fundado pela repibli- ca. Fm princfpio, o escarnio que recai nos sonhadores, entusiastas, fantasistas, embriagados etc. vem da direita; mas nao sé dela. 'Tam- bém Proudhon, como se disse, caracteriza os combatentes de junho como vitimas dos “utopisias”,¢ Marx fala do “estupor” dos republi- canos, “pois suas ilusdes dissipam-se na fumaga dos fuzis”,"° da “grande embriaguez de fraternidade” em que o proletariado pari- siense regalara-se depois de 24 de fevereiro' etc. Semelhante é 0 julgamento de Herzen sobre a Montanha: “Sua reptiblica é 0 sonho Ultimo, uma alucinagao poética do velho mundo” )* A compara¢do com sonhadores e embriagados pode também ser usada como autocritica,como em Herzen,'* na célebre observa- gao de Baudelaire: “Minha embriaguez de 1848”; em Vallés ou, de maneira mais implicita,em Flaubert, que deixaseu Frédéric Moreau acalentar em junho o falso sonho do grande amor. O tema de que tudo “teria sido apenas um sonho” equivale a uma depreciagao das esperangas de 48; mas lamenta-se também que o sonho tenha sido destruido, que a maioria das vezes prende-sc a uma acusacao con- tra 08 que o destrufram, como em George Sand, quando cla escreve auma amiga que esta sabe o quanto cla sofre com um “tal desenlace de nosso belo sonho de repiiblica fraternal”. O fato de que cla te- aha sido destrufda nie ¢ forgosamente uma prova contra a utopia, mas antes contra o mundo, raziio pela qual Baudelaire ameaga que- rer abandonar um mundo onde “a ago no é irma do sonho”,° ou entio realizar o sonho pela violéncia. Apecha de “sonhadores” imposta ao adversario politico signi- fica sempre sonhador maligno. Liberais e republicanos zombam dos monarquistas como sonhadores retrégrados.'* Para os partidarios daordem, todos 0s “vermelhos” sonham com um futuroirrealizavel. Em junho, a associagao do revoluciondrio ou socialista ao sonhador é um reflexo conservador; como exemplo, cite-se aqui o Le Consti- tutionnel de 24 de junho de 1848: “Os sonhos, as extravagancias 56 [...], as quimeras orgulhosas renderam os seus frutos”. Entretanto, observadores moderados ainda distinguem os sonhadores inofensi- vos dos sonhadores perigosos, como porexemplo os socialistas ut6- picos, que querem realizar seus objetivos sem violéncia, e os blan- quistas, que, “em outras €pocas, teriam incitado uma noite de Sao Bartolomeu”;'” porém todos se inclinam a acusar os representantes da esquerda radical de serem os sonhadores que confundiram os sentidos dos bravos trabalhadores. Nao raro essa censura prende-se a da perfidia diabélica, da barbarie, do delfrio ou da bestialidade. Assim diz Hugo sobre o antes tao belo pove de fevereiro, corrompi- do pelas “mis leituras”: “Hé os que alimentam nao sei que tristes sonhos de pilhagens, de massacre ¢ de incéndio”, ¢ acrescenta que 0s panfletistas tornaram selvagens os mesmos homens dos quais Napoleao teria transformado em heréis.'* E o tom de Hugo é 0 de toda a imprensz burguesa, o da literatura panegfrica de junho dos Prarond-Le Vavasseur, de Boullaye, de Diigge, o das declaragSes privadas do mais obscuro filisteu de provincia como aquele Vachez de Lyon, que numa carta emprega a expressiio “veneno dos sonhos socialistas”.' Na dtica conservadora, a imagem primordial do sonhador infame é novamente Sati, razao pela qual o Baudelaire do ciclo Révolte comete a blasfémia de situd-lo acima do pacifico sonhador que é Cristo: “Gloire et louange & toi, Satan, dans les hau- teurs/Du Ciel, od tu régnas, et dans les profondeurs/De1’Enfer, oi, vaincu, tu réves en silence!” [Gldria e louvor a ti, Sata, nas alturas/ Do Céu, onde tu reinavas,e nas profundezas/ Do inferno, onde, ven- cido, tu sonhas em siléncio!].! Resta mencionar ainda o emprego geral,semmaisreferir-se AcircunstAncia histérica conereta, dotema dosonho, quedesempenhou um papel de relevo na literatura dadesi- lusio posterior a 1848 — pense-se apenas na Madame Bovary, no Romanzero on em Les Fleurs du mal em seu conjunto. LOUCURA/ FUROR Muito do que foi dito a respeito do tema do “sonho” e do “sonhador” cabe também para o da “loucura” e do “enfurecido”. A ofensa de loucura também é reciproca: “Loucura do pove ¢ loucura 57 da burguesia”,'“ como nota Baudelaire, da distancia de al, guns anos Coniudo, 0 tema da loucura esté ligado ainda mais estreitamente a data de junho que o do sonho. O sonho foi 1848 como um todo. A loucura é 0 junho mais que todo o resto, mesmo se, para muitos observadores, a revolugaio parega desde o inicio como uma loucura generalizada, de que zomba Heine como trecho “Logo nos dias da loucura universal eu voltei A razdio”! de suas Confissées, “Ano de 1848, ano louco e fatal, Jd que o mundo vai pela deméncia, aprovei- tei esse momento para fazer também as minhas loucuras”,'° anota Sainte-Beuve num olhar retrospectivo.Como foi dito, a insurreicao de junho era tida como o ctimulo da loucura ¢ do furor, Paraa gran- de maioria, os loucos eram os insurgentes; para uma minoria,os bur- gueses. No extremo da forma demagdégica fala-se do “furor sangui- nario” dos insurrectos — mas também dos vencedores —, ou mesmo, sobretudo da parte dos burgueses, fala-se dos “cies” ou “lobas raivosos” que siio os trabalhadores, como fazem Berlioz ¢ Mérimée em suas carias,"“ uma designagao que legitima a matanga sistemética. Justamente nisso, contudo,nesse cerco fandtico do par- tido da ordem aos trabalhadores, muitas vezes seguido da cacada humana,é que comentadores como Renan, Herzen ou Flaubert vis- lumbram a verdadeira loucura das jomadas de junho. Louis Blanc recorda essa fiiria da reacdo: “Parecia que Paris era habitada somen- te por loucos enraivecidos”.° E mesmo Du Camp comenta essa atmosfera de panico da burguesia: “Um acesso de alienag&o mental apossara-se de toda Paris”,' sem nomear, porém, a0 contrério de seu amigo Flaubert, as conseqiiéncias da grande peur de junho de 1848 — osmassacres dos insurrectose prisioneiros. Nem sempre os insurgentes sao tratados por loucos com uma intengao maldosa; por vezes, sua “loucura” 6 concebida como uma simples “aherrac4o”, 0 que deveria protegé-los dos atos de vinganca drac6nica. Muitas vezes 840 os republicanos moderados, por vezes também os catéli- cos devotos, que pedem a concessio de circunstancias atenuantes aos trabalhadores: “Misericdrdia aos loucos que ao erro impele/ O vento das paixdes!”.'" Mesmo Louis Festeau, 0 chansonnier du peuple,chamaos combatentes de junho “esses insensatos” *Snoque € aplaudico por Pierre Dupont," Martin Nadaud e mais tarde Vic torine B., que vem na insurreigdo um desvario coletivo do espirito 58 dos trabalhadores parisienses, provocado pelafome, sendo que Vie- torine B. repreende Pujol, que ela chama “um ditador de camisa branea” ,por haver atraido os trabalhadores auma cilada, por lhes ter instigado “até 0 delirio”.'" Em Les Misérables, Hugo, que demons- tra uma certa compreensio superveniente pelos insurrectos, reco- nhece alguma legitimidade 4 “loucura” Gees "pols ha — um certa quantidade de direito até na deméncia” | Mas desde ° a é Juta de junho, havia como que um gesto de prontidao para apr Oni- mar-se dos vencidos, 0 que porém supunha havé-los chamado & razao: “Chamemos a nos os homens desencaminhados por uma voz. de Caim”’” clama Balleydier, o historiador da Guarda Mével, na do de seu livro. ae enue Represélias. Lei de taliiio” € 0 titulo dado por Cae a.um capitulo de sua brochura sobre junho. Nos esbogos do. capitu- lo sobre a soirée dos Dambreuse, Flaubert nota: “Todos estiio loucos de medo e de egofsmo”,” 0 que a seguir ele desdobrara na-propeia Education. Numa passagem célebre, cle compara o delirio da teagéio aos “delfrios da pobreza” ,a fim de decidir pela igualdade da bestia- lidade. O interessc particular dessa passagem,contudo, reside menos em sua curiosa equivaléncia do que na sentenga final, que lembra os efeitos persistentes das carnificinas de junho: “A razao ptiblica esta- va abalada como depois das grandes catastrofes da icalate dc espirito permaneceram idiotas pelo resto de suas vidas 8G) me lo de perder a razao diante da atrocidade dos acontecimentos encontra- se em muitas testemunhas de junho. Numa carta A irma, em meados de julho, Renan diz que sua alma foi profundamente baled e somente a idéia de seu examen d’Etat o impede de dilacerar-se. A 1: deagosto, George Sand escreve a Charles Poncy: Estive oe e como que imbecil durante varios dias. Minha satide se tes ‘abe lece, mas minha alma permanecerd para sempre partida, pois nao alimen- tomais esperancas pelo tempo que meresta de vida” !* Nem dez anos mais tarde, ela atribui as jornadas de junho o mesmo efeito trauméati- co sobre o heréi de seu romance La Daniella, que. a diferenga danar- radora maternal em primeira pessoa, nao podia mais recuperar-se, porque as vivera ainda quase crianca.'” Alexander Herzen, no capt tulo “Depais da tempestade” de seu livro Da ‘outa margem, descre- ve. com impacto 0 que sentiu quando, sentado “de bragos cruzados’ 59 em seu apartamento parisiense, ouviu “os tiros, o ribombar de canhées, os gritos orufarde tambores” sabendo muito bem “que nos arredores 0 sangue corria, golpeava-se, feria-se, que ao lado alguém morria — pode-se morrer disso, ficar louco. N&o estou morto, mas envelhecido, devo convalescer das jornadas de jinho como de uma, grave doenca”’ A seguir, esse fildsofo da revolugao de junho decla- ra-se contraa “felicidade da loucura” , pelo que ele entende a posse de uma fé,e a favor da “tristeza do saber” e portanto a pura desesperan- ga," a negacao radical do “velho mundo” nascida do mais profundo ceticismo, Essa lucidez, acentua Herzen, sera vista pela maioria como loucura, mas a loucura pode reportar-se a um modelo supremo, 0 Cristo."* Michelet clama em seu Journal: “E 0 15 de maio,e 0 24 de junho (0 coragao rasgado, partido)?” ,e “Ei-nos semo sentimenta- lismo vago, aalma, é verdade, partida”."" Até mesmo Mérimée, nao particularmente melindroso, registra no infcio de julho um longo acesso de melancolia, mas nos seguintes termos: “Eu metia medo a mim mesmo, gostariade atear fogo areptiblica e aos quatro cantos do mundo” | Porém nao s6 a vivéncia das jornadas de junho pode tur- var a razéio, mas também sua simples recordagao. Eude-Dugaillon, um simpatizante dos combatentes de junho préximo a Montanha, assegura: “Seme for preciso relatar nossos desastres ,nossos crimes / Entio ficarei louco...”."* Com talento incomparavelmente maior, Baudelaire, que havia feito exclamar o herdi de seu primeiro poema pés-junho, Le Vin de l'assassin: “Nous sommes tous plus ou moins fous!” [Estamos todos mais ou menos loucos!], vincula, em La Cloche félée,a idéia de uma ferida da alma & recordagiio dos massa- cres de junho, sendo que a comparagao da voz evanescente do pocta € oestertor de um ferido de morte implica uma relagio de causalida- de: “Moi, mon ame est félée, et lorsqu’en ses ennuis/ Elle veut de ses chants peupler l’air froid des nuits/ Tl arrive souvent que sa voix affaiblie/ Semble le rale épais d’un blessé qu’on oublie/ Au bord d’un lac de sang, sous un grand tas de morts,/ Ft qui meurt, sans bouger, dans d’immenses efforts” [Quanto.a mim, minha alma esta rachada, € quando em seus tédios/ Ela quer de seus cantos povoar o ar frio das noites / Ocorre muitas vezes que sua voz enfraquecida/ Parece 0 rouco estertor de um ferido que foi esquecido/ A margem de um lago de sangue,sob uma pilha de mortos,/ E que morre, sem se mexer,em 60 jmensos esforgos]."° Em seu cisne, enfim, que a meu ver éuma ima- gem do povo insurgente de junho bem como do poeta, Baudelaire reulga com uma delicadeza dolorosa seus “gestos loucos”: uma espé- cie de sublimagao da pecha de loucura de 1848. Também na cangao operdria deparamos com 0 tema da loucura: aqui so as vitimas da teag’lo que perdem a razio sob o peso da dor. Trata-se de embeleza- mentos melodramaticos de faits divers, como em La Femme de l’in- surgé.. de Déjacque, ou de alucinagdes proféticas, como em Le Sol- dat du désespoir, de Leroy, que inicia com estes versos: “Ontemem bro doente,/ Ainda repleto de combates/ [...]/ Vi soldados. 29188 meu em marcha... Por fim, a importincia desse tema é marcante também no Heine da iltima fase. Na jé citada carta a Campe, ele caracteriza 0 junho como uma “loucura divina tornada evidente” nas lamenta- goes do moribundo retorna, como um fio condutor mais ou menos humorfstico, um receio cuja causa histérica tiltima poderia ser a repressiio da Paris revoluciondria pela Paris burguesa — um recelo que Heine descreve assim nas Inguietagdes babilonicas: “Tn mei- nem Hirne rumort es und knackt/ Ich glaube. da wird ein Koffer sepackt/ Und mein Verstand reist ab — 0 wehe —/ Noch frither als ich selber gehe” [Em minha cabega ha rumores & estalos / Acho que nela alguém faz as malas / E meu espirito vai embora — ah! —/ Antes mesmo do que eu)."” Embora 0 poeta individualize ¢ racio- nalize a um s6 tempo seu medo da loucura, tomando-a por um sim- ples fenémeno paralelo da agonia, ela se manifesta, contudo, mui- to explicitamente aparentada Aquela que se exprime em certos Tableaux parisiens de Baudelaire para ndo ser reconhecida como umsigno dotempo. Assim, “medo de fantasmas” no Affrontenburg dc Heine relembra estranhamente o de Les Sept vieillards,¢ € licito supor que a experiéncia na base de ambos os pocmas deveria ser pro- curada numa observagdo como esta de Heine (que, lida em separa- do, da impressio de ser bastante obscura): “O louco n&o quer pas- sear pelas Tulherias; cle vé drvores de um. verde formoso, mas as raizes sob a terra saio vermelho-sangue”’ | Resta ainda delinear brevemente o papel do sonho, da embria- guez, da loucura como tema central da poesia de Baudelaire. Aqui também hé de se distinguir entre uma forma de utilizagao critica, 61 autocritica, apologética ou provocadora: de um lado, Baudelaire distancia-se dos sonhos — seus proprios ou de estranhos —; de outro, aferra-se a cles, Ele denuncia, em Au Lecteur,a grande loucu- ra do ennui, o sonho da destruigao do mundo que todos acalentam; ele critica,em Les Plaintes d’un Icare, sua propria utopia do “tudo ou nada’: “Quant 4 moi, mes bras sont rompus/ Pour avoir étreint des nuées” [Quanto a mim,meus bragos se quebraram/ Por ter abra- gado nuvens]; ele se expde 4 loucura para melhor compreender suas causas, como em Les Septs vieillards, Les Chiméres, Mademoiselle Bistouri; ele zomba da vertigem do progresso da “humanité bavar- de, ivre de son génie” (Le Voyage) e nfo se cansa de preconizar a embriaguez, os sonhos,o mundo de aparéncias da arte ou do artiff- cio como 0 Unico meio de salvagao contra uma realidade letal (La Voix, L’ Etranger, Enivrez-vous). TOLICE Nao poucas testemunhas das jornadas de junho mostram-se sur- presas em primeiro lugar pela tolice de todo 0 acontecimento. Por exemplo Prosper Mérimée,o negligente guarda nacional: “Em meio Adorque me aflige,sinto sobretudo a tolice dessa nacao”.””"' A tendén- cia a considerar todos os atores da revolugao como tolos ea propria revolucéo como uma tinica e mesma tolice parece ter sido dissemi- nada em 1848, especialmente entre os artistes. Sainte-Beuve, por exemplo, fala das “tolices e misérias do presente” |” que ele gostaria de esquecer. Nesse caso, porém, 0 veredicto volta-se menos contrao Povo, mesmo O povo insurrecto — este, como se disse, parecia “enraivecido” ou “louco” — , do que contra a burguesia € a pequena burguesia, que cram vistas como estipidas. Sem divida, a associa- go nao era de data recente, mas pertencia ao repertorio da critica a0 “burgués”, cujo alvo predileto, a Guarda Nacional tratada ironica- mente como “garde bourgeoise”, chamou a atengio sobre si em ju- nho com o seu herofsmo equivoco. Que Mérimée a tenha integrado nao o impede de ridicularizar os seus “imimeros concidadaos hones- tos, mas infelizmente tolos”,"* a exemplo de um Daumier ou um Flaubert, sendo queeste dltimoniio se contenta com a caricatura pura 62 O herofsmo burgués, segundo Daumier. “O gnarda nacional Rifolard [wm parente inofensivo, por razbes de censura, do Roque de Flaubert], que durante as cinco jomnadas de Junho permanecera em casa, nao é mais capaz de conter 0 desejo de mostrar-se: a despeito das Iégrimas da mulher e da crianga, ele empunha seu fuzil e corre para um banquete na provincia” (Le Charivari, 9 de novemnbro de 1848). ples da tola Guarda Nacional, mas mostra, na figura ie Pére jie , até onde podia iro seu fanatismo pela propriedade nas joma- dle junho. Mas Blaubert faz também a caricatura da tontice dos spatas,talvez como méximo de espirituosidade na descricao de 63 uma assembléia do revolucionario Club de I'intelligence. Ora, uma tal critica nao 0 estigmatiza como reaciondrio, do mesmo modo que a divinizagaio do povo ¢ de sua infalibilidade nao expressa uma men- talidade incondicionalmente progressista. Contra esse erro levanta- se Heine, numa passagem muitas vezes mal compreendida de suas Confissées,em que ele qualifica 0 ato de incensar 0 povo como toli- ce perigosa e ousa esta afirmagiio herética: “O povo [...] € quase tao bestialmente esttipido quanto os seus validos” coma qual ele, na medida em que isso concerne & Franga, visa tanto & Montanha quan- toaos socialistas da estirpe de Louis Blanc ou aos bonapartistas. Nao obstante, a tolice é vista na maioria das vezes como um atri- buto da contra-revolugio: na nova versio do poema Trotz alledem! {Apesar de tudo!], de Ferdinand Freiligrath, publicada no comego de Junho de 1848 na Newe Rheinische Zeitung, pode-se ler: “Apesur de tudo e de todos/ apesar da tolice, da astiicia e de tudo mais / sabemos umacoisa: a humanidade/ obtém a vitéria — apesar de tudo!”; 0 mes- mo ocorre em Les Fleurs du mal, que iniciam com esta assergfo revela- dora: “Lasottise, l'erreur, le péché, la lésine/Occupentnos esprits et tra- vaillent nos corps” |A tolice, 0 erro, 0 pecado, a mesquinhez/ Ocupam nossos espiritos e trabalham nossos corpos] e terminam com uma ima- gem da tolice eterna, ironicamente dedicada a Du Camp, e portanto seguemna mesma dire¢ao queobalangode Herzen, ao final de sua vida: “enfim chegou a hora de contar com a tolice como uma forga podero- sa”."" O mesmo Herzen, numacartade. -junho, havia amaldigoado a bur- guesia ¢ essa “estipida Europa”, qualificando a burguesia francesa como a parcela mais tola da populacdo européia.”” Também 0 seu ami- go e acversério Bakunin fala, a propdsito da burguesia de junho de 48, da “classe téotola quanto numerosa dos épiciers” que é“realmente bes- tial”: “O que torna 0 épicier tio selvagem, a par de sua desesperadora tolice,é a covardia, o medoesua insacidvel cobiga”.* Dostoiévski nado se exprime de maneira diversa, cmbora com freio irdnico, em seu Ensaio sobre o burgués, que igualmente langa um olhar retrospectivo sobre o junho. E 0 Heine da tiltima fase adora Tepresentar os politicos incapazes da revolugao burguesa, de ambos os lados do Reno, como ovelhas bois asnosete.;!” tragos satiricos andlogos existe em Marxe Engels e na caricatura da época. Mas também de forma autocritica as pessoas recriminam-se de tolice ou, como Baudelaire, de covarde sub- 64 jifio a“‘)’énorme Bétise / La Bétise au front de taureau” (L’Examen iui). Num discurso prolixo, Proudhon narra como sedeu seu des- bramento durante as jornadas de junho, como ele pade reagir de Wieira (io “imbecil” quanto a reacionaria Assembléia Nacional, pela | ele foi, nolens volens, contaminado: “Eu faltei, por embotamento Jamentar, com meu dever de representante” ”” Gustave Lefrangais, jalmente, assim julga a lenda segundo a qual o levante de junho teria ‘agulado pelos bonapartistas: “Ela acoberta a parvoice dosingénuos infamia dos patifes”" /RG'UESIA/ PEQUENA BURGUESIA/POVO, PROLETARIADO A reflexao sobre 0 junho equivale, em muitos textos, a uma jello sobre a esséncia ¢ 0 papel da burguesia. Jean-Paul Sartre, fom dos criticos de entéo, diz que os massacres de junho foram o sacio original” da burguesia: “Em junho de 1848, 0s véus se ras- 1, ¢, por meio de um crime, a burguesia tomou tento de si mes- em sua realidade de classe; cla perdeu sua universalidade para , numa sociedade dividida, por relagdes de forga com ws classes” .** Essa andlise apdia-se em Marx para quem 0 junho 48 € 0 momento exato em que todas as facgdes da burguesia i-se contra o proletariado e “ambas as classes que cindem a Jedade moderna’ acham-se pela primeira vez frente a frente ilusdes. A 24 de junho de 18480 correspondente parisiense da ue Rheinische Zeitung fala da “agonia” da burguesia; Engels, em firligo, acentua a brutalidade bérbara com a qual a burguesia contra 0 povo uma “guerra de extermfnio”, e permite-se itis escdrnios sobre o“heroismo” dos leGes e chacais da Bolsano di Guarda Nacional." Alexander Herzen mostra-se particular- fe pasmo com o fanatismo da ordem; ele sente como francamen- ecravel esse “Parlamento de épiciers encolerizados” — em ipa com o qualas policias politicas da Austria e da Russia iam “cordeirinhos” —, a exemplo da Guarda Nacional em sua dade Feroz eestipida’”” e da pequena burguesia como um todo. suas Cartas da tdlia e da Franca, ele op6e 0 terror tragico dos hinos ao terror abjeto dos burgueses de junho.**Em Herzen,um 605 fio condutor recorrente é a certeza de que o junho lhe roubou as ulti- mas ilusGes sobre a burguesia, que se tema si mesma como 0 ponto culminante da hist6ria.*” Bakunin interpreta 0 junho como o mo- mento em que “a classe burguesa renunciou abertamente a religiao de seus pais”;** apés 0 massacre de junho, ele constata — e nesse ponto ele poderia ser o fiador direto de Sartre — nao apenas uma “consciéncia pesada da burguesia”.mas “uma paralisia” que a teria levado a “entregar-se de corpo € alma a completa reagéo”.°° Essa mesma perplexidade diante dos “crimes da burguesia” de junho, que chega até a repulsa ¢ 0 6dio, observa-se em temperamentos to diver- sos como George Sand — que todavia sempre defendera uma recon- ciliagao das classes — ,Cabet, Renan, Castille, Ménard, Jules Valles, 0 boémio Alfred MeiSner ou Dostoiévski. Muitas vezes,a experién- cia de junho reforga uma postura defensiva j4 existente em face da burguesia, como em Heine ou Baudelaire ,que,no Abel et Cain, esbo- ga uma visio blanquista do antagonismo de classes. Na Education sentimentale, a galeria flaubertiana dos vencedores de junho e seus aliados ,embora ideologicamente indeterminada, é de uma acuidade social fascinante; como nenhum outro autor, o romancista revela 0 quinhio da vida privada burguesa nos assassinatos de junho. Para republicanos moderados como Eugéne Sue, a nobreza, e nao a burguesia, é culpada pela represso. Erckmann-Chatrian con- trapdem uma boa burguesia republicana a uma burguesia maligna e reaciondria, que se liga ao jesuita De Falloux. Pouquissimos autores fazemumadistingdioclara entre pequenae grande burguesia. Ao que parece, Proudhon também ignora essa diferenga: em junho, a bur- guesia teria sido ludibriada pela “reagao”. A Guarda Nacional. supde ele em seus Carnets, “nao sabe que a causa dos insurgentes € a sua propria” *” Ao mesmo tempa, porém, é 0 jarnal de Proudhon que langa uma polémica contra os “malthusianos” e, com isso, for- nece uma importante divisa ao socialismo do pds-junho.' Depois dos acontecimentos do 15 de maio,e sobretudo depois das jornadas de junho, os ataques a république bourgeoise tornam-se veementes na cangao popular, até raiar a intransigéncia, a declaragao de uma guerra entre classes. Caracterfstico de uma certa forma de concilia- ¢4o é o argumento do Charivari, érgao republicano moderado que, numartigode 28 de junho de 1848, pinta os trabalhadores como viti- 66 tas de um quixotismo social: eles teriam querido combater “a bur- uesia”, mas, apés a introducgao do sufragio universal , nao haveria imais burguesia — esta nao passaria de um espantalho, um “fantas- ima sempre erguido contra eles para Ihes meter medo” 2” (Inversa- mente, muitos comentadores da época designam a caga aos “comu- jiistas” e “socialistas” comoum ato deerigir “espantalhos”.) Aolado da critica politico-sociolégica da burguesia, ha uma outra, essen- eialmente moral, que parte da idéia de que a burguesia néo é uma #lasse ou uma “casta”, mas um estado de espirito. Um representan- te de vulto desse ponto de vista € 0 jovem Ernest Renan, que,emsuas @iirlas de junho, confronta as virtudes da burguesia — inteligéncia, eultura, espirito e espfrito empreendedor, senso de ordem e de fami- lin — e os seus vicios — falta de originalidade e de criatividade, de fé, de ideais,de amor & humanidade, de sensibilidade social etc. —, pura daf depreender a exigéncia de que o povo se alic 4 burguesiac eompense, gracas a seus dons particulares, aqueles defeitos burgue- 4e8,"'' o que relembra as teses de Michelet, George Sand ¢ outros sobre a necessdria regeneragao da burguesia exaurida por meio das forgas naturais em pleno vigo, advindas do povo. Talvez essa atitu- ile scja tipica de fevereiro de 48; mas mesmo depois de junho,o ape- Jo ireconciliag&o entre povo e burguesia nao se calou completamen- te, nem na literatura decididamente republicana nem na literatura Operdria, embora ele mude de tom, niio sendo raro mesclar-se nele algo de desesperado. O tema do envelhecimento da burguesia prende-se de bom gra- do ac da decadéncia européia ou do “velho mundo”. Numa forma @xacerbada, fala-se de apodrecimento e decomposigao. Célebre é a frase de Flaubert numa de suas cartas a George Sand: “Pintar bur- Bueses modernos e franceses fede-me o nariz estranhamente”.“* Bakunin ,de modo bem estereotipado, vé uma cortelagao entre a éti- ‘64 burguesa e a derrocada do velho continente: “Esses burgueses [,..] nao tém mais vergonha alguma. Antes de morrerem, jé esto totalmente podres. E nao sé na Franca, camaradas, a burguesia esta fiodre [...],mas em toda a Europa” “’ Alguns poemas de Les Fleurs ‘dit mal,como Une Charogne ou Les Métamorphoses du vampire, lem ser lidos como alegorias de uma tal visdo da sociedade, sendo ‘de pensar na observacao de Benjamin, segundo a qual Baudelaire Atmosfera ds vésperas da insurrei¢éo, com os vencedores de junho decididos a dar um basta: Acionistas da ferrovia conver- sando sobre dividendos (Le Charivari, 28 de junko de 1848) enxerga os cadaveres também de dentro.’ Mais uma vez, a essas evocagoes baudelairianas do corpo social correspondem temas dos Uiltimos poemas de Heine — tanto 0 do ciclo de Ldzaro quanto 0 fabuloso dos Caprichos dos amantes: “Reib mich mit Rosenessen- zen, und gieBe/ Lavandenél auf meine Fiige// Damit ich gar nicht stinken tu Wenn ich in des Brautgams Armenruh’ ...” [Esfrega-me comesséncia de rosas e esparge/ Oleo de lavanda sobre meus pes // Para que eu nao cxale mau cheiro/ Quando repousar nos bragos do 68 noivo] 27 Come Baudelaire, Heine entrelaga o tema da podridio eo das bestas,com maxima viruléncia nos Ratos migradores nos quais a imagem dos proletdrios onfyoros esté ligada a idéia de um corpo de Estado em decomposig&o. Antecipando a rubrica “Esquecer”, mencione-se por fim que repetidas vezes — e precisamente no con- texto do junho, mas também do dezembro de 1851 — é ressaltadaa capacidade de esquecimento da burguesia. Em Baudelaire, Dos- loiévski e Flaubert encontram-se as designac6es mais ir6nicas do burgués como um ser desmemoriado, uma pessoa querecalcou,com maior Ou menor sucesso, a culpa do passado. Quando se fazia explicitamente a distingao, por volta de 1848, entre 0 bourgeois eo petit-hourgeois — o que fizeram pouquissimos contemporaneos, pois em geral nao se ia além de diferengas implf- vitas,e as figuras grotescas do épicier ou do boutiguier podiam ser tomadas como caricaturas da burguesia em seu todo — ,representa- va-se esse pequeno-burgués como um burgués piorado, cuja prover- bial tolice, covardia e abjegao superavam em muito a de seu mode- lo. Marx, que no Manifesto j4 caracterizara essa nova classe come uma classe oscilante entre o proletariado ¢ @ burguesia, representa essa oscilagaonas Lutas de classes na Frangacomo tom satirico que se adotaya desde a Monarquia de Julho quando 0 assunto cram os “Nas jornadas de junho, ninguém lutou mais fanaticamen- tc pela salyagiio da propricdade ¢ pelo restabelecimento do crédito do que os pequeno-burgueses parisienses — donos de catés, de res- (nurantes, mercadores de vinho, pequenos comerciantes, merceei- ros, operétios qualificados etc, A boutique reunira toda sua forga € marchara contra a barricada, para restabelecer a circulag&o que leva da rua & boutique. Mas por tras da barricada postavam-se os clientes eos devedores, diante dela os credores da boutique.E quandoas bar- ricadas foram derrubadas e os operdrios esmagados, quando os puardizes das lojas, na embriaguez da vit6ria, precipitaram-se de epiciers: volta a seus estabelecimentos, encontraram a entrada entrincheira- da porum salvador da propriedade,um agente oficial do crédito que Jhes apresentava o titule protestado: letra vencida, juro vencido, ria vencida, boutique vencida, boutiquier vencido!\” *” 6g Inaudita nessa zombaria do pequeno-burgués é a distingaio sarcasti- ca dos interesses eeondmicos entre a burguesia de posses ea peque- na burguesia. Para Marx, uma vez sufocado o levante, os pequeno- burgueses entregaram-se a seus credores burgueses, e s6 com a “faléncia em massa” tomaram consciéncia de que seus verdadeiros interesses prendiam-se aos do proletariado. Essa avaliagao confina paradoxalmente com aquela de Proudhon , que parece nao saber ele proprio, € verdade, que tem em mente a pequena burguesia quando diz “burguesia”, ¢ a burguesia financeira quando diz“reagio”. Nio assim com Herzen; ele toma os pequeno-burgueses como basica- mente inconvertiveis e incorrigiveis: “o pequeno proprietario é 0 pior de todos os burgueses”.”” Ele escreve na primavera de 1849: “Os pequeno-burgueses esto saciados, sua propriedade se acha assegurada €, sendo assim, eles renunciaram ao seu interesse pela liberdade, pela independéncia” >” Para ele,a pequena burguesia é a stimula menos da oscilagdo do que de uma estagnacao galopante, uma verdadeira podridao; ele fala do “ambiente mesquinho e s6rdi- do do filisteu [...], que recobre toda a Franca de um mofo esverdea- do”,”' e constata que beleza ¢ graca desaparecem dos costumes: “todos tém medo, todos vivem como épiciers, os costumes da pequena burguesia tornaram-se universais,ninguém confiana pere- nidade: tudo € temporario, tudo estd para alugar, tudo oscila”.° Por- tanto, também em Herzen encontra-se a idéia da oscilagio, mas nao no que respeita 4 conduta politica da propria pequena burguesia, e sim em relagao a atmosfera comum da Franga da época, de ares pequeno-burgueses. O Flaubert da Education representa tanto a oscilagiio da peque- na burguesia entre o povo, de um lado, e a grande burguesia, de outro, como também critica sua baixeza moral. No entanto, sem o. conhecer, Flaubert corrige Marx ao mostrar que abalo econdmico algum, nem mesmo uma faléncia total, faz 0 pequeno-burgués vol- tar as costas 4 ordem, antes pelo contrério: o republicano Amoux, depois de bater-se muitas vezes por uma reptiblica honesta, sem por isso melhorar sua situagdo comercial, acaba como negociante de objetos de devocao, e 0 intelectual Sénécal, antigo combatente de junho, torna-se ao cabe policial de Bonaparte. Em junho, a boémia artfstica pequeno-burguesa da Education inflete em bloco parao 70 WWso da reagéo, mantendo com insoléncia muitos de seus trejeitos jliburpueses. Pellerin, o pintor,e Hussonnet, 0 jornalista, vendem- é Ho partido da ordem na soirée dos Dambreuse, assim como o prt ) Hédéric; Hussonnet chega até a compor um texto incendiario tra o socialismo, L’Hydre, 0 que nao o impede — “talvez pelo feito de uma inveja pueril desses burgueses que jantaram bem” 2? © insinua o narrador — de zombar da Guarda Nacional e imitar §Pridhomme sobre uma barricada” ™ A ignorancia da prépria figiio, tipicamente grotesca 2 pequeno-burguesa, revela-se no 40) (\ue © her6i de Flaubert protere certo dia sobre sua propria FAgho, a de 48: “Faltou a centelha! Vocés eram simplesmente Byueno burgueses, e os melhores entre vocés, pedantes!”.* Pode-se imaginar qual o aspecto da parédia de Prudhomme pbre uma barricada feita por Hussonnet quando se léem as cartas Renan, que também se vé postado entre dois partidos dos quais ® sentir igual Gdio e que sabe, como testemunha ocular da carni- fi de junho, que “os épiciers matarao todos aqueles que julga- inimigos de suas boutiques” * Nao sao boémios, mas absclu- onic militantes os ataques contra os “vis comerciantes” que spntrumos em Baudelaire ¢ em Ménard. Recorde-se uma vez jf 4 imagem da expulsao dos vendilhdes do Templo em Les ¥y du mal. Ménard, em seus Jambes sobre o junho, invectiva a gulewia da seguinte mancira: “E vocés, vis traficantes, raga baixa te jante/ Que, nestes dias malditos, véio/ Embriagando de ouroe 9 0 horda bramante/ Dos degoladores estipendiados.! Fora giil, voces empesteiam o ar puro da patria!” 27 Nao fica claro se, J essNes utributos, gue dizem mais respeito a pequena burguesia, se interpelaria antes a burguesia como um todo. A percepedo social da geracdo de 48 é geralmente dualista, e ilo cm fevereiro quanto em junho,s6 que neste com um pouco e7a.Ao lado de uma glorificaco pura e simples — mas eénua — do povo, hé sua simples desqualificacao. esquematismos, 0 povo aparece como belo, bom, iso, sibio, ou como feio, vulgar, perigoso ¢ abjeto. Nao é 6 mais diferenciada a nogaode povona qual ambos os pontos de 7

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